Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
18
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 08:54link do post | comentar

Não é a primeira vez que eu vejo esse tipo de opinião circular pelo mundo. Mas desta, como apareceu na Internet, percebi que era preciso comentar.

A história tem tantos lados quanto podemos imaginar. E, na boa, história exige mais compreensão do que estudo: decorar datas é mais fácil que compreender os fatos nelas ocorridos. Como todo mundo se mete a entender de história só porque viu… documentários, leu meia dúzia de livros tendenciosos e viu o horário político, a nossa ciência está jogada na lama.Mas, tudo nesse mundo tem salvação (assim espero)…

Esta é só uma pequena postagem no Facebook, mas ela reflete de várias maneiras a ideia distorcida que os brasileiros têm da História — e das ciências humanas também, de certa forma. O autor disso provavelmente imaginou que estava sendo um paladino da ciência, e é normal que pense assim, pois esse tipo de pensamento recebe aplausos fáceis, até mesmo entre os profissionais de ensino: é praticamente uma tradição de nosso país considerar as ciências humanas menos importantes, concepção cristalizada até nos quadros de horários de nossas escolas, nos quais Português e Matemática têm cinco aulas semanais, enquanto História e Geografia têm somente duas cada. Então o que esse rapaz disse é fruto de um sistema que ensina desde cedo a desconsiderar como “menos importantes” certas áreas do conhecimento humano. E as pessoas propagam isso, sem perceberem que estão papagaiando um discurso ideológico alienante e obscurantista. Vamos demonstrar as falácias deste raciocínio:

A primeira afirmação é que A história tem tantos lados quanto podemos imaginar. Dizendo desta maneira, a História (com agá minúsculo) fica reduzida a um simples “causo” de pescador, ou a uma Lenda da Mulher de Branco, que cada um conta como quer, mudando os detalhes conforme sua preferência. Claro que existe quem pense assim ou até quem faça isso, mas História (agá maiúsculo) não é isso!

Podem me acusar de positivista (o que, para os que, como eu, mamaram nas tetas do Marxismo, uma ofensa), mas acredito que a História é uma tentativa metódica (portanto racional) de buscar o conhecimento de um fato realmente acontecido. O fato é objetivo, positivo. O que pode variar é a interpretação dos dados que conduzem ao fato. Como a História é metódica (portanto racional, e nunca é demais repetir), há um limite para o tipo de interpretação que se pode dar aos dados, o que significa que não há infinitas versões possíveis de um mesmo fato. Pode haver certa controvérsia quanto a interpretação de um documento, porém somente serão historicamente válidas as teorias que seguirem certo método. Vamos dar um exemplo.

Se acharmos um documento datado de abril de 1500 no qual um arquivista português comunique ao rei de Portugal o episódio do “descobrimento” do Brasil, não podemos usar tal documento como “prova” de que, no século XV, os portugueses conseguiam navegar entre a Bahia e Lisboa, em suas caravelas, no prazo de nove dias, no máximo. As únicas hipóteses racionais serão aquelas que considerarem como erro a data do documento novo (ou do antigo, a Carta de Caminha), ou ainda as que considerarem que o Brasil já era conhecido e a viagem de Pedro Álvares Cabral foi só formalidade diplomática. Imaginar as caravelas singrando o Oceano Atlântico à velocidade de um petroleiro moderno não é algo aceitável. Tudo, claro, considerando que o documento encontrado não seja forjado.

Logo em seguida, vem a afirmação de que história exige mais compreensão do que estudo. À primeira vista é uma afirmação quase tautológica, mas não é nada inocente o que ela implica: que História não precisa ser estudada. Esta é uma opinião que encontra eco profundo no nosso sistema educacional, não só entre os alunos mas também — lamentavelmente — entre certos maus professores que veem a escola como uma rinha, na qual devem digladiar-se por espaço no horário e onde as matérias que são “mais importantes” precisam sempre ter a “prioridade”. Você não precisa “estudar história” se tiver algo abstrato como “compreensão” (que é um privilégio talvez inato, visto que não precisa ser adquirido pelo estudo). Os que tiverem “compreensão” não precisam estudar datas e nomes “chatos”. Eu já tinha falado disso anteriormente, num artigo sobre a cultura de aplauso da ignorância que existe no Brasil e nos “atalhos” que desenvolvemos para não termos que aprender. Claro que uma afirmação dessas é chocante, por isso deve ser atenuada com uma frase bacana: decorar datas é mais fácil que compreender os fatos nelas ocorridos. Curioso é que quem diz que é “mais fácil” decorar datas está justamente dando uma justificativa para não ter que fazer isso. E se compreender os fatos é mais difícil, a lógica seria então que a História fosse mais estudada, pois ninguém pode compreender o que não conhece (não existe sabedoria na ignorância). Vê-se, porém, pelo contexto, que não existe a preocupação em estudar mais, mas em “compreender mais”.

A frase a seguir chega mais longe na incongruência: Como todo mundo se mete a entender de história só porque viu documentários, leu meia dúzia de livros tendenciosos e viu o horário político, a nossa ciência está jogada na lama. Eu não consigo alcançar o que o autor desta frase quis dizer, mas fica parecendo (e devemos julgar as pessoas de acordo com o que elas dizem — e não com o que pensaram em dizer) que assistira a documentários, ler “meia dúzia de livros” e assistir o horário político (todas ferramentas que estão ao alcance dos interessados, graças à televisão por assinatura, às bibliotecas e a outras ferramentas de acesso público) não são meios eficientes para alguém chegar a “entender de história”. Há dois problemas com esta afirmação.

O primeiro problema é o elitismo, que já ficava evidente na afirmação anterior, sobre a “compreensão” em vez do “estudo”. Não adianta você recorrer aos meios populares de difusão de conhecimento, pois você não chegará a “entender de história” através deles. Para “entender de história” você precisa de outra coisa (que pode ser uma “sabedoria” inata ou algum conhecimento arcano, a que somente privilegiados podem ter acesso). A História se reveste, então, de uma aura mística, sagrada, alheia-se da “necessidade” do povo. E não custa nunca lembrar que o “povo” precisa aprender muita gramática e muita matemática e muita ciência.

O segundo problema está na parte final. Por que a nossa ciência está “jogada na lama” como consequência de “todo mundo” se meter a “entender de história” vendo documentários e lendo livros tendenciosos? Ora, bolas, porque estas pessoas que se metem a entender de História, evidentemente, não estão estudando matemática, português e “ciência” (às Ciências Humanas é muito comum que seja contestado o status). Veja só que coisa, esta gente que fica tentando “entender de história” é que está jogando a ciência na lama. Não, a culpa não do governo, que mantém um sistema educacional tão inepto que só pode ser de propósito, a culpa não é de nossa sociedade e seus valores, a culpa é, claro, de quem tenta ter acesso a um conhecimento que não é para o bico do povo. A culpa, é claro, é da vítima!

Mas ainda tem caroço nesse angu. Esta gente que “se mete” a “entender de história” costuma ficar de crista alta, reclamando da vida, apontando para certas coisas que não se deveria discutir. Teria sido bem melhor só estudarem português, matemática e “ciência”. Então, quando essa gente surge, discutindo temas difíceis, pondo pimenta no olho de quem não quer enxergar as raízes antigas de nossos problemas de hoje, é preciso desqualificar, é preciso rebaixar, é preciso viralatizar.

E aqui chegamos ao terceiro dos problemas implícitos nessa frase tão curta: a falácia de que, na impossibilidade de se ter o conhecimento perfeito, o conhecimento imperfeito não tem valor. Leia de novo e observe bem: Como todo mundo se mete a entender de história só porque viu documentários, leu meia dúzia de livros tendenciosos e viu o horário político…

Está bem claro aí que o conhecimento que se obtem assistindo documentários, lendo alguns livros e assistindo horário político é um conhecimento inútil por ser parcial. Empregando a reductio ad absurdum, pode-se dizer que é melhor ser analfabeto do que ler mal. Como o autor da frase certamente não cometeria a insanidade de estar de acordo com esta reformulação, imagino que negará ter querido dizer que o conhecimento incompleto obtido através de documentários, livros e “horário político” seria inútil. Mas, como dizia Nietzsche, o importante não é como você pensa, mas como você o diz.

Gostaria de dizer ao autor destas frases que eu não acredito que ele seja pessoa má, que defenda o obscurantismo ou algo assim. Estas coisas que ele disse não são, de fato, pensamentos seus, mas chavões populares em nosso país. Ele apenas papagaiou o que se diz por aí, possivelmente sem nem refletir sobre os nuances do que disse. Uma característica destes chavões é que eles simplificam os problemas e oferecem, então, explicações fáceis para questões difíceis. Existe uma ilusão entre os ignorantes de que existe um atalho para o conhecimento sem passar pelo estudo. O sonho das pessoas que ignoram uma matéria é conseguirem a esperteza de chegarem à outra margem do rio sem passar pela ponte. Assim, toda explicação simples fica rapidamente popular e aqueles que assimilam tais “verdades” se arraigam a elas porque ali acham o que antes lhes fazia falta. Através das explicações simples, o ignorante supera a sensação de insegurança. Ele então passa a encarar esta explicação simples como um verdadeiro artigo de fé.

Não pretendo me aprofundar sobre este mecanismo de crença, porque reconheço minha limitação nesse campo. O que digo é o que ouvi dizerem pessoas que sabiam mais do que eu. Quero apenas concluir dizendo que é preciso denunciar esta ideologia segundo a qual a História é uma espécie de “vale tudo”. Não há esperança para a educação no Brasil, nem mesmo para o ensino das matérias “importantes” enquanto nós encararmos o conhecimento pela ótica desta estratégia de “redução de danos”, que nos impele a evitar ao máximo a necessidade de aprender. É por isso que se “prioriza” matérias que são importantes, é por isso que existem os “macetes” de vestibular e concurso, é por isso que os livros de auto-ajuda fazem sucesso. Estudar e aprender são coisas tão horríveis na mentalidade do brasileiro, que é preciso evitar ao máximo. Vamos aprender o que é “importante” e não é preciso saber a matéria se você tiver os “macetes” da prova de múltipla escolha.

Só que tem uma coisa engraçada: quando você começa a “priorizar” conhecimentos, criando uma hierarquia de importância (na qual muita gente acha que História fica abaixo até do Ensino Religioso), você cria um efeito progressivo de downsizing que termina com o desmonte de todo o sistema. A escola que hoje não acha importante ensinar História, facilmente chegará ao ponto em que “ensinar” em si deixará de ser importante, desde que se consiga “socializar o aluno” e “instrumentalizá-lo” para o convívio enquanto cidadão de uma sociedade democrática.

Para terminar, um caso curioso, que muita gente deve lembrar. Há alguns anos, ainda no tempo em que fazia o “Caco Antibes” no programa humorístico “Sai de Baixo”, Miguel Fallabela protagonizou o anúncio de uma coletânea da Som Livre (hoje exorcizada da Web) que usava o slogan “O Melhor do Melhor, dos Melhores”. Acontece que era uma antologia de música clássica, em um álbum duplo. Se considerarmos que a música “clássica” abarca mais de cinco séculos de tradição e que algumas de suas obras possuem horas de duração, não é difícil imaginar que o resultado foi uma coletânea de vinhetas das grandes obras. Quem a comprasse ouviria apenas trechos soltos, e não as obras propriamente. Da mesma forma como você não fica conhecendo Beethoven só porque botou Für Elise como toque de seu telefone celular. Um sistema educacional que tão arbitrariamente discrimina entre as áreas de conhecimento pode acabar, como a Som Livre, produzindo uma coletânea de vinhetas, de pedaços amputados das obras originais. Vinhetas de conhecimento não ajudam ninguém a se tornar realmente competente e nem sábio. No máximo servem como toque de celular.


09
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 23:33link do post | comentar | ver comentários (3)
Esta é uma série de coisas que eu queria ter dito quando era professor, mas nunca pude dizer, ou não tive a coragem. Se bem que umas cinco ou seis dessas aí eu cheguei a dizer.
  • “No dia em que você tiver adquirido cultura suficiente para ter uma visão profunda deste assunto, publique um livro para provar porque tudo que se sabe a respeito está errado. Enquanto esse dia não vem, abra os olhos, destape as orelhas e seja humilde o bastante para aprender porque é para isso que você vem para a escola — e não para me ensinar o que eu fiquei a vida inteira estudando.”
  • “Com base em que você acha que eu estou errado mesmo? Você pode me citar quais documentos, autores ou fontes consultou?”
  • “Ao contrário de outros professores eu não tenho respeito pela ignorância.”
  • “Valorizar o esforço é importante, mas não valorizar ainda mais o sucesso é só uma maneira de fazer todos serem medíocres.”
  • “Se você se sente mal em não ter a minha atenção, eu sinto muito: eu também não estava tendo a sua.”
  • “A única coisa que me faz prestar atenção na ignorância é quando ela está acompanhada pela curiosidade. Se ela estiver acompanhada pela teimosia eu quero mais é que ela quebra as patas dando coice.”
  • “O ápice da pedagogia moderna se dá através da implementação desses ciclos viciosos, durante os quais é proibida qualquer espécie de dedução.” (pérola proferida em uma reunião na qual foi apresentado o conceito de Ciclos de Aprendizagem)
  • “Eu acho que venho aqui para ensinar o que há para ser ensinado e vocês para aprender. Acredito que eventualmente vocês me ensinarão alguma coisa também. Mas no dia que me disserem que a minha função essencial não é lhes ensinar a matéria, então eu vou buscar outra profissão porque eu não sou vagabundo para gostar de receber salário por fingir que trabalha.”
  • “O diploma certamente poderá lhe dar valor, mas certas pessoas prejudicam muito ao diploma.”
  • “Eu não sou arrogante, eu só estudei essa matéria. Duvido que você ensine o mecânico a consertar seu carro ou o médico a lhe tratar.”
  • “Existe uma palavra muito bonita para chamar aqueles que acham que já sabem antes de terem estudado: a palavra é ignorante.
  • “As contradições da ciência não devem ser usadas como desculpa para a preguiça de aprender, da mesma forma que tomar uns tombos não lhe impediu de aprender a andar de bicicleta.”
  • “Eu não acredito em inclusão social que não envolva conhecimento e compostura. Continue ignorante e se vestindo assim e não vai haver sistema de quotas que lhe garanta uma vida decente.”
  • “Todos nascemos ignorantes, alguns também nascem teimosos. Depois de algum tempo esses passam a ser chamados de burros.”
  • “As pessoas me dizem que não sou humilde o bastante para aceitar a palavra de Deus. Mas são as mesmas pessoas que não são humildes o bastante para reconhecer que nada sabem e começarem a estudar. Essas humildes pessoas que me dizem isso tão piedosamente são as mesmas que acham que Deus lhes contou tudo que elas precisavam saber e que nunca mais precisarão aprender nada. Um lindo exemplo.”
  • “Você pode não acreditar que o ser humano veio do macaco, mas a cada dia que passa mais eu me convenço de que há alguns voltando…”
  • “O sistema quer vocês burros, sejam obedientes e continuem não estudando. Tem muita carroça no mundo precisando ser puxada.”
  • “O diploma deste analfabeto não vai com a minha rubrica.  Processe-me se quiser, mas a minha nota para ele é aquela mesmo.” (reunião de final de ano durante a qual se argumentava em favor da aprovação de um aluno que tivera 82% de faltas e não tivera notas durante o ano letivo).

28
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 23:01link do post | comentar

Gabriela era uma menina comum, filha de pais bem comuns, que morava numa casa bem comum numa cidade qualquer. Como quase todas as meninas ela gostava muito de histórias e não passava uma noite sem pedir que seu pai ou sua mãe lhe contassem uma antes de dormir.

Infelizmente os pais de Gabriela não sabiam muitas histórias. Eles eram pessoas ocupadas e sem paciência, passavam seus dias trabalhando e reclamando da vida — não tinham muito tempo para divertir-se e muito menos para ler livros e aprender histórias. Por causa disso foram muitas as noites em que Gabriela teve de dormir sem história, ouvindo história repetida, ou tendo de contentar-se com uma historinha sem graça qualquer.

Mas Gabriela era uma menina estudiosa e logo aprendeu a ler. Quando percebeu que já sabia juntar as letras e formar palavras ela ficou muito curiosa para saber o que havia escrito nos livros que enchiam as prateleiras da biblioteca da escola. Ah, eram tantos livros! com capas feias ou bonitas, com páginas branquinhas ou amareladas, cada um contendo uma ou muitas histórias!

A partir desse dia Gabriela começou a ler os livros da biblioteca. Todo dia ela voltava para casa com algum debaixo do braço e só o devolvida depois de ter lido tudo, tudinho. Começou com os livros fininhos, que tinham histórias curtinhas e muitas figuras. Depois começou a pegar livros mais grossos, que tinham menos espaço desperdiçado com figuras e muito mais história para ler. Quando Gabriela chegou na quinta série já tinha lido quase todos os livros da biblioteca.

Então ela já estava grandinha e foi transferida para outra escola. Nessa escola havia uma biblioteca maior, com muito mais livros. Gabriela andou por entre as imensas estantes de aço, cheias até não caber mais, e pensou: “vou ter que ler cada vez mais depressa para ter tempo de ler isso tudo até a oitava série”…

E assim ela começou. Todos os dias ela pegava dois livros, lia o mais grosso à tarde e deixava o outro para a noite, antes de dormir. Havia alguns que eram tão grossos que era preciso duas tardes de leitura, mas Gabriela não tinha problemas com isso: quando o livro era bom ela sempre ficava triste quando a história acabava, pois não tinha nenhuma graça ler de novo, cada livro ficava como uma alegre lembrança que nunca mais seria vivida.

Com o tempo ela percebeu que os melhores livros nem sempre eram os mais bonitos, percebeu também que não eram só os livros de histórias que eram bons de ler. Havia também livros de várias matérias que eram tão bem escritos que faziam o estudo virar um prazer: foi assim que ela aprendeu a História do Mundo, que descobriu como é o universo, como surgiu e evoluiu a vida, como funciona o corpo humano. Essas histórias eram tão boas quanto os romances de capa-e-espada e os contos de fadas.

Havia também alguns livros de histórias que eram diferentes dos outros, pois contavam histórias que haviam acontecido mesmo, alguns tinham até as fotos das pessoas que haviam vivido a história. Esses eram geralmente livros tristes, que nem sempre tinham um final feliz — mas Gabriela gostava de ler histórias que tinham acontecido, porque assim ela sentia que o mundo real também era interessante.

Um dia ela achou que não havia mais nada interessante na biblioteca para ler e ficou triste. Foi aí que ela percebeu, lá no alto e no cantinho da última prateleira, um livro que parecia ser muito velho, mas que ela nunca tinha visto antes. “Deve ser alguma doação” — ela pensou. E fez questão de ler.

O curioso é que o livro não tinha título na capa, e nem por dentro. Não tinha nome do autor, nem índice, nem endereço de editora. Também não tinha números nas páginas e nem estava dividido em capítulos. A história começava no alto da primeira página após a capa e continuava até o último espaço da última página. Ou pelo menos era o que parecia, pois Gabriela não deixou de pensar que poderiam estar faltando páginas, tanto no começo quanto no fim.

As letras eram letras grandes, maiores que os tipos dos outros livros, mas menores que as letras dos livros para crianças pequenas. Eram letras estranhas, que à primeira vista não pareciam diferentes das letras de livros comuns, mas cada vez que você olhava de novo era como se percebesse um detalhe diferente. Era como se cada letra fosse diferente da outra, faltando um ponto ou sobrando, com uma curva diferente, uma perna mais comprida ou algum defeito do papel deformando um canto. Parecia até que alguém havia caprichosamente desenhado à mão cada palavra daquele livro estranho e sem figuras.

Gabriela tentou folheá-lo para ver o que havia por dentro, mas não conseguiu. As páginas eram grossas, úmidas, meio mofadas ou afetadas pela poeira. Grudavam-se, eram pesadas, algumas pareciam definitivamente pregadas nas outras ou até com dobras não cortadas. Como se o livro nunca tivesse sido lido ou como se tivesse ficado fechado por muitos anos. “E como deve ser triste, quando se é um livro, ficar tanto tempo fechado, sem passar pelas mãos de ninguém, sem contar sua história a nenhum leitor”.

Gabriela foi até a entrada para registrar o empréstimo. A bibliotecária lhe sorriu e lhe deu boa-tarde e Gabriela foi embora feliz, levando o livro.

Em casa ela passou toda a tarde lendo. A história era do tipo que prendia mesmo. Cada página aparecia outro personagem — ou saía algum da história de alguma forma. Parecia que eram muitos os personagens principais, tantos que Gabriela logo começou a perder a conta de seus nomes. A história era cheia de voltas, idas e vindas. Diferentes histórias que se cruzavam a todo o momento e depois se separavam de novo. Falava de uma terra estranha onde havia uma rainha viúva e uma princesa solteira que não queria casar. De dragões que eram mansos e de fadas que eram más — e também do contrário. De tanta coisa que Gabriela tinha de parar para pensar e organizar-se.

Os dias seguintes foram dias de aventura. A história do livro ocupou sua mente quase que sem parar, era como ela nem tivesse mais tempo para a escola ou para amigos. Mas era tão bom ler aquela história, ouvir falar da língua estranha do povo Pt que só conhecia uma vogal e setenta e nove consoantes, ou do povo Ao, cuja língua só tinha vogais (trinta e duas). Haviam os príncipes ladrões e o elefante magro que ensinava o tigre a comer alface — e tantas outras coisas absurdas que faziam rir. Mas havia também coisas tristes demais, mortes e mistérios e separações.

Gabriela levou exatamente sete dias para ler o livro inteiro, a contar da hora exata em que saiu da biblioteca. No exato momento em que deram nove horas e quarenta minutos da manhã, durante os dez minutos de intervalo que ela aproveitara nos cinco dias anteriores para continuar a leitura, ela chegou à última palavra da última página.

Foi um momento de muita alegria, mas também de muita tristeza. Foi como terminar uma tarefa longa, mas foi também como parar de fazer a melhor coisa do mundo. O fim da história também era sem graça. Nada foi resolvido ou terminado. Era como se houvesse mais páginas no livro, muitas mais, mas somente aquelas tivessem sido encadernadas.

Então Gabriela se levantou, foi até a biblioteca, mostrou o livro à bibliotecária e o pôs de volta em seu lugar.

Nos dia seguintes ela continuou pensando naquele livro, naquelas histórias desencontradas — tristes e alegres ao mesmo tempo, naquelas lendas mal contadas. Então criou coragem e resolveu trocar idéias com os colegas. E foi aí que ela descobriu a coisa mais extraordinária de sua vida: ninguém nunca lera aquele livro. Ninguém nunca vira o livro na estante da biblioteca. A própria bibliotecária não soube dizer que livro era: “Quando vi aquela capa toda amassada eu pensei que fosse um dos livros velhos que foram doados, esses imprestáveis que a gente ia acabar jogando fora mesmo…”

Gabriela teve quase raiva — “nenhum livro é imprestável” — mas estava preocupada demais com o livro em si.

Uma colega lhe disse que o livro era obra do demônio, que ela devia orar e esquecer. Mas a professora de redação, que era uma mulher muito doce e que tinha uns olhos enormes e muito negros, muito bonitos, lhe disse algo bem diferente: “Minha querida, você não vê? Esse livro é você mesma? Esse livro são as histórias de que você gosta, as histórias que você queria que alguém tivesse contado. Mas eu vou te falar uma coisa muito bonita: ninguém pode contar as suas histórias a não ser você.”

Gabriela demorou alguns dias para entender. Ela só entendeu numa noite em que estava deitada na cama, sonhando com as histórias do estranho livro, quando de repente percebeu que algumas das histórias de que estava se lembrando eram diferentes das histórias do livro. “Sim, agora eu sei” — pensou Gabriela.

Então ela se levantou, escolheu um caderno bem grosso e uma caneta bem macia. Sentou-se na escrivaninha e começou, devagar e com muito carinho, a contar uma história nova, uma história sua. Uma história que ela queria que tivesse sido contada, mas que ela finalmente percebera que ninguém contaria — a não ser ela mesma.

Originalmente escrito em 14/05/2007


12
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 09:50link do post | comentar | ver comentários (1)

Há algumas semanas divulgou-se uma estarrecedora pesquisa segundo a qual aproximadamente 80% dos estudantes brasileiros, ao término do primeiro grau, ainda não haviam adquirido plena competência da leitura; número que não era significativamente reduzido ao fim do segundo grau (porque, obviamente, não há espaço na escola secundária para trabalhar a alfabetização), e que ainda tinha impacto nos cursos universitários. Nada menos que 5% dos formandos em cursos superiores seriam analfabetos funcionais (e uma boa outra quantidade seria incompletamente alfabetizada).

Pois bem, há alguns dias, em São Paulo, uma garotinha de doze anos morreu, em um hospital de relativo renome, porque a enfermeira lhe injetou vaselina líquida em vez de soro fisiológico.

Você consegue ver a relação entre estas duas coisas? Não? Vou tentar explicar.

Se temos uma proporção tão grande de analfabetos funcionais ao término do curso superior, se temos tantas pessoas que, mesmo alfabetizadas, ainda não têm domínio pleno da leitura, é evidente que uma boa quantidade dos profissionais que estão sendo formados neste país tem dificuldade para ler e compreender instruções, rótulos, alertas, receitas etc.

Isto quer dizer que temos médicos que desconhecem sintomas porque não leem os laudos até o fim, que temos engenheiros que calculam errado porque não entendem as especificações, que temos professores que não conseguem ensinar bem porque ainda não dominam a matéria que deviam ensinar, que temos enfermeiras que podem matar crianças de doze anos porque não leem rótulos e receitas.

Uma característica do analfabeto funcional, e também dos que, mesmo alfabetizados, têm ainda dificuldade de leitura, é a preguiça de ler. Quem não é plenamente alfabetizado procura evitar ler porque ler lhes é penoso. Quando veem um texto longo como esse, desanimam de ler e reclamam de quem escreve. Quando veem letrinhas miúdas…

O que estou querendo dizer é que a ineficiência de nosso sistema educacional está produzindo uma geração de profissionais relapsos e incompetentes, profissionais que cada vez mais cometerão erros idiotas porque não querem ler, porque leem e não entendem ou porque as instruções, escritas por outros incompetentes, não são claras. A longo prazo esta incompetência generalizada vai matar cada vez mais gente. Enfermeiras que injetarão remédio errado, médicos que vão operar a pessoa errada, engenheiros que vão calcular errado, mecânicos que não vão saber consertar direito os novos modelos, com suas estruturas complexas etc.

Se você acha que estou inventando estes números, vamos a alguns links:

Mas o que mais me espanta é, diante de tais números absurdos, a presidente eleita ter dito que «a educação no Brasil já está encaminhada». Bem, encaminhada ela está. Apenas eu e a presidente divergimos para onde.


12
Nov 10
publicado por José Geraldo, às 18:09link do post | comentar

Os pedagogos do MEC, responsáveis pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (esta peça de humor pastelão que rebatizou o ensino de português como “Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias”) acharam que não seria apropriado que a obra “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, um clássico de nossa literatura, fosse distribuída às bibliotecas de nossas escolas públicas, afinal existem nela resíduos de racismo que podem traumatizar as crianças negras ou tornar em potenciais hitlers todas as demais.

No entanto, segundo tive o desprazer de ver hoje no telejornal matutino da Rede Record, o critério para considerar impróprio o livro de Lobato parece muito mais vago do que inicialmente parecia — e ele já parecia muito vago.

O caso é que ao mesmo tempo em que pretendeu censurar um clássico da literatura por conter trechos potencialmente racistas, o MEC não viu problema algum em distribuir a mais de quarenta mil escolas do Brasil a tradução portuguesa de um mangá de Kazuichi Hanawa intitulado “Na Prisão”.

A escolha do tema já é, por si só, preocupante. Em vez de pretender ensinar conteúdos positivos para os jovens, o MEC achou que seria interessante que eles aprendessem sobre como é a vida em uma prisão japonesa. Mas me abstenho de imaginar razões para a escolha do tema e me restrinjo a tentar compreender como ou porque esta obra em especial foi aceita.

Porque Kazuichi Hanawa não a escreveu para crianças em idade escolar — e sim para adultos. No Japão o consumo de mangá e animê pelos adultos é pelo menos tão grande quanto para crianças. A temática da obra em questão não é nada “infantil”: trata-se do retrato da cruel rotina de uma prisão, na qual o protagonista encontra todo tipo de gente e ouve todo tipo de histórias — inclusive histórias que envolvem crimes sexuais (hetero e homo), uso de drogas (até injetáveis), tortura (física e mental), nudez representação gráfica de órgãos e atos sexuais (como estupro, masturbação e outras coisas).

Ressalva: como não li a obra, estou deduzindo tudo isto a partir das imagens que foram exibidas pelo telejornal e pelas descrições da obra que encontro na Internet. Mas adoraria que quem tenha lido me envie mais detalhes.

Tudo isso pode ser aceitável (e o é) numa obra voltada para um público adulto, devidamente distribuída de forma discreta e contendo na capa alerta sobre o conteúdo inapropriado. Mas como algum pedagogo resolveu achar que uma obra de conteúdo tão pesado seria apropriada para crianças que já enfrentam tanto conteúdo impróprio no mundo?

Eu ainda achava tolerável quando a obra do MEC era caracterizada apenas pela incompetência (que tantas vezes levou este órgãos a escolher os piores livros didáticos possíveis) e pelo descaso (expresso no sorridente diagnóstico de que “a educação neste país já está bem encaminhada”); mas agora tudo tomou proporções totalmente diferentes: já não se trata apenas de incompetência e de descaso, deve haver alguém deliberadamente sabotando a educação no Brasil — ou então a corrupção e a inépcia dos funcionários do MEC atingiu níveis nos quais já não seriam capazes de diferenciar entre a própria bunda e uma melancia.

Referências:

  1. Link para a reportagem no portal R7:
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<p>Os pedagogos do MEC, responsáveis pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (esta peça de humor pastelão que rebatizou o ensino de português como &ldquo;Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias&rdquo;) acharam que não seria apropriado que a obra &ldquo;Caçadas de Pedrinho&rdquo;, de Monteiro Lobato, um clássico de nossa literatura, fosse distribuída às bibliotecas de nossas escolas públicas, afinal existem nela resíduos de racismo que podem traumatizar as crianças negras ou tornar em potenciais hitlers todas as demais.</p><p>No entanto, segundo tive o desprazer de ver hoje no telejornal matutino da Rede Record, o critério para considerar impróprio o livro de Lobato parece muito mais vago do que inicialmente parecia &mdash; e ele já parecia muito vago.</p><p>O caso é que ao mesmo tempo em que pretendeu censurar um clássico da literatura por conter trechos potencialmente racistas, o MEC não viu problema algum em distribuir a mais de quarenta mil escolas do Brasil a tradução portuguesa de um <a href="http://pt.wikipedia.org/wiki/Mang%C3%A1" rel="noopener">mangá</a> de Kazuichi Hanawa intitulado &ldquo;Na Prisão&rdquo;.</p><p>A escolha do tema já é, por si só, preocupante. Em vez de pretender ensinar conteúdos positivos para os jovens, o MEC achou que seria interessante que eles aprendessem sobre como é a vida em uma prisão japonesa. Mas me abstenho de imaginar razões para a escolha do tema e me restrinjo a tentar compreender como ou porque esta obra em especial foi aceita.</p><p>Porque Kazuichi Hanawa não a escreveu para crianças em idade escolar &mdash; e sim para adultos. No Japão o consumo de mangá e animê pelos adultos é pelo menos tão grande quanto para crianças. A temática da obra em questão não é nada &ldquo;infantil&rdquo;: trata-se do retrato da cruel rotina de uma prisão, na qual o protagonista encontra todo tipo de gente e ouve todo tipo de histórias &mdash; inclusive histórias que envolvem crimes sexuais (hetero e homo), uso de drogas (até injetáveis), tortura (física e mental), nudez representação gráfica de órgãos e atos sexuais (como estupro, masturbação e outras coisas).<br /></p><p><span style="font-style:italic;font-weight:bold;color:rgb(153,153,153);">Ressalva: como não li a obra, estou deduzindo tudo isto a partir das imagens que foram exibidas pelo telejornal e pelas descrições da obra que encontro na Internet. Mas adoraria que quem tenha lido me envie mais detalhes.</span></p><p>Tudo isso pode ser aceitável (e o é) numa obra voltada para um público adulto, devidamente distribuída de forma discreta e contendo na capa alerta sobre o conteúdo inapropriado. Mas como algum pedagogo resolveu achar que uma obra de conteúdo tão pesado seria apropriada para crianças que já enfrentam tanto conteúdo impróprio no mundo?</p><p>Eu ainda achava tolerável quando a obra do MEC era caracterizada apenas pela incompetência (que tantas vezes levou este órgãos a escolher os piores livros didáticos possíveis) e pelo descaso (expresso no sorridente diagnóstico de que &ldquo;a educação neste país já está bem encaminhada&rdquo;); mas agora tudo tomou proporções totalmente diferentes: já não se trata apenas de incompetência e de descaso, deve haver alguém deliberadamente sabotando a educação no Brasil &mdash; ou então a corrupção e a inépcia dos funcionários do MEC atingiu níveis nos quais já não seriam capazes de diferenciar entre a própria bunda e uma melancia.</p><p>Referências:</p><ol><li>Link para a reportagem no portal R7: <a href="http://noticias.r7.com/videos/escola-estadual-de-porto-alegre-rs-disponibiliza-livro-improprio-para-criancas/idmedia/9c6ccd8b5bc9f7354564c68bfd6c24f7.html&rdquo; target=" _blank"="_blank&quot;" rel="noopener">http://noticias.r7.com/videos/escola-estadual-de-porto-alegre-rs-disponibiliza-livro-improprio-para-criancas/idmedia/9c6ccd8b5bc9f7354564c68bfd6c24f7.html</a></li><li>Prova de que o livro foi distribuído pelo MEC: <a href="http://www.fomezero.gov.br/noticias/escolas-publicas-recebem-historias-em-quadrinhos&rdquo; target=" _blank"="_blank&quot;" rel="noopener">http://www.fomezero.gov.br/noticias/escolas-publicas-recebem-historias-em-quadrinhos</a></li></ol><p>Agradeço quem puder contribuir scans das páginas desta história, ESPECIALMENTE scans da edição distribuída pelo MEC, que contém o selo do PNBE na capa.</p>

25
Set 10
publicado por José Geraldo, às 15:37link do post | comentar

Um estudante de literatura postou o seguinte no Orkut:

Gostaria de ajuda para entender as diferenças entre o realismo e o romantismo-naturalismo.

Sempre disposto a dar cola para a nossa juventude que enfrenta os dilemas da graduação sem pré-requisitos, postei o seguinte:

O Romantismo-Naturalismo é uma corrente literária caracterizada por uma abordagem esquizofrênica da vida, ao mesmo tempo valorizando os sentimentos e compreendendo-os como fruto dos instintos humanos. O exemplo típico do romântico naturalista está nas letras do funk melody e do sertanejo universitário: mesmo ressaltando que o sexo sem compromisso deve estar em primeiro plano, afinal somos animais e precisamos pensar principalmente nisso, é necessário adicionar doses artificiais de ilusão sentimental, com palavras cuidadosamente escolhidas para dar a impressão de sentimentos mais fortes. O romantismo naturalista é gongórico e cultista, ao mesmo tempo, mais ou menos como os que procuram implantar a paz através da guerra, defender a importância do amor organizando surubas ou melhorar a qualidade da representação política votando no Tiririca. Nada é tão moderno quanto o romantismo-naturalismo, a arte de torcer ao mesmo tempo pro Atlético e pro Cruzeiro, tendo uma grande simpatia pelo América e sendo sócio do Vila Nova.

Espero que ele tire dez no trabalho.


22
Set 10
publicado por José Geraldo, às 04:26link do post | comentar

Nietzsche colocou em seu livro Assim Falou Zaratustra um subtítulo interessante: «um livro para todos e para ninguém». Trata-se de uma declaração quase esfíngica: como um livro pode, ao mesmo tempo, ser destinado a todo mundo e a ninguém? A solução do enigma surge quando você analisa o livro em si, pelo seu conteúdo e pela sua forma. Quanto à forma, é um livro para todos devido ao estilo bíblico e linear da narrativa (sim, embora escrito por um filósofo, trata-se de uma narrativa): supôs o autor que estas escolhas tornariam o livro acessível a praticamente todos os que fossem alfabetizados. Por isso «um livro para todos». No entanto, o conteúdo desta obra é particularmente difícil, por lidar com dilemas existenciais cuja própria reflexão é rejeitada por estes seres cordatos que habitam as civilizações, esse homo vulgaris que persegue a gratificação de seus desejos imediatos tal e qual um cão correndo atrás do próprio rabo. Por isso é um livro para ninguém.

Há certos assuntos sobre os quais falamos que deveriam ser também agraciados com um subtítulo equivalente: para todos, porque é perfeitamente possível falar deles de uma forma que muita gente entenda; para ninguém, porque é quase impossível achar quem se interesse por eles. Um de tais assuntos é a política.

O lugar comum (que é o sistema através do qual pensam, de forma quase exclusiva, as pessoas sem imaginação e/ou sem inteligência própria) dita (no sentido de «ditadura») que «político é tudo safado» — talvez porque as pessoas que assim o dizem espelham os políticos em si mesmas. Embora eu não ponha a mão no fogo por nenhum político, essa afirmativa é preguiçosa e burra. Preguiçosa porque é um preconceito e porque exime quem assim pensa da obrigação de informar-se (ai, isso envolve ler, ah, e ler dói), de refletir, de discutir e de concluir. É muito mais fácil dizer que todo político é safado e não ter que se dar a esse trabalho.

Como vocês já devem ter percebido, existe uma estreita relação entre a nossa postura diante dos livros e as causas desse desastre que é a nossa política. Nosso povo lê pouco, e por ler pouco ele não sabe quase nada daquilo que não diga respeito ao seu horizonte imediato. E por ser ignorante daquilo que não lhe diz respeito de forma direta, ele não é capaz de discutir a política.

Acontece que os ignorantes não vão querer admitir isso. No fundo, apesar do desprezo verbal pela cultura que vive na boca de muita gente, ser ignorante não é bonito. Então é preciso sentar em cima desse rabo grande e peludo e fingir que ele não existe. A incompetência de ter uma discussão sobre política é mascarada pelo desinteresse, justificado pela constatação, necessariamente desinformada, de que todo político é safado.

O curioso é que essas pessoas que assim pensam estão duplamente equivocadas. Não apenas estão partindo para uma conclusão preconceituosa (porque é uma generalização desinformada), mas estão abordando o problema pelo lado errado: política não se faz de cima para baixo. É perfeitamente justificável a sensação de que nós não temos nenhum tipo de controle sobre o que pensam e fazem os políticos nas altas esferas do poder. Mas eles não chegaram lá de paraquedas, eles passaram por um longo processo, que muitas vezes começou numa candidatura à vereança em sua cidade. E é nesse momento que a política distante se torna próxima que vemos, com maior vergonha, o quanto as mesmas pessoas ignorantes são também desonestas.

Safado é povo, não o político. O político é safado porque ele é parte do povo. Talvez se os nossos políticos fossem estrangeiros eles fossem menos safados (ou mais). Mas como eles são brasileiros como nós, eles são tão safados quanto somos, na média.

Safado é o eleitor que vende seu voto em troca de cimento, de um emprego, de gasolina, de um par de tênis ou de dinheiro. Quem prostitui a sua opinião em troca de vantagens imediatas (tal qual o macaco da fábula, que vende a cauda por um pão) não tem moral para acusar os nosso políticos de coisa alguma.

Safado é o eleitor que se orgulha de ser parte do curral eleitoral de um político: «aqui no bairro tal a gente vota é no fulano», ou «sicrano é o candidato da cidade X». Abdicando da própria opinião e aceitando ser levado no cabresto (como burro que é), esse eleitor vai reclamar do que?

Essas coisas que eu disse acima não são filosofias profundas, dignas de um Nietzsche, de um Schopenhauer ou de um Espinoza. São coisas simples e claras que para concluir basta você pensar com calma e somar dois com dois. No entanto elas serão incompreendidas e rechaçadas. A transparência do raciocínio será rejeitada pela oposição do conteúdo ao que é confortável ao leitor. «Eu fiz isso, diz minha memória. Eu não posso ter feito isso, diz meu orgulho. Por fim a memória cede».

Por isso estas palavras que disse são para todos e para ninguém. São para todos porque qualquer um que saiba ler as lerá e compreenderá. Para ninguém porque com elas não ganharei nenhum seguidor no blogue, não farei nenhum amigo, não receberei sequer um elogio, não mudarei a postura de um eleitor sequer. O ser humano nunca muda, de fato: apenas se torna, cada vez mais, aquilo que é. A única mudança possível é a que se faz nas gerações futuras, através da educação de nossos filhos. Esta é a tragédia da humanidade: os estúpidos têm mais filhos e têm mais tempo para ensinar.


16
Set 10
publicado por José Geraldo, às 20:12link do post | comentar

Os professores brasileiros odeiam livros. Desde pequenos os alunos são ensinados a odiar livros e revistas. Não existe uma classe sequer de primário na qual os alunos não sejam ensinados, quase diariamente, a destruir revistas e livros “velhos” para fazer cartazes. Esses pobres livros e revistas são sacrificados como cobaias em nome do conhecimento. Crescem as crianças acostumadas a meter a tesoura no papel impresso.

Ao mesmo tempo, temos a apostila, essa descartável publicação que todo ano se renova. A apostila é o conhecimento compactado, autossuficiente e transitório. Precarizado na forma de umas páginas mal digitadas e formatas que se imprime na própria secretaria da escola. A apostila convence o aluno de que o livro bem feito não importa, a apostila “serve”. Ela é barata — e isso é uma qualidade — e porque preenche a necessidade de um suporte para a aula, ela “basta”.

Assim os moleques crescem acostumados a destruir livros e revistas e a ver os repositórios de conhecimento como objetos improvisados e passageiros. No futuro essas crianças não vão se importar em comprar livros, vão se contentar com cópias feitas na xerox da faculdade, que depois serão jogadas fora. As cópias não ficam marcadas na lembrança e nem sobram na estante como recordações dos tempos acadêmicos.

A nossa escola ensina o aluno a odiar livros.


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