Um curto ensaio (de apenas 13 páginas) contendo uma série de ideias absolutamente desconexas, irrelevantes e ressentidas sobre porque considero Academias em geral como uma perda de tempo. Mas se você tiver a pachorra de ler talvez descubra que concorda comigo.
Introdução
Houve uma época, há não muitos séculos, em que o termo “academia” tinha um prestígio inabalável. Era, também, um tempo no qual as pessoas se sentiam muito identificadas com a monarquia, por razões as mais diversas, principalmente religiosas.1 Eram tempos brutos, nos quais a fogueira ou os instrumentos de tortura (quando não ambos) eram o destino de pessoas que não pensavam de acordo com a regra dominante. Eram tempos nos quais uma pessoa poderia passar a vida inteira em uma prisão para doentes mentais2 apenas por ter um comportamento ligeiramente divergente. A menos, é claro, que tivesse dinheiro e títulos de nobreza, nesse caso você poderia degolar mocinhas virgens para banhar-se em sangue na busca da eterna juventude durante décadas antes de alguém se incomodar em lhe condenar a uma “prisão domiciliar”.
Não quero, com isso, sugerir que acadêmicos são sanguinários, mas que a academia é um fóssil de uma época cujo fim, iniciado penosamente com a Revolução Francesa de 1789, é um dos grandes progressos da História. Este texto pretende explicar porque eu penso assim, e convencê-lo, leitor, a pensar de forma semelhante.
Origem do Termo
Para quem não sabe — e é possível que muita gente não saiba — a palavra “academia” remonta aos antigos gregos. Deriva do nome de um dos montes de Atenas, o Akademos, que, por sua vez, tinha sido transformado em um bosque sagrado, plantado em homenagem à deusa.3 Mas esta academia original era apenas o apelativo informal para o conjunto dos filósofos que se reuniam para discutir sophia à sombra de árvores célebres. Esta academia original seria algo inócuo, quase benigno.
Ocorre que esta palavra passou à posteridade como lembrança de nomes ilustres que por lá discutiram: Sócrates, Platão e Aristóteles entre eles, gigantes que deixaram indeléveis marcas na cultura humana por milênios a seguir. Era questão de tempo que alguém, interessado em comparar-se com S.P.&A. tivesse a brilhante ideia de chamar ao seu grupo local de discussões pelo mesmo nome antigo, mesmo que não houvesse o envolvimento de nenhum bosque, nenhuma deusa e nenhuma sophia.
É sintomático que o uso do termo tenha sido reconsiderado, quase um milênio depois que o zelo cristão dispersou a academia original, por um tirano florentino, legítimo representante dos ilustres regimes renascentistas italianos que, vistos por nossos olhos democráticos, seria o equivalente a um Muammar Kadhafi, um Benito Mussolini ou um ditador de republiqueta latinoamericana: militar, cruel e obcecado pelo poder. O que diferenciava os tiranetes florentinos dos ditadores do século XX era uma preocupação com a cultura: afinal, vivia-se numa época em que ser culto era chique, ao contrário de hoje, em que uma frase como “nemli e nemlerey” se torna um meme nas redes sociais. Nada era mais chique para um tiranete renascentista do que ter seu grego domesticado ensinando filosofia para a juventude. Algo assim como os milionários chineses devem sentir com seus ingleses de estimação ensinando língua e modos ocidentais aos estudantes: os náufragos de uma grande civilização decaída servindo de semente para a grande civilização nascente, ainda chamada de bárbara.
Academias e Absolutismo
Se a motivação original dos tiranetes florentinos ao criar “academias” fora dar um lustro de cultura nas suas armaduras sujas do sangue dos cidadãos,4 da vez seguinte que a ideia entrou em uso a preocupação com a cultura era menor, mas havia uma necessidade maior de definir a coisa. Muito depois que fossem esquecidas as academias renascentistas, com seus característicos nomes engraçados,5 os monarcas europeus se apropriaram da ideia. As primeira academias formais surgiram onde os monarcas asseguraram o poder absoluto ou onde os tiranetes conseguiram estabilizar-se no poder. Contrariamente às academias informais, com seus nomes tolos, estas tinham nomes pomposos e oficialescos.
Em Florença, Médici fundaram a Academia das Belas Artes de Florença, responsável, entre outras coisas, por hoje ainda chamarmos as artes visuais de “Belas Artes” e não simplesmente de “Artes Visuais”. Esta academia pretendeu (e conseguiu) substituir as inúmeras guildas de artistas e artesãos herdadas da noite dos tempos e unificar o ensino de pintura, escultura e outras artes ditas “belas”. Desta “unificação” surgiu um estilo padronizado, logo chamado de “acadêmico”, e cuja grande contribuição à história da arte pode ser medida pelo fato de ele ter surgido já no fim do Renascimento, ou de o fim do Renascimento ter já começado tão logo ele surgiu. A academia florentina teve uma acolhida tão boa (não necessariamente entre os artistas e artesãos anteriormente estabelecidos em Florença) que logo outros tiranos italianos (entre eles o Papa) trataram de criar suas academias. Pipocaram instituições semelhantes por toda a Bota: em Bolonha, em Siena, em Roma, em Nápoles. E com a difusão de tanta academia, o velho Renascimento começou a transformar-se em outra coisa, que hoje é chamada, retrospectivamente, de “barroco”.6
A Função da Academia no Contexto Absolutista
Obviamente os reis não fundavam academias apenas porque precisavam de um “ar culto”. A partir da segunda metade do século XVI a situação política já tinha mudado tanto que os reis não mais precisavam de subterfúgios. Mesmo os condottieri italianos haviam adquirido um ar de nobreza, que inicialmente não tinham, e podiam contar com legiões de imitadores e puxa-sacos. Confortavelmente sentados nos seus tronos, ao menos em comparação com a precariedade do poder de seus antecessores e antepassados, esses líderes puderam estabelecer estruturas para exercício de seu poder.
E as academias surgem nesse contexto: a função principal delas passou a ser, desde então, a de controlar a produção e a difusão do que se convencionou a chamar de “cultura”. Em suma: uma Academia é apenas um nome pomposo para os departamentos de censura dos estados absolutistas europeus. Senão, vejamos:
Uma das funções da academia era justamente a de centralizar a educação artística. A Academia de Belas Artes de Florença foi criada justamente para substituir todas as guildas de artistas e artesãos da cidade, colocando a formação dos futuros artistas integralmente sob a égide dos Médici, tiranos hereditários da cidade a ponto de se “enobrecerem”. Ein Volk, Ein Reich, Ein Akademie. Isto se consolidou com o surgimento das chamadas “Academias Nacionais”, das quais a Académie Française foi o modelo.
Outra importante função era manter a tal da “tradição”. O ensino de artes nas academias era baseado na cópia dos modelos antigos e o aluno só estava autorizado a desenhar suas próprias ideias depois de atingir certo grau de perfeccionismo na imitação dos mestres do passado, altura na qual já tinham, provavelmente, substituído suas ideias originais pelos ideais infundidos pela academia.
Por fim, uma academia também funcionava como instrumento para controlar quem estava autorizado a “fazer arte”. Sem um diploma da academia o sujeito não era considerado um artista formado e o seu trabalho ficava relegado a uma segunda categoria: ganhava menos, era menos prestigiado e não tinha nenhuma proteção se, de repente, alguém resolvesse se ofender com o conteúdo. Em Portugal, no fim do século XVIII, ser membro de uma academia, a Arcádia Lusitana, adiou consideravelmente a perseguição ao poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage, cujo sobrenome passou à História como sinônimo de palavrão.
Da conjunção destes três objetivos, resultava que a Academia desestimulava a originalidade, propiciava a estagnação e dificultava o acesso do povo em geral à arte. Ao mesmo tempo, era um instrumento eficaz de neutralização da arte como um catalisador do sentimento nacional: os governos criavam academias justamente pensando em utilizar os nomes dos grandes artistas para legitimar o regime. Com o tempo a condição de “acadêmico” passou a ser praticamente sinônima de alguém comprometido com o sistema, ou por ele cooptado.
No caso específico da literatura, a academia sempre pretendeu estabelecer um padrão linguístico de prestígio, não apenas opondo-se a inovações linguísticas mas também procurando deliberadamente arcaizar o idioma, como aconteceu com a língua portuguesa, que, sob a influência do academicismo, progressivamente adotou um sistema ortográfico etimológico que llevouse mais de dous seculos para revogarse, a pesar de toda a difficuldade que offerecia aos estudantes, com innumeras lettras dobradas, digraphos inexplicaveis, e variantes orthographicas esdrúxulas.7
O Ataque Modernista ao Academicismo
Entre nós existe um marco definido de reação ao academicismo: a Semana de Arte Moderna de 1922. Em outros países o marco é menos definitivo e a transição foi mais lenta. Para nós fica parecendo que, da noite para o dia, alguns jovens iluminados resolveram atacar o status quo, criando do nada uma nova arte, livre das amarras do famigerado academicismo. A verdade é menos romântica, os ataques vinham sendo arquitetados desde a Revolução Francesa e àquela altura, na maior parte do mundo, o quo já não tinha mais nenhum status, como diria Millôr Fernandes.
A reação ao academicismo se deu, inicialmente, pela criação de academias rivais, como a Academia Prussiana, que se impôs a tarefa de fazer a independência cultural da Prússia em relação ao Sacro Império Romano-Germânico, mas com o tempo começou-se a perceber que o ideal nacional da Academia era diligentemente contrário às culturas minoritárias, o que era particularmente grave nos estados multiculturais, como a Espanha, a Áustria-Hungria e o Reino Unido. Na Espanha, por exemplo, o academicismo redundou em obscurantismo e em fascismo, chegando alguns acadêmicos a endossarem a supressão de todas as culturas não-castelhanas do país, ainda que tivessem, como no caso do catalão e do galego, uma tradição mais antiga e venerável que a do próprio castelhano e que se reflete até mesmo na confusão entre “castelhano” (a língua do Reino de Castela) e “espanhol” (que seria a língua do reino unificado da Espanha, que incluía Castela, Aragão, Leão, Astúrias, Galícia e Navarra).
O que aconteceu, de fato, foi que, no Brasil, tal como por vezes anteriores, o ingresso na modernidade somente ocorreu depois de esgotadas todas as demais popularidades. Somente entramos no Romantismo a partir da décade de 1830, meio século depois de países como Inglaterra e Alemanha o inventarem. Somente abolimos inteiramente a escravidão em 1889, e depois de nós só faltaram os países muçulmanos (tal como nós, muito a contragosto) e as colônias europeias na África (incluindo o notável exemplo sul-africano). Da mesma forma, somente contestamos o academicismo mais de sessenta anos depois do surgimento das primeiras correntes artísticas francesas (impressionismo, pontilhismo, simbolismo).
Pior ainda: escolhemos aderir ao modernismo justamente a reboque de sua versão mais degenerada, o futurismo italiano. Ninguém estranhe haver tantos sobrenomes assim entre os modernistas de 22: Del Picchia, Malfatti, Bo Bardi etc. Não que o futurismo italiano fosse artisticamente nulo, mas nós tivéramos sessenta anos de ideais artísticos antecipadores do modernismo, tínhamos que pular no barco justamente com os futuristas, adoradores do fascismo. Faz pensar que não houve, de fato, revolução alguma em 1922 (tanto que Del Picchia acabou eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1943, enquanto outros modernistas de muito melhor quilate, mas não ligados ao futurismo ou à Semana de Arte Moderna, como Drummond e Quintana, jamais puseram os pés naquela Casa).
A Continuidade como Característica dos Movimentos Políticos e Culturais Brasileiros
Nada do que foi escrito, dito, feito, pintado ou esculpido a partir de 1922 conseguiu efetivamente mudar a relação de poder no cenário cultural brasileiro. Algumas coisas mudam apenas para que possa tudo continuar igual, como na célebre frase de Malaparte. Os modernistas fizeram e aconteceram, mas foram sendo encampados pelo academicismo à medida em que foram ficando velhinhos e os velhinhos de 1922, ofendidos então, foram morrendo.
Você pode achar que estou sendo excessivamente cruel com os modernistas de 1922 (os quais, confesso, nunca exatamente admirei, por razões que somente muito tardiamente eu consegui articular), mas pare um pouco e pense sobre o contexto em que tudo aconteceu: será mesmo que foi da noite para o dia que um grupo de intrépidos jovens paulistanos sacou do bolso a ideia mirabolante de demolir o academicismo e forjar uma arte genuinamente nacional? Dificilmente, ainda que alguns livros de História possam dizer isso. Sabemos, e sabemos muito bem, que todos os eventos históricos são produto de tensões acumuladas, de condições preexistentes, de enganos e acertos de seus atores. Imaginar que a Semana de 1922 tenha sido uma súbita ruptura é algo ingênuo demais, até para mim que sou tão ingênuo.
Uma característica da História do Brasil é que, até hoje, não houve em momento algum qualquer revolta contra o status quo que fosse ao mesmo tempo inequívoca e vencedora. As vitórias obtidas são o produto apenas de movimentos toleráveis, e estes assim se tornam pelo recuo em seus ideais, pela cooptação do status quo ou então por se tornarem “póstumos” às mudanças que deveriam causar. Vê-se isso de uma forma muito evidente na maneira como certas mudanças culturais aconteceram no país.
A independência brasileira, por exemplo, não aconteceu como consequência de nenhum dos vários processos de ruptura que foram tentados, entre os quais dois de respeitável inspiração (as Conjurações de Minas Gerais e Bahia), teve que esperar até que as elites brasileiras cooptassem o processo, mais para livrar-se do entrave de uma metrópole que se mostrara frágil demais até para extorquir os impostos da colônia.
Da mesma forma, a superação da hegemonia portuguesa na cultura só ocorreu de forma gradual. Na educação, as faculdades nacionais foram sendo criadas devagar, provavelmente para não se por a perder o prestígio dos diplomas de Coimbra ostentados pela elite brasileira. Na literatura, o modelo acadêmico herdado de Portugal (e que lá já se encontrava superado) só foi encontrar contestação a partir da década de 1830, quando um honorável político (mas sofrível poeta) chamado Domingos José Gonçalves de Magalhães8 resolveu beijar a viúva e decretar o nascimento de uma nova literatura.
A tendência nacional era a de sermos mais conservadores do que os portugueses em quase tudo. Enquanto eles já abraçavam o romantismo na década de 1820 e os ingleses e alemães já o brandiam desde antes de 1810, nós só fomos fazê-lo a partir de 1836. Enquanto os portugueses já superavam a hedionda ortografia etimológica em 1910, nós ainda nos mantivemos aferrados a ela até 1946. É verdade que a República Portuguesa se inspirou grandemente na brasileira, inclusive na escolha da efígie que a representou na moeda e nos selos, e que nada mais era que a mesma Marianne dos franceses. Porém, quando no Brasil um homem como Olavo Bilac ainda detinha notável influência e o realismo-parnasianismo tinha força suficiente para sufocar todo um movimento literário renovador (o simbolismo), fazendo-o dissover-se numa mistura acéfala de estilos, transicional entre o antigo e o novo, e que entre nós foi chamada de “pré-modernismo” (fenômeno único na literatura mundial), enquanto isso Portugal já estava nas “dores do parto” da modernidade e a década de 1910 já via surgir as primeiras revistas modernistas.
A Semana de 1922 como um Movimento Reacionário de Direita
O que estou querendo dizer aqui é que 1922 não foi ruptura alguma: o parnasianismo caiu de podre, tanto quanto o classicismo caíra em 1836. Nada tendo de relevante a acrescentar,9 o parnasianismo se contentava em sufocar o que poderia surgir como novidade, tornando-se uma influência nefasta sobre nossa cultura.10 Sobre os ombros de seus próceres, inclusive Olavo Bilac, repousa responsabilidade indireta pelas mortes prematuras de Augusto dos Anjos (“não se perde grande coisa”, disse Bilac celebremente) e Lima Barreto (acometido de depressão no fim da vida), por exemplo, e pelas dificuldades enfrentadas por Monteiro Lobato, até ser vingado pelos modernistas, a quem ele, de forma paradoxal, tanto criticou. Desta forma, quando a Semana de 1922 aconteceu, dificilmente uma pessoa não comprometida com o status quo cultural poderia ver nela uma ruptura súbita. Vozes se antecipavam a essa ruptura desde pelo menos 1909, mas eram caladas pela atuação e pelo prestígio de cadáveres literários insepultos, como Raimundo Correia e Olavo Bilac. Em 1922 estas vozes encontraram patrocínio entre as elites paulistas, que tinham suas razões (até políticas) para se insurgirem contra o Rio de Janeiro, sua Academia e sua pretensão de hegemonia.
A Semana de 1922 aconteceu com pelo menos sessenta de atraso, se você quiser que ela tenha sido revolucionária. Aconteceu com pelo menos dez anos de atraso, se você quiser que ela tenha sido contemporânea aos fatos relevantes da literatura internacional. Mas aconteceu bem a tempo de aderir justamente ao futurismo, a forma radical e extremista de estética literária, originária da Itália, principalmente, que ansiava e celebrava o Fascismo. A Semana aconteceu no mesmo ano da Marcha Sobre Roma (ainda que sete meses antes), sintonizando-se com o momento em que Mussolini, já então político relevante e carismático, conseguiu acumular influência suficiente para chegar ao poder. E entre os grandes nomes de 1922 você não deixará de encontrar vários sobrenomes italianos, como os de Menotti del Picchia, Anita Malfatti, Victor Brecheret e Di Cavalcanti. É verdade que já havia alguns movimentos e eventos não acadêmicos desde 1916, e Manuel Bandeira já estreara o verso livre em 1919, no seu Carnaval, mas nada disso era motivo de escândalo: mais uma vez a mudança se fazia gradualmente, e com atraso. A Semana pretendeu romper, chutar o balde, abrir uma clareira na mata fechada do obscurantismo. Mas conseguiu?
Em primeiro lugar precisamos pensar em quem estava nessa vanguarda, inspirada grandemente em futurismo. Alguns dos mais significativos nomes de nossa literatura modernista notavelmente não estavam, ainda que apenas por causa de sua tuberculose. Mas Graça Aranha lá estava. Monteiro Lobato, uma das personalidades mais importantes da cultura brasileira pós-parnasiana não aderiu, mas o acadêmico Graça Aranha estava lá. Sem a bênção de um acadêmico, e as portas franqueadas do Theatro Municipal, a Semana não teria existido, ou não teria atingido seu objetivo. Portanto, analisando o contexto, percebe-se claramente que ela foi um de artistas integrantes da elite econômica emergente, de um estado economicamente emergente (que pretendia tomar do Rio a hegemonia cultural) e não necessariamente à revelia da Academia, embora tenha havido alguma animosidade entre os mais radicais de ambas as partes e certas mudanças (como a da orthographia) tivessem de esperar até morrer a maior parte dos fundadores da ABL (o mais resistente deles durou até 1963).
A Academia Como Instrumento Político da Direita
A Semana de 1922 ficou longe de ser a lápide da influência classicista no Brasil, em parte graças à inacreditável sobrevivência do academicismo no imaginário popular, através de um “pós-parnasianismo”11 encontrado na produção de poetas populares, muitos de orientação mística-católica. Mas marcou definitivamente o início de uma “troca de guarda” na literatura nacional, concluída por dois fatos relevantes: a eleição de Getúlio Vargas em 1941, marcando definitivamente a politização fascista da Casa, e a adoção da Reforma Ortográfica, sacramentada pelo modestamente intitulado “Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa”, através do qual a Academia, já então abrigando nomes notáveis do Modernismo, como Menotti del Picchia e Manuel Bandeira, consolidou sua ascendência sobre a língua nacional.
E assim, “nas calhas de roda”, seguiu girando, “a entreter a razão”, essa estrutura conservadora (por princípio e por definição), que se pinta, qual camaleão, com as cores sucessivas do progresso, de forma a sobreviver, mantendo-se relevante. Eleger membro o próprio presidente da República foi uma jogada de mestre, que infelizmente se revelou temerária com a redemocratização. Mas não faltaram nas décadas seguintes provas de fidelidade da Academia aos seus objetivos originais e aos seus verdadeiros patrões: os donos do poder.
Esta é a única conclusão a que se pode chegar, quando analisamos que vários políticos da direita. Como o próprio Vargas, e posteriormente Aurélio de Lyra Tavares (quão conveniente eleger um general de exército recém-saído da Junta Militar!). Como José Sarney e Marco Maciel. Mas não procure nela qualquer nome que em qualquer momento tenha sido de esquerda, flertado com movimentos populares ou mesmo simplesmente se oposto de alguma forma (qualquer forma) ao status quo.
A Academia tem entre seus princípios abrigar apenas escritores:
O estatuto da Academia Brasileira de Letras estabelece que para alguém candidatar-se é preciso ser brasileiro nato e ter publicado, em qualquer gênero da literatura, obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livros de valor literário.
Mas isto não impede que ela tenha tido ou tenha em seus quadros um cineasta que jamais escreveu um livro (Nélson Pereira dos Santos), um político que somente escreveu discursos (Marco Maciel), um político autor de obras universalmente tidas como horríveis (José Sarney), um cirurgião plástico que somente publicou obras de cunho técnico (Ivo Pitanguy), um ditador fascistóide que não escrevia livros (Getúlio Vargas), um jornalista que somente escreveu sozinho um livro e um prestidigitador literário que sequer tem o domínio pleno da norma culta (não nomeados por aconselhamento jurídico). Uma análise mais profunda revelará vários nomes irrelevantes em seus quadros. Porém, conhece-se mais o caráter de uma instituição sabendo quem nela nunca esteve. Por isso, em vez de enumerar aqueles que em minha opinião lá não mereciam estar, prefiro enumerar aqueles que, na opinião da Academia, lá não mereceram figurar. E deixo ao leitor o julgamento:
- Carlos Drummond de Andrade
- Mário Quintana
- Vinícius de Moraes
- Adélia Prado
- Rubem Braga
- Paulo Mendes Campos
- Mário de Andrade
- João Simões Lopes Neto
- Monteiro Lobato
- Júlio César de Mello e Souza (Malba Tahan)
- Lúcia Machado de Almeida
- Fernando Sabino
- Pedro Bloch
- Murilo Rubião
- Caio Prado Júnior
- Gilberto Freyre
- Florestan Fernandes
- Maria Clara Machado
- Oswald de Andrade
- Bruno Tolentino
- Cecília Meirelles
- Henriqueta Lisboa
- Murilo Mendes
- Clarice Lispector
- Graciliano Ramos
- Lúcio Cardoso
- Roberto Drummond
- Pedro Nava
- Wilson Martins
Não considero que todos eles são contestadores do sistema, mas tenho absoluta certeza de que qualquer dos citados estaria acima, literariamente falando, de um grande número de nomes que foram eleitos para a ABL. Considero, por exemplo, um acinte que a Academia não tenha nunca eleito Graciliano, um dos maiores prosadores da língua portuguesa, mas tenha aceito (sem sequer ter escrito livros) o presidente da república que o mandou prender e torturar (Getúlio Vargas, ditador fascistóide e nome de praça ou avenida em quase toda cidade do Brasil).
No Fim das Contas
Todos estes tortuosos raciocínios objetivavam concluir que, no seu todo, a Academia é uma instituição não apenas conservadora (na maior parte do tempo) mas retrógrada (algumas vezes). Que se caracteriza por manter a influência de grandes escritores depois que eles a perderam no contexto real da literatura, tornando-os guardiões de alguma coisa a que chamam de tradição literária, mas que, na maioria das vezes, confere tal posição a escritores medíocres e até a não escritores — e não por falta de opções, porque, não custa lembrar, Getúlio entrou no lugar de Graciliano, o que seria mais ou menos como indenizar o perpetrador do crime e condenar a vítima.
Muitos escritores sonham com a legitimação que ela pode conferir, em parte porque ela ainda detém certo poder e prestígio, mas se tal legitimação um dia acontecer com a minha obra, terei o dissabor de passar o resto de meus dias meditando se, de fato, a obra que sonhei fazer contestadora se revelou reacionária ou se, em algum momento, transitei da esquerda para a direita sem perceber.
Porque não acredito que a Academia transite na direção contrária.
1 Aprendi, a duras penas, que não se deve mencionar religião em um artigo a não ser quando religião for o tema principal deste, pois fanáticos idiotas sempre aparecem para desvirtuar a discussão com pregações ou ameaças de inferno. Mas, como esse blog é um espaço pessoal meu, reservo-me ao direito de somente aceitar comentários que se atenham ao assunto. Portanto, se você for terrivelmente ofendido por algo que eu diga, sugiro que faça um artigo em seu próprio blog (de preferência com um link para cá…) e direcione para lá toda a diatribe.
2 Ainda que com desculpas nobres, era isso, na prática, o que se fazia com quem era tachado de louco: botar a ferros e esperar que Deus matasse, de doença ou de idade.
3 Troféu “joinha” para quem perguntou “que deusa?”.
4Além da atratividade de ter um grego de plantão, que era o equivalente renascentista a ter um personal assistant.
5 Uma breve lista de nomes de academias surgidas nesta época: Academia dos Intrusos, Academia dos Vinhateiros, Academia da Virtude, Academia dos Intrépidos, Academia dos Iluminados, Academia dos Animados, Academia das Noites Vaticanas, Academia dos Ordenados, Academia dos Fantásticos, Academia dos Imóveis, Academia dos Diabos, Academia dos Aborígines, Academia dos Infecundos, Academia dos Ocultos, Academia dos Incultos e Academia dos Revoltados.
6 Se algum dia você tiver acesso a uma máquina do tempo e retornar à Europa entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século XVIII, jamais questione os artistas (e seus patrões) quanto ao que tinham como “fato”: a continuidade do renascimento. Não importava a mudança da orientação, de humanismo para misticismo, de sobriedade para ornamentação, de substância para forma, de leveza para riqueza etc. Duvidar do caráter renascentista do mais barroco dos barrocos era como não chamar de “Revolução” o nosso putsch se você voltasse a 1967 e estivesse diante de um milico.
7 Não pretendo que este breve trecho esteja correto segundo a ortografia etimológica, pré-1910, apenas escrevi desta forma para dar uma ideia geral de como teríamos que escrever se as academias nunca tivessem sido desafiadas.
8 Talvez por não conseguir nenhuma crítica favorável aos seus poemas de inspiração classicista.
9 É fato notável que todas as obras literárias relevantes produzidas no Brasil entre a virada do século e a Semana de Arte Moderna tenham sido produzidas exatamente por aqueles que o academicismo realista-parnasiano mais combatia: os simbolistas (“decadentes”, “loucos”) e os pré-modernos. Homens como Lima Barreto, Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa e Pedro Kilkerry poderiam ter dado uma contribuição muito maior à cultura nacional se não tivessem enfrentado em vida a pilha de preconceitos de classe e de cor que se somava ao preconceito linguístico e cultural da academia, que via com desconfiança sua literatura espontânea e sintonizada com o povo.
10Boa parte da culpa pelos trinta e seis anos de atraso que o Brasil levou, com grande prejuízo de nossa educação, para aderir à reforma ortográfica deve ser atribuída à forte influência da Academia, que contava com nomes como Olavo Bilac (m. 1918), Alberto de Oliveira (m. 1937), Afonso “Porque me Ufano de meu País” Celso (m. 1938), Carlos de Laet (m. 1925), Luís Murat (m. 1920), Filinto de Almeida (m. 1945), Carlos de Azeredo (m. 1963) e Clóvis Bevilacqua (m. 1944).
11Na verdade o termo “neo-parnasianismo” (que não é de uso corrente ou frequente em crítica literária) é mais usado para a segunda geração modernista, que buscou recuperar o apuro formal, ou mais propriamente usado para os autores da segunda geração realista-parnasiana (atuantes nas primeiras duas décadas do século XX), por isso aqui preferi o termo “pós-parnasianos”, no sentido dos praticantes tardios desta escola literária, numa época em que ela perdera a hegemonia. No caso destes autores, a permanência de tal influência reflete, geralmente, um atraso em relação às mudanças sociais e culturais pelas quais o Brasil passava.