Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
02
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 20:30link do post | comentar

Comecei a postagem passada dizendo que o “e-book” é uma “buzzword” poderosa, que adquiriu um caráter de dogma, e cuja crítica é retrucada com o anátema. Esta é uma característica predominante de nosso tempo: após décadas de modernismo, caracterizado pelo pensamento multifacetado, vivemos uma era de aspiração ao pensamento único, sob o signo do infame “fim da História” apregoado por Francis Fukuyama, nome que será eternamente lembrado pela ignomínia. Algumas “buzzwords” nomeiam coisas que efetivamente existem, são novas e se consolidam, como foi o caso da internet (que já foi um tema da moda, antes de virar item básico de nossa sociedade). Outras são apenas conceitos desenhados no ar por pessoas interessadas em ganhar o dinheiro de pessoas que gostam de palavras aéreas. Outras ficam no meio termo: nomeiam coisas que existem, mas não são novas, apenas revestidas de nova aparência. Penso que o “livro eletrônico” está neste terceiro grupo.

A rigor, se julgarmos pelo sentido literal das duas palavras, podemos dizer que existem livros eletrônicos desde meados dos anos setenta, quando foi criado o Projeto Gutenberg, com o objetivo de transcrever em formato eletrônico a herança cultural da humanidade. Desde então surgiram outros projetos e outras formas de geração, distribuição e leitura de conteúdo textual (e não textual). Um sítio na internet não deixa de ser um livro eletrônico, se contiver texto apropriado para um livro.

Porém, quando os marketólogos do mercado põem a mão em algo, eles procuram criar um produto a partir de uma “commodity”. O “livro eletrônico” etiquetado como “e-book” só traz de novo o velho anseio de manter sob controle o conteúdo que a internet, anárquica por natureza, ameaçava arrebentar. Os leitores de livros eletrônicos sempre procuram restringir o acesso do usuário ao conteúdo, criando formatos incompatíveis, licenças dificultosas, impedimentos operacionais. Pessoas que adquiriram os primeiros leitores de livros eletrônicos e gastaram dinheiro comprando “livros” para eles provavelmente hoje se perguntam aonde foram parar: quando o aparelho deu defeito os livros simplesmente sumiram. Arquivos digitais somem. Se para morrer basta estar vivo, para um arquivo digital desaparecer irremediavelmente, basta que ele tenha sido criado.

Como autor eu deveria estar preocupado com o controle sobre o meu texto. E estou. Como ser humano eu deveria estar preocupado com a realidade de que um dia morrerei. Eu estou. Em um caso, como no outro, porém, eu enfrento o inevitável: o conhecimento quer circular e as pessoas querem compartilhar aquilo de que gostam. As empresas que vendem produtos culturais gostariam de impedir isso e criam regras absurdas. Se eu fosse seguir tais regras, eu sequer poderia tocar na festinha de aniversário de minha filha o CD da Xuxa que lhe dei de presente, pois está proibida a “execução pública”. Portanto, eu sei que se o meu texto for bom e agradar, ele será copiado e eu não ganharei dinheiro nenhum com isso. Só me resta esperar que pelo menos a maior parte dos copiões tenha, pelo menos, a decência de não remover a menção à minha autoria (se bem que confio mais na decência dos cachorros do que na do ser humano, considerado em sua média).

Portanto, quando são criadas regras para controlar o acesso ao conhecimento, mesmo que tais regras sejam feitas em meu nome (ou seja, em nome dos criadores de conteúdo, profissionais ou não), eu sei que elas não me beneficiarão, que dificilmente beneficiarão aos controladores de tal conteúdo (gravadoras, editoras etc.) e que certamente prejudicarão à humanidade. Inúmeras são as leis que são criadas e custosos são os procedimentos e processos que são levados a termo em nome do combate à pirataria, tal como são inúmeros e custosos em relação ao combate quixotesco contra as drogas. O ser humano quer anestesiar-se, e ocasionalmente destruir-se, e é inútil tentar suprimir as ferramentas, pois se a necessidade existe, outras ferramentas sempre serão inventadas. O ser humano é inteligente e engenhoso, sabe improvisar em caso de necessidade. E o ser humano quer o conteúdo. Quer ver o filme, quer ouvir a música, quer ler o livro.

Na próxima semana continuarei analisando o tema, desta vez falando sobre o tipo de proteção e de reconhecimento que realmente me interessam como autor.


31
Out 11
publicado por José Geraldo, às 20:30link do post | comentar | ver comentários (1)

Discutir o tema “livro eletrônico” é clamar por encrenca. Como toda “buzzword” da era da internet, “e-book” é um conceito que adquiriu uma aura de dogma e qualquer tentativa de dissensão resulta em anátema. Aliás, qualquer pessoa que se preocupe com “firulas” como “privacidade” e “direitos” acaba sendo tachada de coisas horríveis, tal como fazem com o Richard Stallman — um sujeito brilhante, embora pouco hábil para cativar as pessoas pela simpatia, ingenuamente imaginando que as pessoas são racionais e compreendem argumentos lógicos. Richard Stallman é uma verdadeira geni da era da Internet, tudo porque há trinta anos ele se insurge contra praticamente tudo quanto é novidade alardeada pelo “mercado”. Até hoje ele esteve certo todas as vezes. E eu, como não me incomodo em perder mais dois ou três de meus leitores, ouso aqui entrar em mais um terreno pantanoso.

O principal texto de Stallman que interessa ao tema se chama “The Right to Read” (“O Direito de Ler”). Trata-se de um conto de ficção científica no qual um jovem apaixonado por uma colega de classe pobre enfrenta um dilema existencial: ajudá-la a estudar para a prova, emprestando-lhe seus livros eletrônicos (e assim cometendo um crime), ou negar-se a isso, cumprir a lei e perder a oportunidade de cativar a garota de seus sonhos. Sob a capa deste dilema tão comezinho está a questão do “Gerenciamento de Direitos Digitais” (ou “Digital Rights Management — DRM”, como preferem os anglófilos): ao impedir a cópia de um arquivo digital, não fica apenas impedida a difusão sem pagamento das obras publicadas, mas fica também impossibilitada uma tradição de séculos: o empréstimo e/ou doação de livros. Na escola do futuro descrita no conto de Stallman, os alunos precisam pagar por todos os livros pedidos no currículo. Não existe para eles a opção de ir à biblioteca da escola e consultá-los lá, gratuitamente.

A leitura desta história, em 2002, deixou uma impressão forte em mim. Primeiro porque sou fã de ficção científica desde meus tempos de moleque, quando assisti, cheio de lágrimas nos olhos, “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”. Segundo porque, sendo eu um usuário de Linux, as ideias de Stallman estão muito mais próximas de mim do que de um usuário comum de Windows: Linux não é só um sistema operacional, mas uma ideologia sobre como deveria ser o mundo. A ideologia foi dada justamente por Stallman, em 1984, quando abandonou o emprego no MIT para criar um sistema operacional inteiramente livre, dando origem, assim, à FSF (“Free Software Foundation” — “Fundação em prol do Software Livre”). Muita água rolou de lá para cá sob a ponte.

Uma ideia é algo muito poderoso. Depois que você tem contato com ela, depois que você a entende e assimila, será preciso muito mais do que um argumento racional para retirá-la de seu castelo no fundo de sua alma. Porque ideias não plantam apenas conceitos, mas desconfianças. Stallman plantou em mim a salutar desconfiança de que as poucas e poderosas empresas que dominam o mercado mundial de computadores e de programas para computadores não estão interessadas em construir uma democracia mais bonita, um mundo de fartura e alegria, etc. Empresas estão interessadas em dinheiro, e sem a focinheira do Estado em suas bocas, elas comerão tudo. Não foi um comunista barbudo que disse que “não existe almoço grátis”, mas um expoente do pensamento liberal, Milton Friedman. Stallman é barbudo e suas ideias muitas vezes tangenciam o comunismo, mas ele concorda com Friedman: tudo que existe de graça relacionado a computadores está interessado em conhecer e controlar você. Com esse conhecimento e esse controle é que as empresas ganham rios de dinheiro.

O mundo já foi um lugar mais simples para os escritores. A chance de ser publicado era ínfima, claro, mas o mundo era mais livre, pois cada um era dono do próprio caderno e da própria máquina de escrever. Não era preciso pagar aluguel pelo uso da estante, nem temer que um texto pela metade evaporasse sem remédio por causa da falha de um programa mal escrito. E quando o autor chegava a ter seu livro publicado, tinha a garantia de que ele existiria fisicamente por décadas a frente, que não desapareceria se simplesmente a editora se arrependesse de tê-lo publicado. Para quem chegava a obter o sucesso, especialmente nos países mais estáveis, como os Estados Unidos, décadas de direitos autorais poderiam assegurar a profissionalização. Era um mundo excludente, que só funcionava para poucos, mas ninguém acha a loteria injusta só porque os vencedores são raros.

Acontece que este mundo, bom ou mau, está caquético, prestes a perder os últimos dentes. Dentro de poucos anos será inimaginável esperar ter uma carreira como a de um Stephen King ou mesmo a de um Graham Greene. Isto ocorre porque o “livro eletrônico” (ou “e-book”, como preferem os anglófilos) possui um caráter totalmente diferente do livro tradicional, tal como a fotografia é outra coisa, quando comparada com a pintura a óleo sobre tela, que era a principal expressão artística mundial antes do século XX. Vivemos agora a transição entre os dois mundos, não temos ainda como prever como será o futuro “fotográfico” da literatura, mas já sabemos que não será como o passado, e que isso não será necessariamente bom.

Na próxima postagem continuarei destrinchando este tema, abordando a questão do “livro eletrônico” como um conceito repressivo, comparado com o tradicional.


22
Out 11
publicado por José Geraldo, às 22:17link do post | comentar | ver comentários (1)

Deve fazer um mês ou mais que o Blogger está me enchendo o saco para eu experimentar as novas visualizações dinâmicas. Como esse troço parece estar na moda, e blogueiro vive de visitações, resolvi aderir, para ver se meus leitores apreciam. Gostaria de ter feedback, e que alguém me ensinasse a consertar alguns pequenos problemas, como o título.

Atualização em 23/10/2011: Após menos de 24 horas com as visualizações dinâmicas eu resolvi desabilitar.* No começo parecia legal: graças a elas eu tive um aumento de 450% nas impressões do AdSense, o que sugeria po$$ibilidade$ interessantes para este blogueiro que ainda não ganha nada com isso. Porém logo notei que esse ganho seria ilusório, diante de todos os prejuízos. Que aqui enumero:

  1. Descobri, para meu grande espanto, que as visualizações dinâmicas não funcionam em celulares, tablets, gadgets, ou em qualquer navegador que não entenda Java. Isto é gravíssimo e significa que dificilmente voltarei a usá-las. Usar visualizações dinâmicas, no estágio atual de seu desenvolvimento, significa alienar justamente o público que eu pretendia atingir melhor: o público descolado tecnologicamente. Resumo: as visualizações dinâmicas são um avanço que me leva para trás. Faz-me lembrar o lançamento do KDE 4 ou do Gnome 3.
  2. Duas das sete visualizações dinâmicas (“snapshot” e “flipcard”) não funcionam para o meu blog, enquanto uma outra, “mosaic”, não tem efeito positivo sobre a experiência de visita. As duas únicas que parecem promissoras são a “magazine” e a “timeslide” (a “sidebar” também parece legal, mas precisa melhorar em alguns aspectos). De uma forma geral, as visualizações parecem ser mais funcionais exclusivamente para blogues cheios de fotos e caracterizados por textos curtos.
  3. Descobri que é imensamente difícil fazer quaisquer adaptações no leiaute, o que sempre faço para dar uma identidade visual ao meu blog. Já é difícil conseguir se destacar utilizando uma url .blogspot.com, imagine se você não pode mudar a cara que o leitor vê...
  4. Os posts deixam de ser datados no rodapé. Como algumas das visualizações dinâmicas não exibem data no cabeçalho, o leitor somente teria a hora de postagem.
  5. Os gadgets deixam de ser apresentados. Com isso, não haverá novas inscrições para seguir por email, nem novas adesões do Friend Connect, nem gente linkando para blogues amigos (e também ninguém me visitará a partir dos blogues meus amigos). Resumindo: a experiência das visualizações dinâmicas tende a isolar os blogues, rompendo as tênues conexões entre eles. Isto é MAU.</li>

Pelas razões elencadas acima, não utilizo e não recomendo, no estágio atual. A menos que você seja uma pessoa egoísta, que não linka para ninguém e nem faz questão de ser linkado, e que seu blog seja cheio de fotos e postagens curtinhas. Não é o meu caso.

Uma coisa que me preocupa é que as novidades do Blogger costumam ser primeiro oferecidas como opção, e depois impostas como a única opção praticável para quem não está disposto a perder MUITO TEMPO. Assim foi com os atuais modelos de template, em substituição aos modelos clássicos. Hoje em dia, quem quiser ainda ter um blog clássico terá que ter muito trabalho para isso. Então, me parece que no futuro a tendência é que todos os blogues adotem as visualizações dinâmicas, que favorecem conteúdo curto e cheio de imagens. Essa twitterização do Blogger me parece, a esta altura, capaz de inviabilizar a experiência de blogar como a conhecemos.

* Mas você pode checar como ficaria o meu blog com as visualizações dinâmicas seguindo este link.


11
Out 11
publicado por José Geraldo, às 22:28link do post | comentar

Há anos um parágrafo escrito por Howard Phillips Lovecraft não me sai da cabeça. Já o devo ter traduzido uma dezena de vezes, para postar em duas ou três dezenas de lugares. Aqui vai a décima primeira tradução, como introito deste artigo que, mais uma vez, me alijará de alguns amigos e leitores:

A coisa mais misericordiosa no mundo, creio, é a incapacidade da mente humana para interligar todos os seus conhecimentos. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio aos mares negros do infinito, e não fomos feitos para ir muito longe. As ciências, cada qual puxando em uma direção, até agora nos causaram pouco mal, mas um dia a montagem de todo o conhecimento desconexo abrirá tais terríveis visões da realidade, e de nossa precária posição nela, que enlouqueceremos com a revelação ou fugiremos da luz fatal, para a segurança e a paz de uma nova idade das trevas.

Lovecraft escreveu no entre-guerras, uma época em que o mundo estava muito pessimista — e com plena razão: treze anos após terem sido escritas estas palavras o mundo mergulhou na pior guerra de todos os tempos, uma que, em seus efeitos de longo prazo, praticamente destruiu a civilização ocidental. Por paradoxal que isso possa parecer, a orgia de massacres e destruição da Pior de Todas as Guerras deu ao mundo um otimismo tal como nunca se vira, e a humanidade embarcou num sonho de grandeza extraordinário: sonhamos em conquistar as estrelas, colonizar sistemas solares, ser mestres de galáxias. Lênin não dizia que o capitalismo, se pudesse, anexaria os planetas? Pois bem, a utopia do século XX sonhava exatamente com isso.

Mas as palavras de Lovecraft, mesmo esquecidas de quase todos, continuavam profeticamente denunciando a vaidade de nossos sonhos. E cada nova descoberta da ciência foi pondo uma pá de cal a mais na cova da utopia. Sonhamos, sim, com as estrelas, mas elas estão distantes de nossas mãos, somos crianças brincando numa poça, sonhando agarrar as estrelas que se refletem na água. Sonhamos com uma maravilhosa máquina prateada que nos eleve e nos leve além de nossos horizontes cinzentos, tal como na canção do Hawkwind:

Acabei de passear em uma Máquina Pratada / e ainda estou me sentindo tonto. / Você gostaria de também ver-se transportado / ao outro lado do céu? / Eu tenho uma Máquina Prateada / que voa diagonalmente no tempo. / É um aparelho eletrizante / vindo exatamente de meu signo do zodíaco. / Tenho uma Máquina Prateada / Tenho uma Máquina Prateada

Que tal canção tenha feito grande sucesso nos anos setenta não é nenhum espanto: era o auge do delírio espacial do homem.

Se todos nós pudéssemos ajuntar os cacos partidos do conhecimento humano, já teríamos visto a enormidade do desafio: a extensão do cosmos vai muito além do que o intelecto medíocre pode conceber, mas no jargão dos fãs de ficção científica fala-se em anos luz como se fossem «quilômetros espaciais». De certa forma, são, mas nós somos para tal quilômetro fantástico menos do que formigas na estrada. Estrelas comparáveis ao sol existem nas nossas proximidades, a meros anos luz. Elas parecem, no entanto, minúsculas e frias porque meros anos luz transformam o Sol em uma estrela a mais. A maioria das «estrelas» que vemos no céu são super gigantes, agrupamentos de estrelas ou até galáxias distantes. Como pudemos sonhar romper estas distâncias que transformam sóis em velas? Somente com ingenuidade, e ignorância.

Mas a orgia de tal sonho teve um fim: o mundo de hoje não consegue mais reunir tantos excedentes e obter verbas em escalas suficientes para desenvolver projetos semelhantes ao que levou o homem à Lua. Com a tecnologia que temos, a repetição do feito seria quase trivial: os computadores de bordo das naves Apollo não tinham a capacidade de uma calculadora científica de hoje. Ir à Lua seria fácil, mas ainda não temos nada de útil para fazer lá. Então o projeto espacial se torna obsoleto, desnecessário. As distâncias são muito grandes, o espaço é muito frio. Nós fomos lá fora, vimos os mares negros do infinito e estamos presos na praia. São vários os fatores que nos limitam: nossas almas, nossos corpos, nossa tecnologia, nossa finitude.

As leis da física estão contra nós: basta fazer uma conta simples, como a que fez Poul Anderson, em seu romance «Tau Zero». Mesmo sem a resistência oferecida pelo ar, mesmo ainda beneficiados pela inércia, no espaço nós precisamos de quantidades imensas de energia para empurrar nossas naves meteóricas. Cada aceleração adicional exige mais energia, uma dose de energia que cresce exponencialmente a cada acréscimo aritmético da velocidade. A energia necessária para acelerar da metade a dois terços da velocidade da luz é maior do que toda a energia necessária para chegar à primeira. E uma vez tendo chegado a 90% (algo que ninguém mais crê ser possível) qualquer aceleração adicional já exigiria uma quantidade praticamente infinita de energia. Mais do que isso, devido à relatividade do espaço-tempo, uma nave tal, supondo que seja possível a um objeto físico real acelerar a tanto, estaria de tal forma afetada pela velocidade que no espaço de uns poucos anos para seus tripulantes transcorreria um tempo maior que a atual idade do universo. Nossas almas ficariam para trás, ainda que nossos frágeis corpos resistissem a tudo isso.

E falando de frágeis corpos, não cessam de acumular dados sobre os efeitos negativos da permanência no espaço. Passada a fase romântica em que era interessante usar toneladas de explosivos para atirar fora da atmosfera frágeis bolhas de metal e vidro levando corajosos (ou loucos?) indivíduos que sonhavam com a posteridade, hoje não parece haver muito sentido em expor corpos humanos às condições da órbita: os ossos se fragilizam, os músculos definham, o labirinto se atrofia, o sangue fica estranho. Não faz um ano descobriu-se que os astronautas que permanecem no espaço mais do que alguns dias retornam com a visão afetada também. Quanto resistiria o frágil corpo humano em uma viagem realmente dura, de anos ou décadas pelo espaço vazio, rumo ao nada? Chegaríamos sem ossos, sem músculos, cegos, desequilibrados. Cegos e desequilibrados talvez já estejamos.

Existem tecnologias teóricas que poderiam vencer tais obstáculos. Fala-se em hiperespaço, buracos de minhoca, gravidade artificial. Fala-se de tais coisas tal como na idade média se falava em carruagens mágicas, feitiços do tempo, pedra filosofal, panaceia universal. Tal como naquela época, falamos destas coisas sem ter a mínima ideia de como poderiam ser obtidas. Sob certo aspecto, o romance medieval de cavalaria mencionando o bálsamo cura tudo e o fogo grego é uma obra de ficção científica tão legítima quanto uma moderna, que fale sobre viagens por buracos de minhoca, em naves maravilhosas, rumo a planetas desconhecidos. A vassoura mágica de uma feiticeira em seu sabá é tão científica quanto o disco voador do alienígena (bom ou mau) que aparece do nada, para punir ou pregar. Cada idade tem seus demônios e seus deuses, e como disse Clarke, tecnologia suficientemente mais avançada não se distingue de mágica.

Sim, meus amigos. Lovecraft tinha razão. Não fomos feitos para ir muito longe. Sonhamos apenas com isso, e nossos sonhos hoje não são mais com anjos que nos levem para ouvir a música das esferas, mas com inventos fantásticos que nos levem desse mundo cada vez mais vazio. Mas não adianta sair: este é, ainda, o único mundo que nós temos.


18
Set 11
publicado por José Geraldo, às 23:21link do post | comentar

É claro que eu ocasionalmente me arrisco com um bilhete de loteria (geralmente a Mega Sena), afinal não faz mal correr o risco de subitamente ficar milionário. Mas eu nunca aposto mais do que exatamente um bilhete e não tenho hábito de apostar nada mais. Isto é porque eu não acredito em sorteios, bingos, rifas, , milagres, títulos de capitalização ou acasos felizes. Não acredito porque jamais ganhei nada em minha vida. Todas as poucas coisas que tenho eu tive que comprar com dinheiro ganho trabalhando. Nunca alguém me disse “olha, aqui tem um carro novo para você” ou “você ganhou um milhão de reais”. Por outro lado, já passei por situações que deixaram claro que esse negócio de sorteios não é comigo.

Talvez o caso mais escabroso tenha sido um daqueles bingos promovidos por clubes esportivos que andavam na moda em meados dos anos noventa. Comprei uma cartela daquelas e fui para o campo do Operário de caneta na mão, debaixo de um sol de trinta e oito graus, para ouvir alguém gritar as dezenas sorteadas. Foram duas horas suando e sem beber água porque naquela época em que não havia caixa eletrônico eu não tinha sacado dinheiro durante a semana. Por fim, chegou o prêmio final, o grande prêmio, um automóvel novo (e não era qualquer automóvel, mas um bom automóvel). Os números se sucederam numa sequencia assombrosa que quase me fez perder o fôlego. Até que finalmente me vi a um número de completar a cartela. E assim fiquei por vinte e duas rodadas até que finalmente outra pessoa completou o bilhete e ficou com o carro.

Alguns de meus amigos mais chegados já perceberam essa minha característica. Os mais supersticiosos jamais me convidam para participar de um bolão. Há os que evitam ficar perto de mim se por acaso estivermos em uma quermesse e forem sortear um bingo ou correr uma rifa (que eu quase nunca compro, mas a minha mulher adora). Todas as vezes que as palavras “Você ganhou” me foram dirigidas, foram tentativas de golpe via telefone celular. Telefonemas inesperados invariavelmente são de credores me cobrando dívidas das quais eu não me lembrava. Dia desses reclamaram que deixei de pagar quatro meses de hospedagem de um site que eu cancelei há anos. Devem ter achado uma ficha sem cancelar no fundo de alguma gaveta e resolveram fazer uns cobres nela. Como o valor era pequenino eu preferi pagar.

Quando um conhecido se aproxima dizendo “preciso falar com você em particular”, sempre é para pedir a minha contribuição (monetária) para alguma causa. Nunca algum me chamou para dizer haviam contribuído para a minha causa. Todas as vezes em que tentei buscar apoio na religião, encontrei o carnê dízimo antes de topar com alguma dádiva divina. Não sei o que Deus espera, mas seus profetas esperam que eu pague pedágio para sentar no banco e cantar o hino. Tanto assim que já cheguei a concluir que não quero mais religião. Já que a graça não é de graça, eu fico com o que dá para comprar, ainda que sem graça.

As únicas pessoas que chegaram a me dar alguma coisa foram os meus familiares, mas eles, obviamente, só me deram o que eles próprios haviam antes comprado com o seu trabalho. De forma que isso não invalida o fato de que nada existe em minha vida, hoje ou ontem, que não tenha vindo com cheiro de suor, ou com ardência nos olhos de noites viradas a ler.

Causa-me espanto, considerando quem eu sou e esses valores que carrego desde antanho, que tanta gente viva ativamente a esperar pela loteria. Não falo de pessoas que ocasionalmente arriscam um bilhete, mas de gente que chega a fazer planos para depois de ganhar, gente que visita no sábado a imobiliária para ver preços de casas pensando no sorteio de logo mas à noite. Bem, talvez não chegue a tanto, mas deve ser bastante grande o número dos obcecados com sorteios, visto que este é um dos três assuntos predominantes na Internet e ganhar coisas de graça (honestamente ou não) é a razão de ser da maior parte das mensagens de correio eletrônico.

Enquanto digo isso, analisando friamente, chego a uma conclusão curiosa: se formos usar o spam como uma ferramenta para medir o que as pessoas são e pensam, temos de concluir que os grandes e mais prementes problemas da humanidade são, além dos sorteios, disfunção erétil, pênis pequeno, viúvas indefesas de milionários nigerianos, criancinhas americanas morrendo com câncer e a eterna e insaciável carência de Jesus por mais amigos.


07
Set 11
publicado por José Geraldo, às 15:57link do post | comentar | ver comentários (3)

Reza uma lenda urbana que um certo cantor gaúcho certa vez entrou em um boteco e encontrou um palhaço comendo uma coxinha com Coca-Cola. Um palhaço desses que animam festa infantil e vendem balões na praça. Dizem que o famoso cantor, bêbado ou drogado (sabe-se lá), implicou com palhaço dizendo-lhe: “Ei, palhaço, faz uma palhaçada para a gente aí”. O palhaço, talvez já de paciência esgotada por aguentar crianças, ou por não ser a primeira vez que lhe provocavam, deixou a coxinha sobre o balcão e sentou a mão na cara do cantor, que saiu rodopiando e caiu de cara na calçada, para gargalhadas gerais dos frequentadores do lugar, e arrematou: “Sou palhaço para quem me paga.”

Esta história — verdadeira, segundo juram os alfarrábios da música brasileira — encerra uma importante moral, aliás, duas importantes morais. A primeira é que as pessoas não costumam ser em sua vida pessoal a mesma coisa que em sua vida profissional. Aquele palhaço era um anjo de paciência com as crianças porque ganhava a vida suportando-as, mas não tinha nenhuma obrigação de ser paciente com bêbados, mesmo que famosos ou pseudo-famosos. A segunda lição é que é uma ofensa pedir ao profissional que faça de graça para você algo que ele faz por dinheiro. O palhaço ganhava a vida fazendo palhaçadas, mas cobrava por isso. Fazer uma palhaçada para o cantor ver seria ridículo.

Acredito que todo profssional tem a sua dignidade, mesmo aqueles a que as pessoas costumam dar valor — como palhaços e escritores. Seja lá o que for que o sujeito faça para ganhar a vida, se não é crime e não faz mal a ninguém, é um meio honrado de ganhar a vida. Merece respeito. Não é porque você pinta a cara com uma maquiagem engraçada que você passa a ser uma pessoa inferior. E nem porque sua arte é ingênua e aparentemente fácil (digo aparentemente, porque não é realmente fácil fazer uma criança feliz).

Mas em geral as pessoas tendem a achar que as pessoas que fazem arte não precisam ou não estão interessadas em dinheiro. Pedem uma “palhinha” para o amigo músico, acham feio o amigo escritor querer vender-lhes o seu livro em vez de dar de presente, querem que o humorista conte suas piadas na mesa do bar. Dizem que o falecido comediante Bussunda certa vez protagonizou um caso desses, ainda no começo da carreira, quando a sua fama de mal-humorado ainda era pouco conhecida. Um parente de um amigo a quem foi apresentado pediu-lhe para ver se ele era mesmo engraçado, pediu-lhe que contasse uma piada. Bussunda se prontificou a contar a piada, mas antes pediu licença ao novo conhecido porque precisava de um favor. Sabendo que o sujeito era médico, começou a descrever-lhe uma série de sintomas e a pedir-lhe opiniões sobre medicamentos. O homem o interrompeu dizendo que não poderia dar uma resposta ali no palco e o convidou para ir ao seu consultório. Bussunda, então, retrucou que não poderia fazê-lo rir ali e o convidou para ir assistir ao espetáculo que estava fazendo (“A Noite dos Leopoldos”) ou comprar um dos livros que fizera ou então assistir ao programa na televisão (na época acho que ainda era o “Dóris Para Maiores”).

Essas histórias me chegaram, todas, por e-mail. Enviadas por conhecidos, alguns escritores outros não, quando chegou-lhes ao conhecimento que eu estou com meu primeiro livro publicado. Alguns ainda me criticaram por publicar quase tudo que escrevo neste blog.

Se você vendesse salgadinho na rua, não sairia dando quibe de presente. Mas você escreve ficção, e fica distribuindo de graça no blog. Você não deveria dar de graça aquilo que você tem para oferecer.

Tudo isso me faz pensar, especialmente considerando a ameaça que a internet realmente representa para o futuro da arte. Um músico pode dar de graça as suas gravações e tentar viver de suas apresentações ao vivo. Mas se eu dou de graça as minhas “escreveções”, onde vou me apresentar ao vivo como escritor para ganhar a vida? Aliás, o que seria a apresentação ao vivo de um escritor, seria eu me sentar na praça com um laptop e escrever as histórias das pessoas que passarem? Alguém vai parar para ver? Alguém vai pagar?


05
Set 11
publicado por José Geraldo, às 22:02link do post | comentar | ver comentários (1)

Fila de banco. Detesto, como muita gente. E como todo mundo tenho que ir. Aliás, eu devia agradecer por haver fila de banco no mundo: ninguém sobreviveria na minha profissão sem poder relaxar durante uma hora aguardando o atendimento. Antigamente era ruim, hoje tem até banquinho acolchoado para a gente sentar. Daí eu posso apenas ligar o som no meu telefone e ficar ouvindo alguma coisa dentro da minha cabeça, me injetando ritmo enquanto os caixas matraqueiam com os dedos nos teclados baratos.

Fila de banco. Proibiram agora o uso de aparelhos celulares. É uma merda. Não posso mais nem ficar com os malditos plugues no ouvido. As pessoas ficam olhando torto, achando que faço parte de alguma quadrilha. Merda! Tenho que desligar toda vez que entro, e ficar quase uma hora sentado olhando para as caras dos outros clientes. Raramente aparece uma moça bonita que valha a pena olhar. Mas ainda mais ramente ela permite que eu olhe sem começar a me ver torto também, me achando um estuprador. Fila de banco. Detesto, como quase todo mundo.

Estou sonolento hoje, dormi mal e dormi tarde. Acordei cedo para trabalhar, como quase todo mundo. Estou aqui meio zumbi. As pessoas veem meus óculos escuros e me acham com pinta de maconheiro. Fila de banco é um lugar onde se concentram todas as fobias e caretices da humanidade.

Os caixas estão lentos hoje. Teria sido um ótimo dia para música. Dava para ter ouvido quase um álbum cheio. Mas tenho que ficar em vez disso olhando para os lados, tentando evitar que meus olhos incomodados retornem à orelha daquela moça. Porra, até que ela é bem gatinha, mas usa um enorme alargador auricular. Imagino que dentro de dois ou três anos terá uma orelha deformada e com aro grande o bastante para eu passar meu punho. Igual o lábio do Raoni. Eu sou meio careta com essas coisas. Fico pensando se dói. Uma tatuagem já me bastou. Nunca mais banco o macho deixando que me enfiem agulhas. Só de injeção, e por necessidade. Não curto dor. Não curto ficar aqui parado esperando a vez e olhando para a orelha daquela moça e pensando nela mocréia com quarenta anos e o lóbulo todo fodido.

De repente o telefone toca. Metade da fila me olha como se eu estivesse cometendo um assassinado ou comendo uma criança. Não é nada demais, só uma mensagem de texto. Alguém tuitou que vai ter uma festa-surpresa. Adoro essas festas mal organizadas. Geralmente a bebida é quente e ruim, o lugar é uma porcaria e a polícia aparece descendo o cassetete em todo mundo. Mas sempre aparece muita gente diferente. Se não houvesse essas festas malucas seria até difícil fazer amizades fora do bairro. Talvez eu nem tivesse amizades: como você puxa assunto com essa gente na rua, todos andando olhando para frente e preocupados com suas bolsas, olhando para mim como se eu fosse um marginal de estilete na mão, pronto para cortar alguém. O telefone tocou convidando para uma festa dessas. Eu vou, claro. Eu sempre vou, ainda mais que o convite vem do Tõezinho. Faz quase um ano que não vejo o verme.

Quando consigo sair do banco eu respondo via SMS perguntando onde. A resposta vem minutos depois: Fenelon Guimarães 80. Nunca ouvi falar. Essa cidade é bem grande, e tem tanta rua quanto você tem veias. Você não sabe o nome de todas as suas veias, não estranho não saber onde fica essa rua maldita. Respondo de novo: preciso de um GPS ou de uma indicação no Google Maps. Tõezinho responde em três tempos: veio o mapa com um percevejo verde marcando a rua. Gandaia, lá vou eu. Beber muito uísque paraguaio com energético e beijar garotas com cheiro de patchouli e batom verde.

Já são quase cinco da tarde quando chego de volta ao serviço. Tempo para jogar uma cantada tosca na telefonista, bater o cartão e sair. Meu velho Chevette 76 me leva mansamente para casa, espargindo pelo ar um leve odor de gasolina e silicone. Hoje é sexta feira, eu mandei lavar, polir, lubrificar. O carrinho está manso e liso como uma mulher que sai do banho. Ser sobrinho de mecânico tem suas vantagens: o motor ronrona gostoso como uma namorada gozando na cama e as molas macias como um colchão de motel nem me deixam sentir os buracos do asfalto.

Minha mãe quer que eu coma em casa. Isso é absurdo. Sexta feira não é dia de ficar em casa depois que anoitecer. Tem que haver algum lugar qualquer para ir, algum lugar que não seja debaixo da saia da mãe. Ela me xinga enquanto eu tomo banho, meu pai ronca deitado no sofá, pronto para um enfarte, e nem liga quando saio. O velho ainda vai engasgar na própria banha qualquer dia desses. Tenho pena de minha mãe: ela era uma menina bonita quando se casou com esse gordo inútil, que só serve para ganhar uma aposentadoria por invalidez, tão gorda quanto ele.

A turma se encontra no posto de gasolina da BR. Digo que é “a turma” para dar uma boa impressão, mas somos só três. Os “mortos de fome do BNH”, como a Dolores nos chamava nos tempos de escola. Dolores era uma vadia, dava para um dono de loja rico e andava mais emperiquitada que uma dançarina de filme francês. Casou com ele graças à barriga e a habilidades orais. Hoje dirige um carro importado preto e não nos conhece mais quando passa por nós. Imagino que ela acharia engraçado nos ver bebendo cerveja barata sentados no capô de um Chevette 76, no estacionamento de um posto de gasolina à margem da BR, numa sexta feira às sete e meia. Somos três perdedores.

— Que história é essa de festa, Miguel?

— Tô de falando, recebi o recado do Tõezinho hoje à tarde. Não sei se é ele que tá organizando, mas com ele não tinha furo: toda festa que ele convidava ficava dez. Eu vou, nem que seja no inferno.

— Assim é que se fala, camarada, segura a capetinha pelos chifres para ela te chupar gostoso!

Ninguém passando pelo asfalto a cento e vinte por hora teria entendido a gargalhada dos três idiotas montados no Chevette marrom.

Saímos do posto cerca das dez da noite. Deixei o Vavá dirigir porque ele não pode beber. Dentre as muitas ziquizilas que ele tem está uma alergia forte ao álcool. Ele compensa de outras formas, claro, mas dá para dirigir bem. Vavá é um fresco, criado a leite de pera e ovomaltino, ele nunca pegou uma mulher, mas jura que não é veado. Hoje nós vamos dar um jeito de arranjar uma vadia bem doida para ver se ele deixa de ser cabaço. Mas ele não sabe ainda.

— Aonde é esse raio de lugar onde vão fazer a festa?

Pego o telefone do bolso e lhe mostro no mapa.

— Isso é longe pacas, Miguel. Tem gasolina nesse gambá aqui?

— Tem sim, claro. Olha aí!

— Parou de funcionar de novo o marcador de gasolina. Por que você não vende essa merda de carro?

— E compro o que com o dinheiro? Uma mobilete?

Vavá não tem argumentos. Com menos de três mil reais eu comprei um Chevette velho, que eu mesmo retifiquei e reformei, com a ajuda de meus tios, que são mecânicos, tanto o irmão do meu pai quanto o da minha mãe. Eles são sócios. E são mais pais para mim do que o gordão que passa o dia vendo televisão e vira a noite assistindo pornô sueco.

Já são mais de nove da noite quando começo a ficar preocupado. A festa parece cada vez mais distante. O centro da cidade já ficou para trás há muito tempo. E olhe que nós saímos da periferia, passamos por dentro e estamos quase saindo do outro lado. Se o odômetro funcionasse eu saberia o quanto rodamos. Deve ter sido muito.

As ruas são mal iluminadas e vazias. Não tem nem birosca aberta. É um bairro industrial, dá para ver pelos imensos edifícios em formato de caixote, alguns com chaminés do século passado. Eu nunca tinha vindo a essa parte da cidade, parece um filme americano de terror, daqueles com gangues de psicopatas sobre motos, matando os rivais arrastando pela rua. Eu vi um filme assim uma vez quando era bem molequinho.

Direita, esquerda, esquerda, direita e esquerda. De esquina e esquina vamos nos perdendo mais até que, de repente, encontramos uma placa indicativa. Estamos na esquina da Fenelon Guimarães com a Juvêncio Estrada. Duas ruas estreitas e perdidas, onde parece que não mora nem alma penada. Não tem ninguém na rua.

— Caralho, Miguel. Te passaram um trote dessa vez. Não tem nenhuma merda de festa rolando por aqui.

— Deve ser num desses galpões aí. Tipo, dessa vez resolveram fazer organizado. Puseram isolamento acústico para não chamar a atenção e fizeram num lugar sem vizinho chato para chamar a polícia.

— Eu acho que a gente devia voltar — diz o Vitinho, pela primeira vez dando uma opinião.

— Tudo bem, a gente volta. Mas primeiro vamos descer e procurar o número oitenta e ver o que tem lá. Depois a gente vai até para a puta que pariu se for preciso.

Concordamos e vamos procurando o 80. O Chevette vai devagarinho, como um gato se esgueirando pelo muro. Achar vai ser Tarefa difícil porque não tem ninguém na rua e nem os prédios tem número. Somente um imenso portão de ferro se destaca. Não sei porque razão eu imaginei que ali poderia ser o lugar. Estranha premonição. Era lá.

Lá era um cemitério.

Meus amigos desgraçam a rir enquanto eu quase me cago de medo.

— Miguel, acho que você devia entrar, deve ter uma capetinha aí dentro pronta para te chupar! — o veado do Vavá se aproveita para zombar de mim. Logo ele que nem deve saber do que está falando.

— Não se brinca com uma coisa dessas — diz o Vitinho, já beijando seu crucifixo de prata, presente da avó siciliana.

— Deixa de ser medroso, Vitinho. Vamos entrar.

— Entrar!? — o instinto fresco do Vavá se manifesta.

— Uai, e por que não?

— Por que sim, você quis dizer! Para que diabo a gente vai entrar no cemitério hoje, logo na quaresma, Miguel. Não tem nenhuma porra de festa por aqui, nem num raio de vinte quilômetros. Vambora pegar um cinema que ainda dá para pegar uma sessão de meia noite.

Eu não me conformo de ter sido passado para trás. Pego o telefone e envio de volta um SMS furibundo: “o inútil que me convidou aqui hoje vai aparecer ou não é macho para isso?” 

Tenho vontade de jogar longe o telefone. Pena que ainda estou pagando. Pena que preciso e gosto dessa merdinha difícil. Tenho mais amigos me seguindo nele do que na vida real. Se eu tivesse comido metade das mulheres que se dizem minhas fãs no Orkut eu me sentiria um artista. Não vou jogar fora o telefone, queria era sentar a mão na cara do veado que me sacaneou.

Vamos voltando para o carro, desolados, quando o telefone toca de novo. Tõezinho de novo. A mensagem de texto diz simplesmente: “Eu estou aquii”.  Um leve sopro de vento arrepia minhas orelhas. Olho para trás e vejo uma luz vaga dentro do cemitério, vindo em direção à porta.

— Corre, diabo!

Não sei o que foi que tinha no tom da minha voz que os dois entenderam como se fosse um abracadabra. Nem sei como entramos dentro do carro. Lembro-me vagamente de um vidro quebrando e estou com uns arranhões na barriga e a cabeça me doi muito. Por sorte sou sobrinho de mecânico e meu carro velho vive com o motor regulado. Saímos de lá cuspindo fagulha pelo escapamento, que assobiava como um apito de Satanás. Se morava alguém naquele bairro, deve ter acordado. Talvez até os defuntos tenham se incomodado. Sei que alguém chamou a polícia.

Meu pai veio me tirar da delegacia no dia seguinte. Pagou a fiança, soltou o carro. Vavá perdeu doze pontos na carteira e eu vou gastar uma grana boa pondo outro vidro traseiro. Eu não respondo quando me perguntam o que aconteceu, como foi que quebrei o vidro ou que cortei a testa. As pessoas não vão acreditar. Aliás, nem eu vou acreditar se eu me contar. Pode ter sido só a lanterna do zelador, ou uma capa de chuva iluminada pela lua. Ou pode ter sido qualquer outra coisa. 

Eu só sei que foi só no sábado de tarde que eu lembrei de uma coisa que tinha me passado despercebida: Tõezinho morreu, faz um mês, em um acidente de carro na BR, dizem que tava tirando pega usando um Dodginho envenenado. Mas ele me mandou a mensagem. Ou roubaram sua senha para me sacanear. Mortos não dão unfollow. Sei lá.

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03
Set 11
publicado por José Geraldo, às 19:12link do post | comentar

Estou finalizando a tradução do último capítulo do livro do Hodgson hoje e começarei a preparar a publicação desta obra de forma independente. Pretendo utilizar os serviços do Lulu.com e do AGBook. Possivelmente vou colocar no Kindle store e outros lugares também, desde que tenha condições de fazer isso sem grandes burocracias. A edição será preparada em dois formatos: EPUB e PDF. Pretendo também preparar uma versão para impressão, que poderá ser adquirida através destes sites.

Se você gostou da tradução e pretende anexá-la ao seu leitor de livros digitais (ou e-book reader, como preferem alguns) ou pôr de pé em sua estante, vá reservando uns cobres porque a data prevista será meados de novembro. A tempo de dar de presente no Newtal…

Atualização em 05 de setembro de 2011: Terminei ontem à noite a tradução dos últimos capítulos. A publicação no blog terminará em 18 de outubro, com o epílogo. Até lá eu vou começar a formatar o e-book e fazer as revisões necessárias.

Atualização em 09 de setembro de 2011: Ontem voltei a pesquisar sobre o formato de arquivo Djvu e até andei brincando com alguns programinhas de conversão. Fiquei espantado de ver que em alguns casos os arquivos Djvu conseguem ser 85% menores que os PDF e mantêm a mesma qualidade de impressão! O visor de Djvu para Linux (djview) ainda tem uma característica interessante: carrega uma página de cada vez, fazendo que ao clicar no arquivo você tenha uma janela instantânea aberta com a capa! Acho que vou fazer o ebook em Djvu em vez de PDF.


28
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 19:20link do post | comentar | ver comentários (4)

A falta de profundidade é uma necessidade quando se escreve para pôr no Orkut, onde textos mais complexos geram comentários depreciativos de pessoas que os consideram… complexos demais. Felizmente já há um bom tempo em que eu não levo o Orkut tão a sério e brindo-o apenas com meus rascunhos, para talvez detectar pontos potenciais que possam ser melhorados.

Cheguei a essa conclusão porque entendi que os leitores daqui não apreciarão o que eu escrevo de jeito nenhum. Nem quando eu estiver dentro do tema, nem quando estiver fora, nem quando o texto for complexo, nem quando for simples, nem quando eu tiver levado quatro meses escrevendo, feito revisão e usado leitores-beta, nem quando tiver escrito em sete minutos e postado assim mesmo (como foi o caso desse). Não sei se isso é por eu um dia ter sido moderador da NEB, ou talvez por eu tentar dar ao meu texto uma seriedade e um caráter tradicional, ou por talvez não ser loiro o bastante, ou por não me chamar Johnny…

Um dos problemas aqui do Orkut é a falta de profundidade. As pessoas querem o infinito em trinta segundos. Querem o impoderável em vinte gramas. Querem o indescritível em poucas palavras. Porém há coisas que não cabem aqui, ou cabem mal. Tolice é tentar pegar o martelo e fazer caber. Alguns já nascem no tamanho certo, outros não vão aceitar encolher, outros não conseguirão esticar.

O outro problema é que nem todos que aqui estão se adequam. Eu, por exemplo, não me adequo. Eu sou um dinossauro, sou do tempo da máquina de escrever e do mimeógrafo. Sou do tempo do telex e da loja de fotocópia. Tenho arquivos datilografados ainda. Tenho uma biblioteca em casa. Desconfio do Kindle e de outros quejandos. Eu ainda uso palavras como “quejandos” — e as pessoas me acham pretensioso por escrever assim, sendo que isso é natural para mim.

Enfim, desde o final do ano passado que eu já sabia que esses concursos nunca funcionariam para mim. Amadores julgando sempre tenderão a colocar o nível de excelência próximo do nível que conseguem. Por isso as apreciações feitas pelos grandes nomes da literatura costumam ser surpreendentemente diferente das feitas pelos críticos de jornalão e por isso a opinião da crítica diverge da opinião pública.

Todo concurso é furado, isso todo mundo sabe. Envolve interesses que vão além da mera “qualidade literária” (conceito que por si só já é discutível). Esse ano, por exemplo, teve o “Escândalo do Jabuti”, no qual Chico Buarque ganhou o Grande Prêmio sem ter vencido nenhuma categoria, por exemplo, o que acabou levando a Editora Record a retirar-se de futuras edições do prêmio, em protesto. E nunca custa lembrar que Fernando Pessoa não venceu o único concurso que disputou em vida…

Não que eu me considere um autor desse naipe todo, mas com certeza não alimento de ilusões de que concursos serão o caminho através do qual obterei “reconhecimento” e “carreira artística”. Muito menos um concurso de Orkut, no qual existem pressões muitos novas (para mim) e muito diferentes do tipo de demanda a que a literatura tradicional estaria preparada (e minha literatura é bastante tradicional).

E fica pior quando você considera que o Orkut encolhe a cada dia em termos de qualidade (para quem não lembra, leia “a diferença entre crescer, inflar e inchar”, um artigo provocativo que eu pus no meu blog há quase um ano). As comunidades não andam tão vibrantes quanto já foram, nem mesmo esta. E nos outros sites de relacionamento as coisas não fluem como um dia fluíram por aqui.

Talvez seja o momento de reconhecer que, como diz meu amigo Ronaldo Roque, “ninguém mais lê ninguém, só por obrigação”.


07
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 20:57link do post | comentar
Eu não devia te dizer. Mas essa lua, mas esse conhaque… deixam a gente comovido como o diabo — Carlos Drummond de Andrade.

Nos encontramos em um bar imaginário, durante uma digressão sonambúlica. Tentei assaltá-lo com uma pergunta, mas ele é refratário a tais abordagens e sempre reverte a tentativa com uma proposição inesperada. Ontem, por exemplo, quando lhe perguntei quem eram as pessoas cujos nomes ele me recomendara conhecer, ele ignorou o que eu dissera e me perguntou se eu tenho escrito. Reconheço que é inútil tentar conduzir a conversa quando se trata dele, então acabei aceitando a pergunta, na esperança de que as dobras do assunto acabassem por esbarrar na resposta do que eu queria descobrir.

Então lhe disse que andava escrevendo pouco, pois preciso de muito silêncio para refletir, e silêncio é uma mercadoria rara, que bem valeria a pena pagar caro para consumir e que eu queria muito, mas muito mesmo, fazer alguma coisa que atraísse atenção, que me trouxesse leitores. Enquanto falávamos disso, e não das outras coisas que eu queria estar discutindo naquele momento, ele ergueu o dedo, como costuma fazer quando está entrando em transe filosófico, e decretou, como um profeta diante do Templo:

— Acredito que você pode fazer qualquer coisa, desde que não tenha a ilusão de que será lido. Ninguém mais lê ninguém. Não dá mais tempo. Há tanto para fazer, tantas sensações para experimentar.

— E no entanto o que nos resta fazer: ganhar centavos de atenção promovendo eventos inúteis? Ficar em casa trancados em nossas ilusões, esperando que alguém nos leia?

— Você fica?

Tive vergonha de admitir que ainda sonhava em ter leitores. Mas ele não me ridicularizou por isso, não ainda. Apenas disse:

— Não tenho mais a ilusão de que um dia serei lido. Estamos no fim de uma era, meu amigo. Sinto-me como um dos últimos romanos, talvez um que escreveu depois da queda do Império. Sinto-me como se já escrevesse em latim bárbaro, como se eu próprio já fosse filho bastardo da civilização que se foi. Que respeito terá o futuro por mim? Ninguém se lembra dos decadentes.

— Se for mesmo assim, meu amigo, pelo menos nos restará termos vivido e amado, da forma especial com que cada ser humano vive e ama.

Ele ouviu a minha frase com impaciência, quase espreitando uma interrupção para cortá-la, com a faca ensanguentada de seu pessimismo:

— Eu digo mais: não seremos amados.

— Nem mesmo pelas putas?

— Acreditar nelas é uma ilusão romântica estúpida. Putas não são românticas, são só mulheres pobres ou viciadas vagabundas que se degradam por dinheiro. Só péssimos poetas têm a mania de acreditar que possa haver uma Dama das Camélias. Exceto pela tuberculose, tudo era ilusão.

— Não quis dizer que a puta nos ame, mas ao vil metal. Quis dizer que ela nos dá amor em troca de nosso dinheiro.

— Nem isso. A puta não precisa do dinheiro, mas das coisas que ele compra. E sempre escolherá quem tenha mais, da mesma forma como o mineiro preferirá a jazida maior: para não ter de viver sempre à procura.

— Ah, mas você está insuportável hoje. Logo quando eu estava sentindo uma vaga inspiração para escrever uma poesia.

— Esse troço de “vaga inspiração para poesia” é frescura.

Tive de rir da minha própria inocência. Eu já devia saber que aquele iconoclasta não resistiria à oportunidade de reduzir a pó minhas intenções póeticas.

— Eu já escrevi poemas, você sabe. Hoje não mais. Eu tive uma revelação sobre o amor que me matou a poesia: nós não amamos ninguém, nós apenas buscamos satisfações.

— Como assim, meu amigo?

— Não amamos o ser, mas a perspectiva daquilo que o relacionamento com tal ser poderá nos dar: prazer, dor, conforto, orgulho, dinheiro. Diga-me, você gosta de amendoeiras, não?

Ele certamente conhecia minha fixação por estas árvores curiosas, sendo uma das poucas pessoas a quem eu mostrara alguns antigos textos sobre elas.

— Sim, gosto.

— É mentira. Você gosta de amêndoas, ou da sombra que a árvore lhe dá. Se a amendoeira não desse amêndoas e nem sombra, você certamente a desejaria destruir.

Naquele momento me senti firme para discordar:

— Isto não é exatamente verdade: existem várias satisfações possíveis, além da mera utilidade.

— Se é uma satisfação, então é uma utilidade. Nada que satisfaça a algo ou alguém é inútil.

— Mas mesmo que ela fosse inteiramente inútil, mesmo que eu a desejasse destruir… você não acha que o impulso de destruir é uma forma de desejo?

— Mas nesse caso você gosta é da destruição, não da árvore inútil.

Mais uma vez, derrotado. Ele perdeu a poesia, que ainda tenho, mas possui uma agudeza que constrange. E tendo sufocado minha resposta ainda no fundo da garganta, sentiu-se a cavalo para pontificar:

— Se você ama a alguém, é porque essa pessoa lhe faz algum bem. Se essa pessoa cessar de lhe fazer esse bem, você deixará de amá-la.

— Creio que há um engano aí, meu amigo. Você subestima a perversidade do ser humano. Na verdade matamos a amendoeira, apesar da amêndoa e apesar da sombra. O homem é como o escorpião da fábula.

O meu amigo ergueu as sobrancelhas ao ouvir-me dizer isto. Interrompeu sua profecia por alguns segundos, bateu na mesa, quase derrubando a cerveja, e admitiu, para minha glória momentânea:

— Você tem razão! Como não pensei nisso antes!? Isto é irracional, mas é verdade.

— Verdade seja dita, meu amigo, é justamente por ser irracional é que é tão humano. É mentira que sejamos diferentes dos animais por agirmos racionalmente, nós somos diferentes deles porque podemos suicidar-nos. Razão é apenas o nome que damos àquilo que nos diferencia do nosso cão, que não sabe dar nomes às coisas.

Meu momento de glória foi abatido em pleno voo por outro ataque de cinismo da parte de meu amigo:

— E quem sabe se o cão não dá nomes às coisas? É possível que apenas não saibamos compreender os nomes que ele dá.

Parei o copo de cerveja no ar, a meio caminho da trajetória até a boca. Aquelas palavras pareciam caindo da língua dele já gravadas em blocos imensos de granito, como tábuas de mandamentos. Eu não conseguia destruir a impressão que elas me causavam. Falhara minha última tentativa de salvar a dignidade humana dos efeitos avassaladores da presença de meu amigo naquela mesa de bar. Ele seguia, de sabre em punho, decapitando minhas ilusões:

— Pode ser. Somos animais, afinal. Embora animais escritores de poesia, animais construtores de canhões. E de fato não há diferença entre um soneto e um canhão: ambos estimulam os mesmos neurônios.

Meu amigo pediu a conta, deixou trinta reais sobre a mesa e se foi embora depois de uma despedida breve, durante a qual mal consegui balbuciar um boa noite. A conta veio menos de vinte reais, mas eu me senti roubado, mesmo ficando com o troco.


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