Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
07
Set 12
publicado por José Geraldo, às 12:07link do post | comentar | ver comentários (3)

Apesar de identificado quase absolutamente com tudo quanto a esquerda representa, eu confesso que sou um coração que ainda se agita quando ouve o bater de um tarol. As comemorações da Independência evocam lembranças boas de minha infância, era uma ditadura, mas nós éramos felizes. Havia censura, mas o mundo era um pouco mais inocente, éramos meninos e tínhamos nossos ídolos. Meus amigos e eu sonhávamos em estudar no Colégio Cataguases só para podermos desfilar no Sete de Setembro envergando o uniforme de gala com colete de brim vermelho e gravata preta. Batíamos continência para a fanfarra do SENAI, vestida de dólmã e fazendo malabarismo com as baquetas.

Por tudo isso que vivi, pelos sentimentos de amor à Pátria que eu ainda tenho, e que não vou esquecer em troca de espelhos e tabaco, como muita gente que abana o rabinho, feliz, na frente de um gringo, por tudo isso eu hoje me senti injuriado como poucas vezes.

Minha filha estava escalada para o coral que cantaria o Hino Nacional Brasileiro diante da sede da Prefeitura. Pela manhã bem cedinho lá estava eu para vê-la em seu momento de brilho. Por um momento me afastei para ir ao banco comprar créditos para o celular e quando voltei, me vi diante de uma cena quase inacreditável. Enquanto as escolas faziam o aquecimento de suas fanfarras e as crianças se reuniam no palanquinho para o momento do Hino, começou um culto evangélico em alto volume em uma igrejola que funciona ali perto.

A falta de respeito demonstrada pelo (ir)responsável por aquele culto foi tão gritante que várias pessoas perceberam, não somente eu. As crianças dando as primeiras batucadas e os alto falantes ecoando a voz de narrador de futebol do pastor mastigando as sílabas e terminado, vez em quando, numa palavra reconhecível. Sequer percebi o momento em que o Hino Nacional foi cantado pelo coral infantil, porque aquele demente sem civilidade estava atrapalhando as solenidades com seu alto falante.

Não há absolutamente nenhuma desculpa para o que ele fez. Ele fez realmente com o objetivo de afrontar as festividades. Ele não pode alegar que não sabia que haveria solenidade porque todo mundo sabe que Sete de Setembro e feriado, e todo mundo sabe o que acontece nesse feriado. Esta é uma data que está loonge de ser «surpreendente». Não pode dizer que usou o alto falante porque as fanfarras estavam atrapalhando a reza porque lhe faltou o bom senso de antecipar ou adiar o culto, sabendo que era Sete de Setembro e haveria fanfarras. Em vez disso, o pastor preferiu o confronto, afrontando toda a comunidade ali reunida para o desfile e atrapalhando a solenidade do Hino Nacional.

Dirão que estou faltando com o devido respeito ao credo ou aos crentes representados naquela igreja. Pode ser. Mas que respeito aquela igreja mostrou para com a comunidade, as escolas, as fanfarras ensaiadas durante semanas, as crianças que cantariam o Hino, a Pátria representada naquela solenidade? Como podem querer respeito se não respeitam aos outros? Esta atitude, unilateral, grosseira, incivilizada e intolerante só serviu para mostrar quais são os valores ali cultivados. São os valores da imposição, do meu alto falante de milhares de watts gritando dentro do seu ouvido o que eu quero que você ouça, mesmo que você não queira. Jesus não merece seguidores assim, o Jesus que mandou pagar tributo a César e disse ao representante do Império Romano que seu reino não era deste mundo.

Minha revolta contra a afronta cometida por aquele pastor não é do tipo que será acalmada com um simples pedido de desculpas. Aliás, desculpas só servem para acalmar a consciência de quem errou. Para a vítima, só duas coisas servem: reparação e mudança. No caso é irreparável o dano, pois este Sete de Setembro foi irremediavelmente estragado naquela parte de sua solenidade. Mas seria bacana se no ano que vem os responsáveis por aquela igreja realizassem o seu culto um pouco mais cedo ou o adiassem para outro dia. Em respeito (que é bom e todo mundo gosta) não só à Pátria, mas às pessoas que acordam cedo para ver o desfile de seus filhos e para acompanhar o coral infantil cantando o Hino Nacional.

Os religiosos gostam de dizer que uma das importâncias da religião é ensinar «valores» aos fieis. Valores como respeito ao próximo, base de uma sociedade pacífica e estável. Respeito que os responsáveis pela organização daquele culto não manifestaram ter em relação a nós, que estávamos lá para ver os nossos filhos no desfile cívico. Alguns dirão que Jesus é mais importante do que isso. Mas nesse caso, se em nome de Jesus se pode abolir todas as regras de educação e civilidade, então o que impede que em nome dEle também se roube, se mate ou se cometa qualquer crime? E nesse caso, o amor de Jesus não fica reduzido ao mero do inferno, que gera uma obsessão egoísta de salvação, que não se importa com a sociedade? Que valores são esses? Qual a importância desta religião para a sociedade? Eis como uma religião se torna egoísta e monstruosa.

Não quero dizer que aquela religião em especial seja monstruosa, mas que os seus líderes não podem tolerar que floresçam nela atitudes egoístas e desrespeitosas para com o próximo, sob pena de se permitir que a monstruosidade medre. Se é verdade que Jesus quebrou as regras da sociedade ao curar no sábado, também é verdade que, além de tudo que disse sobre a convivência com o Estado (citado acima), ele também recomendou aos seus fieis que fossem mansos, «porque os mansos herdarão a terra».


11
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 19:39link do post | comentar | ver comentários (3)
Esta semana, enquanto discutia a opinião de Paul Rabbit sobre James Joyce, acabei, sei lá como, psicografando Clarice Lispector. Se eu fosse espírita, esse seria um dos momentos em que eu me orgulharia de minha mediunidade. Com a vantagem de que o texto que escrevi expressa, praticamente sem ressalvas o pen­samento da autora — muito diferente das psicografias da moda, que em geral tem tanto a ver com a obra do autor espiritual quanto o proverbial ânus com as calças. Refiro-me a esta declaração de Clarice, numa de suas últimas entrevistas (agra­decimento a Victor de Toledo Stuani por me repassar o link e a transcrição):
"Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade."
Clarice estava se referindo ao papel que todos esperam que o profissional exerça, não só em relação ao nicho literário em que foi inserido ao longo do tempo, mas também em relação às opiniões e imagem que precisa manter em relação ao sistema. As mesmas ideias de Clarice eu expressei assim:

Equal é exatamente a diferença entre um escritor amador e um profissa? Pode parecer pouca, mas pare e pense, pense muito bem. Um autor amador como eu é um franco atirador. Eu escrevo o que quero, como quero. Publico no blog por­que quero, procuro editora na medida do possível e vou levando. Não preciso da litera­tura para nada além de satisfação pessoal (o que inclui o sonho de alguém algum dia notar que sou um gênio incompreendido e assinar comigo um con­trato de milhões de dólares e me dar um título honoris causa da Sorbonne).

Por isso eu posso ousar. Se ficar ruim, é porque é um trabalho amador. Se ficar bom, tapinhas nas costas e nem um centavo de reconhecimento. Posso também cri­ticar quem quiser, o quanto quiser (e bobo é quem se achar atingido por estas crí­ti­cas a nível pessoal), sabendo que minhas críticas «valem quanto pesam», ou seja, serão julgadas pela sua propriedade e não pelo meu currículo inexistente.

Não é a mesma coisa para um profissional. Ao se dedicar a literatura como meio de vida, como fonte permanente da grana que compra seu feijão (ou seu caviar, depen­dendo de quanto venda) o autor profissional passa a depender de vendas regu­lares. Isso inclui definir seu estilo, encontrar seu nicho, cativar seu público, etc. Não espere que um autor de FC, por exemplo, dê uma veneta de escrever poesia erótica, ou que um autor regionalista se meta a fazer FC hard. Eles até podem querer isto, mas o mercado não quer, o público leitor preconceituoso não quer. Poucos leitores de Stephen King leriam contos românticos de sua autoria. Pou­cos fãs de FC levariam a sério uma space opera de autoria de Rachel de Queiroz.

O mesmo se aplica às críticas: quando um autor famoso e profissional fala sobre lite­ratura as pessoas imaginam um mestre falando ex cathedra. Esse peso extra que as pessoas dão às opiniões dos profissionais faz com que elas não valham ape­nas o quanto pesam, valem o peso da vendagem, dos contratos, da publi­cidade, dos diplomas (mesmo honoris causa). Uma estupidez dita por um acadê­mico é estudada na imprensa. Uma crítica muito apropriada feita por um amador como eu será sempre entendida como uma ousadia inadequada. «Quem é você, seu bosta, para falar mal do livro do fulano?»

Isso significa que o autor que deseja ser profissional precisa começar a censurar-se. Precisa começar a enquadrar-se. «Erotismo demais para uma obra juve­nil», «ficção científica ambientada no interior de Minas Gerais é uma coisa ridícula», «ninguém está interessado em sua autobiografia». E o que já conse­guiu precisa policiar-se: «não fale mal de fulano, porque ele é um editor impor­tante», «faça algumas críticas elogiosas a sicrano e aumente suas chances de ir para a Academia»,«não diga uma coisa dessas, que isso pode ofender os res­pon­sáveis pelo sistema educacional».

Paul Lapine tem, entre suas raras qualidades, a liberdade de atacar o sistema. Porque o sistema foi lamber suas botas para dar um sopro de vida a uma Aca­demia caquética, cada vez menos relevante culturalmente e inflada de autores de nulo valor (como José Sarney (devidamente posto em seu lugar por Millôr Fer­nandes), Ivo Pitanguy (enquanto literato é um ótimo médico), Merval Pereira, Marco Maciel, Nélson Pereira dos Santos (apesar de ser um bom cineasta) e Eva­risto de Morais Filho. A verdade é que, por mais que eu deteste o trabalho de Pavel Krolik, ele é mais importante para a literatura do que todos esses juntos, e com um nariz de vantagem. Isso lhe dá a ousadia de falar mal de um dos santos do cânone ocidental, traduzido ao português por ninguém menos que Antônio Houaiss.

Minha opinião sobre Joyce, idêntica à de Paul Kaninchen, jaz amparada no sagrado direito de dizer bobagens que assiste aos amadores. Nós somos livres para não gostar do que não gostamos, não temos a obrigação de elogiar o que nos enfastia. Não somos maridos da grande literatura para suportá-la a todo custo.

Continuo, porém, mantendo a minha opinião sobre Ulysses, e não é um crítico britânico especialista em Joyce que vai me intimidar. Certamente há pessoas que gostam de Ulysses, tanto quanto há quem goste de vela quente e chicotada nas costas. De gustibus non eramus disputandum.

Há, porém, uma diferença fenomenal entre a opinião do Paolo Coniglio e a minha: eu desgosto de Joyce enquanto leitor, pois esse não é o tipo de literatura que me comprazo em ler (mas reconheço que Ulysses possui boas ideias, mistu­radas com outras horríveis e outras medíocres). Já o Pablo Conejo desgosta dele com a «otoridade» de um acadêmico, e um acadêmico precisa entender que nem todas as obras foram feitas para serem lidas pelo grande público, nem todo autor é assunto para se conversar na padaria. Se alguém me desancar pela minha opinião eu aguento o tranco sozinho e me refugio, acuado, na desculpa de que sou só um leitor, que também amadoristicamente escreve e palpita, mas o desancamento do Paul Konijn pelo crítico inglês salpica na Academia que o elegeu porque sugere que o mago é um simplório, um tosco, alguém que se iguala ao leitor de tabloides. Para vender ao leitor de tabloides, diga-se de pas­sa­gem. Um mercenário.

Na qualidade de não acadêmico e de amador, eu ainda tenho tempo de dizer boba­gens e não tenho assessoria que me impeça. O mesmo não se pode dizer de Paul Lapine, o prestidigitador. Que está começando a enfrentar, lá fora, o mesmo nível de rejeição nos meios literários de que já desfrutava por aqui. A ABL ainda se arrependerá de tê-lo eleito, mas não antes de arrepender-se de ter eleito o Merval.

URUBUSERVAÇÕES: Não é curioso que a ABL eleja com tanta facilidade polí­ti­cos e personalidades de direita, mesmo com nulo valor literário (além dos cita­dos, a Academia também já agraciou um general da Junta, o Aurélio Lira Tava­res, mas ignorou solenemente o Carlos Drummond de Andrade, que, afinal, era comunista).

Utilizei pseudônimos poliglotas para o autor em questão por duas razões. Pri­meiro porque ele é mais reconhecido por vender no mundo inteiro do que pelo valor de suas obras. Segundo que ele disse as bobagens que disse para se pro­mo­ver, obviamente, e eu não quero ajudar a encher a sua bola, nem mesmo se isso encher a minha também. Na qualidade de amador, reservo-me o direito disso.

08
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 20:18link do post | comentar
Um breve levantamento histórico-cultural do vermelho (e da «ruividade») feito a pedido de uma amiga de cabelos encarnados.
As guirlandas e cachecóis vermelhos eram parte de costumes do casamento em muitas culturas. O vestido vermelho do casamento era moda em Nuremberg no séc. XVIII, mas esta tradição é desde as épocas romanas: As noivas romanas eram envolvidos em um véu vermelho impetuoso, o flammeum, para trazer amor e fertilidade. Os noivos gregos, albanianos e armênios ainda hoje usam véus vermelhos. Os nubentes chineses estão trajando vestimentas vermelhas para o casamento e são carregados durante a cerimônia numa maca vermelha. Os vizinhos trazem ovos vermelhos aos pares depois que uma criança é carregada.

A rosa vermelha é o símbolo do amor e da fidelidade. De acordo com a lenda grega as rosas vermelhas surgiram do sangue de Adonis que foi morto por um varrão selvagem em uma caça. Na mitologia grega a rosa era um símbolo para o ciclo do crescimento e da deterioração, mas também para o amor e a afinidade. A rosa vermelha era também dedicada a Afrodite, deusa grega do amor e à filha de Zeus e também a deusa romana Vênus. Por isso, ainda hoje, os casais de apaixonados se dão rosas vermelhas, que evocam afrodite, e não rosas brancas, que evocam Perséfone. Nenhuma namorada deseja a sorte de Perséfone, coitada. No Cristianismo a rosa vermelha é associada com a cruz e o derramamento de sangue (suplício).

Os israelitas, em épocas bíblicas, pintaram seus batentes com sangue vermelho para assustar demônios. Mais tarde os autores bíblicos associaram este hábito a algum ritual relacionado à fuga do Egito. O vermelho no Egito antigo era a cor do deserto e do deus destrutivo Seth que personificava o mal. Tanto assim que os egípcios desenvolveram várias fraseologias em torno do vermelho. «Fazer vermelho» era sinônimo de matar alguém; práticas demoníacas eram referidas como «negócios vermelhos». A salvação do mal era o objetivo do canto egípcio: Oh, Isis, salvai-me das mãos de todo o mal, demônio e coisas vermelhas!. Escribas egípcios usavam uma tinta vermelha especial para palavras malditas.

As qualidades boas e más são combinadas em Phoenix, o pássaro do fogo, um símbolo da imortalidade, mas também do sacrifício de si mesmo: a ave se consome dolorosamente em chamas para poder renascer rejuvenescida.

O cabelo da Virgem Maria era ruivo nas mais antigas pinturas e as vestes dos anjos eram vermelhas nas pinturas medievais. Somente mais tarde foram branqueadas. A conotação definitivamente positiva da cor vermelha originada com o caçador neolítico e continuou com os alemães antigos, começa mudar ao redor 1500 por influência bíblica.

O deus germânico Thor tinha o cabelo vermelho. Os animais vermelhos tais como o robin (não o parceiro do Batman, mas um passarinho de peito vermelho muito comum na Europa), a raposa e o esquilo eram criaturas sagradas de Thor. Os olhos de Wotan, deus germânico da caça (muitas vezes associado com Odin), eram descritos como de um vermelho chamejante. Com o advento do Cristianismo diminuiu o poder destes dois deuses germânicos. Foram transformados no diabo com seus cabelos e barbas vermelhos.

As mulheres de cabelo vermelho eram acusadas de serem bruxas e prostitutas e a papoula transformou-se numa flor do diabo.  A sexualidade foi associada também com o vermelho, e era demonizada. O cabelo da Virgem Maria ficou loiro por influência dos povos germânicos, em cujas línguas a mesma palavra que descreve a cor do cabelo louro claro também significa «bom, justo, honesto» etc. A Noruega teve um rei chamado Harald Harfagre («Haroldo Bom-Cabelo»). Quando um inglês quer dizer que uma pessoa é loura diz que ela tem «cabelo bom» (fair hair).


Os provérbios antigos discriminaram povos com cabelo vermelho ou barba vermelha. O hábito de escanhoar-se diariamente foi imposto entre os celtas para ocultar suas barbas ruivas. Tais preconceitos prevalecem ainda em algumas áreas rurais de Europa.

As deusas celtas são, em sua maioria, ruivas. O que não é de se espantar, dado o tipo étnico da região (norte da Inglaterra, Escócia e a Irlanda). Beltaine é reverenciada pelos longos e rubros cabelos. E esta é a deusa da procriação e fertilidade, tendo sua data festiva em maio. As Vésperas de maio são comemoradas com sacerdotisas ruivas e a cor vermelha se relaciona com a virilidade e coragem.

Beltaine foi sincretizada como Santa Brígida pela ICAR, mas a cor vermelha não é mais relacionada a ela e sim a São Jorge. Por quê? Porque a Senhora dos Exércitos, Andraste, é ruiva (não tanto quanto Beltaine) e ela é a deusa que oferece força e poder aos exércitos e os guia rumo à vitória. Claro que os misóginos cristãos não iriam querer associar lutas e guerras (atividades masculinas) a uma mulher. Andraste some e aparece Jorge da Capadócia, que sentou praça na cavalaria e séculos depois inspirou seu xará carioca a compor uma música muito boa.


Quando os Normandos (vindos da atual França, mas de etnia nórdica) começaram a adentrar a Inglaterra, a visão do vermelho começou a inspirar desconfiança e a coisa ficou preta para o lado de todo mundo. Vermelho era a cor predominante nos banners dos reis anglo-saxões e também nos pavilhões dos bretões celtas.

Entre nossos índios o vermelho, obtido do barro e da seiva de algumas plantas, como o pau-brasil, e de frutos, como o urucum, era pintura de guerra, simbolizava a prontidão para a morte.


Na heráldica o vermelho é uma cor característica da realeza mais antiga, de preferência daquela que herda seus títulos, por via direta ou indireta, do Império Romano (cuja cor oficial era o vermelho). Vermelha era a bandeira do Sacro Império Romano e também a do Império Bizantino. Boa parte dos estados europeus que ostentam faixas vermelhas horizontais (exceto a Áustria e a Polônia) evocam esta associação de forma oblíqua. Notavelmente isto se verifica nas bandeiras da Alemanha, da Rússia, da Holanda, da Croácia, da Sérvia, da Espanha, de Liechtenstein, de Luxemburgo e da Lituânia. No caso da Áustria, o vermelho evoca o martírio de um antepassado dos Habsburgos nas cruzadas. No caso da Polônia a origem é mais obscura e tem alguma coisa a ver com os brasões da Polônia e da Lituânia. Nas bandeiras tricolores verticais (como a francesa, a italiana, a belga e a romena) o vermelho significa a revolução, o levante do povo contra a opressão de uma elite (França, Bélgica, Itália) ou de forças estrangeiras (Romênia). Estas bandeiras foram adotadas no século XIX, muito antes que a Revolução Russa de 1917 consagrasse o vermelho como a cor da Revolução (com «R»).


Desde então o vermelho ganhou, especialmente na Europa e na América Latina, uma certa conotação esquerdista e rebelde. Da qual se aproveitaram os nazistas (com sua bandeira vermelha, que deu até nome ao jornal oficial do NSDAP) e outros, mas a fama do vermelho revolucionário alcança até mesmo a música popular brasileira, como nos versos de uma balada de Boi-Bumbá gravada nos anos 1990:

A côr do meu batuque
Tem o toque, tem o som
Da minha voz
Vermelho, vermelhaço
Vermelhusco, vermelhante
Vermelhão.

O velho comunista se aliançou
Ao rubro do rubor do meu amor
O brilho do meu canto tem o tom
E a expressão da minha côr
Vermelho!

Meu coração é vermelho
Hei! Hei! Hei!
De vermelho vive o coração
He Ho! He Ho!
Tudo é garantido
Após a rosa vermelhar
Tudo é garantido
Após o sol vermelhecer.

Vermelhou o curral
A ideologia do folclore
Avermelhou!
Vermelhou a paixão
O fogo de artifício
Da vitória vermelhou...(2x)

24
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 08:12link do post | comentar

Será que somos tão sofisticados assim? A maioria dos autores celebrados por nossa crítica pratica um tipo de prosa quase ilegível, caracterizado pela exploração intensa, quase joyceana, tanto da sintaxe quanto da semântica, aliado a um ângulo narrativo sempre oblíquo e a uma sequência fragmentária. Os autores que praticam uma narrativa mais tradicional não são tão valorizados, não são considerados mais como geniais, mesmo que suas obras exalem competência, como se o seu estilo estivesse ultrapassado, mas o Finnegans Wake já passou de oitenta anos de idade, Ulysses já é quase centenário, o movimento concretista brasileiro já começou a enterrar os seus criadores, vitimados pela velhice. Alguma coisa me parece deslocada: soa-me como se houvesse dentro da academia uma facção afastada do mundo real e preocupada em escrever livros que ninguém lerá.

A quem interessa uma literatura tão difícil? Quem lê essas obras quebra-cabeça? Suspeito que são realmente poucos os leitores e suspeito mais: suspeito que sob a capa desta complexidade artificial muitas vezes reside uma superficialidade fútil, uma falta de boa história para contar, um conservadorismo estético e conceitual que já se petrificou.

Sempre fui um crítico do excesso de formalismo, até por razões ideológicas. Se ainda houvesse no mundo alguma coisa parecida com as escolas literárias do passado eu estaria tentando seguir uma escola oposta à que estou criticando. Mas o mundo de hoje é fragmentário e os diversos autores ficam sozinhos, dialogando contra o nada. Então quando você pensa diferente, fica fácil os que pensam igual o tacharem de imodesto ou até de termos menos elegantes: nesse mundo em que a comunicação se tornou tão fácil, pode ser uma atividade bem solitária a de autor.

Enquanto pululam autores interessados em reinventar e reinverter ideias de como esconder o que não querem dizer, o mercado segue dominado pela literatura estrangeira. Boa parte de nossos autores locais parece ter desistido de lutar pela alma do leitor comum, abandonaram-no ao massacre da cultura importada, talvez porque eles próprios tenham se abandonado a tal massacre. E não deixa de ser curioso que os escritores dos «países centrais» não tenham essa preocupação de numerar capítulos usando uma tábua Ouija, de desencavar paralelismos semânticos a cada parágrafo, de referenciar cinco deuses mitológicos Ashanti em cada página ou de narrar como em um sonho de Freud. O formalismo está fora de moda nas literaturas que imitamos. Nossa literatura tem uma vanguarda tão vanguarda que deixou para trás até mesmo as vanguardas mais avançadas. Avançou tanto que deixou todo mundo para trás e se perdeu na floresta.

Não faço parte desta vanguarda. Sou um construtor de personagens e de cenas. Não curto esse lance de palavras valise ou de emprego do quiasmo como recurso expressivo. Minha literatura é bem mais simples e por isso eu nem tentei sair na Granta. Mas não estou com isso tentando dizer que considero a ignorância um fator positivo. Não saber as coisas não é uma distinção. Arte «naïf» é um conceito que não faz sentido para mim: ou o artista tem uma formação ou não tem. Supor que seja possível algum tipo de inocência criativa é, em si, uma inocência. Minha formação certamente é incompleta e divergente porque não li os livros canônicos e, se os li, foi fora da ordem recomendada, fora do contexto recomendado. Como resultado, fiquei pensando diferente do que eu deveria estar pensando se tivesse seguido a programação determinada.

E na minha programação, consta que a literatura deva ter uma preocupação social, nacional e humana. Que isto vai acima da preocupação formal, que isto é mais importante do que mostrar que consegue empregar uma rara figura de linguagem extraída da antiga literatura oriental, mais importante do que demonstrar erudição sobre povos e culturas que não fazem parte de nossa realidade imediata e nem de nossa história. Com um pouco de ousadia e iconoclasmo, chego a dizer que existe em mim uma certa influência do realismo socialista, só me falta aperfeiçoar a ideia um pouco e tolerar que minha versão deste seja «tropicalizada» com algumas características dos autores que mais me influenciaram: Guimarães Rosa, Lima Barreto, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Ignacio de Loyola Brandão, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira — e mais alguns que eu sempre esqueço quando começo a fazer uma lista. E julgo curioso também que quando começo a fazer tais listas, embora eu tenha lido muito autor gringo, eu só consigo encontrar seis nomes entre eles que ressoaram nas cordas de meu coração, cinco gênios e outro nem tanto, mas gosto não se discute: Jorge Luis Borges, John Banville, Stephen King, D. H. Lawrence, Evgeni Evtushenko e Julio Cortázar.


30
Jun 12
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar | ver comentários (4)

Não me refiro à educação escolar, essa que sucessivos governos parecem querer dificultar, mas à educação cidadã e humana, que cabe às famílias e a cada um de nós. Esta é a que faz mais falta, porque se trata da que não precisa de grandes investimentos, nem de grandes construções. Não dispende energia, não move terras e céus, não cria dívidas e nem polui. Não custa livros, não consome dinheiro, não requer transporte. Mas apesar de ser tão barata em termos econômicos, é caríssima em termos de cuidado e de carinho — e cuidado e carinho parecem ser justamente os insumos que mais estão em falta no mundo do tchu e do tcha, do tchan e do Telò. Tem muita gente por aí que sabe fazer o lelelê, mas nada mais.

Tudo isso me vem à mente depois de ter ido assistir à festinha junina da escola da minha filha mais velha.

O evento até que foi bem organizado: tinha seguranças, som profissional, cantina produzindo os salgados fresquinhos, o guichê de fichinhas tinha troco, os banheiros eram bons e as crianças estavam muito bem ensaiadinhas. Vergonha foram os pais.

Apesar de ser evidente a falta de espaço do recinto, logo no começo se verificou que um canto da quadra, mais próximo da entrada, ficou atolado de gente, enquanto o canto oposto ficava vazio. Todo mundo querendo pegar o «melhor lugar» se amontoava junto à passagem, impedindo a entrada e saída dos outros, de modo que não apenas era difícil aos recém chegados verem seus filhos dançando a quadrilha, mas era também difícil para quem já estava conseguir enxergar alguma coisa através do mar de cabeças e braços erguidos com câmeras desesperadas para tirar uma foto qualquer.

Sucessivos pedidos da direção através do microfone foram em vão: ninguém se movia e a muvuca aumentava. Começou a haver acotovelamentos, alguém xingou palavrões altos (em um ambiente escolar, numa festinha de crianças, por Júpiter!). Somente quando a diretora ameaçou pedir aos seguranças que abrissem caminho foi que alguns «educados» concordaram em desobstruir a entrada e passar para os fundos da quadra.

A luta seguinte foi para retirar de dentro da própria quadra os pais desesperados por fotos dos filhos dançando. Tanta gente tinha entrado lá com câmera na mão e merda na cabeça que não havia espaço para as crianças dançarem. Novamente foram necessários apelos repetidos da direção da escola e os pais só se tocaram de lá quando novamente se ameaçou chamar os seguranças.

Liberada a quadra, a direção da escola, desistiu de tentar organizar o resto, pois já havia dito algumas coisas bem pouco elogiosas na tentativa de convencer os pais a abrirem espaço — como, por exemplo, sugerir que eles precisavam dar exemplo para seus filhos ou que a escola era um ambiente de respeito e não um lugar para se dizer palavras chulas e cometer agressões. O resultado foi um verdadeiro caos em torno da quadra, com gente se empurrando e se embicando como dava. Há um antigo axioma da ciência da organização que diz que para todo corredor estreito existe um imbecil disposto a empilhar coisas lá, ou obstruí-lo ele mesmo. Havia muitos destes no local, que, em vez de procurarem um lugar amplo para manter sua conversa ou paquera, ficavam parados no corredor, ainda por cima fazendo cara feia para quem vinha tentando passar. E cada turma que concluía seu turno na quadrilha gerava um tropel de crianças e pais que se espremiam pelas passagens apertadas com o desespero de quem está prestes a cagar nas calças. Essa era a hora em que os imbecis do corredor se sentiam pisoteados ou acotovelados e xingavam ou reclamavam da falta de educação alheia.

Nos lugares amplos a situação não era muito melhor. Onde não houvesse luz direta havia casais dando amassos. Caramba! Em um ambiente escolar? Por que esses animais vão se esfregar pelos corredores de uma escola primária? Não dá para satisfazer o cio em outro lugar, ou esperar para depois da festinha junina das crianças?

Para completar o drama, a escolha das músicas foi de uma lástima terrível. Para uma festa de crianças dançando quadrilha resolveram tocar estas porcarias breganejas que só falam de beber cachaça, fazer lelelê, querer tchu e tcha e coisas piores. E a gente que dizia que a Xuxa era uma influência perniciosa para os «baixinhos» por causa de seus shortinhos. Que valores está transmitindo uma escola que toca numa festa infantil uma música que diz:

Ela chega no baile faz a galera delirar Mascando chiclete doidinha pra namorar De saia curtinha só pra provocarE deixa a macharada delirando sem párarEla dança mexe mexe eu não vou aguentar.Eu vou beber cachaçaEu vou tomar méEu vou encher a cara por causa dessa mulher.

Muito educativa esta escolha, para acompanhar a quadrilha das crianças do segundo ano, todas na faixa dos sete ou oito anos de idade. Elas vão crescer sabendo que a «macharada» delira sem parar quando uma mulher chega de sainha curta no baile, «doidinha para namorar», e que para isso a referida «macharada» vai tomar cachaça.

Eu poderia escrever vinte páginas de lamentos sobre as coisas que pensei e senti, mas chega que me dá nojo. Alguns vão dizer que minha reclamação é «puritana» e que «é isso que as crianças encontram na sociedade em que vivem», mas a escola não é «a sociedade», ela precisa ser, e deveria ao menos pretender ser, um microcosmo de excelência, um lugar melhor do que a sociedade, onde se ensina aos pequenos um mundo ideal, que sonhamos que exista para eles, já que não existiu para nós. Não é lugar de endossar o mé que a «macharada» toma por causa de mulheres doidas de sainha curta, mas de ensinar justamente estas crianças a perceberem a brutalidade, a grossura e a estupidez que são necessárias para que uma pessoa conviva com essa música sem revoltar-se.

Enquanto nossa escola toca nas festinhas juninas infantis uma trilha sonora que não tocava nem em puteiro até há bem poucos anos, as verdadeiras tradições juninas são esquecidas: as crianças dançaram em estilo country.


14
Abr 12
publicado por José Geraldo, às 10:00link do post | comentar
Um artigo de polêmica cultural/política, não datado, mas provavelmente escrito entre 1998 e 2000, encontrado em um velho caderno que ia a caminho do lixo. Devido ao contexto em que foi escrito, este texto não se dirige ao público amplo que a internet alcança, mas a um público muito mais estrito e regional, alcançado pela imprensa escrita do interior. Lembro-me vagamente de tê-lo preparado para ser lido em um encontro de escritores que se estava tentando organizar na época.

O centro-sul do Brasil nos é apresentado como a região irradiadora do desenvolvimento econômico e cultural do país, mas quando olhamos de perto verificamos não ser bem assim. O impulso econômico que daqui se espraia é originário de fora e não se volta para a edificação da nacionalidade -- mas para a produção de excedentes que são absorvidos pelos mercados locais, arranjados de acordo com a estruturação do capitalismo internacional, que busca, por sua vez, esmagar as variedades regionais e políticas e impor a plana homogeneidade de uma aldeia global consumista, onde apenas sobrevive a arte como cadáveres das formas antigas de expressão.1 E a cultura genuína, que aqui havia, foi suplantada pelos maneirismos modernos e civilizados — que, de fato, nada são além de formas pasteurizadas das culturas de outros locais absorvidos antes pelo polvo capitalista.

Prova disso é o caráter exótico que é atribuído por nós, aqui da região mais globalizada do país, às sobrevivências de folclore das regiões menos amesquinhadas pela sedução da «modernidade» uniformizante. Estamos mais à vontade diante de fotos de antigas estátuas neoclássicas do que diante da obra do Mestre Vitlaino, entendemos melhor de porcelana chinesa do que de cerâmica marajoara, nos agrada mais a música da moda importada da Europa e da América do Norte do que as formas populares de canção.

Que foi feito de nossas festas? Alguém aqui ainda se lembra de ter ouvido uma moda de viola, uma toada, um calango ou um desafio?  Estas formas musicais pertencem à rica tradição de Minas Gerais, mas a maioria de nós jamais pegou uma viola, nunca viu uma sanfona de oito baixos, sequer ouviu falar de uma rabeca (eu mesmo me incluo nos dois primeiros grupos). Ninguém aqui saberia dizer o que é uma «torda», raríssimos terão tomado leite de onça em uma festa junina ou comido batata assada. Não faz parte da memória coletiva de nenhum de nós as melodias da Folia de Reis, da Festa do Divino ou de outras festas musicais de antigamente.

Todas estas coisas que citei fazem parte de um mundo antigo, pisado e esquecido desde que a Redentora resolveu se intrometer nos rumos do século XX e matar nossos projetos autônomos de futuro. A descaracterização da cultura popular, antes restrita aos centros de imigração e ao Rio de Janeiro sempre cosmopolita, se enveredaram pelo interior, deixando atrás de si uma terra arrasada, habitada por seguidores de novela e proprietários de radinhos de pilha sintonizados nas estações cariocas ou paulistas.

Houve um tempo em que as estradas do interior eram ocasionalmente pontuadas por cruzeiros de madeira. As pessoas sabiam o que comemorava cada um deles. Os antigos cemitérios de escravos ainda existiam, e havia quem plantasse flores neles, ou os cercasse para que o gado ali não pastasse.

Houve um tempo em que se podia organizar uma festa fincando doze bambus no chão e montando uma coberta com folhas de bananeira para proteger do sereno. Isso era uma «torda», e debaixo dela o baile acontecia desde que houvesse um sanfoneiro, um barril de pinga, uma bacia de pães recheados com molho de carne moída e um garrafão de vinho. Não precisava de polícia, nem de alvará. Nem de convite e nem de roupa nova.

Vocês podem estar surpresos com meu apego ao passado, achando que pareço um fantasma desses dias antigos, embora seja tão novo. Eu tive tempo de viver algumas destas coisas que estou mencionando, e pelo pouco que vi entendo que tenho motivos suficientes para a saudade. Então eu não venho com regras para nenhuma vanguarda, venho com a história da minha vida e os maus hábitos que os bons autores me ensinaram. Sonho repelir a colonização, pelo menos naquilo que ela mais me mata, e poder falar das coisas que sei e sinto.

Grito por uma arte nacionalista. Cessemos de copiar servis os cânones decadentes de uma Europa grisalha, que em breve será senil.2 Nesses países a morte das raízes pode nos parecer ter sido menos grave, porque o novo mundo que eles criaram ainda parece descender de suas antiguidades. É entre nós que o desenraizamento danifica mais, porque substitui o nosso por algo que é alheio. Somos ainda felizes por termos dentro de nossas fronteiras3 cinco identidades regionais tão fortes que nem mesmo o uso de uma língua única as nivela. Mas deixamos que prossiga a morte lenta dos dialetos e da saborosa prosódia popular. É um crime de lesa-pátria compactuar com essa emasculação de nossa cultura, antes que dê frutos universais.

Na infância, em verdade, porque uma cultura só amadurece no cultivo dos séculos. A nossa data de menos de três, e já está em decadência. O Brasil é um país onde muita coisa que ainda está em construção já está em ruína, como mencionou Gilberto Gil em famoso verso.4 As obras de nosso folclore estavam ainda em fase de elaboração quando foram surpreendidas pela agressão de um século uniformizado e colonial, que as desprezou como se fossem primitivas, que as insultou de «mestiças» numa época racista em que este termo era uma ofensa. Nossos nativistas do passado apenas refletiram sobre a grandiosidade do que estávamos pondo a perder para produzir, a partir da síntese dos elementos abandonados, os últimos brilhos da moribunda cultura de talhe ocidental.

O modernismo foi, sim, canto do cisne do Ocidente enquanto construção ideal, ideológica e política. Foi quando o racionalismo neoclássico perdeu a primazia: abriu-se caminho à liberdade, à expressividade, à anarquia. O resultado é mesmo decadência. Que se manifesta no questionamento do objeto, da obra, da arte. Nossa arte tão moderna não produz mais clássicos. Não procura admirar, mas apenas intrigar.  Estranhamos essas obras, nos surpreendemos com esses enigmas, mas dificilmente os tomaríamos como enfeite, como objeto de veneração, como símbolos de identidade. São obras que contemplamos à distância, às vezes até com asco.

Enquanto o Ocidente discute seu desmonte, nós vamos substituindo o que tínhamos de nosso pelas telhas quebradas e restos de estuque roubados da demolição deles. Não sei se tudo já foi feito: apenas suspeito que a casa que se faz com restos sempre se parecerá com restos.

Infelizmente vivemos sob o signo da mediocridade. A obra do medíocre procura, antes de tudo, justificar a si mesma. O objetivo do medíocre é o consenso: no consenso não há necessidade de criatividade, nem de maior capacidade. Os medíocres podem ser inimigos pessoais, mas concordam em suas obras. Ao contrário dos grandes gênios, que às vezes se insultavam por meio dos jornais falando das obras respectivas, mas frequentemente tomavam cafés cordiais quando se encontravam.

O medíocre acredita no fim da História, que tudo já foi dito e feito. Esta ideologia do fim do mundo interessa a quem suspeita que está morrendo. Depois de mim, que venha o dilúvio. «Morro com minha pátria», disse o ditador que, de fato, quase a levou a morte por um capricho seu. Morreu o ditador, a pátria sobreviveu. A duras penas, mas sobreviveu. O pós modernismo e seu consenso botam a mão na boca da África, da América, da Ásia, de Marte e de Plutão, de onde quer que se suspeite que alguém ainda pode ter uma ideia original: findou a História, morreram as estéticas, transfigurou-se a arte. Pendurem um urinol na parede do museu, amontoem cachorros mortos na Bienal, vendam borrões de tinta por milhões.

Sou, porém, um idealista. Acredito que dentro do adormecimento em que vive o resto do Brasil que ainda não foi castrado pela globalização pode ainda existir o anseio pela novidade. E dali pode nascer uma nova nacionalidade, uma nova arte.

Nacionalista esta, não por ódio ao alheio, mas por amor ao próprio. Não por repelir o diferente, mas por difundir dissensos criativos. Não por absolutamente pôr num pedestal nosso folclore, que muito tem de obscurantista e retrógrado, mas por oferecer-lhe espaço para que se transforme seu produto em artefato.

Esse folclore que ignoramos é uma fonte de indícios de futuro. Podemos inventar de nosso jeito, sonhar em nossa língua, contar a nossa história, cunhar nossa moeda. Independência é isso, é algo que quase ninguém conhece, porque quase ninguém tem.

Convido a todos vocês, descrentes da modernidade, ao lodaçal desafiante da oportunidade. Fora do asfalto estéril que só leva a lugares conhecidos. Entrem comigo nesse brejo perigoso, onde certamente alguém vai se afogar. Vamos fundar ali uma outra tribo, uma que não faça pajelança para gringo ver. Tragam seus tambores, alguém pelo amor de deus me arranje uma rabeca porque eu quero ouvir. Perdidos na insuportável solidão do concreto, vamos imitar pios de pássaros e ler versos em dialeto. Vamor fugir de volta para a região de nossa infância de onde a escola e a academia nos tiraram.

Prometo que não sei como será esse mundo novo que eu sonho ver erguido. Beleza é isso, o imprevisto, o impossível. Mesmo as ruínas do Ocidente serão mais bonitas do que o seu futuro. Procuro profetas para um novo mundo. Venho de Masada, do Langue d'Oc, da Etrúria, de Creta, da Irlanda e do Egito. Venho de Alcácer-Quibir, de Canudos, de Copá e Macchu-Picchu. Venho de lá e estou andando no rumo vago do sertão.

Busquemos essa direção, longe do mar corrupto e da montanha inculta. Gritemos a ambos os lados que o progresso é só um lusco-fusco  diante da longa idade da humanidade.

Existe um perigo, no entanto. A proposta que faço é tipicamente talhada para o gosto das elites políticas, e surgirá sempre a tentação fácil de render homenagens ao que já está. Mas a política não é compromissada com estes objetivos, somente com lucros e poder. Verdadeiros artistas não podem compactuar, devem agredir. Esquecer a perspectiva de salários gordos, soldo de mercenários. Sem ilusões: se a política se interessasse por cultura, nosso país estaria bem melhor do que está.

1 Este texto foi escrito bem antes que eu sequer tivesse acesso à internet, de forma que eu ainda não tinha a compreensão dos fenômenos culturais que ela acabaria por propiciar. No entanto, continuo acreditando que a frase é verdadeira, porque aquilo que a internet produziu de novo é apenas uma variação esvaziada de formas artísticas preexistentes, com o agravante de que a evolução das ferramentas eletrônicas tornou-se muito mais fácil o fazer artístico.

2 Para quem estudou História e não gastou o tempo fumando maconha no campus, já estava mais do que evidente em 1999 que a Europa tinha subido no telhado. O que ainda não está claro é se a queda a matará ou servirá de alerta para que reencontre o rumo.

3 Neste trecho eu me referia ao estado de Minas Gerais, que possui cinco falares variantes regionais: o mineiro propriamente dito, no centro do estado, o mineiro-baiano, no norte, o triangulino, o sulista (estes dois influenciados, mas não exatamente da mesma forma, pelos falares paulistas) e o mineiro-fluminense da Zona da Mata.

4 O famoso verso em questão está na canção «Haiti», e se refere a uma curta menção às «ruínas de uma escola em construção».


31
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar | ver comentários (1)

É difícil compreender as razões pelas quais tantas pessoas rejeitamde forma tão ríspida um ensino progressista do português, baseadonas descobertas da Linguística e da Pedagogia. Certa­mente asrazões disto envolvem ideologia, pois um ensino que não discrimineos falares populares ameaça uma estrutura de humilhação dasclasses oprimidas. Então, por se oporem à inclusão social e aoprogresso do ensino, erguem bandeira de guerra contra qualquerindício de que se está buscando uma abordagem não preconceituosado fenômeno linguístico.

O casorecente do livro de português que ensinava «nós pega o peixe» foium exemplo emblemático de como a ideologia e o preconceito deram asmãos para desqualificar uma obra que, com todos os seus defeitos,tinha o mérito de seguir o que é consenso no mundo científico emrelação ao ensino de línguas.

As vozesque se ergueram, porém, foram todas de leigos. Ninguémremotamente dotado de alguma formação na área manifestou-se. Asvozes ouvidas foram, em primeiro lugar, de jornalistas — queaprendem a escrever segundo «manuais de redação» impositivos esão ensinados por fonoaudiólogas a falar com uma pronúnciaartificial, que busca ser neutra mas emula a da Zona Sul do Rio deJaneiro e os melhores quarteirões da Paulicéia. Muitos blogueirosse manifestaram, em geral pessoas das áreas de Exatas e Biológicas,que entendem muito de planta, de bicho e de números, mas não deinterações entre pessoas, ou pessoas educadas em colégiosrigorosos, em geral mantidos por entidades religiosas. Gente do tipoque acha que o pessoal de Humanas é um bando de maconheiros que seformou paquerando a professora, lendo o Manifesto Comunista ebeijando a bunda de um bode nas sextas-feiras. Nenhuma destas pessoasparou para analisar seria­mente o livro citado, muito menos paratentar entender o que é Linguística. Linguística é uma dessasciências «esquerdistas», não é mesmo?

Mas apedagogia moderna propõe ensinar um «vale tudo» linguístico?

Óbvioque não. Seria uma insanidade derrubar a ideia de uma línguapadrão. O fim do ensino desta é algo que normalmente só ocorre como fim de uma civilização, quando o estado falido não é mais capazde difundir sua cultura. Foi o que aconteceu com o Império Romano,levando os dialetos regionais a se dividirem em protolínguas, os«romances», e dando origem às dez línguas nacionais neolatinas:português, espanhol, catalão, galego, francês, provençal,italiano, dálmata (hoje extinto), romanche e romeno. Não se querque num futuro próximo o Brasil esteja dividido em dezenas deregiões independentes, cada qual com sua língua neo-portuguesa.

Tudo oque a Linguística procura ensinar aos professores de português (masuma minoria deles está disposta a aceitar isso, ou é capaz deaprender isso) é que a situação da língua padrão em relaçãoaos falares populares requer uma abordagem diferente da que vem sendoadotada em nossas escolas. Especialmente em países como o Brasil,nos quais a divergência entre a língua culta e a coloquial jáse tornou tão grande que podemos afirmar que existe, ou estápróxima de existir, uma situação de «diglossia», ou seja, acoexistência de duas línguas.

Hávários tipos de diglossia, mas o que nos interessa é aquelasituação na qual a norma padrão é conservadora em relação àevolução do falar do povo. A do português é intencionalmentearcaizante, tendo sido definida no século XVIII, sob o paradigma daimitação do latim e do grego.1Ao longo do século XX, começando com a reforma ortográficaportuguesa de 1910 (à qual o Brasil só começou a aderir em 1946),livramo-nos do ranço desta ortografia, mas não do ranço dagramática criada pelos mesmos perpetradores da ortografiaetimológica. Isto faz com que a língua que se pretende ensinar naescola seja diferente da língua que as pessoas estão acostumadas aempregar no seu dia a dia. Este tipo de situação não é único noportuguês. Isto já aconteceu antes em outros países e osresultados foram sempre os mesmos: é inútil opor-se à língua dopovo. Vamos analisar quatro casos bem emblemáticos deste tipo dediglossia.

NaGrécia, até bem recentemente, a língua ensinada nas escolas erapraticamente idêntica ao grego comum antigo, o koiné hellenikós.Esta língua, o katharevousa («língua purificada») eramuito diferente do grego falado, a ponto de as pessoas terem queestudá-lo como se fosse outra língua. Esta situação se mantevegraças ao conservadorismo do Estado, muito mais voltado para aherança histórica do que para as necessidades presentes do país.Com a democratização, esta situação foi resolvida e os gregospassaram a estudar a norma padrão baseada no grego moderno.

NaAlemanha e na Itália, a existência de uma grande variedade defalares regionais, alguns muito diferentes entre si, resultado daunificação tardia dos dois países. Em ambos os casos, porém,havia uma «norma padrão» anterior. Para o alemão foi o dialetoturíngio, usado por Lutero para traduzir a Bíblia. Posteriormenteesta norma, até então usada somente pelos escritores e, de formalimitada, pelo teatro, foi difundida, com a pronúncia prussiana,como a língua nacional da Alemanha unificada. O italiano padrão foio dialeto toscano, utilizado por Dante Aligheri para a famosa DivinaComédia. Em ambos os casos o padrão é conservador, embora oitaliano moderno seja mais conservador, em relação ao italianomedieval, que o alemão. Italianos de hoje não têm grandesproblemas para ler Dante, caso dominem o italiano padrão, mas têmproblema para conseguir dominá-lo porque, para os habitantes deregiões mais afastadas, especialmente no sul do país, trata-sequase de uma língua estrangeira. Os alemães permitiram que sualíngua padrão evoluísse um pouco mais, especialmente após a IIGuerra Mundial, quando os movimentos migratórios apagaram um poucoas diferenças dialetais milenares.

Na Rússiaaté a época da Revolução Bolchevique a norma padrão eraextremamente arcaizante, influenciada por uma língua falada mil anosantes, o «eslavo eclesiástico», «velho búlgaro» ou«eslavônico». O alfabeto tinha letras desnecessárias, algumas sóusadas para escrever palavras de origem grega, por exemplo. Quando oscomunistas assumiram o poder, uma das primeiras coisas que fizeramfoi simplificar a norma padrão, reduzindo o alfabeto a 36 letras(eram 40) e mudando a ortografia de milhares de palavras por causa daeliminação de duas vogais. Sob o domínio soviético a línguapadrão se aproximou do uso comum, eliminando arcaísmos. A reformalinguís­tica do russo talvez seja o grande motivo pelo qual osconservadores se opõem à modernização da norma culta. Esquecem-sede que movimentos semelhantes ocorreram sob regimes de direita, comoa África do Sul dos tempos do apartheid, quando o holandêsque se falava no país foi alçado à posição de línguaindependente, o africâner.2

Nosquatro casos apresentados a situação de diglossia era resultante defatores diferentes. No caso do grego, houve o desenvolvimentointencional de uma norma arcaizante, algo parecido com o doportuguês. Nos casos de Alemanha e Itália a diglossia resultou daformação tardia da identidade nacional a partir de povos quefalavam dialetos muito diferentes. Alguns dialetos «italianos», porexemplo, estão mais relacionados com os falares do sul da França(occitânico, provençal) do que com o italiano padrão, enquantooutros, como o sardo, são de fato línguas independentes. No caso doRusso a diglossia resultava da contínua influência de um padrãoconservador, o eslavo eclesiástico, travando a atualização danorma culta, o que também tem certas semelhanças com o caso dalíngua portuguesa.

Quando setem uma situação de diglossia, como nos casos apresentados, osestudantes precisam passar, no aprendizado da norma padrão, por umprocesso de aprendizagem que tem semelhanças com o do ensino delínguas estrangeiras. Em uma situação de diglossia, a norma cultaé, para fins práticos, uma outra língua. O «problema» daaprendizagem de português no Brasil, denunciado por gramáticos«pop» — como Pasquale Cipro Neto, Sérgio Nogueira Duarte e LuizAntônio Sacconi — reflete apenas esta situação: a língua que oestudante fala é tão divergente da norma padrão que não podemossimplesmente assumir a «Língua Portuguesa» enquanto disciplinacomo sendo «sua» língua, tanto quanto o inglês ou o espanhol nãoo são, com a única diferença que o contato com a línguaportuguesa é mais frequente do que com estas.

Ignoraresta situação é ignorar a verdadeira causa do problema. Ignorar averdadeira causa do problema significa que todas as estratégiaspropostas para solucioná-lo estarão erradas, salvo um lance desorte improvável. É como trocar peças aleatórias de um carrodefeituoso esperando que ele funcione em algum momento. Se de fatoele vier a funcionar, será somente por sorte e depois de muitotempo. De outra forma, sabendo qual peça trocar o carro funcionarámuito mais rápido e sem o desperdício de tantas peças.

O que aLinguística propõe é a abordagem científica do problema, parasaber «qual peça trocar». As reações que aconteceram aosrecentes casos de livros didáticos «que ensinam o erro» foramhistéricas, injustificadas e obscurantistas. Foram reações deleigos, de pessoas que não sabem do que estão falando e que seacham no direito de desqualificar uma ciência que não conhecem, nãoentendem ou que rejeitam por razões ideológicas ou por meropreconceito.

Arejeição da reforma do ensino da língua portuguesa em nossasescolas é muito parecida com a rejeição do ensino da Teoria daEvolução pelos criacionistas. Em ambos os casos temos pessoas malinformadas ou mal intencionadas, que difundem concepçõesretrógradas, pseudocientíficas, reacionárias, preconceituosas eincorretas, que fazem isso porque estão condicionadas a rejeitareste conhecimento científico específico por causa ideologia sob aqual foram criadas. O criacionista rejeita o ensino da TE porque elalhe causa insegurança quanto à validade do texto sagrado de suareligião. O «gramatiquista» rejeita o ensino moderno do portuguêsporque ele próprio se vê detentor de um conhecimento sobre alíngua, que será obsoleto com a reforma. Em ambos os casos serecorre à «culpa por associação» para desqualificar aquilo quese rejeita por preconceito. O criacionista associa a TE às crendiceseugênicas do início do século XX, incluindo o nazismo. O«gramatiquista» associa reformas ortográficas ou mudanças nalíngua padrão ao «comunismo». No fundo, ambos sentam-se em cimade um grande rabo, que não admitem ter: sua rejeição aoconhecimento se deve a uma confissão implícita da própriaimpotência. O criacionista depende da validade plena de seu textosagrado. O «gramatiquista», tendo sofrido tanto para aprender o quesabe de português, teme ter de aprender de novo. Quando foi feita aprimeira reforma ortográfica do alemão, em 1911, adicionou-se àlei um artigo que autorizava o kaiser a continuar utilizando anorma antiga enquanto vivesse.

Mas agrande pergunta que precisa ser respondida para que possamos fecharesta humilde série de reflexões sobre o tema «preconceitolinguístico» é: de que forma reconhecer uma situação dediglossia resolve o problema da falta de domínio da língua cultapelos nossos estudantes?

Na raizdesta dúvida há o medo de que o reconhecimento da diglossia sejauma espécie de Caixa de Pandora, que levará à degeneração danorma culta, ao esquecimento da literatura e a uma série de malesterríveis e inomináveis. Como vimos nos exemplos da Grécia e daRússia, as atualizações da norma culta não produziram nenhumefeito negativo. No caso da língua grega, os estudantes seguemincapazes de ler Homero diretamente, tal qual já não conseguiamantes. Mas hoje conseguem ler e escrever melhor a língua que usam nodia a dia. Para quem queira ler Homero, as universidades oferecemedições críticas contendo o texto original e uma versãomodernizada. No caso do russo, os livros apenas tiveram que serreimpressos na nova ortografia e os russos não leem menos hoje doque liam nos tempos do czar.

Ambosos povos saíram de uma situação que era de fato diglossia (casogrego) ou caminhava para tornar-se (caso russo) e a literatura deambas as línguas só teve a ganhar com isso. Não houve degeneraçãoda norma culta porque a língua já havia de fato mudado, só faltavaaceitar que isso ocorrera. Não houve o esquecimento da literatura,porque o que faz os jovens lerem não é o arcaísmo da norma padrão,mas uma tradição (inclusive familiar) de valorização da leitura —que existia tanto na Grécia quanto na Rússia, mas não seconsolidou ainda entre nós. No entanto, a solução da diglossiapode não ser desejável nos casos, como o nosso, emque a língua sofreu e está sofrendo um processo de dialetaçãoimportante. Em tal situação, análoga às de Itália e Alemanha,ensinar uma norma culta útil para a comunicação entre as diversasregiões e estratos sociais é uma forma de manter a unidadenacional.

Oque vem sendo proposto já há alguns anos pelos autores antenadoscom a Linguística, para grande ira dos gramáticos normativoscarranças, não é a substituição da norma culta por alguma outraforma linguística, mas, sim, a adoção de uma estratégia de ensinodo português empregando técnicas normalmente empregadas no ensinode línguas estrangeiras — entre elas a separa­ção conceitualentre a língua que o aluno fala e aquela que a escola pretendeensinar, conscientizando desde cedo o estudante da dicotomiaexistente entre o universo coloquial e o universo da língua formalpadrão nacional.

Faz-seisto por várias razões. Primeiro porque se é possível ensinaringlês ao estudante brasileiro, tem de ser possível ensinar-lheportuguês, que é uma língua muito mais parecida com o que eleemprega no seu dia a dia. Segundo porque é uma questão de respeito:o aluno não é um animal estú­pido que tem de «aprender afalar» na escola, ele é um indivíduo que fala o dialeto peculiar àsua região, na variante correspondente aos grupos sociais quefrequenta. Terceiro porque reconhe­cer a realidade tal como éserá o primeiro passo para buscar influenciá-la no sentidodesejado.

Tendoem vista estes objetivos, não é nenhum absurdo que um livrodidático contenha a frase «nós pega o peixe» (aliás, napronúncia de meu dialeto é «nóis péga o pêxe»), se ela forusada para ilustrar a diferença entre o coloquial e o formal.Absurdo é escrever um livro didático que fica de costas para arealidade do aluno e seguir culpando-o pela própria dificuldade deaprender algo que lhe é ensinado errado. Absurdo é não ter acompetência de ensinar e dizer que a culpa é do português, por seruma língua difícil. Difícil é abrir a cabeça de gentepreconceituosa, que se acha detentora de alguma migalha de saber.

1 Então se desenvolveu a «ortografia etimológica» (na verdade pseudoetimológica), em que as palavras eram grafadas de forma a lembrar sua origem, às vezes em desacordo com a pronúncia: pharmacia, machina, mysterio, hybrido, orthographia, sceptico, asthma, physico, Hespanha, bahia, propheta, photographia, diccionario, eschola e choro.

2 Apesar da ideologia racista predominante na África do Sul de então, o africâner é um idioma de base fonética e léxica holandesa, com grande influência inglesa na gramática e significativa contribuição de vocabulário de línguas africanas.


24
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 23:16link do post | comentar
«A língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo» —Marcos Bagno

Na semana passada comecei a falar sobre opreconceito linguístico que grassa em nosso país de uma formaparticularmente intensa. Lembrei que a Linguística é uma ciênciaestabelecida solidamente há mais de duzentos anos, com copiosaprodução de conhecimento, mas que persiste uma profunda ignorânciasobre seus aspectos mais básicos, ignorância alimentada pelos meiosde comunicação, que somente dão espaço ao discurso retrógrado epseudocientífico daqueles que rejeitam o conhecimento científicopor razões ideológicas. Perguntei também por que razão pessoasque são céticas de várias outras formas, e têm tanto a criticarna postura, por exemplo, dos criacionistas, não percebem que suaposição em relação à Linguística é idêntica à daqueles emrelação à Biologia: rejeição irrefletida e a priori motivadapor preconceitos e razões de foro íntimo.

Hoje pretendo explicar melhor em que consiste o famoso «preconceito linguístico»que é tão ou mais negado que o preconceito racial.1Para isso tomarei como guia a obra Preconceito Linguístico:O Que É, Como Se Faz , de MarcosBagno. Sei que alguns leitores torcerão o nariz, pois o autor temuma reputação de «comunista» entre o baixo clero da direitahidrofóbica que cola esta acusação coringa na testa de quem aincomoda, para não ter que discutir suas ideias.2Mas eu reajo com a mesma resposta que os debatedores «céticos»mais afoito costumam dar aos criacionistas mais folclóricos quandovêm com histórias de «hidroplacas» e «baramins» em algumadiscussão sobre Biologia ou Geologia: vão estudar parapelo menos entenderem onde estão errando.

O preconceitolinguístico é ligado à confusão criada entre a língua em si e agramática normativa. Mas uma receita de bolo não é um bolo, ummolde de roupa não é uma roupa e uma gramática não é uma língua.Esta confusão, alimentada pela mídia e por uma série de mitos quefazem parte da autoimagem (muito negativa) que o brasileiro tem desi, resulta em uma percepção distorcida de nossa cultura e nossopapel no seio dela. Os mitos a que Bagno se refere são os seguintes:

A línguaportuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente

Este mito foi o primeiro a ser contestado pela ciência, existindopesquisas etnográficas e linguísticas datadas desde o início doséculo XX que comprovaram que: a) existem dialetos regionais noBrasil, b) os dialetos regionais se diferenciaram bastante cedo emnossa história, com base nas origens diversas dos imigrantes que seestabeleceram nas diferentes regiões e c) apesar da forçahomogeneizante da televisão e do rádio, tais dialetos seguem sediferenciando.

É um mito prejudicial porque, ao não reconhecer a variedade regional doportuguês falado, oferece um diagnóstico incorreto da situaçãosociolinguística dos alunos, criando mais uma dificuldade paratrabalhar eficientemente o ensino da língua padrão. Na cabeça dospreconceituosos, reconhecer a existência dos dialetos é um «perigo»porque legitimaria o «falar errado» em detrimento do «falar certo»(conforme o entendem). Trata-se de uma concepção anticientíficapor duas razões: 1) a realidade não precisa ser “reconhecida”para existir e 2) o diagnóstico incorreto do problema cria novosproblemas em vez de preveni-los ou solucionar os existentes.

Brasileiro não sabe falar português.

A ideia de que não sabemos falar a nossa própria língua geralmentevem associada à de que em Portugal, sim, se fala direito. Não épreciso mencionar que essa concepção é fruto de uma mentalidadecolonizada, que imagina que um povo «mestiço» ou, dito de umaforma menos evidentemente racista, «tropical», não seria incapazde falar direito nem a «sua» própria língua.3Obviamente ninguém diz abertamente a razão pela qual o brasileiro«não sabe falar português» porque envolveria a sugestão de que obrasileiro é uma espécie de bípede implume que só apreende afalar se for amestrado na escola. Muitas das pessoas que têm talconcepção nunca visitaram outros países para ver como seushabitantes também «não sabem falar» suas respectivas línguas,4outros aderem ao preconceito para vender livros.

Este preconceito não resiste à comparação com nenhum paísde mais de um milhão de habitantes: italianos de diversas regiõesquase não se entendem em dialeto, franceses tampouco, os falaresalemães chegam a ser agrupados em duas línguas diferentes (alto ebaixo alemão). O árabe da Arábia Saudita é ininteligível por umegípcio, que, por sua vez, quase nada entende da fala de ummarroquino, que, por sua vez, sofre para entender um sírio. E nem sefale da salada de dialetos que cruza os Bálcãs, da Ístria à costado Mar Negro. Por que, então, diferentemente da maioria dos paísesdo mundo, o Brasil teria uma «uniformidade surpreendente» de sualíngua? Se existe tal uniformidade, como tanta gente «não sabefalar»?

Em todos esses países, a solução para o problema da comunicação é a difusão de umalíngua padrão, a norma culta, geralmente baseada em um dialeto deprestígio. Em nenhum desses países se aceita que idiotas apareçamna televisão dizendo que o povo não sabe falar. Ai de quem o diga,pois as pessoas consideram os dialetos parte da sua identidade e nãoaprendem a língua padrão porque «não sabem falar» direito, massim porque desejam integrar-se ao conjunto da nação.

Português é muito difícil.

«A desculpa do preguiçoso é a dificuldade», dizia o ditado popular. Adificuldade pode ser uma ilusão, causada pela abordagem incorreta doproblema. Quem tentar carregar água na peneira terá muito maisdificuldade do que quem usar uma caneca.

A ideia de que o português é muito difícil resulta do fato de o ensino de portuguêsno Brasil partir de um diagnóstico errado da situação do aluno, deuma apresentação incorreta da matéria e da apresen­tação damatéria errada. Imagina-se que o aluno, mesmo «não sabendo falar»,fala uma língua que tem «surpreendente unidade». Esta língua lheserá então ensinada através de um sistema educa­cionalprecário, por profissionais mal treinados e mal remunerados. Porfim, a língua que se ten­tará ensinar é uma versãoarcaizante, desconectada da realidade do aluno. Então, quando osalunos falham em massa no aprendizado, a culpa é da língua. Dapobre língua, única que não pode se defender. Gramáticos epedagogos discursam bonito. Políticos, que fazem escolas e definemcurrículos, podem defender-se. A língua, porém, é um ser abstratoe leva a culpa calada.

Nota-se o quanto esse mito está equivocado quando analisamos a percepção que os outrospovos têm de nossa língua. Numerosos levantamentos feitosinternacionalmente com estudantes de diversas partes do mundo colocamem «2» o nível de dificuldade do português, numa escala de «1»a «5». No nível «1» ficam as línguas de gramática mais simplese regular (como esperanto e indonésio) e no nível «5» línguascomo coreano, mandarim, japonês, cantonês, sânscrito e árabe.Sempre em tais levantamentos o português é colocado no mesmo nívelde dificuldade do inglês, do espanhol e do italiano, e um nívelmais fácil que francês, alemão, ou holandês.

As pessoas sem instrução falam tudo errado.

Aqui o preconceito fica um pouco mais claro. A falta de instruçãoestá associada à falta de contato com a língua propagada atravésdo sistema educacional que, obviamente, é a língua da elite. Existeuma estigmatização do falar das classes populares, não por causade suas características, mas por serem populares. Todos os «erros»do português coloquial também são encontráveis em textos degrandes escritores do passado, evidenciando que tais «erros»”nada mais são do que fenômenos linguísticos que já aconteceramantes e podem acontecer de novo. A troca do «L» por «R», porexemplo, considerada a «marca da besta» entre os «erros» deportuguês, pode ser lida abundantemente nos poetas portugueses ebrasileiros entre os séculos XV e XVIII: «frecha», «pranta» e«frauta» se encontram aos montes em Camões, Bocage, Sá deMiranda, Gregório de Matos e Guerra e numerosos outros, provando queestas pronúncias eram correntes na época. Tanto isso é verdade quese você as digitar no seu programa de edição de textos sesurpreenderá ao constatar que elas não são marcadas como erros!Ora, se é válido admitir variações como «flauta/frauta»,«flecha/frecha», «planta/pranta» e outras, por que não admitir«plano/prano», «claro/craro» e outras? Trata-se do mesmo fenômenolinguístico, operando da mesmíssima forma.

A única diferença é que as palavras do primeiro grupo foram legitimadaspela elite através de sua literatura, enquanto as do segundo gruposão estigmatizadas por serem encontradas somente nas variantespopulares do português. Mas os preconceituosos, em vez de imaginarque estamos diante da persistência, no seio do povo, de um fenômenolinguístico que existe há séculos, prefere pensar que quem fala«craro» possui algum tipo de atraso mental. Talvez se ospreconceituosos lessem mais, aprenderiam sobre a própria língua esua história, em vez de confiar em preconceitos alimentados pelaignorância.

Onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão.

Parte do complexo de inferioridade do brasileiro em relação à sualíngua se baseia em sempre deslocar geograficamente o lugar onde sefala o português ideal. Muitas pessoas dizem que é o Maranhão,afinal ele é suficientemente remoto. Em Minas Gerais muitosacreditam que os cariocas falam melhor. No Rio de Janeiro existe essacrendice sobre o Maranhão, mas também sobre o Rio Grande do Sul. Ospaulistanos estigmatizam os «caipiras» do interior, enquantoreverenciam os gaúchos.

Em geral se acredita que onde se fala ainda o «tu» o português é melhor(tanto cariocas quanto gaúchos e maranhenses o empregam ainda,embora raramente conjuguem o verbo de acordo). Esta fixação com opronome da segunda pessoa é mais um reflexo da subserviência aPortugal, que se manifesta no persistente luto de nossos gramáticospela morte do sistema pronominal clássico, que ocorreu no Brasilainda durante o século XIX, mas ainda hoje não foi assimilada.

É preciso falar como se escreve.

Se estivéssemos apenas falando de padronizar a pronúncia da normaculta para facilitar a comunicação inter-regional, seria aceitávelpreconizar a pronúncia baseada na ortografia, ainda que de formalimitada. Mas ocorre que nem mesmo norma culta padrão segue talregra. A abolição dos acentos diferenciais tornou ainda mais vaga arelação entre a letra e a leitura, a ponto de termos pares depalavras que se distinguem pelo timbre, mas têm a mesma grafia(«olho» e «olho», «molho» e «molho», «porto» e «porto»,«pelo» e «pelo»). Como então cobrar que um mineiro leia «móínho»em vez de «mũe» citando que é preciso falar como se escreve?Obviamente esta é uma desculpa para negar voz aos dialetos regionaise forçar a homogeneização a partir de uma norma culta ideal quenão é falada nem mesmo pelos cariocas e paulistas em cujos dialetosela supostamente se baseou.

Ocorre que a escrita é representação da fala, tal como o desenho é uma representaçãodo objeto. A função da escrita é nos lembrar dos elementos queempregamos na fala, tal como o desenho nos relembra o objeto.Subordinar a fala à escrita é como querer que as coisas reaispassem a parecer com os desenhos que são feitos delas. Imagine se umerro de impressão faz com que o desenho de uma galinha saia semcrista. Quem sairá pelo mundo amputando cristas das penosas? Existeum erro na avaliação da função da escrita em relação à língua,e certa categoria de gramáticos «pop» e professores seus fãsparece querer andar pelo mundo, de estilete à mão.

É preciso saber gramática para falar e escrever bem.

Se o bom conhecimento da gramática fosse requisito para falar eescrever bem, todos os bons escritores seriam exímios gramáticos, eum bom número de gramáticos teria talento literário. Ocorre quenenhum gramático jamais escreveu coisa que preste em termos deliteratura e os grandes escritores costumam ser unânimes críticosdeles. A lista de escritores que destilaram veneno contra osgramáticos é extensa e notável, com nomes como Rubem Braga,Vinícius de Morais, Leon Eliachar, Carlos Drummond de Andrade,Machado de Assis, Monteiro Lobato, entre outros. Todos, sem exceção,viam a gramática mais como obstáculo do que como ferramenta de seutrabalho. Machado de Assis escreveu uma crônica sobre suaincapacidade para ajudar um sobrinho a fazer seus deveres deportuguês, por exemplo. Se nem o Bruxo conseguia se dar bem com asabsurdidades da gramática, como podemos esperar que um aluno comum oconsiga?

Mesmo assim, existe uma«propaganda enganosa» de que os alunos passarão a falar e aescrever melhor se aprenderem gramática. Esta propaganda esconde queas gramáticas foram inventadas muito depois da literatura (e estamuito depois da escrita). A gramática não é a base de coisanenhuma, apenas um guia para os que desejam dominar uma determinadavariedade linguística. A primeira gramática grega surgiu somente noséculo II a.C., séculos após Homero, Xenofonte, Safo, Platão,Aristóteles, Eurípides, Aristófanes, Ésquilo, Anacreonte, Hesíodoe outros. As primeiras gramáticas do português surgiram no séculoXVIII, séculos após Sá de Miranda, Camões, Dom Dinis e outros.Como explicar que tantas obras de tão alta qualidade tivessem sidoproduzidas antes da existência de gramáticas? Inspiração peloEspírito Santo?

O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social.

Este mito retorna ao primeiro e ao segundo, aqui se considerando uma«boa ação» dar uma língua aos «sem língua» para permitir queeles superem sua condição de pobreza e marginalização. Existecerta verdade na ideia de que a educação é transformadora dasociedade, para melhor, mas não se deve levar isso a ferro e fogo.Se dominar a norma culta fosse um instrumento eficaz de ascensãosocial, professores de português (e gramáticos, principalmente)seriam pessoas extremamente poderosas e prestigiadas.

A verdade fica muito longe disso, com pessoas de pouca ou nenhuma instruçãoadquirindo ou conservando popularidade e poder por vários meios.Mais do que isso: ninguém corrige o falar de um político poderoso,por mais que cometa solecismos e «erros de concordância». Nãodominar a norma culta não lhe impediu de galgar o poder e não oexpõe à crítica. Portanto, quando criticamos o falar de uma pessoado povo, não estamos criticando o falar propriamente dito, mas a suacondição social.

É fato que a profusão de «erros» está relacionada ao posicionamentodo falante na estrutura da sociedade: quanto mais baixo mais «erra».Não somente por falta de acesso à «cultura», mas também porqueas classes dominantes não aceitam como legítima a cultura dasclasses subalternizadas, a não ser quando apropriada na forma defolclore ou artesanato.

O preconceito linguístico é uma ferramenta de exclusão e de humilhaçãodaqueles que se encontram na base da pirâmide: para eles oreconhecimento só pode vir através do domínio de uma norma cultaque lhes é imposta, domínio que não lhes garante ascensão sociale não os isola de serem ridicularizados ainda assim, por sua«correção pedante», quando se defrontam com pessoas dotadas depoder, que não precisam se preocupar com todos os «esses e erres».

Estes oito mitos do preconceito linguístico se sustentam em um tripé perverso: agramática tradicional, o ensino tradicional e o livro didático. Agramática tradicional (normativa, intolerante, preconceituosa,arcaizante e lusófila) inspira um sistema educacional tradicional(excludente, intolerante, unilateral, colonizado), que alimenta aindústria do livro didático (instrumental, unilateral, alienante,superficial) que, por sua vez, recorre à gramática tradicional parafonte de sua ideologia e de seus métodos. Fecha-se um círculovicioso difícil de romper, pois livros que tentem desviar da normaserão combatidos pela mídia (que está associada à indústria dolivro didático e ao ensino particular instrumental) e ignoradospelas escolas (que são cobradas pela mídia, pelos pais e pelo“mercado” de acordo com a sua fidelidade ao ensino tradicional).Escolas que tentem inovar terão dificuldade para conseguir livrosdidáticos e sofrerão ataques da mídia e boicote dos pais dealunos, especialmente se tal escola for particular. E assim seperpetua a concepção de que o povo não sabe falar, uma situaçãona qual a escola não sabe ensinar e um resultado de que o povo nuncasaberá o que precisaria saber: o domínio suficiente da norma culta.

1 Eu digo que é até pode ser mais negado, porque a prática de tal forma de preconceito é uma maneira menos rude de discriminar as pessoas sem evidenciar uma posição abertamente racista.

2 Uma reputação evidentemente absurda, pois Bagno não é um político, mas um cientista, e quase tudo que ele escreve é corroborado por pesquisas feitas no mundo todo. Chamá-lo “comunista” ou termo que o valha é como acusar todo o estabelecimento universitário da maior parte do planeta de estar envolvido em uma conspiração.

3 O pronome possessivo vem entre aspas porque nesta série estamos justamente discutindo «de quem» é a língua que a escola pretende ensinar.

4 Para os que consideram a Argentina uma espécie de ilha de cultura nesta América Latina mestiça e chucra, sugiro fortemente que pesquisem sobre o voseo, um fenômeno linguístico característico do espanhol portenho (comum à Argentina, ao Uruguai, ao Paraguai e ao sul da Bolívia) que consiste na substituição do «tú» e do «vosotros» por um «vos» que se comporta de forma análoga ao «vous» francês e ao «você» brasileiro.


17
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 11:28link do post | comentar | ver comentários (2)

Nos últimos anos tem estado muito em evidência o debate sobre o “preconceito linguístico”, notadamente desde que um homem do povo (e por isso xingado de “apedeuta” por uma mídia preconceituosa e elitista) chegou ao poder. Tal debate é, porém, feito por leigos e para leigos, nunca, jamais, em hipótese alguma permitindo que os especialistas tenham o mesmo destaque que os palpiteiros. Fala-se sobre a língua, sem nunca sequer mencionar que existem linguistas. O que é mais ou menos como conversar sobre doenças sem mencionar que existem médicos. Fala-se sobre gramáticos, políticos, escritores e professores de português, é verdade, o que equivale a, mesmo esquecendo os médicos, lembrar de uma série de outras profissões relacionadas à saúde, algumas sérias, outras não.

Quando um apologista cristão diz não crer na Evolução e enfileira uma série de comentários deturpados e desconexos, que evidenciam desconhecimento completo ou muito grande das coisas mais básicas de Biologia, as reações jocosas no meio do “movimento ateu” são quase instantâneas. Há quem chegue a recomendar à criatura que “vá estudar”, há quem lhe aponte as “falácias” de seu raciocínio ou até o fato de argumentar desconhecendo coisas básicas e imediatas, que deveriam ser evidentes no quotidiano. É unânime entre os que não são fundamentalistas religiosos que um criacionista é uma pessoa que tem um sério problema intelectual (dissonância cognitiva), uma profunda ignorância científica ou então é um manipulador que desconsidera fatos a fim de ter apelo junto às pessoas que não os conhecem ou compreendem. Em uma linguagem mais direta, criacionista só pode ser burro, ignorante ou desonesto.

Este estado de coisas não tem a ver, necessariamente, com religião. O criacionismo não é causado pela necessidade de crer em Deus, visto que muitas pessoas creem nEle sem serem criacionistas. Na verdade o criacionismo reflete o apego a um conjunto de explicações que — mesmo obsoleto e em contradição com aquilo que se observa na ciência (e até no quotidiano, em alguns casos) — continua tendo apelo porque oferece uma visão de mundo mais simples, imediata e inteligível. “Deus fez” é uma explicação que não exige muito raciocínio, não humilha quem não tem tempo de estudar e tem, na cabeça de muita gente, o salutar efeito de diminuir a distância entre um diploma de primário e um de doutorado. Em simples palavras: o criacionismo é uma reação anti-intelectual, que procura restaurar um mundo ideal que homens eram homens e sabiam consertar os motores de seus carros.1

Existe, porém, uma ciência que sofre um ataque muito mais cerrado da pseudociência, um ataque muito mais cruel e eficiente. Esta ciência foi estabelecida há mais de duzentos anos e; mesmo mostrando notável capacidade de produção de conhecimento, inclusive com modelos que permitem fazer predições; é praticamente ignorada fora dos meios acadêmicos, enquanto seus detratores têm acesso fácil à mídia para propagar seus panfletos reacionários. E de tal forma isso, que o discurso pseudocientífico se tornou a norma e os pesquisadores precisam enfrentar o ceticismo e o descrédito quando apresentam seus trabalhos. Ceticismo e descrédito que chegam, inclusive, entre os pesquisadores de outras áreas do conhecimento.

A ciência de que estamos falando é a Linguística. Fora dos círculos acadêmicos pouca gente ouve falar dela, embora seja frequente que os conhecimentos por ela produzidos se difundam, sem crédito, por uma variedade de meios. A Linguística permitiu a tradução de textos em línguas perdidas e a reconstrução da autoria da Bíblia; provou a múltipla autoria do Pentateuco e do Alcorão; determinou as relações étnicas entre os povos da Europa, do Oriente Médio, da Ásia Central e do Subcontinente Indiano; permite detectar fraudes documentos históricos; é parte da análise que busca determinar a validade de uma inteligência artificial; ajudou a desconstruir o discurso totalitário etc. As descobertas da Linguística são incríveis, para uma ciência tão recente e que estuda um fenômeno tão complexo quanto as linguagens humanas.

Porém a Linguística desperta sua quota de reações entre aqueles que sonham com um mundo ideal, que homens eram homens e tudo que se precisava aprender era o trivium e o quadrivium.2

Ocorre que a Linguística se insurge contra um dos últimos bastiões do preconceito nossa sociedade. Não é mais aceitável discriminar os indivíduos por fatores como a cor de sua pele ou a religião, resta apenas como última distinção do elitismo a afirmação de um sistema de castas linguísticas, que perpetua e justifica a exclusão de uns favor de outros. Ao demonstrar a cientificamente a falsidade dos paradigmas em que se assenta tal divisão, a Linguística atrai a ira dos que se aproveitam deles para exercer privilégios ou para ganhar uns trocados. E ganha-se muito dinheiro vendendo dicionário e gramática, e cursinho e concurso e manual de redação.

Refiro-me, obviamente, à cultura de gramática e dicionário, herdeira dos sistemas medievais de ensino. Tal cultura se baseia na crença de que certas línguas são superiores a outras,3 que “as pessoas” (aqui geralmente entendidas como “as pessoas das classes inferiores”) pertencem a uma espécie de bípede pelado e estúpido que não saberá se comunicar a menos que a escola ensine. Se não for ensinadas direitinho pelo “sistema educacional”, crescerão falando “errado”, do jeito que puderam aprender com outros ignorantes, como seus pais, por exemplo.

Colocando a coisa nestas palavras ela soa um pouco ofensiva. Talvez algumas pessoas que estejam lendo este texto ouçam soar o alarme: “Ei, eu não penso assim!” Será mesmo? Façamos um exame de consciência, às vezes só conseguimos enxergar certos detalhes quando exagerados na caricatura. E a caricatura dessa visão de mundo é o gramático normativo conservador, figura já satirizada com força por Monteiro Lobato, em Emília no País da Gramática, escrito incrivelmente em 1934. Entre esses há um gramático famoso hoje em dia, que tem por sobrenome a marca de um remédio que causa abortos, que tem espaço até na televisão para difundir “regrinhas” de uma gramática que reflete uma língua falada no século XVIII e que nem mesmo a elite fala mais.

Um cético não pode compactuar com essa visão de mundo. Já falei anteriormente sobre como o ceticismo tem sido abastardado pela convivência com preconceitos, a ponto de arengas céticas incluírem injúria racista contra um povo historicamente discriminado. Aqui estou indo além: a cultura da gramática e do dicionário é preconceituosa, embora não da forma grosseira como se manifesta o preconceito racial contra negros, judeus ou ciganos.

O preconceito a que me refiro é reflexo de uma sociedade de classes, na qual os valores e experiências do povo são desconsiderados e os valores e experiências das classes dominantes são impostos através de sistemas ideológicos. A elite é que sabe falar, e vai ensinar o povo a falar. O “não saber falar” significa que, para a elite, o que quer que o povo esteja falando é uma “não língua”. A História está repleta de exemplos de situações nas quais a imposição da língua dominante refletiu um processo de dominação política.

Ao ser entrevistado para a Veja, o professor foi introduzido pelo seguinte comentário: … professor de português — idioma que, de tão maltratado no dia a dia dos brasileiros, precisa ser divulgado e explicado para os milhões que o têm por língua materna. Não houve contestação desta definição por parte do professor, certamente porque ele gosta de se ver assim, como uma espécie de missionário entre os primitivos. Será realmente necessário “divulgar e explicar” o português para pessoas que o têm por língua materna?

Ocorre que, conforme demonstra a Linguística, os dialetos populares não são uma “corrupção” da língua nacional pela ignorância do povo: eles têm uma origem, uma história e uma lógica interna. Os dialetos regionais já existiam no Brasil Colônia, como reflexo das origens geográficas diferentes dos imigrantes de cada região do país,4 como se percebe facilmente estudando episódios como a “Guerra dos Emboabas”, no qual o falar definia a identidade das pessoas, da mesma forma que seu vestir. Ora, se sabemos que os dialetos têm uma história, como seguir afirmando que nada mais são do que fruto da ignorância de um povo que “não sabe falar”? Não podemos, eis porque segue existindo, entre os que se beneficiam dos métodos de “ensinar a falar”, uma barragem contínua de críticas e desqualificações contra a ciência da Linguística.

Infelizmente, porém, quando uma ciência começa a detectar as estruturas de dominação ideológica que mantêm as coisas “em seu lugar” ela começa a ser associada com movimentos revolucionários que procuraram ou ainda procuram colocar outras coisas no mesmo lugar. Esse discurso da Linguística, que explicita como as elites estabelecem-se como portadoras da “língua certa” e se arrogam a missão de ensinar o povo, passa então a ser visto como perigosamente “comunista” por pessoas que não sabem o que é Linguística e, muitas vezes, não sabem o que é comunismo.

Você já deve ter ouvido falar esse tipo de coisa por aí. É muito frequente entre os adeptos de ciências exatas a depreciação das ciências humanas, como se elas fossem coisa de “maconheiros comunistas gays”. Não percebem os que dizem estas bobagens que adotam um discurso análogo ao dos criacionistas, que rejeitam a priori e em bloco todo um ramo do conhecimento que não estudaram, apenas porque as teses se chocam com as suas opiniões leigas.

Gostaria de enfatizar esta última palavra. Debatedores como o Franciso Quiumento — mas não somente ele — adoram esfregar esse termo na cara de criacionistas para descartar suas opiniões. Acho justo: ninguém confia na opinião de um “leigo medicina” para tratar-se ou de um “leigo engenharia” para construir uma ponte. Natural, portanto, que o bom senso rejeite o que um “leigo biologia” tenha a dizer. Mas será que tipo de reações que eu provocarei se disser que os vociferantes críticos da Linguística são “leigos” que não sabem o que estão falando? Será que essas pessoas terão a racionalidade de reconhecerem que agem como o apologista de Bíblia à mão que grita que “A Evolução É Só Uma Teoria”? Tenho certeza de que a maioria não. Tal como é impossível demover o criacionista, ao menos não subitamente, é impossível demover os críticos da Linguística, porque do alto de sua ignorância eles acham que estão “certos”, que as ciências humanas não são ciências “de verdade”, enquanto eles têm à mão a régua exata para medir o mundo.

Cabe perguntar qual a razão do preconceito contra as Ciências Humanas por parte das pessoas que cursam Exatas ou Biológicas. Talvez tal preconceito seja agravado pelo reflexo das distorções de nosso mercado de trabalho, que tornam mais financeiramente bem sucedido um médico ou engenheiro do que um professor, mas o fenômeno é encontrado também outros lugares do mundo, o que nos sugere uma causa mais profunda do que as imperfeições de nossa sociedade tropical. Se eu quisesse cometer um comentário tão abusivo quanto os que já me foram dirigidos por pessoas de Exatas ou Biológicas eu diria que aqueles que são instrumentalizados pelo sistema serão por ele pregados como peões na luta contra o conhecimento que ameaça a atual estrutura do mesmo sistema. Não creio, porém, que esses comentários sejam deliberados, mas fruto de irreflexão e, portanto, não é justo que eu reaja com um ataque desse tipo. Justo é, porém, que eu convide as pessoas que desqualificam as Ciências Humanas a examinar não as motivações de tais críticas, pois tal pedido seria falacioso, mas a validade delas.

Na próxima semana volto ao tema, para falar especificamente sobre as formas como se manifesta tal preconceito.

1 Uma das provas de que o criacionismo não é um monstrengo isolado, nem a Biologia a Geni das ciências, é que existem vários outros fenômenos análogos afetando outras ciências, exatas, humanas e biológicas. A pseudociência existe em todos os ramos do conhecimento, sempre acompanhada de uma pregação panfletária contra o “elitismo” da ciência estabelecida e seus controles e apresentando-se com uma humildade cativante que fala ao coração do leigo com o conforto da sugestão de que o esforço de estudar é uma vaidade sem sentido. Exemplos de fenômenos tais podem ser encontrados na História (revisionismo do Holocausto, deuses astronautas, fenícios cariocas), na Geografia (Amazônia pulmão do mundo), na Medicina (homeopatia, osteopatia, auras, cura pela fé), na Geologia (terra oca, terra jovem), na Astronomia (Nibiru/Hercólubus) etc. Talvez os outros tipos de pseudociência não consigam ter a mesma projeção do criacionismo por não contar com o púlpito para divulgá-los (inclusive o púlpito eletrônico), mas epistemologicamente falando não há uma grande diferença entre crer Adão e Eva ou crer crianças índigo.

2 O currículo das escolas mantidas pela Igreja na Idade Média se baseava no estudo de dois grupos de matérias. As básicas correspondiam ao trivium, de que deriva o adjetivo “trivial”, e as demais eram consideradas avançadas. O trivium era composto de gramática, lógica e retórica; enquanto o quadrivium tinha de aritmética, geometria, música e astronomia. Este currículo correspondia às “artes liberais”, enquanto outros cursos ensinavam as “artes práticas” (como a medicina e a arquitetura).

3 Os anglófonos, por exemplo, julgam o inglês a língua “mais própria à civilização” por possuir o maior conjunto de vocábulos (ainda que os dicionários de inglês sejam inflados por todo e qualquer termo estrangeiro que adquira certo uso corrente e que as diferentes acepções de uma mesma palavra sejam frequentemente postas verbetes separados). Os francófonos consideram o francês superior porque possui “o sistema de conjugação verbal mais preciso entre as línguas latinas”, entre outras bobagens. Para cada língua há um meio de demonstrar sua “superioridade” segundo algum critério arbitrário: o alemão e sua incrível capacidade de derivação morfológica, o italiano e sua plasticidade sonora, o espanhol e sua estabilidade ortográfica e gramatical de quase oito séculos, o grego e sua tradição de dois mil e quinhentos anos etc.

4 A influência açoriana nos dialetos do extremo sul, por exemplo, ou da língua tupi sobre os dialetos do centro-oeste e de São Paulo.


09
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 21:57link do post | comentar

…ou não andavam tão bem acompanhados. Era um mundo melhor, no qual você não se fazia ouvir nem na esquina, mas podia pelo menos desfrutar da doce sensação de que as suas ideias não seriam incompreendidas e ridicularizadas por idiotas.

O ser idiota é um ser coletivo, gregário, agremiado, associado, mesmo que informalmente. Ninguém consegue ser realmente um idiota quando está sozinho porque o eco das paredes nos dá a estranha sensação de que não somos geniais ou, ainda pior, de que nossa genialidade nunca será compreendida. Em ambos os casos poupamos o mundo de nossas palavras por tempo suficiente para que amadureçam, ou amadureçamos, ou emudeçamos, ou apodreçamos.

Um grupo de pessoas apenas moderadamente bobas pode transformar-se em uma turba vociferante de trogloditas. Um babaca não comprará uma briga contra o carinha que lhe «olhou torto» na rua, um grupo de babacas pode massacrar um mendigo pelo prazer de ouvir ossos quebrando. Coletivamente, a idiotice se potencializa. Mas remova cada um dos idiotas de seu bando e você terá um gatinho educado. Sem «amigos lá fora» para impor sua interpretação idiota do mundo, o gatinho aprenderá a negociar, a conversar. Esta é a grande virtude das prisões: as prisões deveriam ser o «cantinho pensamento» para os meninos maus da sociedade. Infelizmente, vivemos numa sociedade em que os castigos são vistos como manifestações autoritárias da tradição. Talvez sejam, mas negociar uma entrada honrosa no mundo adulto é algo que já saiu meio de moda. Todos querem entrar arrombando, pisoteando, idioteando.

O mundo era melhor no tempo em que não havia tantos bandos de valentes, no tempo em que os valentes se orgulhavam de resolver sozinhos. Hoje em dia, já que estamos ficando modernos, resolvemos redescobrir a Idade Média e trouxemos de lá o que os franceses chamavam de melée, a guerra bruta e desorganizada que só terminava quando os vivos começavam a tropeçar demais nos mortos. A guerra estúpida e bárbara contra a qual a civilização procurou impor códigos de cavalaria, tréguas dominicais, direitos de asilo, honra militar etc. Briga em porta de escola é um choque de bandos, ninguém ali possui individualidade, são idiotas que se entregam ao espírito do bando — e todo bando é necessariamente idiota, todo partido é utópico, toda associação é ingênua, todo grupo é meio besta. Houve um tempo em que afirmar-se como indivíduo era sinal de honra. Hoje, a folha de grama que se destaca é aparada.

Conformem-se, garotos que estão hoje nas escolas. Vocês não terão a permissão de viver com a liberdade que eu vivi. Eu vivi sob uma ditadura os meus tempos de escola, mas vivi mais livre do que vocês. Porque as correntes com que nos amarramos a nós mesmos são as mais difíceis de romper. Quem romperá a corrente de massificação, de idiotização? Experimente gostar de uma garota diferente, ouvir uma música diferente, passar por uma rua diferente, vestir-se com uma roupa diferente. Escárnio, no começo, xingamentos, pouco depois, talvez uma pedrada na testa ou, se for possível, um linchamento. Moral ou físico, já tanto faz. Não existe muita vida depois que você perde o direito de ser você mesmo. E passa a ser um dos idiotas do bando.


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