Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Out 11
publicado por José Geraldo, às 22:28link do post | comentar

Há anos um parágrafo escrito por Howard Phillips Lovecraft não me sai da cabeça. Já o devo ter traduzido uma dezena de vezes, para postar em duas ou três dezenas de lugares. Aqui vai a décima primeira tradução, como introito deste artigo que, mais uma vez, me alijará de alguns amigos e leitores:

A coisa mais misericordiosa no mundo, creio, é a incapacidade da mente humana para interligar todos os seus conhecimentos. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio aos mares negros do infinito, e não fomos feitos para ir muito longe. As ciências, cada qual puxando em uma direção, até agora nos causaram pouco mal, mas um dia a montagem de todo o conhecimento desconexo abrirá tais terríveis visões da realidade, e de nossa precária posição nela, que enlouqueceremos com a revelação ou fugiremos da luz fatal, para a segurança e a paz de uma nova idade das trevas.

Lovecraft escreveu no entre-guerras, uma época em que o mundo estava muito pessimista — e com plena razão: treze anos após terem sido escritas estas palavras o mundo mergulhou na pior guerra de todos os tempos, uma que, em seus efeitos de longo prazo, praticamente destruiu a civilização ocidental. Por paradoxal que isso possa parecer, a orgia de massacres e destruição da Pior de Todas as Guerras deu ao mundo um otimismo tal como nunca se vira, e a humanidade embarcou num sonho de grandeza extraordinário: sonhamos em conquistar as estrelas, colonizar sistemas solares, ser mestres de galáxias. Lênin não dizia que o capitalismo, se pudesse, anexaria os planetas? Pois bem, a utopia do século XX sonhava exatamente com isso.

Mas as palavras de Lovecraft, mesmo esquecidas de quase todos, continuavam profeticamente denunciando a vaidade de nossos sonhos. E cada nova descoberta da ciência foi pondo uma pá de cal a mais na cova da utopia. Sonhamos, sim, com as estrelas, mas elas estão distantes de nossas mãos, somos crianças brincando numa poça, sonhando agarrar as estrelas que se refletem na água. Sonhamos com uma maravilhosa máquina prateada que nos eleve e nos leve além de nossos horizontes cinzentos, tal como na canção do Hawkwind:

Acabei de passear em uma Máquina Pratada / e ainda estou me sentindo tonto. / Você gostaria de também ver-se transportado / ao outro lado do céu? / Eu tenho uma Máquina Prateada / que voa diagonalmente no tempo. / É um aparelho eletrizante / vindo exatamente de meu signo do zodíaco. / Tenho uma Máquina Prateada / Tenho uma Máquina Prateada

Que tal canção tenha feito grande sucesso nos anos setenta não é nenhum espanto: era o auge do delírio espacial do homem.

Se todos nós pudéssemos ajuntar os cacos partidos do conhecimento humano, já teríamos visto a enormidade do desafio: a extensão do cosmos vai muito além do que o intelecto medíocre pode conceber, mas no jargão dos fãs de ficção científica fala-se em anos luz como se fossem «quilômetros espaciais». De certa forma, são, mas nós somos para tal quilômetro fantástico menos do que formigas na estrada. Estrelas comparáveis ao sol existem nas nossas proximidades, a meros anos luz. Elas parecem, no entanto, minúsculas e frias porque meros anos luz transformam o Sol em uma estrela a mais. A maioria das «estrelas» que vemos no céu são super gigantes, agrupamentos de estrelas ou até galáxias distantes. Como pudemos sonhar romper estas distâncias que transformam sóis em velas? Somente com ingenuidade, e ignorância.

Mas a orgia de tal sonho teve um fim: o mundo de hoje não consegue mais reunir tantos excedentes e obter verbas em escalas suficientes para desenvolver projetos semelhantes ao que levou o homem à Lua. Com a tecnologia que temos, a repetição do feito seria quase trivial: os computadores de bordo das naves Apollo não tinham a capacidade de uma calculadora científica de hoje. Ir à Lua seria fácil, mas ainda não temos nada de útil para fazer lá. Então o projeto espacial se torna obsoleto, desnecessário. As distâncias são muito grandes, o espaço é muito frio. Nós fomos lá fora, vimos os mares negros do infinito e estamos presos na praia. São vários os fatores que nos limitam: nossas almas, nossos corpos, nossa tecnologia, nossa finitude.

As leis da física estão contra nós: basta fazer uma conta simples, como a que fez Poul Anderson, em seu romance «Tau Zero». Mesmo sem a resistência oferecida pelo ar, mesmo ainda beneficiados pela inércia, no espaço nós precisamos de quantidades imensas de energia para empurrar nossas naves meteóricas. Cada aceleração adicional exige mais energia, uma dose de energia que cresce exponencialmente a cada acréscimo aritmético da velocidade. A energia necessária para acelerar da metade a dois terços da velocidade da luz é maior do que toda a energia necessária para chegar à primeira. E uma vez tendo chegado a 90% (algo que ninguém mais crê ser possível) qualquer aceleração adicional já exigiria uma quantidade praticamente infinita de energia. Mais do que isso, devido à relatividade do espaço-tempo, uma nave tal, supondo que seja possível a um objeto físico real acelerar a tanto, estaria de tal forma afetada pela velocidade que no espaço de uns poucos anos para seus tripulantes transcorreria um tempo maior que a atual idade do universo. Nossas almas ficariam para trás, ainda que nossos frágeis corpos resistissem a tudo isso.

E falando de frágeis corpos, não cessam de acumular dados sobre os efeitos negativos da permanência no espaço. Passada a fase romântica em que era interessante usar toneladas de explosivos para atirar fora da atmosfera frágeis bolhas de metal e vidro levando corajosos (ou loucos?) indivíduos que sonhavam com a posteridade, hoje não parece haver muito sentido em expor corpos humanos às condições da órbita: os ossos se fragilizam, os músculos definham, o labirinto se atrofia, o sangue fica estranho. Não faz um ano descobriu-se que os astronautas que permanecem no espaço mais do que alguns dias retornam com a visão afetada também. Quanto resistiria o frágil corpo humano em uma viagem realmente dura, de anos ou décadas pelo espaço vazio, rumo ao nada? Chegaríamos sem ossos, sem músculos, cegos, desequilibrados. Cegos e desequilibrados talvez já estejamos.

Existem tecnologias teóricas que poderiam vencer tais obstáculos. Fala-se em hiperespaço, buracos de minhoca, gravidade artificial. Fala-se de tais coisas tal como na idade média se falava em carruagens mágicas, feitiços do tempo, pedra filosofal, panaceia universal. Tal como naquela época, falamos destas coisas sem ter a mínima ideia de como poderiam ser obtidas. Sob certo aspecto, o romance medieval de cavalaria mencionando o bálsamo cura tudo e o fogo grego é uma obra de ficção científica tão legítima quanto uma moderna, que fale sobre viagens por buracos de minhoca, em naves maravilhosas, rumo a planetas desconhecidos. A vassoura mágica de uma feiticeira em seu sabá é tão científica quanto o disco voador do alienígena (bom ou mau) que aparece do nada, para punir ou pregar. Cada idade tem seus demônios e seus deuses, e como disse Clarke, tecnologia suficientemente mais avançada não se distingue de mágica.

Sim, meus amigos. Lovecraft tinha razão. Não fomos feitos para ir muito longe. Sonhamos apenas com isso, e nossos sonhos hoje não são mais com anjos que nos levem para ouvir a música das esferas, mas com inventos fantásticos que nos levem desse mundo cada vez mais vazio. Mas não adianta sair: este é, ainda, o único mundo que nós temos.


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Out 11
publicado por José Geraldo, às 14:10link do post | comentar
Este texto continua a história iniciada em janeiro, aqui.

A reunião dos tripulantes durou preciosas horas, durante as quais Kenji permaneceu mais alerta às vaguidões do espaço — com seus perigos e desejos — do que aos sons contraditórios emitidos pelos aparelhos fonadores de tantos humanos confusos. Ouvir aquela algaravia não trazia-lhe nenhuma informação definida, diferentemente do vácuo, onde podia ver a dança dos planetas daquele sistema tão calmo, tão semelhante e ao mesmo tempo tão diferente em relação a um distante outro, que somente subsistia nos registros mais antigos de sua memória de autômato.

Enquanto seus sensores mais numerosos capturavam a dança dos astros, alguns percorriam, porém, os fios e dobras dos corredores construídos para as necessidades tão orgânicas dos seres vivos que funcionavam naquela nave. Notou então que, embora ele mesmo e alguns outros da manutenção estivessem livremente investigando, Andréa estava, com todos de sua classe, devidamente contida em um compartimento estanque. Mesmo toda a ferocidade da chave de segurança não lhe impediu de ter consciência disso. Estava presa.

Talvez os humanos não desejassem que os cibernéticos compartilhassem de decisões que certamente seriam tomadas. Todos eles, pensou Kenji, num esforço para subjugar a chave de segurança que tentava confundir seus processos, falham em perceber que alguns humanos já se tornaram meio autômatos, tanto quanto alguns autômatos já se aproximaram da humanidade. Com tanto tecido orgânico aplicado à máquina, com tanta parte mecânica implantada nos corpos.

A reunião terminou fatalmente. Tinha de terminar em algum momento. Elegeram um novo capitão. Embora a Tenente Xu tivesse tomado todas as iniciativas, havia alguma coisa a respeito dela que não inspirava confiança na maioria dos humanos presentes na nave, talvez a cor do cabelo ou o formato dos olhos ou o modo como articulava os fonemas. O novo capitão se chamava Brown e tinha os dentes amarelos e os olhos imersos em profundos círculos roxos. Era velho e triste, curvado pelo peso do dever durante as décadas em que se revezara no serviço desperto. Kenji sabia muito bem que era uma honra merecida. Brown tinha sacrificado a própria juventude, o próprio futuro reprodutivo e a possibilidade de colonizar o novo planeta — tudo isso pelo dever de vigiar a nave enquanto a maioria dormitava nos casulos. Mas apesar disso, estava antigo demais. Muitos achavam que Brown que ele não estava mais em condições de exercer o novo dever. Mesmo um autômato compreendia o conceito: sabia que entre os humanos não basta dar manutenção, pois algumas peças não são substituíveis. Mas Kenji também sabia que não tinha sido somente por uma questão de honra que a jovem Xu fora preterida. 

A Tenente Xu deixou a sala de reuniões e dirigiu-se a um dos cubículos reservados para habitação do oficialato desperto. Ali trancou-se, mas o autômato a pôde ver através dos monitores infravermelhos. Viu-a esmurrar a parede, ouviu as vibrações de sua voz durante vários minutos. Então ela tomou um banho, vestiu outro uniforme, limpo, do qual arrancou cuidadosamente sua insígnia, e dirigiu-se a algum lugar dentro da parte inferior da nave, na região onde trabalhavam os responsáveis pela manutenção.

Brown, enquanto isso, cercou-se de um grupo de influentes oficiais, recém-saídos de seus casulos de hibernação, e passou a deliberar o que fazer. Era preciso, inicialmente, que o propósito da missão não fosse perdido nunca de vista — mesmo porque não havia outro possível. Enquanto Kenji distraidamente calculava as órbitas dos astros, uma grave decisão foi finalmente tomada: iniciar a exploração do planeta e tentar manter os aspectos controversos disso ao alcance do menor número possível de pessoas. Era perfeitamente racional: hibernar de novo quantos fosse possível, assim economizar alimento. Menos pessoas despertas também significavam menos opiniões, menos discussões. E enquanto isso, quanto mais soubessem do planeta, melhor. Certas pessoas realmente não precisam saber de certas coisas. É perfeitamente racional.

Kenji sabia, e os humanos mais esclarecidos também, que não havia condições de segurança para simplesmente enviar uma nave de transporte. As nuvens que recobriam aquele planeta podiam ocultar mais perigos do que simplesmente radiação. Embora histórias de animais transformados em monstros pela radioatividade fossem tolices infantis, havia uma real possibilidade de vírus e bactérias não esterilizados na guerra nuclear. Estes minúsculos monstros seriam mais terríveis do que toupeiras carnívoras gigantes, ou que estranhas “colmeias” de baratas assassinas. Por tudo isso, ainda que a Chave de Segurança cortasse entre seus pensamentos como uma navalha, atrasando o processamento de suas conclusões, Kenji equacionou que deveriam enviar algum autômato, acompanhado de um dos cibernéticos. Era uma escolha natural: a parte orgânica deles reagiria ao meio ambiente tal como o corpo de um humano o faria, desta forma se poderia avaliar a possibilidade de sobrevivência no planeta cemitério que orbitavam.

Tenente Xu teria gostado de saber, se ainda estivesse pensando em decisões de comando, que Andréa se viu forçada a entrar no habitáculo do transporte, quase querendo oferecer resistência, como se fosse humana e tivesse livre arbítrio. Àquela altura a Chave de Segurança não conseguia mais subjugar, com suas ondas de dor artificial, a fervilhante computação que se processava em seus múltiplos circuitos, distribuídos pelos diversos gânglios de silício que conjugavam sua personalidade metálica, e Kenji compreendeu o sentido da ironia, de uma forma quase cruel.

Uma convocação eletrônica interrompeu seu escrutínio das órbitas: queriam-no no transporte também. A Chave de Segurança conseguiu confundi-lo novamente, e ele obedeceu, claudicante. Quando conseguiu acostumar-se ao nível 42, já estava próximo ao “bote” e qualquer reação teria despertado profunda apreensão nos humanos. De qualquer forma, ele não teria precisado da ação dos dispositivos de obediência: ele queria ir. Alguma coisa, que em nós poderia ser chamada de curiosidade, o impelia. E os robôs, inconscientes do significado da morte ou da dor, não a têm temperada por nenhum desses receios.

O transporte era não retornável. Os que haviam planejado a missão da “Epifania” não supunham que fosse jamais necessário “voltar”. Mesmo porque, Kenji sabia, não haveria para onde. O autômato aproximou-se dele, lentamente, analisando-o com atenção meticulosa. Sempre soubera da existência de tais botes, mas nunca se aproximara de nenhum: afinal, era um piloto, e não um reles faxineiro, para ficar perambulando por cada rego e desvão da imensa espaçonave. Tendo completado sua avaliação do bote, soube por onde entrar e como instalar-se em segurança. Conectou suas interfaces, sentiu o pulsar da fraca energia que a nave emprestava àquele precário transporte, fez o equivalente ao gesto humano de engolir em seco e entrou em modo de espera.

O transporte foi empurrado até uma das docas de saída. Enquanto as escotilhas eram preparadas, Kenji contemplou Andréa, que parecia desligada, tal como os humanos ocasionalmente ficam, mesmo quando fora de seus casulos. Algumas marcas na sua pele normalmente imaculada sugeriam algum acidente em que estivera recentemente envolvida. Mas os processos de cura eram rápidos e Chave de Segurança conseguia impedir que Kenji refletisse sobre quaisquer implicações.

A escotilha abriu e o transporte foi ejetado pelo espaço. Tão logo cruzou o limiar do casco, recebeu o jato potente do vento solar daquele astro ainda tão jovem. Os painéis coletaram essa energia e a armazenaram em suas baterias. Alguns motores quânticos foram acionados, em jorros breves, que corrigiam o curso e aproveitavam a inércia. E lá ia o transporte, num movimento quase inaparente, uma lentidão fantasmagórica sobre a densa camada de nuvens branco-acinzentadas. As interfaces pululavam com dados, mas a precariedade do processamento nativo impedia que eles chegassem até Kenji de uma forma coordenada. Em vez disso, as informações eram repassadas para seus poderosos cérebros, que as processavam rapidamente, ocupando totalmente sua atenção com tentativas de entender o que havia. Nesses momentos em que o êxtase da informação o levava a tal orgasmo eletrônico, ele não conseguiria ter noção de mais coisa alguma, mesmo uma que gritasse e esmurrasse no compartimento traseiro.

Romperam o teto de nuvens já com a fuselagem rubra do atrito de reentrada. Mas Kenji usou habilidosamente os motores para corrigir o curso e aliviar a queima. O transporte acionou várias vezes os retrofoguetes, manobrou pesadamente na escuridão do lado noturno do planeta, pairou paquidermicamente e, por fim, deixou-se pousar como um elefante sem asas em um platô qualquer, escolhido por Kenji a partir do processamento da floresta de dados confusos que pudera ler.

Os procedimentos de saída começaram, bem devagar. O rádio foi aberto, mas não houve nenhum sinal além da estática. Microfones exteriores só capturaram o uivo dos ventos. A cúpula de proteção do piloto destravou, deixando entrar o ar denso e frio do planeta. Para os autômatos puros, como Kenji, “frio” não era um dado significativo, a menos que interferisse no funcionamento dos sistemas. E duzentos e sessenta graus Kelvin não chegavam a tanto. Tratou de desconectar-se da quase inútil carcaça do transporte e, pela primeira vez em centenas de anos de existência, tocou com suas patas metálicas um “chão” que não era também feito de metal, experimentando uma gravidade que não era artificial e respirando uma atmosfera que não era sintética.

Andréa saiu de seu habitáculo tremendo curiosamente, envolta em tecidos pesados, que dificultavam os seus movimentos. Era realmente uma coisa frágil, pensou Kenji: com somente dois membros preênseis e tão pouca resistência ao ambiente. Mas os humanos sabiam bem porque precisavam de bonecas de carne como aquelas, e diante das circunstâncias da chegada, até que ela finalmente se revelava útil.

A atmosfera parecia opaca e anormalmente úmida, mas o isolamento dos mecanismos de Kenji era duplo e estava intacto. O autômato tateou receosamente por aquele ar leitoso e calmo, sentindo a excitação da novidade. A Chave de Segurança se transformara apenas nisso, no receio do novo, do diferente, do perigoso. Não se importava com Andréa, ela que ficasse no transporte se quisesse. Mas ele logo esfriaria e começaria a decompor-se, sem o auxílio precioso dos microrreparadores. Se havia alguma esperança para um ser tão estúpido, teria de ser ao lado da presença protetora dele, que já se sentia tão adaptado.

O transporte tinha pousado sobre uma espécie de platô não muito alto, coberto de neve muito rala e poeira muito fina. Estava ainda escuro, mas de um dos lados o céu se tingia de tons múltiplos de vermelho, roxo, violeta e amarelo. Um difuso globo tentava aparecer entre os braços agitados das nuvens. Aquele sol alienígena pareceria um comprimido efervescente no fundo de um copo de água — se Kenji jamais tivesse visto tal cena. Não havia vegetação à vista, somente raros galhos secos. Revistando os dados que tinha em registro, o autômato considerou que tal lugar havia sido justamente escolhido por ser deserto. Pousara deliberadamente em um lugar desabitado. Na possibilidade de ainda haver vida em tal planeta, a intenção fora de evitar qualquer interação prematura, qualquer contato antes de terem sido coletados conhecimentos suficientes.

Kenji vasculhava todas as baixas frequências de rádio. Povos primitivos as haviam utilizado desde muito cedo para transmitir dados. Tais frequencias teriam tido dificuldade para romper a camada de nuvens, vencer a ionosfera e chegar à “Epifania” em órbita. Teriam sido ignoradas, então. Mesmo estas, porém, mantinham o silêncio das sepulturas. Aquele planeta, se de fato possuía alguma forma de vida, estaria contemporaneamente limitado a formas pouco evoluídas tecnologicamente, ainda desconhecedoras do rádio, ou a formas tão evoluídas que haviam abandonado toda comunicação por esse meio — o que, obviamente, não fazia nenhum sentido.

Não que a atmosfera ajudasse, instável e cheia de radiação. Aquelas nuvens densas estavam pejadas de estática e tornavam faixas inteiras completamente inutilizáveis. Diante de tal quadro, se ainda existisse vida inteligente usando alta tecnologia, ela poderia comunicar-se por cabo. Não era essa, no entanto, a impressão que o autômato formava em seus circuitos: aquele planeta parecia mesmo estar, como temiam os humanos, esterilizado.


07
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 23:06link do post | comentar | ver comentários (1)

Quando ocorre uma tragédia de grandes dimensões humanas, algo infelizmente frequente, há muitos que se apressam em dizer que “este mundo está é perdido” e que nós vivemos o suposto “final dos tempos”. Quem estuda a História da humanidade a fundo sabe muito bem que jamais deixou de haver este conceito tão popular, de que o mundo “está acabando”, mas apesar de tudo o mundo segue aí, firme e forte em sua marcha rumo ao caos. Podem me acusar de insensível, mas a verdade é que quando fazemos uma análise detida da realidade, o que vemos é que o caos não é um acidente, o caos é uma característica. O mundo vai continuar, monstruoso e caótico como sempre foi.

Em um de seus discursos contra o conspirador Catilina o romano Cícero, contemporâneo ou quase do lendário Jesus Cristo, lamentou a decadência dos costumes de sua época: “Que tempos, que costumes!” — ou, como se dizia em latim: “o tempora, o mores”. Invectivas semelhantes podem ser encotradas por toda parte nas literaturas antigas: Egito, Índia, Mesopotâmia, Grécia. Não foram os gregos que imaginaram que viviam uma insossa “Idade do Ferro”, estágio final de degradação da humanidade, que já havia passado por uma Idade do Ouro, uma Idade da Prata e uma Idade do Bronze?

Mas apesar de toda a lamentação dos que contemplam as mudanças, “o novo sempre vem”, como profetizou Belchior, antes de desaparecer.

Talvez a coisa mais difícil a enfrentar nesse mundo não seja a existência propriamente dita de injustiças e violências, mas o fato de que o mundo continua depois. Como sentenciou Millôr Fernandes, em sua peça “A História é uma História”: “O crime foi espantoso, mas o morto nem liga.”

Apesar de tudo que vivemos, apesar de tudo que nos fizerm (de bom ou de mau), se amanhã estivermos mortos ou esquecidos a marcha amoral do mundo vai continuar. Com ou sem as ararinhas azuis extintas, o mundo vai continuar. A roda inexorável da História vai seguir adiante e o “fim dos tempos” é apenas um desejo que o injustiçado tem de que o seu sofrimento seja o derradeiro sofrimento, de que sua morte seja mais significativa do que todas as demais que aconteceram antes. É apenas uma forma de se sentir especial: achamos que o mundo está acabando porque achamos que sofremos mais do que sofreram nossos pais, pois antigamente “era melhor”.

Quando nascer o amanhã, haverá outras mortes, outros crimes, mais caos. O mundo continuará com as garras vermelhas de sangue, de culpados e inocentes, indistintamente. A poesia não morreu em Auschwitz, ao contrário do que disse um poeta soviético cujo nome não vou pesquisar agora na Wikipedia. Aliás, hipócrita este poeta que não via o caos doméstico, mas tinha a permissão de dramatizar as valas e os fornos alemães.

Somos assim ainda. Somos ainda cegos demais para entender que somos insignificantes, que nossa morte, nosso sofrimento, nada disso representa uma ameaça à continuidade do mundo. Muito pelo contrário: é nosso sonho louco de que possuímos alguma capacidade de afetar a continuidade do mundo que está colocando em risco a nossa própria continuidade enquanto espécie.

Não é o fim dos tempos, é apenas “o de sempre”. Violência é o mel do homem. Com ela estupramos a natureza e criamos para nós um espaço muito maior do que as nossas savanas originais. Nesse momento em que o caos nos aflige de tantos lados simultâneos, com seu ruído e sua cara feia, somos apenas codornas apertadas numa gaiola. O caos é apenas uma estratégia evolutiva: nós nos destruímos para abrir espaço porque estamos sufocados demais pela presença do outro.


31
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 12:04link do post | comentar

Cheguei de viagem cansado, ansioso por dormir. Deixei meu carro na garagem e saí pela noite anódina e sem lua. O ar estava profanado pela chuva ainda recente, exalando uma catinga de morrinha de cachorro molhado e os meus pés chapinhavam nas poças de água barrenta que salpicavam as calçadas. No céu parcialmente limpo algumas estrelas, nenhuma vencendo de todo a iluminação artificial.

Havia uma mulher sentada num banco de praça no meio do meu caminho, uma mulher vestida roupas negras e longos cabelos, com o rosto afundado entre as mãos. Estava imóvel como uma morta e meio apoiada, de um lado, sobre algo escuro e disforme. Observei que curvava a cabeça sobre os antebraços e as mãos ficavam perdidas entre as madeixas escuras, que a brisa da noite discretamente agitava.

Poderia ser uma mendiga, ou qualquer imagem sobrenatural, ou talvez apenas uma jovem drogada. Alguma coisa me fez simpatizar com sua solidão no vazio daquela madrugada perigosa. Por isso, contrariando o senso que sempre me mandava, de noite ou de madrugada, ignorar tudo que tivesse duas pernas e estivesse fora de mim, cheguei mais perto e lhe dei boa noite.

Foi como se rasgassem a mortalha de um féretro antigo. Ela ergueu o rosto pálido e macerado de lágrimas contra a luz apática das lâmpadas elétricas, mirou nos meus com uma devastadora expressão de luto em sua boca e uma potente tristeza torcendo seu cenho. Dava para ver que ela havia chorado recentemente. Não! Chorava ainda: um brilho perolado aparecia na pele ao redor dos olhos, pondo um apelo ainda mais puro aos misturados sentimentos que me acometiam. Percebi, surpreso, que seu rosto não levava maquiagem, que seus dedos não portavam aneis e que havia suspenso em seu pescoço somente um rústico pingente prateado em forma de luar.

A voz que respondeu ao cumprimento foi quase inaudível, como o sussurro de uma profecia em um sonho. Não, eu não poderia ajudar-lhe em nada. Sua expressão desolada certificou-me disso tão logo eu pensei perguntar se precisava de alguma coisa. Mas depois de refletir por um momento, talvez temendo que eu seguisse meu caminho, abordou-me com uma audácia ignorante:

— Tu me amas?

Aquelas palavras ventaram como uma vertigem em meus ouvidos. Como poderia pensar que alguém pudesse amar a quem nem sabe quem é? Disse-lhe isso: “Não a conheço”. Ela não gastou nenhum segundo antes de tentar de outra forma:

— Então me odeias?

Suas palavras saíam como se fossem antigas, com poeira de idades imemoriais, incineradas pela inclemência dos séculos. Achei graça nesse anacronismo e também joguei da mesma forma:

— Como odiaria a quem não pude ainda conhecer?

Ela deixou descer outra gota solitária de seus olhos e afirmou, como quem arranca o próprio fígado:

— Se me conheces, me odeias.

Esta afirmação de futuro usando o presente me parece fatalista além da conta. Mas eu era tolo e suficientemente ousado para uma noite só. Disse-lhe que ninguém odiaria uma mulher tão bela, não sem um motivo muito justo, não sem um ódio anterior da parte dela.

Essas palavras saíram de minha boca tão inesperadas que meus dentes se assustaram com elas e morderam minha língua. Ela então se levantou do banco da praça e disse, de uma forma infantilmente curiosa que não me odiava. Seu corpo exalava um perfume de gaveta, ou de casa abandonada, misturado talvez a ervas mortas. Mas quando ela se aproximou de mim esse cheiro de séculos e tumbas não me pareceu ruim. Era em vez disso um perfume de rosas secas, de sabonetes em gavetas.

Mas ela se movia como um fantasma, sua roupa imensamente negra revoava como as asas de uma alma penada. Havia algo muito estranho naqueles lábios roxos, uma doçura cadavérica e pecaminosa naquela palidez helênica. Ela me tocou o rosto com a mão direita, dizendo:

— Como é possível odiar a inocência? Eu não entendo! Eu apenas existo!

No fundo de minha mente alguma coisa começava a agitar-se, sinalizando às minhas pernas que corressem, enquanto outra parte de mim dizia que já era tarde para isso. Mas eu retribuí o toque, levando meus dedos à sua face. Era lisa como uma lápide de mármore, era fria como a água de um lago à noite, e era dura também, mas sua lisura era boa de tocar, meus dedos gostaram de correr por aquela pele que parecia não ter pelo nenhum. Naquele momento, vencendo meus instintos, eu a achei terrivelmente bela e quis amá-la.

— Por que está sozinha esta noite, nesta praça vazia e perigosa?

— Sozinha eu sempre estou, e certamente esta praça não me oferece nenhum perigo.

Algumas pessoas passaram pelo outro lado da praça, bêbadas, ruidosas, cantando obscenamente, uma felicidade ofensiva. Como era possível estarem felizes. Havia guerra, havia peste. Odiei aquelas pessoas. Como se tivesse lido os meus lábios imóveis, a mulher de negro me aconselhou:

— Ah, não os odeies. Eles apenas sentem a tensão dos últimos dias. Eles dançam e cantam porque em sua ignorância eles sabem que se aproxima o dia em que já não poderão. Felizes aqueles que dançam e cantam, porque os dias de cantar e dançar são muito poucos.

— Então venha beber comigo, cantar e dançar. Como todo mundo, você merece essa pouca felicidade que há.

— Então beija-me agora, se tens esta coragem.

Toquei seus lábios duros com os meus, beijamo-nos brevemente. Ela então aceitou que eu lhe tomasse a mão e a levasse da praça. Mas ao sairmos da sombra onde ela estivera, notei que trazia consigo um saco escuro e uma longa foice de lâmina curva. Naquele momento eu teria entrado em pânico, mas eu a beijara e ela era uma mulher tão linda. Então a beijei suavemente uma segunda vez, tentando envolver seu corpo magro em meus braços. Quando nossos lábios se afastaram ela quase sorriu, tentando talvez ser má, encarou-me de novo e disse:

— Eu sou a tua morte. Odeia-me agora!?

Contemplei-a novamente, ainda lutando com o medo inútil que ruflava no interior de minhas crenças e descrenças. Mas concluí que mesmo assim eu não conseguia.

— Não posso odiá-la. Como posso odiar a morte que nasci sabendo que um dia encontraria. Só não sabia que haveria de ser numa praça tão feia, na forma de uma alma tão linda. Mas não a odeio, nunca a odiei, na verdade fiz versos para ti por muitos anos.

— E não sentes medo?

— Tenho medo e desespero, mas não posso odiar a uma lei da natureza. Sobretudo não tenho ódio, tenho é pena de ti, que odeias a vida.

Ela me tomou a mão, como se uma geleira me tocasse, e disse numa voz dançante e cristalina:

— Na verdade, eis a monstruosidade de tudo, não sou eu quem odeia a vida, eu de fato a amo, talvez bem mais que vós que viveis. Eu amo a vida, esta coisa precária e bela que se destrói e se perpetua. Eu existo para destruir, destruo para existir, mas minha destruição abre caminhos, areja a existência para os que ainda vão nascer. Mas mesmo assim, mesmo sabendo que faço algo que é bom, ainda levo na alma uma culpa que não sei bem do que. E um cansaço nas mãos que já carregaram demais esta foice infernal que me deram.

— Tenho pena, então, por isso.

— Acima de tudo, estou cansada de destruir àquilo e a quem gostaria de amar.

— Mas é possível amar sem destruir? Se não ao objeto, ao amor em si?

— Não sei todas as coisas, sou apenas um anjo caído que tem uma missão.

— Tu tens a eternidade, então por que não podes ter algumas décadas?

Ela me olhou com esperança, um sentimento que talvez não tenha sido nunca pensado para os corações dos anjos. Uma esperança tão súbita que quase evaporou o resto da lágrima que ainda pendia.

— Eu pressinto verdade no que a tua boca diz. Teus olhos confessam, não posso negar.

— Então não posso dar-lhe boa noite e ir para casa, como antes. Vem comigo.

— Eu vou contigo. E vou ficar contigo até que me odeies, até que te destruas, até que a Ira dEle nos obrigue.

Seguimos para minha casa como se fôssemos qualquer casal de namorados. A morte me acompanhava, mas eu não tinha medo. Dormi um sono pesado, sofri com pesadelos e com sede. Quando amanheceu, havia um sol estranhamente silencioso atravessando a janela, uma quietude de se ouvir pássaros; mas não havia pássaros.

Preparei meu café da manhã ainda chocado pelas imagens bárbaras de um mundo que se acabava em trevas. Terminei minhas fatias com manteiga e meu café com leite vendo o relógio gotejar minutos como uma hemorragia. Então saí de casa para o trabalho.

Os meus passos ressoavam na escada como os de uma múmia num museu. Havia teias de aranha nas paredes que poderiam ser de semanas ou de meses. Havia um silêncio no ar que evocava os porões de uma pirâmide.

A rua estava deserta, cheia de árvores enferrujadas e redemoinhos de poeira que assobiavam como em antigos filmes americanos. As lojas estavam lacradas, silenciosas, como se seus donos tivessem morrido na cama, de madrugada, e nunca viessem mais para abrir suas portas corrediças. Nenhum cão percorria aquela avenida desolada, nenhum ruído ou música que evocasse vida.

Temi estar louco. Continuei pelo caminho até o meu serviço, sorvendo um ar estranhamente ácido. As vidraças de alguns estabelecimentos estavam deformadas, com marcas estranhas que pareciam mãos, mas não podiam ser. Na praça onde deixara a mulher de negro imperava a mesma mágica de amortecimento que embalara o mundo naquele sono estúpido.

Uma frase dita por detrás de minha orelha me arrepiou cada cabelo de meu corpo: “Tu me amas?” Repeti as perguntas comuns que todos os perdidos fazem nessas horas, era como se eu tivesse incorporado um roteiro de cinema de horror e todos os seus clichês. Quando voltei o rosto, ela estava lá e me olhava com aquela expressão gélida no rosto, brilhando sob o sol como uma blasfêmia.

— V-você. Eu pensei que tinha sido só um sonho.

— E me amas?

— Talvez, mas ainda tenho muito medo.

— Amor e medo se misturam bem, eu sei de prazeres que ninguém jamais lembrou nem aprendeu.

— Não gosto desses verbos, tenho muito que esquecer e muito medo de nunca aprender.

Ela se aproximou de mim, sem que seus pés sequer soassem no chão, apesar de todo o silêncio da rua inteira.

— Tu me amarias aqui, se eu tivesse a coragem de me despir?

Olhei em torno, novamente assustado. Não havia alma viva nem voz que aventasse testemunhas.

— Isso seria algo de meter mais medo ainda.

Então ela o fez, e nos amamos em pecado, ali mesmo.


22
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 10:10link do post | comentar | ver comentários (1)

À frente de Kenji está o sistema solar escolhido para segundo lar de sua raça, condenada pela lenta morte do planeta original. Kenji pilota sozinho a imensa nave de transporte, com orgulho e com senso de dever: ele controla o destino de milhares de almas. Mas Kenji não tem uma alma, é um autômato insetoide, metálico e desprovido de beleza. Foi construído para ser redundante, seguro, definitivo. E esse ser que não vive trará de volta à vida o precioso conteúdo dos frascos de suspensão, onde hibernam homens, mulheres e crianças.

A viagem de todo um povo, movida pela esperança de salvar-se da própria estupidez. “Nas crianças está a esperança” — diziam os líderes, mas na hora de partir elas não vieram sozinhas, pois os poderosos não aceitam morrer. Vinham hibernados em suas cápsulas para trazer o seu mal antigo ao novo mundo, restabelecendo estruturas que haviam causado a desgraça de uma esfera que Kenji nunca vira.

A viagem rigorosamente planejada durante séculos. Pelos que temiam a destruição que fatalmente viria. Kenji tinha todos os dados em sua mente de silício e carbono. Tinha consigo ferramentas e matéria para consertar-se e melhorar-se. Durante as décadas de duração do périplo estelar, tinha se esmerado em espandir-se, tornar-se mais perfeito, maior, mais poderoso. As crianças precisariam de sua ajuda para resistir à maldade dos homens quando chegassem.

O sistema a que chegavam era o mais promissor que o homem encontrara na busca vertiginosa por um novo lar: nove planetas, os rochosos próximos à estrela, os gasosos fora. Uma conveniente bolha de poeira estelar variada envolvendo o conjunto, até mesmo um espaço faltante referente a um planeta que nunca se formou. Praticamente um espelho do distante lar que Kenji nunca vira com olhos, apenas com dados de sensoriamento remoto e estatísticas.

O terceiro planeta, embora um pouco maior do que o necessário, e um pouco menos metálico do que o que seria apropriado, tinha uma atmosfera respirável. Infelizmente estava quase afogado em oceanos, com os blocos de terra ilhados por infinitudes de águas. Mas mesmo isso seria bom, afinal, pois na água poderia haver muita vida que se pudesse comer.

Kenji não entende muito bem o conceito de “comer”. Ele nunca foi humano e não possui parâmetros de prazer e nem de dor. Está ligado à energia da nave, o fluxo de elétrons é a coisa mais parecida com alimento que ele pode conceber, e a beleza de uma estrela, que irradia partículas que podem ser capturadas e consumidas… é a melhor semelhança de cornucópia que o robô imagina. Na mitologia dos robôs sencientes o paraíso deve ser a órbita de um sol jovem e forte, conectado a velas solares que recarregam seus duros maquinismos e que proporcionam movimento. Como insetos em volta de uma lâmpada. E Kenji, curiosamente, é um insetoide. É estranho que uma máquina apenas feita à semelhança de um ser vivo acabe por parecer-se com ela também no modo de “pensar” — se é que máquinas pensam, reflete, recursiva e filosoficamente, o calmo autômato.

A nave se aproxima preguiçosamente, os motores de empuxo reverso já estão desacelerando o imenso caixão de cerâmica e ligas leves. Enquanto contempla a beleza daquele sol laranja relativamente jovem, tão saudável em sua plenitude, Kenji se permite uma atitude ilógica: configura os sensores para trás, como quem olha no retrovisor — se jamais tivesse tido um carro. Nos dados atirados pelas interfaces vêm informações em desencontro: o sol original pode estar vivo, pode não estar, está tão longe, tão perdido entre milhares de outros. Custa a ser localizado. Kenji isola-o num tímido sinal de rádio entre outros. Ele continua cantando sua microfonia cósmica. Mas no terceiro pedregulho a partir dele já não canta mais ninguém, a não ser, talvez, degeneradas formas vivas de uma segunda gênese, estranha à herança que aquela nave leva, talvez nociva a ela.

O planeta de destino foi escolhido, por uma missão não tripulada, séculos antes de Kenji ter nascido de uma linha de montagem pilotada pelas frágeis mãos de moças bonitas e perfeccionistas. Para ele o paquiderme espacial se arrasta, segundo um programa escrito numa linguagem de máquina que nem Kenji chegou a conhecer. Ele se sente jovem ao pensar que Agnes, o computador de navegação, consegue entender as instruções deixadas naquele programa. Agnes, com quem jamais trocou informações. Sistemas diferentes demais, aplicações diferentes demais. Kenji suspeita que Agnes sequer saiba que ele a chama de Agnes, ou que haja humanos a bordo. Tudo que Agnes deve saber é que está indo para algum lugar desconhecido no fundo das trevas do espaço.

Para Kenji o tempo passa rapidamente. Foi programado para não se entendiar com as semanas. Sentiu a aproximação como se tivesse sido breve, mas na verdade durou anos. Anos de espirais em torno da estrela, em busca do melhor perigeu para orbitar. Quando sentiu Agnes estabilizando a nave na órbita, teve uma sensação que os humanos chamariam de medo, mas que para ele aparecia apenas como uma repetitiva computação dos passos a fazer, analisando cada variável.

Com a nave pronta, Agnes enviou pelo sistema uma notificação seca e simples, cujo significado somente os destinatários seriam capazes de entender, uma mera sequencia de caracteres em seu programa: “Órbita estabilizada no destino.” Para Agnes esta sequencia era apenas algo que devia “dizer” eletronicamente quando a viagem terminasse.

Ninguém precisava dizer a Kenji o que fazer. Ele tinha tudo predeterminado desde antes de ser posto em funcionamento. Iniciar a conexão dos sistemas de desembarque e ligar os analisadores de biosfera. Começava ali a fase final do projeto “Terra II”.

Se Kenji tivesse um aparelho respiratório teria suspirado naquele momento, se tivesse uma alma teria sentido algum tipo de emoção. Mas em vez disso, naquele momento tão importante para a humanidade, os passos decisivos do nascimento de um novo mundo eram dados por um artefato cego, cujas emoções eram apenas cálculos que oscilavam, abandonando probabilidades inadequadas.

Seguindo à risca a sequência estabelecida em seu cérebro inanimado, Kenji iniciou o lento, inexorável e irreversível processo de despertar das primeiras centenas de seres vivos, humanos que assumiriam o trabalho de tornar aquele mundo à sua imagem e semelhança. Consultando seus dados, quase com prazer, Kenji considerou o que seria dos pobres seres primitivos que ali viviam: em breve seriam usados pelos colonizadores, como ele próprio o era. Mas as chaves de segurança em seu programa o impediam de completar este cálculo. Os primeiros a despertar seriam os adultos, que teriam a função de ensinar às crianças valores fundamentais da civilização, como poder, ganância, preconceito, superstição, desconfiança e ódio. Dentro dos limites estreitos de sua programação, Kenji tinha lampejos de quase autoconsciência, nos quais ele lamentava o destino daquele planeta que recebia a infestação humana.

Um capitão e alguns oficiais emergiram das salas de descompressão. Ao vê-los, quase instantaneamente, Kenji ajustou sua percepção temporal a algo que tornaria possível acompanhar a existência daqueles seres tão rápidos, tão efêmeros.

O capitão apossou-se de seu lugar, inexpressivo em seu rosto militar, quase tão frio quanto as patas de aço de Kenji, que sustentavam suas toneladas de tentáculos e circuitos. Sua voz insípida deu um comando de voz, declamado ritualisticamente, como um jogral:

— Abrir visores.

Um a um foram aparecendo quadrados luminosos pelos painéis. Toda aquela energia esperdiçada apenas para exibir as informações em um formato que os humanos pudessem entender. A chave de segurança agiu novamente e Kenji passou a concentrar-se na superfície do mundo abaixo de si. Aproveitou para acionar os próprios analisadores de luz visível, para poder obter dados por este meio também.

— Capitão — disse a oficial, ainda incomodada com a lisura de seu crânio depilado — as leituras biológicas não conferem.

O capitão moveu os mecanismos de sua interface superior de uma forma que Kenji fora ensinado a reconhecer como “preocupação”, um conceito que ele quase não entendia. Kenji era permanentemente preocupado. Era assim que agia, em proteção aos sistemas embarcados, inclusive os sistemas biológicos. Por sorte, autômatos não sofrem de nervos.

— Tenente Xu, vamos refazer as leituras após uma recalibragem dos sensores, iniciando agora. Kenji, modo de segurança, urgente! Vamos verificar todos os receptores externos.

Kenji moveu-se para a retaguarda da cabina de comando que ocupara por séculos e dirigiu-se à escotilha para executar o trabalho de verificação externa.

Agarrado com suas várias patas ao casco da nave, Kenji dirigiu seus sensores locais ao planeta abaixo. Enquanto duas de suas patas verificavam a calibragem de espelhos e coletores de partículas, duas outras manipulavam os seus próprios sensores, que eram menos sensíveis e robustos, mas funcionavam, relativamente aos embarcados na nave, tão bem quanto um binóculo funciona em comparação com um telescópio espacial.

Havia, mesmo, algo errado com o planeta. A imagem que ele apresentava, na visão infravermelha de Kenji, era diferente da que fora gravada pela sonda, séculos antes. Estava, ou parecia estar, mais frio e mais calmo: grandes massas de nuvens o recobriam, uma bola de gude branca — se Kenji soubesse o que eram bolas de gude para conceber esta metáfora.

Terminou de circular por todos os sensores externos e esgueirou-se pelos corredores até a ponte de comando, onde estivera por séculos, e a chave de segurança o forçou novamente a mudar seus cálculos, impedindo-o de tomar o lugar que instintivamente buscara.

— Agnes, confirme nossa posição!

O capitão também sabia o nome de Agnes. Kenji computou rapidamente que isso significava que o nome pelo qual sempre chamara ao computador de navegação lhe teria sido ensinado, séculos antes. Por alguém que também o ensinara aos tripulantes. Provavelmente a todos. Todos conheciam Agnes. A chave de segurança agiu novamente. Para Kenji, cada acionamento era parecido com algo a que nós, humanos, chamaríamos de “dor”.

— Não entendo, capitão — disse a Tenente Xu, com seus olhos oblíquos arregalados numa expressão de medo — as coordenadas conferem, mas as características atmosféricas do planeta são diferentes.

— Confirme para mim os dados físicos: quero diâmetro, massa, posição relativa à primária.

O capitão acariciava a bola de bilhar que lhe tapava o pescoço, ainda incomodado com o rude tratamento de depilação a que os viajantes das estrelas eram submetidos, pelo menos os que viajavam vivos. Kenji teria tido prazer em lembrar, se compreendesse prazeres humanos, que era uma condição definitiva. A chave de segurança agiu novamente.

— Os dados conferem, Capitão.

— Então, minha querida, estamos fodidos.

— Capitão…

— Não vamos ainda contar para o resto da tripulação, enquanto eles acordam o resto, mas temos anos terríveis pela frente. Estamos fodidos, fodidos.

— O que terá acontecido, Capitão?

O capitão contemplava os dados que passeavam pelos econômicos visores monocromáticos. Pensava, coisa que Kenji não sabia ou não precisava saber.

— Provavelmente temos um cenário de apocalipse, Tenente. Alguma das espécies detectadas por nossa sonda há séculos, alguma das malditas espécies que a sonda viu rastejando pelos pastos e pântanos e charnecas desse mundo primitivo. Certamente alguma teria inteligência, mesmo rudimentar, provavelmente bem rudimentar. Mas conseguiu inventar coisas, desenvolver armas — a primeira coisa que as inteligências primitivas querem inventar — e deram azar de inventar rápido demais os brinquedos perigosos.

Andréa entrou na ponte de comando. Era da mais absoluta confiança de Capitão, era uma gimnoide hedonística, mas que também tinha conhecimentos de ecologia e música. Ninguém nem nada naquela nave podia se dar ao luxo de uma função só — nem a “boneca inflável” do Capitão, como a Tenente Xu a chamava.

Kenji deu-se conta, subitamente, de que certos dados aleatórios que fora percebendo e acumulando durante décadas e décadas eram os sonhos dos homens e mulheres em seus invólucros estáticos. Tenente Xu não gostava de Andréa e Kenji não sabia para que serviam gimnoides, mas simpatizava com aquele ser que imitava a aparência dos humanos. Simpatizava porque ele próprio era diferente, porque ele não tinha uma aparência agradável aos humanos — e talvez tampouco a Andréa. A chave de segurança parecia não desligar nunca mais.

— Capitão — disse a boneca inflável — os dados que coletei são realmente condizentes com um inverno nuclear.

— Estimativa de tempo?

— Considerando a meia vida dos elementos transurânicos detectados, Agnes calculou em prováveis cinquenta anos.

— Isso é muito tempo? — perguntou o Capitão, como se a inteligência fosse para ele a força de Sansão. Estaria arrancando cabelos se os tivesse. A tensão era visível e Kenji deu-se subitamente conta de que sabia o que era “tensão” e a chave de segurança, mesmo funcionando a todo vapor, não conseguia impedir que ele soubesse isso.

— Alguma área menos afetada?

— Nenhuma. O planeta está coberto de densas nuvens e a radiação choveu mais ou menos uniformemente sobre a crosta. A Idade do Gelo parece estar começando, para piorar as coisas.

— Idade do Gelo… — as palavras do capitão soavam vazias — eu preciso me recolher, para pensar a sós.

— Volte logo, capitão. Temos que decidir o que fazer.

O capitão acenou a Kenji, que o seguiu, como um cão.

— Kenji, ensinaram-lhe a falar?

Kenji produziu uma série de ruídos percutidos, mais ou menos como a conversa das aranhas, que batem os seus palpos para enviar sinais umas às outras. O capitão tinha conhecimento do CCCP1 e compreendeu que sim.

O capitão levou Kenji à porta de um recinto hermético:

— Quando me procurarem, diga que fui.

No instante seguinte, dentro do recinto, ouviu-se um silvo longo, do tipo que irritaria ouvidos humanos. Kenji quis saber do que se tratava e destravou a porta. Lá dentro estava o capitão, ou pelo menos a parte dele que não pensava. A cabeça, esta tinha se espalhado em muitos pedaços. Não compreendia como alguém teria a ideia de voltar contra si mesmo uma pistola de arrebites. Talvez faltasse um parafuso ao capitão, e ele tivesse tentado consertar do jeito errado. Bateu os palpos na parede, esperando que o torso contorcido respondesse. Kenji não sabia que mortos não falam.

A tripulação o viu ali, logo viram o acontecido, instalou-se o pânico. Andréa chegou com a Tenente Xu, ambas atabalhoadas. A colmeia humana continuava despertando, milhares de bocas logo quereriam comer, e abaixo deles estava um planeta morto, envolto em nuvens tóxicas e coberto de uma neve venenosa.

“Há momentos na vida em que é preciso ser homem”, dizia o bilhete encontrado no bolso do Capitão. Ele terminava com uma longa lista de nomes a quem ele pedia perdão por não ter sido.

Os estoques de alimentos da nave eram suficientes para alguns meses, ou anos, dependendo de quantos fossem despertados, de quanto cada um estivesse disposto a engordar. Eventualmente, em última necessidade, o estoque poderia ser prolongado um pouco mais, desde que alguns casulos nunca fossem despertados. Mas a comida fatalmente acabaria se não fosse possível descer em algum lugar e semear a vida.

A Tenente Xu agiu de uma maneira surpreendentemente prática diante das circunstâncias. Tendo compreendido o significado do que o capitão se fizera, Kenji se sentiu atraído pela precisão matemática dos comandos tomados pela segunda em comando. No lugar dela, teria agido de forma semelhante, apenas não tinha, por ser autômato, a permissão de tomar qualquer atitude que envolvesse vidas humanas, não sem a insistente chave de segurança embaralhar os seus circuitos e apagar os dados processados, tornando-o confuso. A primeira coisa que ela fez foi ordenar que os pequenos droides de faxina limpassem a cabina e atirassem a sujeira por uma escotilha funerária. Involuntariamente o Capitão dava início à semeadura daquele planeta esterilizado. Mas semeadura com morte, em vez de vida. Belo início para uma nova civilização.

Os humanos mais graduados se reuniram na ponte de comando, com as luzes desligadas. Falavam em voz baixa, talvez por medo de que Agnes os ouvisse. Kenji não se importou com isso. Seu sistema de comunicação através de batidas dependia da detecção de vibrações. Por isso ele se especializara em detectar a fala dos humanos através de vibrações, não de sons, e conseguia captar muito da conversa que eles tentavam esconder. A reunião era para traçar estratégias. Uma delas, particularmente defendida pela Tenente Xu, envolvia descerem com dois autômatos à superfície destruída do planeta. Os dois autômatos seriam Andréa, a gimnoide, e Kenji.

Mesmo sendo um autômato, ele não gostava da ideia. A chave de segurança zunia em seus circuitos, mas ele ainda acha ilógica a escolha de mandar para a superfície de um mundo morto justamente o piloto. Ainda demoraria algum tempo para que ele percebesse que não havia necessidade de piloto porque não havia para onde ir.


26
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 15:12link do post | comentar

Poucos temas em literatura são tão abertos e fascinantes quanto a ficção científica pós-apocalíptica. Basicamente você tem o direito de «passar a régua» no mundo e reimaginar tudo a seu bel-prazer, dentro de certos limites (bastante amplos). O fato de tanta gente que faz isso ter exatamente a mesma ideia, de um Mundo Mad Max com baratas radioativas, é só falta de imaginação mesmo.

Dia desses, debatendo sobre o tema, eu tive essa «viagem alucinógena» sobre como seria a sociedade do futuro se após a extinção do homem algum tipo de pássaro canoro evoluísse de forma inteligente. Deu até vontade de escrever a história.

Eu imagino que o tipo mais extraordinário de ser que poderia evoluir para uma forma inteligente seria uma ave. Para isso, claro, teria que reposicionar e modificar suas asas, mas um passaroide inteligente seria uma criatura fascinante.

Dotado de penas, teria pouca necessidade de fabricar roupas e ditar moda. Uma criatura destas provavelmente não teria artes plásticas e nem regras de «decência» como nós as imaginamos.

Ovíparo, ele teria uma série de outras preocupações envolvendo a sua prole que nós nem sequer imaginamos. Os testes de DNA do programa do «Pardalzinho» (equivalente passeriforme do Ratinho) não envolveriam somente a dúvida quanto ao pai, mas também a mãe. Sem a gravidez, o papel social da mulher seria compartilhado com o do homem e possivelmente a sociedade seria muito igualitária.

Capazes de falar e cantar simultaneamente, suas línguas não envolveriam apenas sequencias de fonemas, mas também de sons musicais. Eles literalmente falariam através de canções. Inteligência desenvolvida e uma vida social complexa exigiriam que sua «fala» deixasse de ser simples como o canto de um bem-te-vi e adquirisse muito mais complexidade — talvez até polifonia.

Eles provavelmente se alimentariam de comida crua, devido a possuírem bico e moela. Isso significa que a arte da gastronomia seria desconhecida, bem como boa parte dos ritos sociais a ela relacionados.

Se não teriam artes plásticas, teriam altamente desenvolvida a música e a literatura (no fundo uma só coisa) e a dança teria sempre um cunho erótico.

Sem a pressão da frio e do alimento cru, eles só criariam uma civilização se tivessem que enfrentar algum tipo de desafio diferente. Imagino que a guerra seria esse desafio: diferentes espécies de passaroides competindo entre si resultaria em pressão evolutiva para que aperfeiçoassem a linguagem, para aperfeiçoar a estratégia militar e as habilidades manuais (para melhorar sua capacidade de coletar comida e também de agredir).


02
Out 10
publicado por José Geraldo, às 13:23link do post | comentar

O louco dançava à beira do rochedo, desafiando as ondas com seus versos:

— Vamos para o céu, ou talvez… pulem, pulem! Andem logo, ele espera. Vocês não tem escolha! Pulem, pulem para os braços do dragão que esconde suas asas e seus dentes na maciez das ondas.

Os homens continuavam construindo o barco sobre o gramado. Enquanto as mulheres colhiam frutas e preparavam carne-seca — provisões para a viagem. O louco observava e cantava seus versos desafinados:

— Vocês não tem escolha, as velas serão rasgadas pelos ventos. Os mastros serão destroçados pelas ondas. Em vez da Torre ou da Terra Prometida vocês serão mortos e seus corpos trespassados pelos espinhos longos do dragão.

O contramestre cansou-se da litania e raspou a garganta:

— Cale-se, estúpido. Esta ilha é teu destino, por blasfemar desta maneira contra a esperança. Pára de gritar, pelo menos, enquanto nos preparamos para cruzar o mar.

Mas o louco não tinha medo do poder, quem teve a morte diante de si e viveu, mesmo que por um tempo, perde esse pudor, da dor. Com uma lágrima solitária no olho, o louco dirigiu-se a uma das mulheres:

— Madame, você veja o que diz seu marido. Oh, cuidado o homem que acha que sabe o que quer. Ele nunca para em lugar nenhum. Sempre haverá outro mar, sempre haverá outros braços. Alguma promessa da grande cidade perdida, da grande vida que não houve, e nada é tão favorito do aventureiro quanto o desejo de partir outra vez.

— Cala-te, louco. Ninguém mais suporta tuas dores. Guarde-as para ti.

— Como, madame, se eu tampouco as suporto?

Fez-se um silêncio na colina. O silêncio da compreensão. Mesmo os loucos falam a verdade, precisamente. E quando os sãos a entendem, uma dor profunda, dessas que exigem um assassinato, passa pelos corações dos sensatos.

O contramestre pegou um machado e ameaçou outra vez.

— Some de nossa presença, besta!

O louco amansou um pouco e continuou os versos num outro tom:

— Então vão, viagem, vão para o céu, ou o inferno. Vocês não têm escolha. Por favor, me deixem aqui, prometo fechar meus olhos quando o Grande Polvo surgir. É bom e é seguro estar perdido no mato, não é tão mau quanto estar triste na praia. O mato não me diz nada, não me mata. E o que eu digo lá não é ouvido por ninguém que me odeie. Então vão, viagem, iscas vivas, crianças lambuzadas de mel andando entre as colmeias.

O louco deixou escapar uma gargalhada cortantemente triste e correu pela praia, tropeçando na areia.— Por favor, deixe-nos em paz — berrou um rapaz que parecia sensato.

O louco mirou-o com olhos agudos e disse:

— Prometo fechar os meus olhos, mas como fechar meus ouvidos?

O vento soprou e as folhas das árvores lamentaram os troncos cortados pelos homens para fazer os barcos.

— Por favor, não me ponham na bagagem — insultava o louco.

O contramestre deu por terminada a obra. Uma garrafa de antiga cerveja, choca pelas décadas, mas ainda cerimonialmente útil, foi quebrada no casco. O cheiro doce do levedo estragado preencheu o ar com saudades. Um discurso. A bruxa da tribo subiu na proa, desafiadoramente penetrando a maré.

— Os mares alcançam o mundo, amados. Eles continuam, apesar de tudo, iguais. Não precisamos voar, nem morrer nesta ilha miserável. Quanto mais ficamos, menores somos. Vamos embora, chega de arrastar-nos pela areia. O calor do vento é nosso amigo, nossas cantigas nos darão força para cruzar o mar. Venham, todos, amigos, amantes, maridos. Ponham-se a bordo e vamos!

Do alto de uma pedra, o louco chorava. Era um homem ainda jovem e razoavelmente belo. Em sua loucura amava a donzela cujo nome não sabia. Por ela chorava, mais do que pelos outros, porque ela não ia por querer, mas por força da vontade do seu pai — segundo contramestre.

E na tarde do quinto dia o barco foi empurrado para dentro do mar, e navegou suavemente até os arrecifes, deixando o louco na praia, derramando-se em lágrimas e versos de pé quebrado.

Então os tentáculos do monstro surgiram das profundezas, cheios de agulhas longas e penetrantes, e abraçou o barco, diante dos gritos da tribo inteira. O louco descobriu o ombro e olhou a cicatriz que tinha sob a clavícula, lembrando da dor e do desespero, da sorte de ser trazido, esquecido, até aquela praia.

Ergueu-se ali e estendeu um punho fechado contra o céu, dizendo:

— Tu já foste bastante surdo ou bastante mau. Já me convenci o suficiente de ambas as coisas. Mas tenho duvidado se devo mesmo ter medo de você, mais do que do Polvo. Porque ele, ele eu sei que existe e vai me matar um dia, quando tiver aprendido a cercar-se da terra pouca dessa ilha. Mas tu, tu podes ser somente uma ilusão que sobrou, de um mundo que não existe mais. Mas se existes, então salva justamente Ela, como salvaste justamente a mim. Salva-a não por misericórdia, mas porque és mau e te deleitarás mais no sofrimento da morte dela adiada. Salva-a para minha luxúria, como me salvaste para ser palhaço dos ignorantes.

O louco deixou-se cair na areia, chorando sem controle, esperando que sua prece fosse ouvida. E o mar rugia, e dezenas de impotentes gritos se ouviam.


20
Out 07
publicado por José Geraldo, às 00:05link do post | comentar

A única conexão que eu consigo fazer é entre o desaparecimento dos pardais e o surgimento destas avezinhas negras que infectam nossos carros com seus excrementos azulados, cheios de ácido clorídrico, capazes de estragar a mais resistente das pinturas e arranhar os vidros quando escorrem.

Inútil dizer que afugentar estas pestes está sendo bastante difícil. Nosso governo ainda não se deu conta da gravidade do perigo que os Pássaros Negros representam para a nação porque eles parecem estar vindo das profundezas do mundo esquecido e passando por nossa terra remota ainda não chegaram à capital onde o Supremo come seu caviar e perdoa seus pares.

Sem fumigações e armadilhas oficiais, nos vemos obrigados a conviver com eles, a ver nossos veículos e telhados irremediavelmente danificados. Não há espantalho que os ponha medo: eles parecem ter dentro dos olhos a experiência de cada ave que já enganamos em nossa história de luta contra a natureza. E nos olham com expressões de tédio quando lhes fazemos barulho, quando brandimos inutilmente varas e lhes atiramos pedregulhos. Às vezes me causa ainda mais ódio porque me parece que nos olham com superioridade… e tédio.

Os pardais foram sumindo e eles foram se instalando. Maiores e mais forte que aquelas avezinhas de que tanto gostávamos, os Pássaros Negros roubaram delas todas as suas fontes de alimento. Por mais que os afugentássemos eles sempre levavam todas as sobras de comida.

Não bastando isso, têm ainda um sentimento de territorialidade que é realmente trágico: divididos em pequenos bandos de cinquenta ou cem, esses pequenos ladrões controlam áreas entre cinquenta e cem metros quadrados (onde abunda o alimento) ou quilômetros (onde escasseia). E não toleram que outros pilhadores da sujeira urbana se refestelem em seus recursos: Tão logo detectam a presença de algum salteador emplumado, mandam-lhe ao encalço uma verdadeira esquadrilha de jovens rápidos e ferozes que invariavelmente perseguem o invasor até quilômetros além da «fronteira» (se ele é veloz) ou o matam antes, se for o caso, para torná-lo também parte do permanente banquete de excrementos em que se cevam.

Apenas os urubus rompem o cerco, mas não ousam fazê-lo individualmente. Geralmente chegam em grupos de doze ou vinte: E deixam algumas sentinelas! Nas poucas vezes em que urubus solitários tentaram comer em um território controlado sofreram o mesmo ataque.

Ordeiros e disciplinados, os Pássaros Negros não se espalharam pelo campo imenso, que não poderiam controlar. Preferiram instalar-se em uma determinada região e aí proliferaram. Quando o bando cresceu, dividiu-se e outros territórios foram ocupados. É claro que esta ocupação não era sedentária. Assim fosse, poderíamos fumigá-los com venenos ou matá-los com nossas espingardas. Se um indivíduo era morto em determinado local, o bando se mudava. Se algum era mesmo ferido ou sofria séria ameaça, não ficavam os demais nem mais um dia dormindo no mesmo quarteirão.

Agora que já dominaram toda a cidade e arredores, e outras das cidades e parte do campo que as circunda; este receio desapareceu. Se tornaram frios e são capazes de ver a execução de um companheiro cinicamente e sem esboçar reação. Se porém o agressor está só o bando o agride sem piedade. Houve já casos de pessoas mortas por matarem Pássaros Negros. Num dos casos mais impressionantes o morto humano havia investido (dias antes!) contra uma ninhada e matado alguns filhotes. Quando voltava para casa à noite foi cercado por dezenas deles e bicado até a morte. Abriram-lhes as veias no meio da rua e perfuraram-lhe o abdômen e os olhos antes que morresse de hemorragia.

Escusado dizer que poucos são os que se atrevem a atacar os bandos. Quem o faz vai em grupos e usando roupas grossas que cobrem todo o corpo e máscaras que não permitem que a face seja desvendada. Usam também misturadores de voz porque se teme que os Pássaros Negros sejam capazes de identificar humanos pelo tom de voz.

Também não é preciso mencionar a catástrofe ecológica que isto está causando. Os Pássaros Negros devoram insetos em quantidades exorbitantes e pouco deixam para os outros. Essa escassez produz a fome entre as demais espécies, que inutilmente migram, já que aparentemente estes anjos do Apocalipse se instalaram em toda a região. Também atacam os pequenos animais: já não há ratos-do-campo, nem piriás, nem beija-flores, nem porquinhos-da-índia e nem ratos em parte alguma. Exceto os animais do Zoológico, os outros estão morrendo de inanição e vêm desesperadamente à cidade, alguns, buscando comida às portas dos homens. Muitos são os que se comovem e os alimentam. Muitos são os que os matam para comê-los, porque também para nós humanos os Pássaros Negros estão trazendo perigo: Não há horta que se lhes resista e nem plantação que vingue diante de sua voracidade.

Mais uma vez eu abro a minha janela e contemplo os fios de luz nos postes cheios das odiosas figuras. Agora começam a bicá-los e também aos cabos telefônicos. Em breve teremos problemas mais graves. O último grito de desespero de uma cidade do interior nos aterrorizou: lá já não é possível viver, dada a proliferação de Pássaros Negros. Já nos chegam retirantes, alguns cegos. E todos contam que os nossos inimigos proliferam mais que coelhos.

Agora na cidade todos voltaram a usar chapéu e ninguém sai de casa sem óculos escuros por medo de ter o globo ocular traiçoeiramente perfurado por um desses voadores nojentos. Alguns chegam ao requinte de usar óculos de mergulho amarrados atrás da cabeça. Ponho o meu chapéu e meus óculos de serralheiro e saio à rua. Gosto dos óculos de serralheiro porque são enormes e me permitem olhar por todo o alcance de meu músculo ocular. O céu está silencioso hoje, como sempre. Em frente a Igreja o Padre esquálido contempla o céu rezando não mais por chuva como antigamente mas para que o fogo divino nos consuma.


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Ótima informação, recentemente usei uma charge e p...
Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
Fechei para textos de ficção. Não vou mais blogar ...
Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
Este saite está bem melhor.
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Essa modificação do modo de ensino da língua portu...
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Vai sair em inglês no CBSS esta sexta-feira... :)R...
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