Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Abr 12
publicado por José Geraldo, às 10:00link do post | comentar
Um artigo de polêmica cultural/política, não datado, mas provavelmente escrito entre 1998 e 2000, encontrado em um velho caderno que ia a caminho do lixo. Devido ao contexto em que foi escrito, este texto não se dirige ao público amplo que a internet alcança, mas a um público muito mais estrito e regional, alcançado pela imprensa escrita do interior. Lembro-me vagamente de tê-lo preparado para ser lido em um encontro de escritores que se estava tentando organizar na época.

O centro-sul do Brasil nos é apresentado como a região irradiadora do desenvolvimento econômico e cultural do país, mas quando olhamos de perto verificamos não ser bem assim. O impulso econômico que daqui se espraia é originário de fora e não se volta para a edificação da nacionalidade -- mas para a produção de excedentes que são absorvidos pelos mercados locais, arranjados de acordo com a estruturação do capitalismo internacional, que busca, por sua vez, esmagar as variedades regionais e políticas e impor a plana homogeneidade de uma aldeia global consumista, onde apenas sobrevive a arte como cadáveres das formas antigas de expressão.1 E a cultura genuína, que aqui havia, foi suplantada pelos maneirismos modernos e civilizados — que, de fato, nada são além de formas pasteurizadas das culturas de outros locais absorvidos antes pelo polvo capitalista.

Prova disso é o caráter exótico que é atribuído por nós, aqui da região mais globalizada do país, às sobrevivências de folclore das regiões menos amesquinhadas pela sedução da «modernidade» uniformizante. Estamos mais à vontade diante de fotos de antigas estátuas neoclássicas do que diante da obra do Mestre Vitlaino, entendemos melhor de porcelana chinesa do que de cerâmica marajoara, nos agrada mais a música da moda importada da Europa e da América do Norte do que as formas populares de canção.

Que foi feito de nossas festas? Alguém aqui ainda se lembra de ter ouvido uma moda de viola, uma toada, um calango ou um desafio?  Estas formas musicais pertencem à rica tradição de Minas Gerais, mas a maioria de nós jamais pegou uma viola, nunca viu uma sanfona de oito baixos, sequer ouviu falar de uma rabeca (eu mesmo me incluo nos dois primeiros grupos). Ninguém aqui saberia dizer o que é uma «torda», raríssimos terão tomado leite de onça em uma festa junina ou comido batata assada. Não faz parte da memória coletiva de nenhum de nós as melodias da Folia de Reis, da Festa do Divino ou de outras festas musicais de antigamente.

Todas estas coisas que citei fazem parte de um mundo antigo, pisado e esquecido desde que a Redentora resolveu se intrometer nos rumos do século XX e matar nossos projetos autônomos de futuro. A descaracterização da cultura popular, antes restrita aos centros de imigração e ao Rio de Janeiro sempre cosmopolita, se enveredaram pelo interior, deixando atrás de si uma terra arrasada, habitada por seguidores de novela e proprietários de radinhos de pilha sintonizados nas estações cariocas ou paulistas.

Houve um tempo em que as estradas do interior eram ocasionalmente pontuadas por cruzeiros de madeira. As pessoas sabiam o que comemorava cada um deles. Os antigos cemitérios de escravos ainda existiam, e havia quem plantasse flores neles, ou os cercasse para que o gado ali não pastasse.

Houve um tempo em que se podia organizar uma festa fincando doze bambus no chão e montando uma coberta com folhas de bananeira para proteger do sereno. Isso era uma «torda», e debaixo dela o baile acontecia desde que houvesse um sanfoneiro, um barril de pinga, uma bacia de pães recheados com molho de carne moída e um garrafão de vinho. Não precisava de polícia, nem de alvará. Nem de convite e nem de roupa nova.

Vocês podem estar surpresos com meu apego ao passado, achando que pareço um fantasma desses dias antigos, embora seja tão novo. Eu tive tempo de viver algumas destas coisas que estou mencionando, e pelo pouco que vi entendo que tenho motivos suficientes para a saudade. Então eu não venho com regras para nenhuma vanguarda, venho com a história da minha vida e os maus hábitos que os bons autores me ensinaram. Sonho repelir a colonização, pelo menos naquilo que ela mais me mata, e poder falar das coisas que sei e sinto.

Grito por uma arte nacionalista. Cessemos de copiar servis os cânones decadentes de uma Europa grisalha, que em breve será senil.2 Nesses países a morte das raízes pode nos parecer ter sido menos grave, porque o novo mundo que eles criaram ainda parece descender de suas antiguidades. É entre nós que o desenraizamento danifica mais, porque substitui o nosso por algo que é alheio. Somos ainda felizes por termos dentro de nossas fronteiras3 cinco identidades regionais tão fortes que nem mesmo o uso de uma língua única as nivela. Mas deixamos que prossiga a morte lenta dos dialetos e da saborosa prosódia popular. É um crime de lesa-pátria compactuar com essa emasculação de nossa cultura, antes que dê frutos universais.

Na infância, em verdade, porque uma cultura só amadurece no cultivo dos séculos. A nossa data de menos de três, e já está em decadência. O Brasil é um país onde muita coisa que ainda está em construção já está em ruína, como mencionou Gilberto Gil em famoso verso.4 As obras de nosso folclore estavam ainda em fase de elaboração quando foram surpreendidas pela agressão de um século uniformizado e colonial, que as desprezou como se fossem primitivas, que as insultou de «mestiças» numa época racista em que este termo era uma ofensa. Nossos nativistas do passado apenas refletiram sobre a grandiosidade do que estávamos pondo a perder para produzir, a partir da síntese dos elementos abandonados, os últimos brilhos da moribunda cultura de talhe ocidental.

O modernismo foi, sim, canto do cisne do Ocidente enquanto construção ideal, ideológica e política. Foi quando o racionalismo neoclássico perdeu a primazia: abriu-se caminho à liberdade, à expressividade, à anarquia. O resultado é mesmo decadência. Que se manifesta no questionamento do objeto, da obra, da arte. Nossa arte tão moderna não produz mais clássicos. Não procura admirar, mas apenas intrigar.  Estranhamos essas obras, nos surpreendemos com esses enigmas, mas dificilmente os tomaríamos como enfeite, como objeto de veneração, como símbolos de identidade. São obras que contemplamos à distância, às vezes até com asco.

Enquanto o Ocidente discute seu desmonte, nós vamos substituindo o que tínhamos de nosso pelas telhas quebradas e restos de estuque roubados da demolição deles. Não sei se tudo já foi feito: apenas suspeito que a casa que se faz com restos sempre se parecerá com restos.

Infelizmente vivemos sob o signo da mediocridade. A obra do medíocre procura, antes de tudo, justificar a si mesma. O objetivo do medíocre é o consenso: no consenso não há necessidade de criatividade, nem de maior capacidade. Os medíocres podem ser inimigos pessoais, mas concordam em suas obras. Ao contrário dos grandes gênios, que às vezes se insultavam por meio dos jornais falando das obras respectivas, mas frequentemente tomavam cafés cordiais quando se encontravam.

O medíocre acredita no fim da História, que tudo já foi dito e feito. Esta ideologia do fim do mundo interessa a quem suspeita que está morrendo. Depois de mim, que venha o dilúvio. «Morro com minha pátria», disse o ditador que, de fato, quase a levou a morte por um capricho seu. Morreu o ditador, a pátria sobreviveu. A duras penas, mas sobreviveu. O pós modernismo e seu consenso botam a mão na boca da África, da América, da Ásia, de Marte e de Plutão, de onde quer que se suspeite que alguém ainda pode ter uma ideia original: findou a História, morreram as estéticas, transfigurou-se a arte. Pendurem um urinol na parede do museu, amontoem cachorros mortos na Bienal, vendam borrões de tinta por milhões.

Sou, porém, um idealista. Acredito que dentro do adormecimento em que vive o resto do Brasil que ainda não foi castrado pela globalização pode ainda existir o anseio pela novidade. E dali pode nascer uma nova nacionalidade, uma nova arte.

Nacionalista esta, não por ódio ao alheio, mas por amor ao próprio. Não por repelir o diferente, mas por difundir dissensos criativos. Não por absolutamente pôr num pedestal nosso folclore, que muito tem de obscurantista e retrógrado, mas por oferecer-lhe espaço para que se transforme seu produto em artefato.

Esse folclore que ignoramos é uma fonte de indícios de futuro. Podemos inventar de nosso jeito, sonhar em nossa língua, contar a nossa história, cunhar nossa moeda. Independência é isso, é algo que quase ninguém conhece, porque quase ninguém tem.

Convido a todos vocês, descrentes da modernidade, ao lodaçal desafiante da oportunidade. Fora do asfalto estéril que só leva a lugares conhecidos. Entrem comigo nesse brejo perigoso, onde certamente alguém vai se afogar. Vamos fundar ali uma outra tribo, uma que não faça pajelança para gringo ver. Tragam seus tambores, alguém pelo amor de deus me arranje uma rabeca porque eu quero ouvir. Perdidos na insuportável solidão do concreto, vamos imitar pios de pássaros e ler versos em dialeto. Vamor fugir de volta para a região de nossa infância de onde a escola e a academia nos tiraram.

Prometo que não sei como será esse mundo novo que eu sonho ver erguido. Beleza é isso, o imprevisto, o impossível. Mesmo as ruínas do Ocidente serão mais bonitas do que o seu futuro. Procuro profetas para um novo mundo. Venho de Masada, do Langue d'Oc, da Etrúria, de Creta, da Irlanda e do Egito. Venho de Alcácer-Quibir, de Canudos, de Copá e Macchu-Picchu. Venho de lá e estou andando no rumo vago do sertão.

Busquemos essa direção, longe do mar corrupto e da montanha inculta. Gritemos a ambos os lados que o progresso é só um lusco-fusco  diante da longa idade da humanidade.

Existe um perigo, no entanto. A proposta que faço é tipicamente talhada para o gosto das elites políticas, e surgirá sempre a tentação fácil de render homenagens ao que já está. Mas a política não é compromissada com estes objetivos, somente com lucros e poder. Verdadeiros artistas não podem compactuar, devem agredir. Esquecer a perspectiva de salários gordos, soldo de mercenários. Sem ilusões: se a política se interessasse por cultura, nosso país estaria bem melhor do que está.

1 Este texto foi escrito bem antes que eu sequer tivesse acesso à internet, de forma que eu ainda não tinha a compreensão dos fenômenos culturais que ela acabaria por propiciar. No entanto, continuo acreditando que a frase é verdadeira, porque aquilo que a internet produziu de novo é apenas uma variação esvaziada de formas artísticas preexistentes, com o agravante de que a evolução das ferramentas eletrônicas tornou-se muito mais fácil o fazer artístico.

2 Para quem estudou História e não gastou o tempo fumando maconha no campus, já estava mais do que evidente em 1999 que a Europa tinha subido no telhado. O que ainda não está claro é se a queda a matará ou servirá de alerta para que reencontre o rumo.

3 Neste trecho eu me referia ao estado de Minas Gerais, que possui cinco falares variantes regionais: o mineiro propriamente dito, no centro do estado, o mineiro-baiano, no norte, o triangulino, o sulista (estes dois influenciados, mas não exatamente da mesma forma, pelos falares paulistas) e o mineiro-fluminense da Zona da Mata.

4 O famoso verso em questão está na canção «Haiti», e se refere a uma curta menção às «ruínas de uma escola em construção».


12
Abr 12
publicado por José Geraldo, às 10:17link do post | comentar
Um poema escrito em 23 de fevereiro de 2007 e achado num caderno velho, que ia a caminho do lixo, junto com alguns sentimentos de segunda mão.
Eu a ouvi ontem à noitee senti aquele punhal de novo em minha carne,tive saudades suas como tenhosaudades dos pedaços que fui perdendo.Tenho saudades de ter sido sozinho,de ter atravessado sábados sofrendo.Aquele silêncio antigo me faz faltaporque há dias em que não quero falare outros em que precisava de fugir,achar um lugar entre as montanhaspara poder me distrair.Tenho saudades de quem me enganou,quanto maior a mentira, maior a dor,maior a falta, poderia ter durado maise com mais cicatrizes eu tinha mais históriae ninguém sente a dor em seu pretérito.Por que fui tão esperto?Se fosse tolo por alguns dias a maisteria vivido ainda outro dia que lembrar.Ah, na verdade agora é que sou tolo:vivendo como meu um plano alheio,um destino sonhado por meus pais,e o amor laçou-me na planície durante meu galope.Sim, tenho saudades. E do tipo pior.Tenho saudades difusas, que não pertencem a coisas,que não evocam pessoas.Essas saudades de cores assombram minhas cinzas.

09
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 21:57link do post | comentar

…ou não andavam tão bem acompanhados. Era um mundo melhor, no qual você não se fazia ouvir nem na esquina, mas podia pelo menos desfrutar da doce sensação de que as suas ideias não seriam incompreendidas e ridicularizadas por idiotas.

O ser idiota é um ser coletivo, gregário, agremiado, associado, mesmo que informalmente. Ninguém consegue ser realmente um idiota quando está sozinho porque o eco das paredes nos dá a estranha sensação de que não somos geniais ou, ainda pior, de que nossa genialidade nunca será compreendida. Em ambos os casos poupamos o mundo de nossas palavras por tempo suficiente para que amadureçam, ou amadureçamos, ou emudeçamos, ou apodreçamos.

Um grupo de pessoas apenas moderadamente bobas pode transformar-se em uma turba vociferante de trogloditas. Um babaca não comprará uma briga contra o carinha que lhe «olhou torto» na rua, um grupo de babacas pode massacrar um mendigo pelo prazer de ouvir ossos quebrando. Coletivamente, a idiotice se potencializa. Mas remova cada um dos idiotas de seu bando e você terá um gatinho educado. Sem «amigos lá fora» para impor sua interpretação idiota do mundo, o gatinho aprenderá a negociar, a conversar. Esta é a grande virtude das prisões: as prisões deveriam ser o «cantinho pensamento» para os meninos maus da sociedade. Infelizmente, vivemos numa sociedade em que os castigos são vistos como manifestações autoritárias da tradição. Talvez sejam, mas negociar uma entrada honrosa no mundo adulto é algo que já saiu meio de moda. Todos querem entrar arrombando, pisoteando, idioteando.

O mundo era melhor no tempo em que não havia tantos bandos de valentes, no tempo em que os valentes se orgulhavam de resolver sozinhos. Hoje em dia, já que estamos ficando modernos, resolvemos redescobrir a Idade Média e trouxemos de lá o que os franceses chamavam de melée, a guerra bruta e desorganizada que só terminava quando os vivos começavam a tropeçar demais nos mortos. A guerra estúpida e bárbara contra a qual a civilização procurou impor códigos de cavalaria, tréguas dominicais, direitos de asilo, honra militar etc. Briga em porta de escola é um choque de bandos, ninguém ali possui individualidade, são idiotas que se entregam ao espírito do bando — e todo bando é necessariamente idiota, todo partido é utópico, toda associação é ingênua, todo grupo é meio besta. Houve um tempo em que afirmar-se como indivíduo era sinal de honra. Hoje, a folha de grama que se destaca é aparada.

Conformem-se, garotos que estão hoje nas escolas. Vocês não terão a permissão de viver com a liberdade que eu vivi. Eu vivi sob uma ditadura os meus tempos de escola, mas vivi mais livre do que vocês. Porque as correntes com que nos amarramos a nós mesmos são as mais difíceis de romper. Quem romperá a corrente de massificação, de idiotização? Experimente gostar de uma garota diferente, ouvir uma música diferente, passar por uma rua diferente, vestir-se com uma roupa diferente. Escárnio, no começo, xingamentos, pouco depois, talvez uma pedrada na testa ou, se for possível, um linchamento. Moral ou físico, já tanto faz. Não existe muita vida depois que você perde o direito de ser você mesmo. E passa a ser um dos idiotas do bando.


21
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 10:56link do post | comentar

Um poema (originalmente sem título e sem data) encontrado datilografado no verso de uma folha de rascunho perdida em uma das muitas caixas de papel velho em minha biblioteca. Miraculosamente salvo do lixo, não consigo imaginar a razão pela qual este texto não foi incluído entre os meus «poemas completos» anteriormente.

Temo ferir o teu viçocom os espinhos que adquiri.Talvez a dor, no entanto, a faça ver mais cedoo que tão tarde eu descobri:não há salvação sem a verdade,não há destino sem partilhae não há felicidade,absolutamente.Mas isso não quer dizer somenteque estou insensível: não o ouso dizer, apenas digo.Preciso de um clarão no horizonte,e de calor em minhas mãos,mas isto só se acha ondeeu ache algo que não caiba em mim.Não fui sempre este estranho,sou o que me fui tornando.Não quero mais unir-me ao mundocom toda sua ânsia.Caminho só por entre as pessoascomo um romeiro anônimo de um santo antigo,atravesso pontes como um cão mutiladoem uma estrada hostil,como uma formiga entre os doces da festa.Insignificante,ignorado,incomunicável.Como exigirei que se solidarizem com meu absurdo?Não posso sequer exigir que alguém fique.Eu sei que já era assim quando você me viu,mas não precisa ficar mais, pode fingir que descobriuporque eu sei que os olhos do amor escondem muito.Não, não vou mudar. Ninguém muda ninguém. Ninguém muda.Todos apenas se tornam cada vez mais aquilo que vão ser.Mas como não sei viver nas trevas e sem nada,como não sou bom adivinho, nem Teseu no labirinto,nem artista de circo e nem gênio de caricatura,vou seguindo a trombar entre ilusões, como a sua.Ah, é esperar demais de mim, você pedir que eulhe demonstre mais afeto.Não tenho tanto amor assim:Amor é algo tão restrito, tão pequeno,tão pouco nesse mundo, tão oásis. Como você quer que eu tenha em abundânciao que serve de lenda e consolo para todos,mas não brota como um pasto pelo chão,mas sim como um cacto nas cinzas.Ah, é esperar demais de mim, você pedir que eulhe demonstre mais afeto.A nudez dos sentimentos é pior que a do corpo.Que pouca é a vergonha que você acha que eu tenho!Ah, não. Não é que eu insisto em feri-la.Não sou ferino como você acha,Apenas quero ilusões segurascomo a de não amá-la.

04
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 21:56link do post | comentar

Um curto ensaio (de apenas 13 páginas) contendo uma série de ideias absolutamente desconexas, irrelevantes e ressentidas sobre porque considero Academias em geral como uma perda de tempo. Mas se você tiver a pachorra de ler talvez descubra que concorda comigo.

Introdução

Houve uma época, há não muitos séculos, em que o termo “academia” tinha um prestígio inabalável. Era, também, um tempo no qual as pessoas se sentiam muito identificadas com a monarquia, por razões as mais diversas, principalmente religiosas.1 Eram tempos brutos, nos quais a fogueira ou os instrumentos de tortura (quando não ambos) eram o destino de pessoas que não pensavam de acordo com a regra dominante. Eram tempos nos quais uma pessoa poderia passar a vida inteira em uma prisão para doentes mentais2 apenas por ter um comportamento ligeiramente divergente. A menos, é claro, que tivesse dinheiro e títulos de nobreza, nesse caso você poderia degolar mocinhas virgens para banhar-se em sangue na busca da eterna juventude durante décadas antes de alguém se incomodar em lhe condenar a uma “prisão domiciliar”.

Não quero, com isso, sugerir que acadêmicos são sanguinários, mas que a academia é um fóssil de uma época cujo fim, iniciado penosamente com a Revolução Francesa de 1789, é um dos grandes progressos da História. Este texto pretende explicar porque eu penso assim, e convencê-lo, leitor, a pensar de forma semelhante.

Origem do Termo

Para quem não sabe — e é possível que muita gente não saiba — a palavra “academia” remonta aos antigos gregos. Deriva do nome de um dos montes de Atenas, o Akademos, que, por sua vez, tinha sido transformado em um bosque sagrado, plantado em homenagem à deusa.3 Mas esta academia original era apenas o apelativo informal para o conjunto dos filósofos que se reuniam para discutir sophia à sombra de árvores célebres. Esta academia original seria algo inócuo, quase benigno.

Ocorre que esta palavra passou à posteridade como lembrança de nomes ilustres que por lá discutiram: Sócrates, Platão e Aristóteles entre eles, gigantes que deixaram indeléveis marcas na cultura humana por milênios a seguir. Era questão de tempo que alguém, interessado em comparar-se com S.P.&A. tivesse a brilhante ideia de chamar ao seu grupo local de discussões pelo mesmo nome antigo, mesmo que não houvesse o envolvimento de nenhum bosque, nenhuma deusa e nenhuma sophia.

É sintomático que o uso do termo tenha sido reconsiderado, quase um milênio depois que o zelo cristão dispersou a academia original, por um tirano florentino, legítimo representante dos ilustres regimes renascentistas italianos que, vistos por nossos olhos democráticos, seria o equivalente a um Muammar Kadhafi, um Benito Mussolini ou um ditador de republiqueta latinoamericana: militar, cruel e obcecado pelo poder. O que diferenciava os tiranetes florentinos dos ditadores do século XX era uma preocupação com a cultura: afinal, vivia-se numa época em que ser culto era chique, ao contrário de hoje, em que uma frase como “nemli e nemlerey” se torna um meme nas redes sociais. Nada era mais chique para um tiranete renascentista do que ter seu grego domesticado ensinando filosofia para a juventude. Algo assim como os milionários chineses devem sentir com seus ingleses de estimação ensinando língua e modos ocidentais aos estudantes: os náufragos de uma grande civilização decaída servindo de semente para a grande civilização nascente, ainda chamada de bárbara.

Academias e Absolutismo

Se a motivação original dos tiranetes florentinos ao criar “academias” fora dar um lustro de cultura nas suas armaduras sujas do sangue dos cidadãos,4 da vez seguinte que a ideia entrou em uso a preocupação com a cultura era menor, mas havia uma necessidade maior de definir a coisa. Muito depois que fossem esquecidas as academias renascentistas, com seus característicos nomes engraçados,5 os monarcas europeus se apropriaram da ideia. As primeira academias formais surgiram onde os monarcas asseguraram o poder absoluto ou onde os tiranetes conseguiram estabilizar-se no poder. Contrariamente às academias informais, com seus nomes tolos, estas tinham nomes pomposos e oficialescos.

Em Florença, Médici fundaram a Academia das Belas Artes de Florença, responsável, entre outras coisas, por hoje ainda chamarmos as artes visuais de “Belas Artes” e não simplesmente de “Artes Visuais”. Esta academia pretendeu (e conseguiu) substituir as inúmeras guildas de artistas e artesãos herdadas da noite dos tempos e unificar o ensino de pintura, escultura e outras artes ditas “belas”. Desta “unificação” surgiu um estilo padronizado, logo chamado de “acadêmico”, e cuja grande contribuição à história da arte pode ser medida pelo fato de ele ter surgido já no fim do Renascimento, ou de o fim do Renascimento ter já começado tão logo ele surgiu. A academia florentina teve uma acolhida tão boa (não necessariamente entre os artistas e artesãos anteriormente estabelecidos em Florença) que logo outros tiranos italianos (entre eles o Papa) trataram de criar suas academias. Pipocaram instituições semelhantes por toda a Bota: em Bolonha, em Siena, em Roma, em Nápoles. E com a difusão de tanta academia, o velho Renascimento começou a transformar-se em outra coisa, que hoje é chamada, retrospectivamente, de “barroco”.6

A Função da Academia no Contexto Absolutista

Obviamente os reis não fundavam academias apenas porque precisavam de um “ar culto”. A partir da segunda metade do século XVI a situação política já tinha mudado tanto que os reis não mais precisavam de subterfúgios. Mesmo os condottieri italianos haviam adquirido um ar de nobreza, que inicialmente não tinham, e podiam contar com legiões de imitadores e puxa-sacos. Confortavelmente sentados nos seus tronos, ao menos em comparação com a precariedade do poder de seus antecessores e antepassados, esses líderes puderam estabelecer estruturas para exercício de seu poder.

E as academias surgem nesse contexto: a função principal delas passou a ser, desde então, a de controlar a produção e a difusão do que se convencionou a chamar de “cultura”. Em suma: uma Academia é apenas um nome pomposo para os departamentos de censura dos estados absolutistas europeus. Senão, vejamos:

Uma das funções da academia era justamente a de centralizar a educação artística. A Academia de Belas Artes de Florença foi criada justamente para substituir todas as guildas de artistas e artesãos da cidade, colocando a formação dos futuros artistas integralmente sob a égide dos Médici, tiranos hereditários da cidade a ponto de se “enobrecerem”. Ein Volk, Ein Reich, Ein Akademie. Isto se consolidou com o surgimento das chamadas “Academias Nacionais”, das quais a Académie Française foi o modelo.

Outra importante função era manter a tal da “tradição”. O ensino de artes nas academias era baseado na cópia dos modelos antigos e o aluno só estava autorizado a desenhar suas próprias ideias depois de atingir certo grau de perfeccionismo na imitação dos mestres do passado, altura na qual já tinham, provavelmente, substituído suas ideias originais pelos ideais infundidos pela academia.

Por fim, uma academia também funcionava como instrumento para controlar quem estava autorizado a “fazer arte”. Sem um diploma da academia o sujeito não era considerado um artista formado e o seu trabalho ficava relegado a uma segunda categoria: ganhava menos, era menos prestigiado e não tinha nenhuma proteção se, de repente, alguém resolvesse se ofender com o conteúdo. Em Portugal, no fim do século XVIII, ser membro de uma academia, a Arcádia Lusitana, adiou consideravelmente a perseguição ao poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage, cujo sobrenome passou à História como sinônimo de palavrão.

Da conjunção destes três objetivos, resultava que a Academia desestimulava a originalidade, propiciava a estagnação e dificultava o acesso do povo em geral à arte. Ao mesmo tempo, era um instrumento eficaz de neutralização da arte como um catalisador do sentimento nacional: os governos criavam academias justamente pensando em utilizar os nomes dos grandes artistas para legitimar o regime. Com o tempo a condição de “acadêmico” passou a ser praticamente sinônima de alguém comprometido com o sistema, ou por ele cooptado.

No caso específico da literatura, a academia sempre pretendeu estabelecer um padrão linguístico de prestígio, não apenas opondo-se a inovações linguísticas mas também procurando deliberadamente arcaizar o idioma, como aconteceu com a língua portuguesa, que, sob a influência do academicismo, progressivamente adotou um sistema ortográfico etimológico que llevouse mais de dous seculos para revogarse, a pesar de toda a difficuldade que offerecia aos estudantes, com innumeras lettras dobradas, digraphos inexplicaveis, e variantes orthographicas esdrúxulas.7

O Ataque Modernista ao Academicismo

Entre nós existe um marco definido de reação ao academicismo: a Semana de Arte Moderna de 1922. Em outros países o marco é menos definitivo e a transição foi mais lenta. Para nós fica parecendo que, da noite para o dia, alguns jovens iluminados resolveram atacar o status quo, criando do nada uma nova arte, livre das amarras do famigerado academicismo. A verdade é menos romântica, os ataques vinham sendo arquitetados desde a Revolução Francesa e àquela altura, na maior parte do mundo, o quo já não tinha mais nenhum status, como diria Millôr Fernandes.

A reação ao academicismo se deu, inicialmente, pela criação de academias rivais, como a Academia Prussiana, que se impôs a tarefa de fazer a independência cultural da Prússia em relação ao Sacro Império Romano-Germânico, mas com o tempo começou-se a perceber que o ideal nacional da Academia era diligentemente contrário às culturas minoritárias, o que era particularmente grave nos estados multiculturais, como a Espanha, a Áustria-Hungria e o Reino Unido. Na Espanha, por exemplo, o academicismo redundou em obscurantismo e em fascismo, chegando alguns acadêmicos a endossarem a supressão de todas as culturas não-castelhanas do país, ainda que tivessem, como no caso do catalão e do galego, uma tradição mais antiga e venerável que a do próprio castelhano e que se reflete até mesmo na confusão entre “castelhano” (a língua do Reino de Castela) e “espanhol” (que seria a língua do reino unificado da Espanha, que incluía Castela, Aragão, Leão, Astúrias, Galícia e Navarra).

O que aconteceu, de fato, foi que, no Brasil, tal como por vezes anteriores, o ingresso na modernidade somente ocorreu depois de esgotadas todas as demais popularidades. Somente entramos no Romantismo a partir da décade de 1830, meio século depois de países como Inglaterra e Alemanha o inventarem. Somente abolimos inteiramente a escravidão em 1889, e depois de nós só faltaram os países muçulmanos (tal como nós, muito a contragosto) e as colônias europeias na África (incluindo o notável exemplo sul-africano). Da mesma forma, somente contestamos o academicismo mais de sessenta anos depois do surgimento das primeiras correntes artísticas francesas (impressionismo, pontilhismo, simbolismo).

Pior ainda: escolhemos aderir ao modernismo justamente a reboque de sua versão mais degenerada, o futurismo italiano. Ninguém estranhe haver tantos sobrenomes assim entre os modernistas de 22: Del Picchia, Malfatti, Bo Bardi etc. Não que o futurismo italiano fosse artisticamente nulo, mas nós tivéramos sessenta anos de ideais artísticos antecipadores do modernismo, tínhamos que pular no barco justamente com os futuristas, adoradores do fascismo. Faz pensar que não houve, de fato, revolução alguma em 1922 (tanto que Del Picchia acabou eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1943, enquanto outros modernistas de muito melhor quilate, mas não ligados ao futurismo ou à Semana de Arte Moderna, como Drummond e Quintana, jamais puseram os pés naquela Casa).

A Continuidade como Característica dos Movimentos Políticos e Culturais Brasileiros

Nada do que foi escrito, dito, feito, pintado ou esculpido a partir de 1922 conseguiu efetivamente mudar a relação de poder no cenário cultural brasileiro. Algumas coisas mudam apenas para que possa tudo continuar igual, como na célebre frase de Malaparte. Os modernistas fizeram e aconteceram, mas foram sendo encampados pelo academicismo à medida em que foram ficando velhinhos e os velhinhos de 1922, ofendidos então, foram morrendo.

Você pode achar que estou sendo excessivamente cruel com os modernistas de 1922 (os quais, confesso, nunca exatamente admirei, por razões que somente muito tardiamente eu consegui articular), mas pare um pouco e pense sobre o contexto em que tudo aconteceu: será mesmo que foi da noite para o dia que um grupo de intrépidos jovens paulistanos sacou do bolso a ideia mirabolante de demolir o academicismo e forjar uma arte genuinamente nacional? Dificilmente, ainda que alguns livros de História possam dizer isso. Sabemos, e sabemos muito bem, que todos os eventos históricos são produto de tensões acumuladas, de condições preexistentes, de enganos e acertos de seus atores. Imaginar que a Semana de 1922 tenha sido uma súbita ruptura é algo ingênuo demais, até para mim que sou tão ingênuo.

Uma característica da História do Brasil é que, até hoje, não houve em momento algum qualquer revolta contra o status quo que fosse ao mesmo tempo inequívoca e vencedora. As vitórias obtidas são o produto apenas de movimentos toleráveis, e estes assim se tornam pelo recuo em seus ideais, pela cooptação do status quo ou então por se tornarem “póstumos” às mudanças que deveriam causar. Vê-se isso de uma forma muito evidente na maneira como certas mudanças culturais aconteceram no país.

A independência brasileira, por exemplo, não aconteceu como consequência de nenhum dos vários processos de ruptura que foram tentados, entre os quais dois de respeitável inspiração (as Conjurações de Minas Gerais e Bahia), teve que esperar até que as elites brasileiras cooptassem o processo, mais para livrar-se do entrave de uma metrópole que se mostrara frágil demais até para extorquir os impostos da colônia.

Da mesma forma, a superação da hegemonia portuguesa na cultura só ocorreu de forma gradual. Na educação, as faculdades nacionais foram sendo criadas devagar, provavelmente para não se por a perder o prestígio dos diplomas de Coimbra ostentados pela elite brasileira. Na literatura, o modelo acadêmico herdado de Portugal (e que lá já se encontrava superado) só foi encontrar contestação a partir da década de 1830, quando um honorável político (mas sofrível poeta) chamado Domingos José Gonçalves de Magalhães8 resolveu beijar a viúva e decretar o nascimento de uma nova literatura.

A tendência nacional era a de sermos mais conservadores do que os portugueses em quase tudo. Enquanto eles já abraçavam o romantismo na década de 1820 e os ingleses e alemães já o brandiam desde antes de 1810, nós só fomos fazê-lo a partir de 1836. Enquanto os portugueses já superavam a hedionda ortografia etimológica em 1910, nós ainda nos mantivemos aferrados a ela até 1946. É verdade que a República Portuguesa se inspirou grandemente na brasileira, inclusive na escolha da efígie que a representou na moeda e nos selos, e que nada mais era que a mesma Marianne dos franceses. Porém, quando no Brasil um homem como Olavo Bilac ainda detinha notável influência e o realismo-parnasianismo tinha força suficiente para sufocar todo um movimento literário renovador (o simbolismo), fazendo-o dissover-se numa mistura acéfala de estilos, transicional entre o antigo e o novo, e que entre nós foi chamada de “pré-modernismo” (fenômeno único na literatura mundial), enquanto isso Portugal já estava nas “dores do parto” da modernidade e a década de 1910 já via surgir as primeiras revistas modernistas.

A Semana de 1922 como um Movimento Reacionário de Direita

O que estou querendo dizer aqui é que 1922 não foi ruptura alguma: o parnasianismo caiu de podre, tanto quanto o classicismo caíra em 1836. Nada tendo de relevante a acrescentar,9 o parnasianismo se contentava em sufocar o que poderia surgir como novidade, tornando-se uma influência nefasta sobre nossa cultura.10 Sobre os ombros de seus próceres, inclusive Olavo Bilac, repousa responsabilidade indireta pelas mortes prematuras de Augusto dos Anjos (“não se perde grande coisa”, disse Bilac celebremente) e Lima Barreto (acometido de depressão no fim da vida), por exemplo, e pelas dificuldades enfrentadas por Monteiro Lobato, até ser vingado pelos modernistas, a quem ele, de forma paradoxal, tanto criticou. Desta forma, quando a Semana de 1922 aconteceu, dificilmente uma pessoa não comprometida com o status quo cultural poderia ver nela uma ruptura súbita. Vozes se antecipavam a essa ruptura desde pelo menos 1909, mas eram caladas pela atuação e pelo prestígio de cadáveres literários insepultos, como Raimundo Correia e Olavo Bilac. Em 1922 estas vozes encontraram patrocínio entre as elites paulistas, que tinham suas razões (até políticas) para se insurgirem contra o Rio de Janeiro, sua Academia e sua pretensão de hegemonia.

A Semana de 1922 aconteceu com pelo menos sessenta de atraso, se você quiser que ela tenha sido revolucionária. Aconteceu com pelo menos dez anos de atraso, se você quiser que ela tenha sido contemporânea aos fatos relevantes da literatura internacional. Mas aconteceu bem a tempo de aderir justamente ao futurismo, a forma radical e extremista de estética literária, originária da Itália, principalmente, que ansiava e celebrava o Fascismo. A Semana aconteceu no mesmo ano da Marcha Sobre Roma (ainda que sete meses antes), sintonizando-se com o momento em que Mussolini, já então político relevante e carismático, conseguiu acumular influência suficiente para chegar ao poder. E entre os grandes nomes de 1922 você não deixará de encontrar vários sobrenomes italianos, como os de Menotti del Picchia, Anita Malfatti, Victor Brecheret e Di Cavalcanti. É verdade que já havia alguns movimentos e eventos não acadêmicos desde 1916, e Manuel Bandeira já estreara o verso livre em 1919, no seu Carnaval, mas nada disso era motivo de escândalo: mais uma vez a mudança se fazia gradualmente, e com atraso. A Semana pretendeu romper, chutar o balde, abrir uma clareira na mata fechada do obscurantismo. Mas conseguiu?

Em primeiro lugar precisamos pensar em quem estava nessa vanguarda, inspirada grandemente em futurismo. Alguns dos mais significativos nomes de nossa literatura modernista notavelmente não estavam, ainda que apenas por causa de sua tuberculose. Mas Graça Aranha lá estava. Monteiro Lobato, uma das personalidades mais importantes da cultura brasileira pós-parnasiana não aderiu, mas o acadêmico Graça Aranha estava lá. Sem a bênção de um acadêmico, e as portas franqueadas do Theatro Municipal, a Semana não teria existido, ou não teria atingido seu objetivo. Portanto, analisando o contexto, percebe-se claramente que ela foi um de artistas integrantes da elite econômica emergente, de um estado economicamente emergente (que pretendia tomar do Rio a hegemonia cultural) e não necessariamente à revelia da Academia, embora tenha havido alguma animosidade entre os mais radicais de ambas as partes e certas mudanças (como a da orthographia) tivessem de esperar até morrer a maior parte dos fundadores da ABL (o mais resistente deles durou até 1963).

A Academia Como Instrumento Político da Direita

A Semana de 1922 ficou longe de ser a lápide da influência classicista no Brasil, em parte graças à inacreditável sobrevivência do academicismo no imaginário popular, através de um “pós-parnasianismo”11 encontrado na produção de poetas populares, muitos de orientação mística-católica. Mas marcou definitivamente o início de uma “troca de guarda” na literatura nacional, concluída por dois fatos relevantes: a eleição de Getúlio Vargas em 1941, marcando definitivamente a politização fascista da Casa, e a adoção da Reforma Ortográfica, sacramentada pelo modestamente intitulado “Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa”, através do qual a Academia, já então abrigando nomes notáveis do Modernismo, como Menotti del Picchia e Manuel Bandeira, consolidou sua ascendência sobre a língua nacional.

E assim, “nas calhas de roda”, seguiu girando, “a entreter a razão”, essa estrutura conservadora (por princípio e por definição), que se pinta, qual camaleão, com as cores sucessivas do progresso, de forma a sobreviver, mantendo-se relevante. Eleger membro o próprio presidente da República foi uma jogada de mestre, que infelizmente se revelou temerária com a redemocratização. Mas não faltaram nas décadas seguintes provas de fidelidade da Academia aos seus objetivos originais e aos seus verdadeiros patrões: os donos do poder.

Esta é a única conclusão a que se pode chegar, quando analisamos que vários políticos da direita. Como o próprio Vargas, e posteriormente Aurélio de Lyra Tavares (quão conveniente eleger um general de exército recém-saído da Junta Militar!). Como José Sarney e Marco Maciel. Mas não procure nela qualquer nome que em qualquer momento tenha sido de esquerda, flertado com movimentos populares ou mesmo simplesmente se oposto de alguma forma (qualquer forma) ao status quo.

A Academia tem entre seus princípios abrigar apenas escritores:

O estatuto da Academia Brasileira de Letras estabelece que para alguém candidatar-se é preciso ser brasileiro nato e ter publicado, em qualquer gênero da literatura, obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livros de valor literário.

Mas isto não impede que ela tenha tido ou tenha em seus quadros um cineasta que jamais escreveu um livro (Nélson Pereira dos Santos), um político que somente escreveu discursos (Marco Maciel), um político autor de obras universalmente tidas como horríveis (José Sarney), um cirurgião plástico que somente publicou obras de cunho técnico (Ivo Pitanguy), um ditador fascistóide que não escrevia livros (Getúlio Vargas), um jornalista que somente escreveu sozinho um livro e um prestidigitador literário que sequer tem o domínio pleno da norma culta (não nomeados por aconselhamento jurídico). Uma análise mais profunda revelará vários nomes irrelevantes em seus quadros. Porém, conhece-se mais o caráter de uma instituição sabendo quem nela nunca esteve. Por isso, em vez de enumerar aqueles que em minha opinião lá não mereciam estar, prefiro enumerar aqueles que, na opinião da Academia, lá não mereceram figurar. E deixo ao leitor o julgamento:

  • Carlos Drummond de Andrade
  • Mário Quintana
  • Vinícius de Moraes
  • Adélia Prado
  • Rubem Braga
  • Paulo Mendes Campos
  • Mário de Andrade
  • João Simões Lopes Neto
  • Monteiro Lobato
  • Júlio César de Mello e Souza (Malba Tahan)
  • Lúcia Machado de Almeida
  • Fernando Sabino
  • Pedro Bloch
  • Murilo Rubião
  • Caio Prado Júnior
  • Gilberto Freyre
  • Florestan Fernandes
  • Maria Clara Machado
  • Oswald de Andrade
  • Bruno Tolentino
  • Cecília Meirelles
  • Henriqueta Lisboa
  • Murilo Mendes
  • Clarice Lispector
  • Graciliano Ramos
  • Lúcio Cardoso
  • Roberto Drummond
  • Pedro Nava
  • Wilson Martins

Não considero que todos eles são contestadores do sistema, mas tenho absoluta certeza de que qualquer dos citados estaria acima, literariamente falando, de um grande número de nomes que foram eleitos para a ABL. Considero, por exemplo, um acinte que a Academia não tenha nunca eleito Graciliano, um dos maiores prosadores da língua portuguesa, mas tenha aceito (sem sequer ter escrito livros) o presidente da república que o mandou prender e torturar (Getúlio Vargas, ditador fascistóide e nome de praça ou avenida em quase toda cidade do Brasil).

No Fim das Contas

Todos estes tortuosos raciocínios objetivavam concluir que, no seu todo, a Academia é uma instituição não apenas conservadora (na maior parte do tempo) mas retrógrada (algumas vezes). Que se caracteriza por manter a influência de grandes escritores depois que eles a perderam no contexto real da literatura, tornando-os guardiões de alguma coisa a que chamam de tradição literária, mas que, na maioria das vezes, confere tal posição a escritores medíocres e até a não escritores — e não por falta de opções, porque, não custa lembrar, Getúlio entrou no lugar de Graciliano, o que seria mais ou menos como indenizar o perpetrador do crime e condenar a vítima.

Muitos escritores sonham com a legitimação que ela pode conferir, em parte porque ela ainda detém certo poder e prestígio, mas se tal legitimação um dia acontecer com a minha obra, terei o dissabor de passar o resto de meus dias meditando se, de fato, a obra que sonhei fazer contestadora se revelou reacionária ou se, em algum momento, transitei da esquerda para a direita sem perceber.

Porque não acredito que a Academia transite na direção contrária.

1 Aprendi, a duras penas, que não se deve mencionar religião em um artigo a não ser quando religião for o tema principal deste, pois fanáticos idiotas sempre aparecem para desvirtuar a discussão com pregações ou ameaças de inferno. Mas, como esse blog é um espaço pessoal meu, reservo-me ao direito de somente aceitar comentários que se atenham ao assunto. Portanto, se você for terrivelmente ofendido por algo que eu diga, sugiro que faça um artigo em seu próprio blog (de preferência com um link para cá…) e direcione para lá toda a diatribe.

2 Ainda que com desculpas nobres, era isso, na prática, o que se fazia com quem era tachado de louco: botar a ferros e esperar que Deus matasse, de doença ou de idade.

3 Troféu “joinha” para quem perguntou “que deusa?”.

4Além da atratividade de ter um grego de plantão, que era o equivalente renascentista a ter um personal assistant.

5 Uma breve lista de nomes de academias surgidas nesta época: Academia dos Intrusos, Academia dos Vinhateiros, Academia da Virtude, Academia dos Intrépidos, Academia dos Iluminados, Academia dos Animados, Academia das Noites Vaticanas, Academia dos Ordenados, Academia dos Fantásticos, Academia dos Imóveis, Academia dos Diabos, Academia dos Aborígines, Academia dos Infecundos, Academia dos Ocultos, Academia dos Incultos e Academia dos Revoltados.

6 Se algum dia você tiver acesso a uma máquina do tempo e retornar à Europa entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século XVIII, jamais questione os artistas (e seus patrões) quanto ao que tinham como “fato”: a continuidade do renascimento. Não importava a mudança da orientação, de humanismo para misticismo, de sobriedade para ornamentação, de substância para forma, de leveza para riqueza etc. Duvidar do caráter renascentista do mais barroco dos barrocos era como não chamar de “Revolução” o nosso putsch se você voltasse a 1967 e estivesse diante de um milico.

7 Não pretendo que este breve trecho esteja correto segundo a ortografia etimológica, pré-1910, apenas escrevi desta forma para dar uma ideia geral de como teríamos que escrever se as academias nunca tivessem sido desafiadas.

8 Talvez por não conseguir nenhuma crítica favorável aos seus poemas de inspiração classicista.

9 É fato notável que todas as obras literárias relevantes produzidas no Brasil entre a virada do século e a Semana de Arte Moderna tenham sido produzidas exatamente por aqueles que o academicismo realista-parnasiano mais combatia: os simbolistas (“decadentes”, “loucos”) e os pré-modernos. Homens como Lima Barreto, Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa e Pedro Kilkerry poderiam ter dado uma contribuição muito maior à cultura nacional se não tivessem enfrentado em vida a pilha de preconceitos de classe e de cor que se somava ao preconceito linguístico e cultural da academia, que via com desconfiança sua literatura espontânea e sintonizada com o povo.

10Boa parte da culpa pelos trinta e seis anos de atraso que o Brasil levou, com grande prejuízo de nossa educação, para aderir à reforma ortográfica deve ser atribuída à forte influência da Academia, que contava com nomes como Olavo Bilac (m. 1918), Alberto de Oliveira (m. 1937), Afonso “Porque me Ufano de meu País” Celso (m. 1938), Carlos de Laet (m. 1925), Luís Murat (m. 1920), Filinto de Almeida (m. 1945), Carlos de Azeredo (m. 1963) e Clóvis Bevilacqua (m. 1944).

11Na verdade o termo “neo-parnasianismo” (que não é de uso corrente ou frequente em crítica literária) é mais usado para a segunda geração modernista, que buscou recuperar o apuro formal, ou mais propriamente usado para os autores da segunda geração realista-parnasiana (atuantes nas primeiras duas décadas do século XX), por isso aqui preferi o termo “pós-parnasianos”, no sentido dos praticantes tardios desta escola literária, numa época em que ela perdera a hegemonia. No caso destes autores, a permanência de tal influência reflete, geralmente, um atraso em relação às mudanças sociais e culturais pelas quais o Brasil passava.


25
Set 11
publicado por José Geraldo, às 20:13link do post | comentar
Apontamentos avulsos e incompletos encontrados datilografados sobre o verso de páginas contendo alguns poemas. Tanto os poemas quanto esses apontamentos haviam desaparecido de minha lembrança. A data (dos poemas) é 1994, a destes apontamentos deve ser um pouco depois (um ano, no máximo). Trata-se aqui do texto mais antigo cuja forma original não tem influência alguma de revisões posteriores. Uma verdadeira relíquia da época em que eu ainda estava aprendendo a tentar escrever. Mais do que isso, parecem ser apontamentos para um glossário que ficaria como apêndice de um romance que, sob certos aspectos, evoca muito o «Serra da Estrela». Por uma dessas estranhas coincidências que a vida tem, meu pai encontrou essas folhas soltas no meio de um monte de papel velho que ia queimar, e salvou para mim.
Benzinho
Planta rasteira cujas sementes são envoltas por uns espinhos terríveis que se curvam ao entrar na pele, tornando difícil e dolorosa a retirada. Talvez o sábio homem do campo tenha visto nesta adesão teimosa uma metáfora para o amor obstinado, que machuca a carne, é difícil de largar e deixa uma inflamação persistente depois que é arrancado.
Quinze Bandas
Em Minas Gerais as direções não coincidem com os pontos cardeais, não são as oito da rosa dos ventos: são quinze, que incluem acima, abaixo, para lá, para cá, desse lado, daquele, antes, depois etc. A semente do quinze bandas (um outro espinheiro da região) são recobertas de espinhos orientados para todos os lados (ou "bandas", como se diz por aqui).
Moça Velha
Trata-se de uma flor cujo traço peculiar é a falta de viço: as pétalas parecem um papel crepom sem brilho, áspero, o talo é grosso, mas tem uma consistência murcha e é recoberto de pelinhos. As folhas são escuras e molengonas. As flores, por sua vez, são de muitas cores possíveis: vermelhas, amarelas, alaranjadas, rosadas, violetas, brancas e acastanhadas. As pétalas são radiadas e algumas plantas têm flores com dupla camada
Coração da Índia
Não consegui apurar com certeza o motivo do nome poético dessa fruta, parecida com uma pinha. Sua polpa é delicada e doce, de cor branca semitransparente e consistência de geleia, mas o cheiro é forte e resinoso. O formato lembra vagamente um coração, mas casca é verde.
Chá da Meia Noite
Dito zombeteiro muito comum nas histórias de nossas avós, que relatavam histórias de esposas maltratadas por maridos violentos que encontraram a sua libertação fazendo-os beber o dito chá. Na língua do povo as mortes súbitas de pessoas relativamente jovens e aparentemente saudáveis eram atribuídas a feitiço, veneno ou “artes de mulher”, um termo obscuro que engloba principalmente a exaustão do parceiro no amor. Mas o chá da meia noite, por ser meio menos sacrificado, era o preferido. Muitas plantas nativas de Minas Gerais são venenosas, e algumas podem agir em doses relativamente pequenas.
Os Misteriosos Efeitos da Aparição do Diabo
Consta que o diabo era visitante regular de uma certa sede de fazenda, cujo antigo dono, sacrílego e assassino, morrera sem extrema unção. O fantasma do velho ainda se arrastava pelas ruínas da fazenda abandonada, tão apegado às suas posses que nem o diabo conseguia tirá-lo de lá e levar para o Inferno. As aparições do diabo eram saudadas por uma sucessão de eventos antinaturais: peixes que saíam da água para respirar, ratos caçando gatos, vacas montando nos bois, frutas subindo de volta para as árvores e… o mais extraordinário de todos: a troca de crias entre duas espécies inusitadas. Mesmo o fantasmas sendo invisível e o diabo não fazendo nenhuma questão de aparecer para mais ninguém, era fácil detectar a presença demoníaca pela visão de uma porca que dava de mamar a uma ninhada de pintinhos e de uma galinha que chocava uma ninhada de porquinhos. Ou vice-versa, isso depende de quem conta.

Além desses trechos, estou expandindo uma outra história contida no mesmo manuscrito, que postarei na quarta feira.


15
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 22:20link do post | comentar
Um conto pessimista escrito em 2003, em homenagem a um melhor amigo real, que não quebrou um braço, mas disse algumas das coisas que o personagem expressa.

O meu melhor amigo voltou das férias ontem com um braço quebrado.‭ ‬Ninguém ainda parece haver notado nada de estranho nisso,‭ ‬como se férias normalmente quebrassem ossos.‭ ‬Mas eu não me contenho de perguntar por que motivo alguém voltaria do litoral com um membro na tipóia.‭ ‬Nada porém que me leve a romper o silêncio que ele,‭ ‬por motivos certamente justos,‭ ‬está mantendo.

Hoje à tarde eu fui visitá-lo.‭ ‬Encontrei-o regando as flores da irmã no pequeno canteiro nos fundos de casa.‭ ‬No momento em que entrei,‭ ‬mal o reconheci:‭ ‬normalmente as pessoas voltam mesmo estranhas de suas férias,‭ ‬mas ele tinha algo mais.

‎— ‏Está difícil voltar àquela‭ ‬vida de antes,‭ ‬meu amigo.

Aproveitei a deixa e perguntei o porquê do braço.‭ ‬Ele riu pragmático e respondeu que se me contasse a verdade não teria mais nenhuma graça,‭ ‬pois havia sido algo bem comum e idiota.

— ‏Não foram as férias que me quebraram os ossos e nem é o meu braço que me dói nesse momento.

Ele me olhou com um assomo de sorriso no canto externo do olho.

— ‏Sinto-me prostituído cada vez que me sento naquela cadeira.‭ ‬E o pior é que eu não consigo me desligar da lembrança do violão.‭ ‬Trabalhar fica difícil sem sonhos para fazer a gente esquecer esta desgraça que é viver nesta merda de mundo.‭ ‬Jogar tudo para o alto e começar de novo é algo que já assusta quando se passou dos trinta anos.‭ ‬Daí para frente alguém aceita ser violado até nos últimos princípios em nome de uma falsa segurança.‭ ‬É aí que o homem descobre que deixou seus sonhos no sereno e eles foram roubados enquanto dormia.

Para quê eu tentaria convencer o meu amigo de algo que não creio eu‭? ‬Derrapando na curva dos trinta tristes anos eu olho para trás com amargura e lamento a festa a que não fui,‭ ‬os beijos que não dei,‭ ‬as oportunidades que passaram por mim sem que eu me arrojasse.‭ ‬E principalmente lamento estar vivendo na casa de minha mãe e estar vivendo neste mundo de meu Deus onde já não se faz mais música e nem amores como antigamente.

O meu amigo sabe,‭ ‬como eu,‭ ‬que é tarde para lutar pelos velhos sonhos.‭ ‬Ele já não será o astro que quis ser e eu pressinto que nunca fui ou serei o escritor que o menino do interior ambicionava ser.‭ ‬Ou simplesmente estamos convencidos dessas coisas.‭ ‬Não há um Sistema para culpar,‭ ‬não houve conspiração alguma além da própria vida contra nós…

Não vamos nascer de novo e nem vamos descobrir uma outra vida um belo dia.‭ ‬Estávamos armados de falsas ilusões que se perderam em fumaça e agora eu cultivo uma barriga iniciante enquanto me prostituo em‭ ‬ particulares.‭ ‬O meu amigo tem mais sorte:‭ ‬rega flores e se senta atrás da mesa de uma repartição pública.

Mas não nos está sendo fácil exorcizar o violão e o livro.


14
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 19:38link do post | comentar
Crônica escrita originalmente em 2005 para o primeiro site que eu criei, hoje perdido nas trevas da web.

Escrever contos é uma atividade das mais prazerosas, se bem que difícil. Para mim especialmente, escrever histórias sempre foi — mais que um mero requinte — um objetivo que eu sentia essencial, um desafio de caráter quase pessoal a que me propus desde que escrevi meu primeiro poema sobre a “Chuva” (1988, perdido).

No entanto, foram necessários muitos anos até que minhas primeiras tentativas bem-sucedidas viessem à luz. Esta demora deveu-se, em parte, à minha convicção de que escrever histórias era extremamente difícil e demandava muito tempo — coisa que absolutamente não tinha para gastar.

Meus primeiros contos só foram escritos à época da revista trem azul, em 1997, por insistência de meu parceiro na edição, Emerson Cardoso. Dos que escrevi naquela época, só sobreviveram ao meu perfeccionismo os que publiquei. Todos os demais eu desprezei ou submeti a tantas mudanças que já não posso dizer que são os mesmos que escrevi naquela época.

Aliás, é justamente essa coisa de querer estar sempre reescrevendo e melhorando cada coisa que escrevo a maior dificuldade ao meu progresso como autor de ficção: simplesmente não consigo deixar um texto na gaveta sabendo que não está bom. Acredito que minha relação com meus textos seria menos severa se eu os publicasse: a publicação precoce eliminaria não só o excessivo pudor que tenho deles como também ajudaria a libertar-me deste tormento de querer torná-los perfeitos.

Em parte esta obsessão sempre se referiu ao fato de eu ter tido a impressão de que minhas primeiras narrações dependiam profundamente do trabalho do Emerson. Acontece que, embora eu goste do que ele escreve, vejo nele um caráter antiquado e algo “palavroso”: ele não é um narrador formado, ele não tem uma técnica definida, apenas talento. Além disso, eu não tive sobre minha ficção nenhuma influência decisivamente inspiradora como aconteceu com minha poesia, que cresceu sob os auspícios de Renato Russo, Manuel Bandeira, Roger Waters e — mais tarde — Neil Peart. Influências contraditórias, que definem o meu [parco] estilo.

Foi preciso que eu lesse e evoluísse muito até que meu estilo se tornasse próprio. Mas, de certo modo, eu ainda acho que minha ficção é um tanto primitiva. Tanto no mau sentido, de sua precariedade de inspiração e de execução, como no bom, não ser mero pastiche de autores conhecidos.


18
Jul 11
publicado por José Geraldo, às 22:30link do post | comentar | ver comentários (1)

Uma semelhança entre a realidade e sonho é que as duas coisas não tem começo. Da mesma forma como não nos recordamos das primeiras cenas de um sonho, tampouco nos recordamos das primerias coisas que vimos, sentimos, cheiramos, bebemos, pensamos. Cada um de nós vive como em um interminável sonho, do qual talvez acordemos um dia bêbados do cansaço da noite. E se morrer em meu sonho, o que acontecerá comigo na invisível cama na qual, calmamente, eu repouso?

Eu não sei exatamente quem sou. Venho me tornando, esta é a verdade. A minha vida teve muitos episódios estranhos e a primeira coisa de que me lembro é um pijaminha de macia flanela, estampado com figurinhas desbotadas de animais. Estava vestido assim, calçado de um par de sandálias fortes de couro e montado em um velocípede de metal. Não lembro bem o que acontecera antes, mas sei que, por uma razão qualquer, naquele dia fresco de inverno tropical, eu saí pela estrada afora de velocípede, empregando toda a força das minhas pernas gordinhas. Tinha dois anos de vida e muita vontade de ver o mundo, ou de fugir para algum lugar além das montanhas que tapavam o horizonte, como um mar de mãos erguidas com os dedos contra o céu.

Lembro dos odores desse dia: eu cheirava fortemente a leite fresco e a estrada possuía um aroma penetrante de capim gordura. Lembro do cheiro do ar quente cortando as minhas narinas com o esforço das pedaladas. Mas não me lembro da razão pela qual saí de casa, não lembro tampouco aonde fui. Houve um tempo em que eu lembrava, mas hoje não consigo mais discernir exatamente que lembranças são de fatos realmente que aconteceram, quais de coisas que eu somente imaginei. Então esse episódio aparece cortado na minha mente, como uma figura retirada duma revisa: eu era menino e queria enfrentar a estrada e pus toda minha força nos pedais de um velocípede. Segundo a minha mãe eu cheguei à casa da vizinha, que me deu uma broa de fubá e mandou um empregado chamar meu pai para buscar-me. Pode ser verdade. Pode não ser. Eu fui muitas vezes à casa de Deuslira, não lembro da broa de fubá, não tenho motivos para duvidar de minha mãe, mas a memória é traidora em qualquer idade.

Eu estive pensando em maneiras de começar a contar a minha história, essa que todas as pessoas acham que está contada em minha ficção. Pensei durante semanas e não tinha uma maneira de começar. Ontem, então eu me dei conta da semelhança que há entre a vida e o sonho, percebi como as minhas memórias mais antigas aparecem tênues como sonhos, quase derretendo com o passar dos dias. Já tive uma lembrança muito mais rica deste antigo e enigmático dia, hoje só lembro do pijama de flanela, o velocípede, os cheiros de leite e de capim gordura. Nem sei mais da cor do velocípede. Talvez se demorasse mais quatro anos para contar isso para alguém, nem teria mais o que contar. Eu tinha pouco mais de dois anos quando saí de casa vestido apenas com um pijaminha e pedalando um velocípede de metal. Hoje para sair de casa tenho necessidade de levar tanta coisa que a força de minhas pernas parece muito menor do que a que eu tive naquele dia.


08
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 19:32link do post | comentar | ver comentários (2)

Embora o projeto da revisa «o verbo» tenha sido extinto com a minha saída da Novos Escritores do Brasil, tanto que o blogue revistaverbo.blogspot.com e até o site www.clubedaleitura.info (que vendia a revista) foram deletados, em respeito aos autores que publicaram eu decidi recolocar à disposição deles (e de quem mais se interesse), para download ou para compra em papel, a revista.

Para isso eu recorro mais uma vez à Lulu.com. Infelizmente os sites brasileiros que dizem imitar estes serviços são muito limitados. O AGBook e o Clube de Autores não permitem capas personalizadas e nem tamanho diferente de A5, por exemplo. Por esta razão, sou forçado a usar, por enquanto, este serviço nos EUA. Prometo, porém, que vou procurar me inteirar de alternativas.

Os autores publicados nela (em ordem alfabética pelo último elemento do nome artístico) são:

AutorTextoGênero
José AssumpçãoDedo LivrePoesia
Frank BacurauO Sabonete do PerdãoConto
Frank BacurauRetiradasConto
Ilka CanavarroA CarneConto
Ilka CanavarroO PasseioConto
Alexandre CosleiOs Paralelepípedos da Vila MimosaCapítulo de Romance
Neli EspanholO DisfarceConto
Edna Rubia FacundoRosas de OutubroPoesia
Sérgio FerrariDerivaPoesia
Sérgio FerrariO Último IngredienteConto
José Geraldo GouvêaAs VozesConto
José Geraldo GouvêaRuídoPoesia
José Geraldo GouvêaComo Evitar Livros RuinsCrônica
Pedro HaasNoite de SábadoPoesia
M. F. S. HollowayNão Cabe em ColunaCrônica
M. F. S. HollowayFósseis do OfícioConto
Celso JúniorEsperaConto
Celso JúniorA Mariposa CegaPoesia
Carla LeandroA EquilibristaProsa Poética
Kate ManhãesLótus PerdidoConto
Kate ManhãesChoro CambiadoPoesia
Victor NigriUm Ente EstranhoConto
Victor NigriMandamentos à Espera de Um DiaPoesia
Emiliano NunesUma Xícara de CháConto
Frodo OliveiraPorque EscrevoPoesia
Frodo OliveiraUma Linda MulherMiniconto
Emiliano NunesReminiscências e Notas do EspetáculoConto
Frodo OliveiraEm Ponto de BalaMiniconto
Larissa RedekerAbortos de Textos?Crítica
Ilza SaldanhaFalso RetratoPoesia
Ilza SaldanhaA Literatura e Suas FerramentasPoesia
Adryan SinkiMeu Primeiro e Último PoemaPoesia
Adryan SinkiOs Anjos e as Quatro Fases da LuaCapítulo de Romance
Flávio de SouzaO ReencontroConto
Jocson de SouzaHomo Sapiens TransistorConto
Luiz de SouzaO MetalúrgicoCrônica
Luiza VicentiniDiana GrafiteConto

A revista poderá ser adquirida, em arquivo digital ou impressa, através do site da Lulu.com.


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