Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
28
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 16:12link do post | comentar

Eram tempos bicudos na vida, eu tive de vender meu carro. Já não era grande coisa: um fusca 1976 amarelo-ovo que eu detestava. Mesmo assim, vendê-lo doeu na alma. Doeu porque era um gesto simbólico da profunda decadência em que estava. Tinha sido quase rico, tinha comprado carro do ano, mas andaria a pé. Como dizia uma música do Leoni: “Já tive carro e grana e um monte de convites para qualquer lugar”. Tal como o infeliz personagem da canção, eu passaria a só andar a pé, a diferença era que andar passava a ser um sacrifício.

Foram três anos sem carro, muita sola de sapato gasta e muitas horas de solidão e estudo. Projetos que não vingavam, sonhos que morriam. Por fim consegui outro emprego e algum tempo depois pude comprar outra vez um automóvel. Nada de extraordinário, um Ford DelRey 89 a álcool que me daria um prejuízo de mais de R$3.500,00 no total, entre consertos, alto consumo de combustível, pneus novos, lanternagem e uma “manta” de R$ 1.200,00 quando tive de vendê-lo, quase dois anos depois. Desse carro guardo lembranças agridoces. Bons e maus momentos, frustrações e risadas. Uma dessas histórias teve a ver com os adesivos que o antigo dono tinha fixado no vidro traseiro e na lataria da tampa do porta-malas. 

Provavelmente o DelRey tinha sido de alguém muito religioso, talvez até um pastor. Ele tinha nada menos que três adesivos proeminentes (um deles era até fluorescente) com mensagens tipicamente evangélicas. O primeiro, do lado superior do vidro, em letras grandes e berrantes, dizia “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”. Faltava, porém, visibilidade, porque este adesivo tapava boa parte da visão do motorista. Isto talvez explicasse as várias marcas de batida que o DelRey tinha na traseira: dar marcha a ré olhando para um salmo não é tão seguro quanto fazê-lo olhando para o que há por detrás do carro. Desse adesivo eu mesmo me livrei logo, usando álcool isopropílico e uma espuma de cozinha. O segundo adesivo, localizado ao lado do logotipo da Ford, dizia que o veículo era “Propriedade do Senhor Jesus”. Não sei se fora o Senhor Jesus que o vendera para a loja de carros usados, mas tratei de me livrar também daquele adesivo quando o lanterneiro remendou as batidas da traseira. O terceiro adesivo, o mais colorido de todos, corria sobre a parte inferior do vidro, ajudando a estreitar ainda mais a visão para a marcha à ré, e dizia “Pode seguir-me, pois Jesus me guia”. Este adesivo era o mais problemático, pois tinha sido aplicado sobre um outro, mais antigo e já corroído pelo tempo. Eu tentara retirá-lo, mas logo de início percebera que seria um trabalho complicado e eu não tinha álcool suficiente para terminar. Então deixei o adesivo e acabei rodando com ele durante algumas semanas.

Tive então uma reunião de trabalho em Juiz de Fora, cidade aonde já tinha ido dúzias de vezes e que eu dizia conhecer “como a palma de minha mão”. Pela primeira vez em muito tempo eu tive a oportunidade de ir em meu próprio carro, e não poderia viajar de outra maneira. Até ficava mais caro ir em meu carro, mas era um prazer que eu quase esquecera. Entrei na cidade cuidadosamente, depois de quase cinco anos, temendo até ter esquecido onde ficava a Rua Halfeld. Passei pela entrada de Caeté, atravessei o trevo e tomei o “caminho do morro”, chegando à Avenida Brasil, no Poço Rico. Ao chegar ali eu tive uma “sensação estranha” de que havia “algo errado” com o carro que vinha atrás de mim: um Gol branco modelo quadrado, talvez ano 89 ou 91.

Tentei lembrar dos filmes de espionagem que assistia quando menino (sempre fora fã de James Bond e mesmo aos trinta e tantos anos eu ainda lembrava sequencias inteiras quase de cor) e comecei a pensar o que 007 faria se desconfiasse que alguém o estava seguindo. Obviamente o passo inicial era certificar-me de que estava mesmo sendo seguido. Para isso não havia maneira melhor que sair ligeiramente da rota esperada: o perseguidor teria de seguir, denunciando suas intenções, ou eu escaparia. Tomei a entrada da direita em vez de seguir pela avenida, à margem do Paraibuna. O Gol branco entrou comigo. Tomei uma rua à direita, depois outra à esquerda, depois de novo à esquerda. Eu tinha plena confiança de onde estava, não havia nenhum receio. O Gol branco me seguia fosse qual fosse o caminho.

Receoso, tomei uma rua que subia em direção a um morro. Caramba! Nem sei que rua era aquela. Subi acelerando, mas o velho motor CHT do DelRey começou a engasgar e a tossir, até finalmente travar num soluço lânguido e fazer o bicho parar no meio da ladeira. Estranho, porque nem na subida íngreme da chegada da cidade o carro sofrera tanto.

Um pavor sobrenatural tomou conta de mim. Meu coração parecia uma artilharia antiaérea. Minhas mãos estavam tão firmes no volante que meus músculos do braço doíam de retesados. Foi preciso praticamente uma torção de chave inglesa para eu girar o pescoço e olhar para trás.

Um homem usando óculos escuros, vestido de um terno branco riscado de cinza desceu. Ele tinha algo preto na mão. Meu Deus! Um revólver! O que será que eu fiz para mandarem um assassino profissional atrás de mim? Larguei o volante, abri a porta do carro com muito cuidado e fui descendo praticamente com as mãos ao alto, na esperança vã de que fosse somente um assalto.

Mas no que fazia isso notei que o volume escuro na mão do homem fora ilusão de minha mente. Os óculos escuros eram apenas por causa de lentes fotocromáticas: ele era tão míope quanto eu. Abaixei as mãos antes mesmo de ter chegado a levantá-las e tentei desfazer a expressão rígida do rosto.

O homem falou, com uma voz calma e pastoral, estilo e vocabulário típico de religiosos evangélicos:

— O irmão está com problemas?

Admiti que sim, com um simples aceno de cabeça.

— Eu o estava seguindo… — a honestidade do homem era comovente, talvez ele nem fosse me assaltar.

— S… seguindo?

— Notei que o irmão vem de Leopoldina, eu estou vivendo lá desde há uns cinco meses.

— Mas, por que estava me seguindo?

— O senhor dirigia como quem conhecia a cidade: eu estava perdido.

A súbita queda do nível de tensão teve um efeito tão relaxante sobre o meu estado de espírito que eu desgracei a rir sem parar, dobrando os joelhos e gargalhando até babar.

— O que foi, irmão?

Eu não conseguia parar de rir mais. O pobre pastor me seguia sem nenhuma outra intenção que achar o caminho para o hipermercado, e eu surtara achando que estava num filme do 007. Tive pena do pobre homem, que só queria fazer as compras de mês. Caramba! Ele estava com a família dentro do carro: mulher na frente e três crianças no banco de trás. Decidira seguir-me, talvez, porque o adesivo dizia que Jesus me guiava.

— Meu amigo — respondi-lhe — lamento dizer, mas se o senhor me seguiu até aqui porque estava perdido, então nós temos um problema. Não encare isso como uma blasfêmia, mas agora eu estou perdido e sem a mínima idéia de onde estou. Eu me perdi quando decidi não acompanhar a Avenida Brasil, justamente porque estava tentando saber se você estava me seguindo…

O pastor pareceu desolado:

— Realmente, irmão, todos nos perdemos quando saímos do caminho traçado por Jesus.

Ele disse isso com a metade de um sorriso no rosto. Parecia ser um bom homem.

— Mas no fim de contas, irmão, parece que Jesus realmente nos guiará.

Ele fez um gesto com o queixo, que me fez olhar para trás: um policial militar descia do alto do morro, uniformizado, a caminho do trabalho. Tomei a iniciativa de chamar-lhe e pedir ajuda. Ofereci-lhe carona até o centro em troca de orientações. Ele aceitou, claro. Uma passagem de ônibus pode ser pouca coisa para economizar, mas quem desperdiça centavos não economiza milhões. Enquanto ele entrava no meu carro, casualmente notei uma coincidência curiosa: na etiqueta pregada no bolso direito da farda estava escrito “Cb. Jesus O+”.


26
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 20:50link do post | comentar
  1. Admita que se tornou um viciado tecnológico e que este vício o está destruindo.
  2. Acredite que é possível encontrar a salvação. Para inspirar-se, abra uma janela, exponha seus olhos à luz brilhante que há no mundo lá fora, bem devagar para que o sol não queime suas retinas acostumadas a trevas e luz artificial. Depois de alguns dias seus olhos terão aliviado os sintomas da síndrome de abstinência de radiação eletromagnética do monitor e poderão suportar a luz do sol melhor, ponha óculos escuros e dê uma volta no parque durante o dia. De preferência vá sem usar pesadas roupas pretas.
  3. Experimente atividades construtivas ou recreativas que não envolvam o computador: jogar paciência com um baralho, brinque com seus filhos (se os tiver) ou dê um passeio de bicicleta (sem levar tablet nem notebook), dar milho aos pombos, tomar cerveja num boteco.
  4. Procure dentro de si mesmo os pensamos que levam à conexão indefinida. Resista à tentação de blogar o que viu no passeio ou de filmar alguma cena curiosa para postar no YouTube. Permita que algumas coisas sejam registradas apenas em sua memória. 
  5. Procure resolver as suas deficiências sem recorrer a metáforas tecnológicas. Não existe um Google para achar o que você perdeu. Não há como exibir cartões com emoticons enquanto fala. Organize seus pertences e treine expressões faciais correspondentes aos sentimentos que deseja transmitir. Encontre autonomamente soluções para os problemas de seu dia-a-dia, sem pesquisar sobre isso na Internet.
  6. Fique aberto a novas experiências não tecnológicas. Não rejeite tecnologias apenas por serem «antiquadas» e não cultive a obsessão pelo «novo». Leia um livro de papel. De preferência um que tenha sido publicado há mais de vinte anos e NÃO seja sobre informática. Visite um ponto turístico em vez de fazer download de fotos dele. Tente chegar lá sem usar o Google Maps.
  7. Procure aquele amigo de infância com quem você não fala há anos porque, embora saiba onde ele mora, perdeu seu endereço eletrônico. Convide-o para tomar uma cerveja no boteco da esquina enquanto assistem a uma partida de futebol em vez de jogarem Winning Eleven. Arranje um relacionamento sem recorrer ao Facebook. Não blogue sobre isso e nem altere seu status no MSN.
  8. Cumprimente conhecidos na rua. Cumprimente alguns desconhecidos na rua. Compre em uma loja que não tenha website. Ao fazê-lo, tente interagir com o/a vendedor/a. Torne-se conhecido dos vendedores das lojas e supermercados que frequenta regularmente.
  9. Procure dedicar-se a hobbies que não requeiram o uso permanente de computadores: escultura, pintura, ciclismo, pelada com os amigos, motocross etc.
  10. Livre-se de todos os perfis, logins, senhas, acessos etc. que não sejam estritamente necessários para seu trabalho ou que não lhe pareçam realmente divertidos ou úteis.
  11. Mantenha o telefone celular desligado enquanto for possível, mas procure manter contato com as pessoas que importam em sua vida, por meio de cartas, viagens, telefonemas etc.
  12. Determine horários nos quais ligará o computador (exceto para trabalho) e faça saber a todos que você respeita o que se propôs a fazer. Convide seus antigos amigos virtuais para encontros pessoais e lhes fale sobre as maravilhas do mundo real.

18
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar

Fagundes Varela, notório poeta do romantismo brasileiro, foi um ser humano à frente de seu tempo, ousando externar em sua literatura coisas que somente Raul Pompeia voltaria a abordar, quase cinquenta anos depois. No caso específico deste poema, pode-se argumentar uma influência de Rimbaud e Verlaine quanto à temática, ainda que isto não esteja claro.

Segundo Gretovski (1969, p. 21), o poema Flor do Maracujá é a primeira obra abertamente homossexual da literatura brasileira. Kuranyi (2000, p. 76) não apenas concorda como interpreta o poema como uma ode ao ânus, transformado em uma fonte de prazer poético e de imagística retroativa e relativa à vida imaginária que o poeta sonhava, mas que a sociedade lhe negava, tal como Rimbaud e Verlaine haviam feito no antologizado e muito famoso Sonnet au Cul.

A análise dos dois autores depende muito do que disse Mário de Andrade (1929, 69) a respeito do poeta fluminense e do que disse Mário Filho (1957, 171) sobre o flamengo. Massimo Buraccio e Roberto Occo, dois renomados insemiólogos intalianos escreveram em “Transposições Vocálicas” (1996, 88) que na imagística pederástica é comum haver uma inversão da ordem das vogais, de forma a que simbolizem outras sons, especialmente quando uma determinada vogal apresenta uma rima mais homossexualmente rica.

Evocando Rimbaud, eles atribuem um sentido de cor às vogais. Apenas que o poeta gaulês lhes dava valores segundo a mítica francesa de Joseph Pujol (1909) enquanto Varela inventou uma nomenclatura tipicamente fluminense para as vogais na qual:

A significa U, E, significa O, I, significa I mesmo, O, significa E e o U significa A (Buraccio; Occo, 1996 p. 96).

Desta forma as abundantes rimas em “á”, que escorrem do poema do rio-clarense mais famoso do Brasil passam a ser rimas em “ú”:

Mas todo mundo sabe — ou devia saber — que o “u” não recebe acento, mas sim o assento é que recebe o “u” (Toledo, 1989 p. 24).

Como o “u” no simbolismo representa o azul e o roxo, segue-se que a flor (roxa) do maracujá possui um sentido evocativo “muito sugestivo” (Buraccio; Occo, 1996 p. 24).

Pennyman (1996, 666) enxerga no poema uma prefiguração do símbolo homossexual do arco íris. O autor cita Piruzzini (1973, p. 33), que atribuiu a escolha da bandeira gay à influência de um desconhecido “poeta dos trópicos” que os gays de Nova Iorque não quiseram nomear. O autor, então decodifica do texto de Varela, as sete cores do arco íris, expressas através de sete seres citados no texto:

  • Rosa (vermelho)
  • Maracujá (laranja)
  • Cravo (amarelo)
  • Folhas do gravatá (verde)
  • Fonte de água (azul)
  • Borboleta do Panamá (anil)
  • Flor do maracujá (roxo)

O fato de que as duas cores mais expressivas do movimento gay estejam presentes na flor do maracujá, que possui em seu centro dois cetros, ou espadas, foi visto como Lambistti (2002, 29) como um indício ignorado antes.

Desta forma, “A Flor do Maracujá” pode ser visto como um exemplo clássico de poesia homossexual em nossa literatura, e assim deve ser reconhecido.

Apareceu em uma comunidade literária do Orkut um aluno desses preguiçosos que estão sempre procurando quem lhes faça seus trabalhos escolares (afinal, é preciso sobrar tempo para o videogame). O trabalho em questão era uma interpretação do poema “À Flor do Maracujá”, de Fagundes Varella, clássico de nossa literatura romântica; não exatamente o mais complexo dos poemas da literatura universal, mas certamente num prateleira bastante alta para quem tenha o nível de texto exibido pelo aluno em questão que (pasmem!) se dizia estudante universitário. A título de mera galhofa, postei este texto, com a esperança de que o aluno tivesse, ao menos, capacidade para saber que não deveria utilizá-lo.

Este texto é de caráter satírico e se inspira no hilário “Ibid”, de H. P. Lovecraft. Obviamente você deve ter sabido agora que havia algo de Lovecraft neste texto, mas se só agora percebe que o texto é simplesmente humorístico-pastelão, espero que lhe sobre bom senso para não contar isso a ninguém.


29
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 18:27link do post | comentar

Tenho muitos amigos que me mandaram correntes que prometiam fortuna e dinheiro em 2010. Em quase todos os casos eu segui fielmente o que foi pedido: mandar mensagem de texto, repassar email, guardar sementes das mais diversas frutas, dar sete pulinhos, tudo isso.

Infelizmente nada disso funcionou e eu não ganhei muito dinheiro, além do normal que recebo todo dia de pagamento. Confesso que acertei uma quadra da mega-sena em um bolão, recebendo R$ 19,75 — mas isso não muda o fato de que.

NÃO FUNCIONOU.

Porém, considerando a quantidade de amigos que se preocupam comigo e gostariam de me ver ganhando dinheiro — a julgar pela quantidade de correntes, faço-lhes uma proposta alternativa.

Para 2011, mandem o dinheiro diretamente! É menos trabalhoso do que ficar repassando emails ou SMS, não envolve o ridículo de sair dando pulinhos e nem ficar guardando sementinhas na carteira.

Antecipadamente agradeço e comunico o número da conta para fazer o depósito. Banco XXX. Agência XXXX-X Conta XXXXXX-X.

Muita paz e felicidade para vocẽ neste ano.


12
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 00:38link do post | comentar

Estava concluindo o terceiro volume da tetralogia épica sobre uma sociedade secreta maçônico-judaica-ocultista que se refugiara no Brasil durante a colonização portuguesa. Conceber e detalhar os rituais mesclando o Antigo Rito Escocês com outras influências cabalísticas lhe custara meses de pesquisa e o amor de Rafaela, que não suportara mais as longas horas de ausência perambulando por sebos e bibliotecas, não aceitara perder outro dos três quartos do apê para mais prateleiras de livros. Estava ali imerso em seu mundo particular e em contas a pagar já quase impagáveis. Sentiu então o característico cheiro sulfúreo de que as lendas falam. Era ele de novo.

— Boa tarde, amigo.

— Muito boa tarde, Memê. O que anda fazendo?

Sua surpreendente familiaridade com o escamoso, a ponto de lhe ter dado um apelido desses, já não o surpreendia.

— Andando por aqui e por aí…

— Andaste sumido nos últimos meses.

— Ora, aquela nega que você arrumou era muito supersticiosa e encheu a casa de velas, de incensos, de arrudas e de bentinhos para manter-me longe.

— Rafaela? Curioso, nunca notei nada demais de estranho.

— Ora, foram muitas as coisas dela que você não notou, não foi, Totó?

O desviado também tinha lhe dado um apelido de colegial.

— Por favor, este não é um momento legal para conversarmos sobre isso.

— Lhe doem ainda os chifres?

— Não tanto quando uma próclise no começo da frase. Mas… peraí, chifres quem tem é você.

— Me faça o favor, Totó… é coisa feia caçoar do defeito físico de alguém.

— Tudo bem, desculpe-me… Mas… chifres?

— Lhe surpreende que eu diga isso?

— Ah, não sei. Mas poderia, por favor, parar de colocar esses malditos pronomes nos começos das frases! Isso me irrita.

— Ora, mas irritar aos outros é algo realmente diabólico de se fazer…

— Pára, Memê. Seu papo já andou melhor. O que quer hoje?

— Olha, voltei para lhe fazer de novo a velha oferta.

— Não, Memê, não vou lhe apresentar a prima Teresa. Tenho medo da cria que pode nascer disso.

— Não é nada disso, seu tarado!

— Tarado!?

— Aqueles comentários foram irônicos! Eu teria que ser muito pervertido para pensar em ter alguma coisa com aquela mulher. Aliás, eu sou muito pervertido, me dá o telefone dela?

A gargalhada dele era obscena.

— Memê, eu vou lá buscar as velas da Rafaela para lhe mandar pros quintos.

— Tá bom, eu prometo que não falo mais nisso. Aliás, meu assunto é outro.

— Sim.

— Vim lhe repetir a oferta.

— Oferta… oferta…

— Oh, sim, faz tanto tempo. Como da última vez: eu lhe dou o sucesso em troca de sua alma e etcétera.

Os olhos de Fausto percorreram a pilha de notificações extrajudiciais sobre a escrivaninha e ele se sentiu balançado a aceitar.

— Não sei se vale a pena vender-lhe minha alma em troca de alguns anos de prazeres e de riqueza.

— Certamente que não vale. Mas existem compensações. Uma delas é que, ao contrário do que dizem, eu não me empenho em torturar ninguém.

— Eu sei, eu sei. Já me disseram que o problema do inferno não é o clima, mas as companhias…

— De toda forma, eu resolvi lhe facilitar. Deixo-lhe meu cartão: se decidir aceitar os termos do contrato — ele tirou do bolso um documento de trinta e seis páginas, em três vias — é só me chamar.

— Você tem telefone celular?

— E por que não teria? Existe coisa mais infernal do que o celular?

Fausto riu gostosamente e aceitou das mãos de Mefistófeles a minuta do contrato. O diabo lhe alertou para que lesse atentamente, rubricasse cada folha, reconhecesse firma em cartório (uma coisa infernal, claro) e então ligasse.

Assim acertados, Memê foi embora deixando, como sempre, uma garrafa de bebida de alta qualidade. Daquela vez foi slivovitz artesanal búlgaro, feito com ameixas espremidas pelas mãos de lindas camponesas louras dos Cárpatos.

Tinha muito tempo que Fausto não provava uma bebida boa. Somente na base da água e da cerveja barata. Não tinha sangue de barata. Abriu a garrafa e sentiu o aroma suave, que evocava os calmos regatos dos Bálcãs. Pensou nas mãos calejadas das lindas camponesas búlgaras e isso o excitou. Gostava de mulheres trabalhadoras. Quanto criança, na época de uma distante guerra fria, muitas vezes se masturbara diante da capa de uma revista soviética que recebera de brinde da embaixada: Rabotnítsa, “mulher operária”. Na capa ia uma moça de rosto arredondado, olhos ligeiramente amendoados, cabelos que pareciam fios de teias de aranha, tão finos e brancos. Ela tinha um sorriso lindo e uma roupa colorida, padrão folclórico de algum lugar do Cáucaso. A revista estava em russo e Fausto nunca conseguira saber nada a respeito da moça, cuja biografia estava em destaque no interior, entre fotos pálidas em preto e branco, que a mostrava entre seus pais num lugarejo rústico. Pensava nas mãos calejadas da camponesa soviética e … oh, como o mundo é imenso e cheio de delicadas pequenas maravilhas para aqueles que têm dinheiro e tempo para percorrê-lo!

Tomava o slivovitz devagar. Sorvia cada gota como se fosse o próprio hidromel do paraíso. O roxo pálido daquele líquido tingia os seus olhos de tristeza por ser tão pobre, e de repente a trilogia pareceu sem sentido.

Revirou nos dedos o cartão de Mefistófeles. Por fim, não conseguir mais suportar a vontade de sentir acariciando o seu sexo as mãozinhas pequenas e calejadas das louras camponesas dos Bálcãs, ou do Cáucaso ou da Puta que o Pariu. Digitou apressadamente o número: 3613-0666.

Oi informa: você não tem créditos suficientes para fazer esta ligação.

Xingou todas as gerações de locutoras que emprestaram suas vozes melífluas para as companhias telefônicas e discou de novo, a cobrar. Era uma vergonha fazer isso, mas Mefistófeles já era seu chegado, não se importaria.

— Boa tarde, aqui é Fausto.

— Booooa tarde, Fausto. Então, leu o contrato inteiro?

— Sim — mentiu.

— Estás de acordo?

— Sim.

— Já registrou?

— Não precisa, eu assino com sangue como você gosta. De qualquer forma, não tenho dinheiro para reconhecer firma desta joça.

Mefistófeles apareceu de novo diante dele. Com uma seringa hipodérmica extraiu 10 ml de sangue e injetou na sua caneta Montnoir Plus dizendo, divertidamente:

— Você devia fazer isso é com a sua impressora: fica mais barato do que comprar cartuchos de tinta. Aliás, se você puser ouro líquido ali ainda fica mais barato.

Passou-lhe a caneta e Fausto rubricou o documento, em todas as vias. Quando terminou Mefistófeles lhe cumprimentou:

— Muito bem, bem-vindo à companhia. Será um prazer tê-lo conosco no time. Espero que tudo fique conforme o seu agrado. Agora, por favor, me desculpe, mas tenho de me retirar, nesse exato momento tenho um ocultista carioca que já foi letrista de rock me evocando e eu sinto que ali vai ser algo grande.

E Fausto ficou sozinho em casa, com suas contas, e sem perceber nada de mudado em sua vida.

Semanas depois, no entanto, começou a receber ofertas de inúmeros editores. Ofertas com valores bem razoáveis. Desovou todos os livros que já havia escrito, cada poema. Os contratos lhe renderam uma grana preta. Investiu em ações e em menos de dois anos, graças a um faro sobrenatural para o risco, havia se tornado um dos maiores milionários do mundo. Tinha um castelo na Bulgária, onde era servido por sete jovens de mãozinhas pequenas e sorrisos alvos. Os aldeões faziam o sinal da cruz ao vê-lo passar.

Até que um dia notou que as suas gavetas estavam vazias. E os editores ainda queriam mais. Sentou-se então para tentar terminar a trilogia e descobriu, espantado, que não tinha nenhuma ideia.

Vinte dias depois, ainda sem conseguir escrever nenhum bilhete, telefonou para Memê.

— O que houve, não consigo escrever nada! Até a lista de compras tenho que ditar para a Natasha! E olha que eu até aprendi a falar búlgaro!

— Mas, Fausto, você não me disse que tinha lido o contrato?

— Bem, eu menti!

— Então abra a gaveta e leia a sua via, por favor.

E desligou.

Fausto pegou a sua via do contrato e foi prescrutando as infindáveis causas até que, espantado, parou:

CLÁUSULA VIGÉSIMA QUARTA – Em compensação pela facilidade para enriquecer que lhe será proporcionada, o contratado entrega ao contratante a sua originalidade artística.
PARAGRAFO ÚNICO – Caso o contato final seja feito por meio deuma chamada a cobrar originada de  telefone móvel,  ademais daoriginalidade o contratado também entregará o seu talento.

Como requinte de crueldade, no verso da folha anterior, Mefistófeles havia rabiscado em sua caligrafia barroca e aljamiada: “mas pelo menos você vai ficar rico antes.”


11
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 00:28link do post | comentar
Continuando minha série de frases de efeito que vão acabar afastando todos os meus amigos, exceto a Ilka Canavarro, que não precisa conviver comigo, eis outra série de «Aforismas de um Ogro» (se você quiser mais motivos para me odiar, leia a série anterior).
  • Se as baratas sobreviverem ao apocalipse, isso ainda não mudará o fato de são estúpidas baratas. Sobreviver não é nenhum mérito, porque para cada Oscar Niemeyer existem uns trinta japoneses que passaram a vida inteira em sua cidadezinha bebendo saquê e nunca projetaram uma cidade.
  • O aspecto mais lamentável da literatura atual é que a maioria de seus praticantes não entende o que significa «lamentável».
  • Se Nietzsche estivesse vivo ele certamente gostaria de ... (complete com a coisa idiota cujo hábito você pretende justificar pateticamente).
  • Eu sei que o futebol é um jogo de cartas marcadas, mas eu ainda quero que o Galo seja campeão e o Flamengo se exploda.
  • A vírgula não humilha o ignorante, que não aceitará que errou, e nem o sábio, que se perdoa pequenos enganos ocasionais. Quem se ferra por causa dela é revisor.
  • Eu não acredito em crentes verdadeiros e nem ateus absolutos. Todo crente interpreta como metáfora o mandamento que não lhe convém e todo ateu acha um jeito de se alienar, mesmo que seja com a crença de ser um ateu absoluto.
  • Dizem que em algum lugar do interior da Bósnia-Herzegovina, em 1983, alguém teve uma ideia original. 
  • O dinheiro compra qualquer coisa, mas quem escolhe é você.
  • Estou acostumado a sentir no rosto o peso dos obstáculos que a vida nos impõe: fui goleiro de handebol na escola primária — e era o menor da classe.
  • Eu não levaria você para uma ilha deserta, nem quero que você me leve.
  • A maior prova de afeto não é levar alguém para uma ilha deserta, é acreditar que ela é uma pessoa que não deve ser deixada lá.
  • Ao contrário da maioria dos nossos jovens fãs de literatura, eu acredito que ideias originais quase não tem importância se você não tiver capacidade de criar a partir delas uma obra que valha a pena ler. Na verdade, um autor porco com uma boa ideia deve ter sido o que inspirou Jesus Cristo a inventar a parábola das pérolas aos porcos.
  • A frase mais sábia da história da música popular brasileira quem disse foi Raul Seixas: «Enquanto Deus explica, o Diabo dá uns toques.» Por isso eu não acredito que Deus seja brasileiro, visto que a maioria das pessoas (incluindo eu mesmo) não entende porra nenhuma daquilo que se propõe a fazer e se garante seguindo um «burrinho» ou perguntando para um colega.
  • Não é verdade que o Brasil só tem duas estações: Além da Globo e do SBT, tem a Record, a Bandeirantes, a Gazeta ...
  • Não é verdade que Sandy e Júnior são filhos de Chitãozinho e Xororó.
  • Bob Dylan abriu o caminho para que os desafinados cantassem e o mundo pôde conhecer artistas incríveis que teriam ficado mudos: Jimi Hendrix, Fish, Roger Waters, Paulo Ricardo e o Herbert Vianna. Hoje precisamos de outro Bob, que abra o caminho para os que sabem cantar cantem de novo.
  • É mais fácil tirar o homem de dentro da igreja do que a igreja de dentro dele.
  • Desconfie de quem agrada todo mundo. Somente pela qualidade dos inimigos a gente pode realmente avaliar o caráter de um desconhecido.
  • Não acho injusto que um árbitro de futebol ganhe mais do que um juiz do Supremo Tribunal Federal: nunca um dos Supremos Árbitros da Nação conseguiu decidir num piscar de olhos. E eu nem vou querer pensar no que pode lhe acontecer se a mãe deles entrar no meio.
  • A fidelidade é uma virtude humana espantosa: mesmo com o marido sendo processado por dezenas de estupros, sua linda e jovem esposa se mantém fiel à conta bancária.
  • A esperança morre com um simples tapa: que bicho frágil.

25
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 23:04link do post | comentar | ver comentários (1)
  • Ar condicionado – você vive falando mal dele para os clientes, mas não consegue trabalhar sem ele nem no inverno.
  • Arquivo – especialista em guardar informação, mas não em disponibilizar de volta quando é preciso.
  • Cadeira – é o que te apoia enquanto você faz o trabalho, mas quando você termina, você vai embora e deixa ele lá.
  • Cafeteira – não dá nenhum lucro para a empresa, mas é o que todo mundo sempre lembra.
  • Cartucho de toner – um grande e caro recipiente cujo conteúdo não pode ser derramado senão é dureza limpar depois.
  • Cesto de lixo – todo mundo precisa ter um por perto, mas ninguém gosta de mexer com ele.
  • Elevador – todo mundo sabe de onde vem e aonde pode ir, mas há muitos que não confiam.
  • Fungo – fica no escuro e se alimenta das sobras.
  • Grampeador – especialista em juntar de qualquer maneira pedaços de ideias alheias, mas frequentemente não funciona quando é preciso.
  • Lâmpada fluorescente – quando está funcionando bem, ninguém sabe que ele é importante: quando começa a falhar, ninguém se importa em trocar e quando acaba, colocam outro no lugar.
  • Laptop – considerado muito útil, acaba nos divertindo mais do que nos ajuda.
  • Perfurador de papel – tido como fora de moda, ainda existe em tudo quanto é lugar e todo mundo usa, só não dão importância.
  • Peso de papel – antigamente era comum, mas ninguém gostava de ter: hoje não se usa mais.
  • Sininho chinês – faz barulho o tempo todo para lembrar-nos de que está lá, mas não serve para nada.
assuntos: ,

17
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 23:23link do post | comentar | ver comentários (1)
  • Do lacônico: Feliz Natal!
  • Do prolixo: Feliz Natal, Tudo de Bom para você e sua família, feliz ano novo e que Deus lhe dê tudo que você merece.
  • Da companhia elétrica: Muita luz para você neste ano que se inicia.
  • Do pagão: Bom Solstício para você.
  • Do latinista: Felix Natalis Christus et Prosperus Annus Novus.
  • Do analfabeto eletrônico: FeliX NataW, Flws?
  • Do garoto-propaganda: Faça feliz o natal da sua família com esta linda TV de Plasma de 68 polegadas ...
  • Do político: Eu vou ter um feliz ano novo com esse aumento!
  • Do miguxo: Feliz aniversário para Jesus!
  • Do pastor: Venha deixar seu 13º Dízimo você também

06
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 22:06link do post | comentar | ver comentários (2)

Atiçado pelo convite feito na comunidade Ficção Científica, lá no Orkut, a criar meu próprio movimento «punk», cometi essa graça:

CHIFREPUNK — Num futuro em que a fidelidade conjugal é proibida e o marido é o único que não pode transar com a esposa, um casal tenta realizar sua maior perversão sexual: ter uma relação papai e mamãe a sós em um local tranquilo. Infelizmente hordas de periguetes, cachorras, putões, profissionais do séquiço, clubes-de-mulheres e outras instituições praticamente os impedem de realizar isso, o que por fim os leva à clandestinidade, aliando-se aos piores elementos da sociedade: os adeptos de um Clube de Castidade e uma Irmandade Monogâmica que funciona como uma maçonaria.

Quem achar legal, pode escrever a história.


15
Nov 10
publicado por José Geraldo, às 14:26link do post | comentar

Depois do sucesso do «Cartão de Natal Comunista» no ano passado, resolvi dar uma «guaribada» no desenho (que tinha ficado bem chinfrim por causa da fonte Computer Modern Roman e da falta de suavização). A imagem é a mesma, os dizeres foram abreviados e a fonte trocada para Univers Condensed.

cartão de natal comunista

Se quiser reaproveitar a imagem em seu blogue, use este link.

P.S. - O cartão de natal comunista é uma homenagem aos colegas do curso de História da FAFIC, especialmente à turma de «melancias».

P.P.S. - O cartão é meu jeito de dizer até logo. Este blog estará de férias até o ano novo. Mas não fiquem tristes, tem muita coisa boa para ler no arquivo.

P.P.P.S. - Eu não sou comunista. Isto é apenas uma piada.

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