Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
05
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 16:51link do post | comentar

A Mercearia Santa Cecília é um desses lugares típicos de cidade pequena. Lá se vende de tudo um pouco, mas principalmente pães, bolos e biscoitos. Àquela hora da tarde estava movimentada por dezenas de funcionários de escritórios e lojas, que se revezavam a tomar xícaras de café expresso acompanhadas de pão fresco com manteiga. O ar estava impregnado destes odores característicos e da conversa e dos risos das moças e e dos rapazes, cortado pelos olhares fumegantes dos velhos que viam aquelas formas fartas e juvenis, aquela alegria quase esquecida deles. Uma senhora idosa comprava queijo e presunto fatiados, esquecida de tais olhares, preocupada com outra espécie de coisas, como Deus e os netos. Todos era fregueses habituais e se conheciam pelos apelidos. As conversas eram sobre assuntos imediatos, códigos instantâneos derivados de referências espontâneas. Quem ouvisse dificilmente saberia com exatidão do que se falava.

Mas naquela tarde, como em outras anteriores, a conversa foi momentaneamente habitada pela presença de um estranho. As moças deixaram por um momento de tagarelar sobre os mesmos namorados que revezavam no mesmo baile do mesmo clube na praça ali perto, os rapazes deixaram de cruzar olhares com elas, ou com outros rapazes e os velhos, por um momento, esqueceram das pernas das jovens e deixaram livre sua curiosidade sobre o forasteiro que entrou e pediu uma média com pão com manteiga. Ele tinha na voz uma inflexão estranha, um jeito de dobrar as consoantes e de prolongar as vogais que denunciava que vinha de longe, talvez até de outro estado. Com alguma sorte poderia ser estrangeiro.

Era um homem sisudo, de nariz ligeiramente adunco e cabelos negros retintos. Sua barba, que devia ser igual, transparecia através da pele pálida como uma sombra. Estava vestido de uma forma que não chegava a ser extraordinária, mas parecia um pouco fora de moda, ou talvez já fosse a nova moda que ainda não tinha chegado na cidade. Ele chegou andando calmamente, pediu licença com toda educação, abriu caminho até o balcão de aço escovado e, depois de dar um sorriso de propaganda de creme dental, fez seu pedido, mirando nos olhos da balconista de um jeito que a fez se sentir despida. Depois o sorriso se fechou de novo, como se não tivesse sido nunca aberto, e o rosto do estranho ficou a parecer uma máscara de madeira.

A balconista aproximou-se dele com cuidado, quase querendo cruzar os braços diante do busto que aparecia excessivamente no decote ousado — esta curiosa espécie de pudor que as mulheres têm quando sua ousadia faz efeito. Certificando-se, um pouquinho decepcionada, de que ele já não estava prestando tanta atenção às suas formas, perguntou-lhe o que seria.

— Uma média e um pão com manteiga na chapa — ele respondeu.

Sem mostrar reação, a balconista deu-lhe as costas e preparou o pedido com a precisão peculiar de quem faz a mesma coisa muitas vezes por dia. Com a faca serrilhada, partiu facilmente ao meio um pão e o untou com a manteiga meio derretida que estava em um pote ao lado da chapa quente. Com uma espátula, manipulou as fatias até dourarem e depositou-as em um pratinho já coberto por um guardanapo de papel. Depois rodopiou até a máquina de expresso e extraiu meio copo de café densamente negro e perfumado. Trouxe ao balcão o pratinho com o pão com manteiga e pôs ao seu lado o copo com café e completou-o até a borda com leite morno, extraído de uma leiteira de aço.

— Muito obrigado — agradeceu o estranho.

E contemplou o copo repleto, talvez se perguntando como faria para adicionar o açúcar. Tendo se certificado de que isto seria bem difícil, tratou de sorver um gole inicial sem doce mesmo, ao preço de uma careta e de uma mordida prematura em uma das fatias de pão, deliciosamente queimada na borda, como convém. Tendo obtido algum espaço no copo, derramou nele um pouco de açúcar e começou a mexer com a colherinha.

O modo como mexia a colher para misturar o açúcar, a delicadeza antiquada com que envolveu a fatia de pão no guardanapo de papel, sua paciência de bebericar o café com leite entre sopros quase inaudíveis… Cada uma destas coisas era normal, somente o conjunto delas surtia o efeito de estranhamento. Aquele homem passava impressão de meticulosidade, de cálculo, uma elegância que não era, de forma alguma, habitual.

O estranho não sabia que sua chegada cortara conversas, diminuíra o volume das vozes, retivera atenções. Teria sido, de certa forma, um conhecimento inútil, considerando seus objetivos. Objetivos que, por outro lado, eram a principal curiosidade para as pessoas que estavam no estabelecimento enquanto ele inocentemente tomava sua média e comia seu pão com manteiga.

Quando já estava por terminar, chamou novamente a atenção da balconista, mas da segunda vez não foi para outro pedido:

— Estou procurando um endereço, poderia me ajudar?

A balconista interrompeu por instantes sua volta à rotina e lhe concedeu migalhas de atenção. O estranho tirou do bolso um papel amassado, no qual se lia um endereço próximo, em caligrafia apertada e angulosa — que até parecia letra de médico. O estranho parecia bom conhecedor da alma humana e, entrevendo a curiosidade feminina, tratou de saciá-la para comprar cooperação:

— Um amigo que mora nesse endereço telefonou me convidando a uma visita. Acontece que nunca vim a essa cidade e não tenho ideia de onde fica esse lugar.

A balconista, tendo conseguido decifrar o hieróglifos, apontou uma direção:

— É pertinho. Segundo prédio, descendo a calçada.

— Muito obrigado. Quanto é tudo?

Diante do preço, o freguês talvez tenha imaginado que até a informação tinha sido incluída na conta. Mesmo assim agradeceu de novo e seguiu a direção indicada. Vários olhares se cravaram em suas costas enquanto ele saía, mas depois se perderam de novo em suas conversas cotidianas. Talvez apenas o forasteiro tivesse ficado um pouquinho preocupado se tivesse percebido que a moça do caixa, uma loura vesga e magra que usava a roupa larga, talvez para disfarçar uma magreza anômala, pegou um telefone móvel e avisou, numa ligação brevíssima: “Ele chegou”.

O estranho caminhou mais alguns passos, olhando com atenção as plaquinhas com os números dos prédios, pois já passara antes duas vezes pela mesma rua se notar o 433. Daquela vez, porém, conseguiu achar: estava oculto dentro de uma varanda, perto dum vaso de samambaia. Ao lado da varanda subia uma escadaria. “Número 433, Segundo Andar.” Só poderia ser lá.

A porta ficava na lateral do apartamento, oculta da visão da rua graças ao pórtico de cimento que havia sobre a saída da escadaria, no qual se localizava uma jardineira cheia de voluptuosos arbustos com flores. Tocou a campainha.

O apartamento estava todo fechado e de dentro só se ouvia um ruído muito baixo, como o de um aparelho elétrico funcionando continuamente. A custo pôde ouvir o raspado de passos que se aproximavam da porta. Conseguiu imaginar o amigo verificando pelo olho mágico se era era seguro abrir, e isto deu-lhe a impressão de que a vizinhança não seria segura como parecia.

O forasteiro não poderia estar pronto para a cena inusitada com que se deparou quando a porta foi aberta: uma figura vestida de negro dos pés à cabeça, esta quase completamente envolta por um engraçado chapéu pontiagudo, revestido de papel aluminizado. O formato daquele adereço concentrou a atenção do forasteiro, que tinha ganas de rir, mas receava ferir os sentimentos de seu anfitrião. Por fim, num esforço da vontade, desviou o olhar do misterioso chapéu e percebeu que o jovem que atendera à porta também estava calçado de pantufas de veludo e usava óculos com aros de plástico, emendados com epóxi.

Depois de alguns instantes de estranhamento, o forasteiro pôde conectar a figura que tinha diante de si com a fotografia conhecida da pessoa que o convidara:

— Vítor? Que…?

— Boa tarde, Chico.

— Eh, sim. Boa tarde. Mas… que diabo é isso na sua cabeça?

— Isso!? Ah, uma longa história. Entre.

Conheciam-se da Internet. Eram coproprietários de uma “comunidade” de usuários em um sítio de relacionamentos. Trocavam mensagens eletrônicas quase diariamente, mas não haviam nunca sequer ouvido a voz um do outro. Apesar disso, haviam desenvolvido um respeito mútuo, construído exclusivamente a partir da capacidade que cada um demonstrava ao argumentar.

Nada disso, porém, daria ideia da cena que Francisco achara. A visão de Vítor naqueles trajes, àquela hora da tarde, não era fácil de aceitar racionalmente. E Francisco era um homem do tipo racional e razoável, com atitudes e conceitos bastante normais para os fatídicos anos 2000. Especialmente considerando o tipo de nicho em que a “comunidade” estava inserida.

Para Francisco, as personalidades que empregava na internet eram todas ficções, imposturas que lhe convinham, pordiversão ou por estratégia. Mas sabia separar os “cavaleiros das trevas” daquilo que ele próprio realmente era. Sabia, porém, que algumas pessoas não têm a mesma capacidade, ou preferem assumir personalidades semelhantes, dentro e fora do virtual. E nem sempre fica claro qual se baseia em qual. No caso de Vítor, pesava a forte suspeita de que a personalidade real havia sido, de algum modo, alterada pelas experiências que o virtual proporcionara.

Aceitou o convite já meio receoso. Temia encontrar, talvez, o porão cheio de esqueletos, ou o refrigerador cheio de cadáveres semidevorados de garçonetes. Demorou a se acostumar à penumbra que reinou na sala depois que Vítor fechou a porta por onde entrara. As vidraças estavam meticulosamente cobertas, deixando passar só algumas gotas esparsas da luz forte do sol de setembro.

Quando os olhos se acostumaram, notou a natureza do estranho brilho que brevemente percebera quando a porta fora aberta da primeira vez: as paredes eram meticulosamente cobertas de papel aluminizado — certamente o material que vedava as janelas e impedia a luz da primavera de entrar. Mesmo diante de mais esse choque, manteve-se frio e tentou conduzir uma conversa normal:

— Não sabia que você usava óculos.

— Ah, sim. Quase só tiro fotos sem. Por causa do reflexo.

Por mais que tentasse se controlar, era impossível. Dentro de suas orelhas lhe gritavam perguntas teimosas, que precisavam ser feitas:

— O que significa isso, Vítor? Esse papel alumínio…

Vítor pareceu surpreso pela pergunta:

— Uai, Francisco? Você, mais do que ninguém, deveria saber…

De fato sabia. Só não conseguia imaginar que Vítor levasse a sério a história de proteção contra forças espirituais malignas que vagam no etéreo. Para Francisco, grimórios eram apenas antigos incunábulos medievais e renascentistas com obscuras fórmulas de paganismos esquecidos, assunto meramente literário e histórico, de forma alguma real. Mas ali estava, diante de seus olhos, o coproprietário e principal moderador da comunidade “Livros Malditos” residindo em um apartamento de paredes cobertas por papel-alumínio. A implicação disso era ainda mais grave: como as forças do etéreo supostamente só se interessavam em impedir a obra dos evocadores, colocar proteção contra elas significava que o morador daquele apartamento andava conduzindo seus próprios rituais na Tradição. Pela primeira vez Francisco se sentiu enervado de estar ali. Tentou contemporizar:

— Vítor, eu não creio que papel-alumínio…

— Psiu, ouça.

Francisco calou a boca e ouviu apenas a passagem de um carro. Algo decepcionante para o outro. Quando quis retomar o assunto, Vítor já tinha sequestrado a conversa para outro rumo:

— Na verdade é algo que também venho pensando, Chico. Papel-alumínio talvez não seja uma proteção eficaz. Talvez tenhamos de obter algo melhor.

Começou temer que o Vítor estivesse louco. No caso de estar tentando obter o “algo melhor” que Francisco imaginava, loucura teria sido pouco. Mas, mesmo dentro dos limites de sua crença absurda, ele continuava se comportando de forma aparentemente coerente. Convidou-o a sentar-se e ofereceu suco de laranja.

— Há umas coisas de que preciso lhe pôr a par, Chico. Imagino que recebeu meu convite para a comunidade nova esta semana, não?

— A “Confraria dos Temerários”? Sim, recebi. Até já aceitei e, se não me engano, você até me pôs como coproprietário.

— Era o mínimo a fazer, pois você me fez coproprietário da “Livros Malditos”. Devo-lhe muito dos meus conhecimentos, caro Francisco. Por isso, mesmo estando a ponto de superar o que você me ensinou, eu me sinto no dever de compartilhar tudo contigo.

— Só não entendi o propósito da “Confraria”. Não ficou claro para mim que tipo de experiências teremos. Afinal, você diz na descrição que não se trata de nada conhecido, nenhum grimório antigo… Parece que não quer, ou não sabe dizer do que se trata. Aliás, foi justamente a curiosidade em saber o tipo de trabalho que vocês pretendem fazer que me trouxe aqui.

— Exato, exato. Tive um conhecimento novo esse mês, Chico. Algo fascinante, inacreditável. No entanto, para ir até o fundo disso que descobri, vai ser preciso obter a ajuda e a energia de mais pessoas. Preciso dessa ajuda para conseguir fazer andar algo que pode mudar nosso entendimento da magia simpática tradicional.

Francisco teve vontade de contar a Vítor que “magia simpática tradicional” era para ele apenas objeto de estudos filológicos, antropológicos, históricos, etc. Reteve a confissão na boca ao pensar que, se Vítor não percebera isso nos dois anos em que fora coproprietário da “Livros Malditos”, não seria mesmo elegante — e nem seguro — jogar-lhe isso à cara naquele momento.

— Tudo bem, quando faremos o sacrifício humano? — perguntou, de forma irônica e preocupada. Se desconfiava da sanidade do amigo, melhor averiguar logo até que ponto estava fora de si.

— Que sacrifício humano, Chico? Está doido, ou esqueceu de tudo? Sacrifícios humanos não são para isso. Estamos falando de forças elevadas e não de necromancia barata.

— Exatamente que tipo de forças?

— Você logo saberá.

Francisco sentiu-se meio idiota por ter pensado em sacrifício humano, mas era tranquilizador saber que o claro desatino do amigo não atingia proporções homicidas. Confortado, resolveu jogar segundo as regras do outro. A tarde estava perdida mesmo.

— Muito bem, então vamos logo.

— Venha comigo.

Levantaram-se e saíram da sala para a copa. Lá Francisco teve outra visão chocante: havia mais quatro pessoas, três mulheres e um homem, todos vestidos de negro como Vítor, usando semelhantes chapéus pontudos e revestidos de alumínio, ao redor de uma mesa de madeira negra.

— Boa tarde, Grão-Mestre — disseram em coro.

— Grão-Mestre? Como?

— Antes de explicar, Chico, apresento os confrades Valdo, Lúcia, Patrícia e Cátia.

Ele disse os nomes apontando a cada um, cada vez sendo concluída com um aceno de cabeça. Valdo era um jovem sardento e um tanto magro, que roía as unhas desagradavelmente. Lúcia era a mais alta, a mais corpulenta também, a mais desagradavelmente pálida. Patrícia tinha uma pele morena bem mais saudável, uma certa determinação no olhar que sugeria um pouco de estabilidade emocional. Cátia, por sua vez, não tinha nenhuma característica que ressaltasse e poderia ter uma aparência quase normal não fosse o piercing na língua e a maquiagem exagerada. Aquele grupo de confrades não parecia muito promissor.

Cátia ergueu a voz, firme e rouca, pedindo a Francisco que se sentasse à cabeceira da mesa, de costas para uma parede de que pendia uma cortina escura. Ele obedeceu, quase mecanicamente, e aguardou que as coisas caminhassem com naturalidade porque, de fato, não tinha a mais remota ideia do que estava fazendo ali no meio daquela gente. Apenas vestiu uma expressão séria no rosto, pôs as mãos sobre a mesa e olhou para os demais, esperando que lhe dessem a deixa do que deveria dizer ou fazer. Tendo deixado Francisco à vontade à cabeceira da mesa, Vítor pediu silêncio e passou a explicar os propósitos da reunião.

— Nosso plano é executar uma Grande Obra Mágika, a partir de certas informações que descobrimos recentemente. Já faz um mês, pelo menos, que estamos nos reunindo pela Internet para acertar os detalhes. O que nos faltava era só alguém com conhecimento dos mistérios que nos pudesse guiar pelo Caminho. Então surgiu o seu nome: você é dono da “Livros Malditos”, autor de vários artigos sobre antigos grimórios e ritos perdidos, artigos que nós todos lemos e de que aprendemos muita coisa. Você possui e leu inúmeras obras sobre Mágika, tais como o “Ramo Dourado” de James Frazier, o “Dogma e Ritual” de Papus, etc. Além disso, você foi o único que deu a entender que já tinha ouvido falar do Ritual do Livro Branco. Por isso, embora eu inicialmente não pensasse em trazê-lo ao grupo, você se mostrou a pessoa mais indicada, mais até do que eu mesmo, para a missão que vamos começar nesta tarde. Amigos, provaremos o Desconhecido.

Então Francisco entendeu o motivo da reunião. O Ritual do Livro Branco era uma das coisas mais estranhas e esquizofrênicas de que ouvira falar, com alto potencial de causar demência ou, pelo menos, irremediável perda de tempo. Consistia em tentar produzir o livro mágico original a partir da inspiração de uma “alma coletiva” criada em um “círculo de energia mística” reunido em local especialmente configurado — o que explicava o revestimento de alumínio, para “isolar” influências exteriores, as roupas pretas, para evitar que a atenção fosse distraída por cores, e os chapéus pontiagudos, que funcionariam como antenas de captação da tal energia mística. Do meio das bobagens que seriam obtidas, os praticantes isolariam padrões e textos que permitiriam obter uma revelação da perfeição original. Seria um processo longo e difícil, pois haveria muito material para analisar e não era possível dividir o trabalho entre dezenas ou centenas de pessoas sem reduzir a qualidade. Talvez por esta razão, o sistema nunca fora implementado antes. Era incrível que alguém, em pleno século XXI, tivesse concebido uma coisa tão supersticiosa e ignorante do real sentido da magia antiga, mas era concebível que jovens sem nenhuma formação em Antropologia ou História se deixassem fascinar por tal coisa. Pelo menos não era um ritual que envolvesse sacrifício humano.

Fingindo fechar os olhos, mas mantendo-os ligeiramente abertos, Francisco começou a pensar nas opções que tinha. Se deixasse o apartamento zombando das crenças deles, todos certamente ficariam todos muito ofendidos, mas isso talvez não os demovesse de sua obsessão. Se ainda continuassem pensando em fazer magia tentariam fazê-lo sozinhos, sem a presença de alguém mentalmente estável que pudesse interromper a loucura quando a coisa saísse dos eixos ou, pior, poderiam encontrar alguém ainda mais louco e perigoso para servir-lhe de guia. Mas se ficasse, teria uma chance mínima de mostrar-lhes, usando sua recente autoridade de Grão Mestre, que era tudo uma grande bobagem. Por isso, ou por ter sido seduzido por esta expectativa de poder, disse “sim” ao estranho grupo diante do qual exerceria desde o primeiro momento, o papel de supremo líder.

— Eu aceito, claro, mas com uma condição: preciso saber, desde já, o que vocês pretendem quando conseguirem preencher o Livro Branco.

Os cinco se entreolharam, meio perdidos, ou receosos.

— Queremos o conhecimento — respondeu o sardento.

— Conhecimento para obter o amor — disse Lúcia, sem disfarçar os dentes tortos.

— Poder, controle, autocontrole — disse Vítor.

As respostas eram coerentes com o tipo de pessoas que os cinco mostravam ser: inseguros, socialmente reclusos e mentalmente instáveis. Certamente custava-lhes um esforço imenso o comparecimento àquela reunião. Para pelo menos um deles aquela poderia ser a primeira vez que entrava em uma casa estranha. Francisco se identificou com eles, de certa forma. Dez anos antes também tinha sido inseguro e triste, recluso e cheio de ansiedade pelo amor. Talvez conseguisse ajudar aqueles cinco a superar seus bloqueios sem os sofrimentos que ele próprio tivera que vencer. Esta magia poderia ser mais útil do que qualquer fórmula boba escrita em um caderno. Enquanto estivessem trabalhando naquela obra inútil, pelo menos estariam construindo relações de amizade, rompendo o casulo que os isolava em seus mundos particulares. Com alguma sorte, poderiam desistir daquilo e seguir com a vida, levando algo de bom.

— Como pretendem conseguir fazer a análise? Das outras vezes em que isso foi tentado não resultou em coisa alguma. Lembro-me agora que uma tal Jeanneline Dubois tentou na Luisiana, há cerca de quarenta anos. Ela ficou oito anos estudando milhares de folhas de rascunhos e só produziu cinco laudas de texto fragmentário.

— Temos algo que não existia há quarenta anos.

Na parede oposta havia um móvel de madeira escura, parcialmente coberto por uma toalha bordada. Vítor se levantou, foi até lá e o descobriu, mostrando um computador pessoal.

— Pretende processar eletronicamente os textos?

— Exato. Este computador foi cuidadosamente preparado para esta tarefa. Para começar, nós compramos suas peças separadamente em depósitos de ferro-velho eletrônico e o montamos nós mesmos. Em seguida compilamos para ele uma distribuição Linux contendo exclusivamente o software de que precisamos. Estamos quase terminando de escrever o código do compilador que vai analisar as amostras de textos. Quando pronto, imprimiremos o documento com esta impressora.

Vítor abriu a porta e mostrou, no cômodo ao lado, uma gigantesca máquina que parecia saída de um filme de ficção científica de trinta anos antes.

— O que esta impressora tem de especial? Além de enorme?

— Trata-se de uma laser de baixa definição, clone das Apple antigas, ainda do tempo do DOS.

A simples presença daquela impressora ali no apartamento era quase tão surreal quanto os chapéus revestidos de alumínio.

— Onde conseguiu esse dinossauro?

— Você nem imagina o que se pode comprar nesses sítios de leilões.

— Não quero nem pensar no quanto ficou caro remeter isso lá da Rússia, ou seja de onde for!

— Com certeza ficou bem caro, mas valeu a pena.

— Por que?

— Como você sabe muito, todas as impressoras fabricadas ou homologadas nos Estados Unidos desde há pelo menos vinte anos contêm um código de identificação embutido no padrão da tinta ou na distribuição do toner. Isto quer dizer que seria possível, com algum trabalho, identificar a origem de qualquer documento, descobrindo qual impressora o imprimiu.

— Então esta impressora,especificamente, deve ter este padrão.

— Só que ela já foi comprada e vendida inúmeras vezes. Nós a compramos, na verdade, de um ferro-velho eletrônico, quase a um preço de banana. Gastamos mais dinheiro trazendo-a para cá e tentando consertar do que realmente pagamos nela.

— Tudo isso para apenas ter uma impressora difícil de rastrear? Isto é loucura!

— Não diga isso, você mesmo já escreveu que “nada que seja feito para proteger a liberdade de expressão pode ser chamado de erro”.

— De fato, mas… era necessário chegar a esse ponto?

— Certamente. O Livro Branco teria o poder de mudar o modo como vemos e entendemos o mundo. Quando ele surgir, metade das religiões e filosofias se tornará história. Certamente esse impacto não será bem-vindo e por isso acreditamos que haverá um grande interesse em censurá-lo, seguido de uma tentativa de destruir quem o produziu.

Francisco olhou em volta. Os olhos e rostos daqueles garotos estavam cheios de vontade de mudar o mundo, e eles acreditavam com toda sinceridade que conseguiriam mudar o próprio curso da civilização com os seus atos. Como somos ingênuos quando jovens! Parece tão fácil manipular a funda de Davi! Era fácil sentir simpatia por eles, mas ao mesmo tempo era difícil deixar de lado a impressão de que estavam lamentavelmente fora de controle em suas ideias de revolução. Era difícil até supor que conseguiriam produzir o Livro Branco, então como dedicar tanta preocupação às consequências?

— Preciso saber em que ponto estão. Mostrem-me seu trabalho.

Vítor abriu uma pasta preta que estava sobre a mesa e começou a distribuir material. Nessa tarefa ele era exímio e só mais tarde Francisco entendeu porque, quando soube que era bibliotecário. Inicialmente vieram blocos de notas pautados e canetas pretas de ponta grossa, adequadas a míopes. Por fim a apostila, impressa em letras góticas de leitura desconfortável, na qual estava explicado, em linhas gerais, o Ritual do Livro Branco.

A origem da apostila, traduzida de um jeito capenga, como se o tradutor fosse mais fluente em inglês que no vernáculo, era a Internet, um sítio pseudo pagão britânico, cujo endereço ficara impresso no rodapé de cada página, certamente por descuido de quem formatara tão às pressas aquele documento.

— Na verdade esta é a primeira vez em que nos reunimos presencialmente. Todos os contatos anteriores foram pela Internet. Porém, traçamos um plano geral do que sabemos e do que pretendemos. Esta apostila é a que mais se aproxima do que já sabemos. E esta — indicou outra ainda não traduzida, que parecia estar em um idioma diferente do inglês — parece conter boa parte do que ainda precisamos saber. Não temos, infelizmente, o trabalho de Jeanneline Dubois.

— Posso providenciar isso depois. Agora, por favor, alguns minutos de licença.

Começou a ler. Eram quatorze páginas, uma leitura rápida para quem tinha leitura dinâmica. Ao final, depositou a apostila sobre a mesa com cuidado e olhou nos olhos dos confrades.

— Vamos precisar de mais do que seis pessoas para fazer tudo isso. Eu já tinha ouvido falar do Ritual do Livro Branco, mas o procedimento que está descrito nesta apostila é mais complicado. Jeanneline seguiu um procedimento muito menos complexo, talvez porque trabalhava sozinha e tinha noção de suas limitações. Certamente pode funcionar, porque os princípios são corretos, mas isso não é trabalho para meramente seis pessoas. Na verdade, acho que nem sessenta pessoas, em toda uma vida, conseguiriam levar esta obra até o final.

— Está esquecendo do computador.

— Mesmo com o computador continua sendo um Trabalho de Hércules. Imagino que o computador só será útil na fase de análise textual, isto se tivermos até lá conseguido desenvolver um algoritmo de procura que permita localizar os trechos relevantes. Antes sequer de começar a fazer esse processamento, será preciso obter o material fonte e digitar tudo. Sem falar que alguns elementos não são fáceis de processar eletronicamente, como desenhos, gráficos, acrósticos e caligrafias.

— Na prática isto quer dizer: “começar logo”.

— Na prática isto quer dizer: “mais gente”.

— Temos mais gente, não se preocupe.

Vítor se ergueu da mesa, ao toque quase imperceptível de seu telefone móvel, e foi abrir a porta. Entraram mais quatro pessoas, entre elas a moça loura e vesga que trabalhava no caixa da mercearia. Vítor beijou-a na boca e lhe fez uma carícia nos cabelos de múmia. Todos vieram para a copa, onde se localizava a mesa de reuniões. Mais cadeiras foram providenciadas.

— Então somos dez? — indagou Francisco.

— Doze — interveio a recém-chegada namorada do Vítor — mas os outros tiveram que se atrasar hoje, por compromissos de trabalho.

— Acha que é suficiente, Vítor?

— Não sei. Sinceramente não sei. Mas vamos começar com o que temos…

Esta pequena dose de realismo, talvez até de humildade, parecia destoar da autoconfiança quase excessiva que predominava no grupo. Indício isolado de racionalidade, sinal de que não havia sido perdido todo o contato com a lógica, apesar do comportamento paranoico que o grupo exibia. “Não é paranoia quando realmente estão atrás de você” — dizia um antigo humorista. Será que realmente viriam atrás do grupo? Ou estaria Francisco sucumbindo às suas ilusões?

A loura vesga entregou um embrulho a Vítor, que o guardou na geladeira depois de agradecer com outro beijo que quase dava asco, tanta a feiura da moça. Talvez o beijo fosse uma prova melhor de insanidade do que a própria conspiração em que estavam metidos.

— Com o que, então, devemos começar a tentar obter o material base dos estudos — interveio Francisco, tentando evitar que a reunião degringolasse para uma exibição de carícias de Vítor na vassoura de piaçava amarela.

— Exatamente — disseram vários, em coro ansioso que demonstrava sentimentos possivelmente semelhantes.

Então todos se sentaram em torno da mesa, enquanto Vítor trazia mais material de trabalho. Francisco olhou pela janela e viu o sol escaldante lá fora, pensando consigo que seria melhor ficar pelo menos até a tarde refrescar. “Depois vou embora e desapareço, antes que resolvam me matar”.


15
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 17:12link do post | comentar | ver comentários (2)

Comecei tendo os primeiros sintomas quando era ainda estudante. Vivia longe da família numa cidade distante e demorei a me enturmar com os meus colegas da faculdade: eles zombavam de meu dialeto, me chamavam de caipira e não compreendiam os meus valores. Isto me afastava das festas das repúblicas e progressivamente me empurrou para longe da vida social: aluguei um apartamento no centro da cidade e tinha um emprego de meia jornada.

Posteriormente eu me formei e o meu chefe me ofereceu o emprego em tempo integral, com um aumento de três vezes no salário. Eu fiquei na cidade e todos os meus antigos colegas voltaram para suas casas distantes, entre eles a única namorada que eu tive durante cinco anos de estudos. Meus pais continuaram vivendo em Santa Rita do Sul, a duzentos e vinte quilômetros de distância. Tentei várias vezes retornar, mas nunca consegui perto de casa um emprego que me pagasse tão bem. Era 1999 e eu já ganhava 920 reais por mês, administrando a contabilidade da empresa.

Nos fins de semana os estudantes sempre iam embora, deixando a cidade vazia como um cenário de filme. Eu sentava na escadaria do adro da igreja no sábado à tarde, com um lanchinho posto em forma de piquenique. Lá do alto do morro eu me sentia isolado, desconectado, como se a Matriz existisse em outro universo. Quando passava algum carro lá embaixo, na rua, eu quase nem o ouvia: o calçamento de pedregulhos fazia os motoristas acelerarem pouco, não chegando a romper a calmaria.

Não havia nada no sábado à noite, a não ser os bailes da Terceira Idade. A cidade não tinha rádio, não tinha discoteca, não tinha exposição. Tinha uma infinidade de casas que sediavam repúblicas, casas que ficavam vazias como mausoléus quando chegava o fim de semana. Os colegas de trabalho eram quase todos vinte anos mais velhos do que eu, ou então garotos que viviam em cidades próximas e voltavam de ônibus para casa no final da manhã de sábado. Somente eu ficava, vagando pela cidade como uma alma penada no cemitério.

Quando finalmente comprei o carro e consegui aprender a dirigir, já havia me acostumado tanto com a solidão que tinha dificuldades para saber aonde ir. Dirigia até o trevo na saída da cidade, estacionava em um terreno baldio e olhava, intimidado, para os destinos múltiplos, para as placas verdes que indicavam lugares distantes. Tinha medo da estrada, medo do trevo, medo da vida.

Demorou muito tempo, porém, para que eu percebesse que estava doente. Inicialmente eu pensei que tinha algum tipo de problema do espírito e somente depois do fracasso da fé entendi que não era nada disso. Mas continuava sozinho.

Havia alguma coisa errada comigo, isso eu sabia. Alguma coisa de muito errada, alguma coisa que me afastava das pessoas, que me podava o caminho da felicidade. Mas em vez de reagir a isso eu me trancava, eu comprava cortinas escuras para as janelas, instalava filme escuro nos vidros do carro, mandava porem cortiça nos batentes das portas para isolar os ruídos de fora.

Conheci o Doutor Aristides no clube. Eu tinha comprado uma quota, mesmo sabendo que lá só encontraria senectude e solidões. Mas o Doutor Aristides era diferente. Tinha uma jovialidade estranha para os seus setenta anos de idade, mesmo sem pintar os cabelos. Sua fala era firme como a de um locutor, seus dedos manuseavam o baralho com a segurança de um mágico. Tinha sido médico da Marinha por muitos anos e se acostumara a tratar todo tipo de “esquisitices”.

Convidou-me ao seu consultório, com a promessa de curar-me. Não prometeu rapidez, no entanto. Era um “psicólogo homeopata”, e acreditava que a cura seria um processo a depender do próprio indivíduo, em vez de um efeito de medicamentos.

— Eu poderia receitar-lhe química maravilhosa, que interferiria com o seu cérebro e o faria sorrir. Mas eu não consigo enxergar dentro dos sorrisos das pessoas que usam essas substâncias, não sei se estou realmente fazendo-lhes bem ou prendendo suas almas dentro de sorrisos rígidos. Por isso eu estou desenvolvendo um novo tratamento, que estou chamando de “psicologia homeopática”. Claro que não é um tratamento aceito ou recomendado pelo CRP, mas eu posso me dar ao luxo de fazer estas extravagâncias agora. Estou aposentado e nada mais tenho a perder no mundo, se resolverem me cassar esta carteirinha preta com essa bela letra grega em dourado. Tenho bastante dinheiro para ser louco e tenho bastante loucos dispostos a tudo para salvar-se de seus demônios.

— Estou louco, doutor?

— Todos estamos, meu amigo — ele dizia.

Não me cobrava pelas consultas. Dizia que já tinha cobrado suficiente ao longo da vida para ter a casa e seu consultório.

— Mas não estou fazendo caridade, entenda. A não ser, talvez, comigo mesmo.

Demorou muito tempo até que eu entendesse o que o Doutor Aristides quisera dizer com esta observação.

O tratamento que ele propunha se baseava nos princípios de Hahnemann: simila similibus curantur.

— Para tratar-se de teu mal, o que precisas é de pequenas doses controladas deste próprio mal. Assim como amor com amor se cura, solidão se curará com solidão.

— De que forma eu posso ter doses controladas de solidão?

— Uma das coisas curiosas a respeito dos solitários é que frequentemente eles são interrompidos naquilo que fazem em suas horas de solidão. Desta forma, mesmo não tendo companhia real, eles não conseguem usufruir plenamente de sua solidão. Então é preciso que desenvolva métodos e rituais que lhe assegurem que os seus momentos de solidão sejam de solidão verdadeira. Que não sejam interrompidos por um imbecil cobrando-lhe a conta do condomínio ou por um boçal tocando música em uma festinha de aniversário.

Por isso eu gostava de fazer piquenique no adro da igreja: ali eu estava imerso em meus próprios pensamentos e ninguém aparecia para interromper!

— Mas, Doutor. Não existe o risco de continuar sozinho o tempo todo?

— Sim, claro. Como ai dizendo. A falta de fruição completa da solidão nos momentos que deveriam ser-lhe dedicados faz com que o indivíduo acabe tendo vontade de estar só nos momentos em que deveria buscar companhia. É mais ou menos como a fome que se tem durante a tarde quando o almoço é insuficiente. Mas você não deve comer entre as refeições, porque isso o tornaria gordo e lerdo com o passar do tempo. Da mesma forma, procurar ficar sozinho em outros momentos em que não deveria estar, fará com que se torne arredio e socialmente inapto.

— E em que consiste o seu tratamento, Doutor?

— Basicamente em duas coisas: assegurar a solidão perfeita e satisfatória nos momentos em que for necessário que o indivíduo esteja sozinho e, por outro lado, procurar impedir totalmente que a solidão se manifeste em todos os demais momentos de sua vida. Acredito que se conseguirmos um grau elevado de preservação destes dois momentos distintos, isolando-os entre si, a doença da solidão pode ser controlada ou, talvez, até mesmo curada. Estou iniciando o cadastramento de um grupo de voluntários para submetê-los a este tratamento que concebi. Se desejar participar, eis meu cartão.

— Não tenho dinheiro para um tratamento psicológico longo, Doutor. Ganho bem, mas não tão bem assim. A menos que o senhor tenha convênio com o meu plano de saúde.

— Não diga isso. Eu não lhe cobrarei nada. O senhor é que deveria ser pago por dispor-se a ajudar no progresso da ciência.

Peguei o cartão enquanto nos despedíamos depois de outra tarde de carteado e fui para casa determinado a ligar. Resolvi, no entanto, que tendo o Doutor me dado uma descrição tão completa e funcional de seu método, não era necessário que eu o procurasse: poderia automedicar-me, conduzir eu mesmo o tratamento, obtendo minha melhora sem o constrangimento de ter de frequentar um consultório de psicólogo.

Por isso, acabei ligando para o Doutor Aristides e comecei na segunda feira seguinte o tratamento. Reservei e cronometrei estritamente as horas de minha vida em que deveria passar estritamente só, sem a possibilidade de que me interrompessem. Durante estas horas, segundo o Doutor, eu deveria mergulhar o mais profundamente possível em meus próprios pensamentos e ideias, em meus sonhos frustrados de infância, em meus projetos pequenos de futuro.

Mas não funcionou. Embora eu tivesse algum sucesso em isolar-me melhor nos momentos de solidão, continuava sendo extremamente difícil impedir que a solidão pervagasse como uma sombra todos os demais momentos de minha vida. Impedir isso se mostrou muito cedo uma coisa impossível, acima das capacidades de um indivíduo.

O Doutor Aristides me recebeu sem questionar a demora. Ao lhe indagar a tolerância ele admitiu que a maioria das pessoas nunca aparecia:

— O ser humano parece acreditar que pode curar-se da solidão sozinho.

Eu já conhecia a essência do método, só não estava a par de sua implementação. Surpreendeu-me a longa sequencia de perguntas que o médico me fez. Quando terminamos todos aqueles testes, aquelas perguntas de livre associação, aqueles cartazes com borrões e outras coisas curiosas; ele me olhou nos olhos e decretou:

— O tratamento para a solidão consiste em um tipo de terapia de grupo.

— Algo como os alcoólicos anônimos? Aquela coisa de reuniões em torno de um grande círculo e filmes educativos e preces a Deus, etc.?

— Não, absolutamente nada disso. Você não tem um vício, você não é um pecador, você não comete crime algum. Você não precisa de perdão e nem de reedificação moral. Você é um doente que precisa de um tratamento. Só que o único tratamento possível é de uma natureza tal que se torna impossível levá-lo adiante sem ajuda.

Ele abriu um armário cheio de caixas de remédios atravessadas por tarjas pretas. Aqueles frascos diabólicos bem poderiam estar estampados com caveiras em vez dos logotipos ameaçadores de laboratórios mágicos localizados em cidades míticas.

— Eu poderia lhe receitar alguns desses. Aliás, pegue os que quiser no caso de querer ter uma viagem, eu lhe receito as doses seguras.

Afastei-me do armário como se ele contivesse feitiços poderosos.

— Mas estas substâncias não o curariam. Elas o fariam sorrir, certamente. Elas o fariam perder a vergonha e o fariam sonhar melhor. Todas essas coisas são boas, mas eu não acho bom tomar remédios para elas porque isso aí — ele apontou os frascos com o beiço — é como antitérmico para pacientes tuberculosos. Você quer ficar sem febre? Pode tomar alguns comprimidinhos. Mas a infecção está lá dentro, roendo a sua vida. Quer rir? Este daqui é ótimo — ele exibiu um frasco de Prozac — para isso e para outras coisas mais. Mas de que adianta rir com a boca e com a mente consciente se as causas de sua tristeza estão lá dentro enterradas, prontas para germinar no dia em que a dose falhar ou seu dinheiro para comprar outra caixa tiver acabado? É por isso que eu não acredito em remédios. Não nos da minha especialidade.

— Então eu não vou tomar remédios, doutor?

— Claro que não. A menos que se sinta mais confortável com a ideia de tomar alguma coisa que cause alguns efeitos colaterais. As pessoas costumam gostar de efeitos colaterais. “É o remédio agindo, você tem que suportar isso para melhorar depois”.

Demos juntos uma boa risada.

— De vez em quando, filho. De vez em quando você precisa de algumas pílulas do demônio para poder enfrentar isso aí — ele indicou a janela e o grande mundo lá fora com o seu queixo mal barbeado. A principal função dos psicólogos é dar as doses certas, demarcar o limite entre sonhos felizes e o paciente ficar catatônico e babando.

— Do jeito que o senhor fala, até parece que algum dia poderá me receitar um ácido.

— E por que não? Veneno por veneno… Eu já estou velho demais para acreditar em poções, meu filho. Se te faz bem, então tome uma dose segura depois de contratar alguém para limpar a bosta que vai cagar na calça durante a viagem…

— O que vamos fazer agora?

— É neste ponto que o método de tratamento passa a precisar da cooperação de todos os que estão se tratando, e do próprio terapeuta. Você precisa encontrar compromissos, mesmo que fúteis, para impedir que a solidão esteja presente nos outros momentos de sua vida. Da mesma forma como durante um tratamento existem momentos em que você está “tomando o remédio” e outros nos quais você “não está tomando o remédio”; e estes segundos são a maioria. Assim, você deverá “estar sozinho” durante certo tempo, mas não poderá estar sozinho durante o resto do tempo ou estaria tomando o remédio o tempo todo.

— O que me levaria a uma overdose?

— Não, meu amigo. Overdose é um termo alopático. Ele não se aplica nesse caso. Na verdade, quanto mais remédio você tomar para o seu mal, menor será o efeito. Se você permitir que a solidão esteja presente em todos os momentos, mesmo que marginalmente, então você nunca se curará. É preciso, em vez disso, reduzir a dose do remédio de forma progressiva até que ela se torne infinitesimal. Somente assim ele se tornará tão potente que eliminará a doença de sua alma.

Tendo feito estas observações, ele me apresentou ao programa de tratamento. Os demais pacientes, seis ao todo, eram um grupo aleatório de pessoas da cidade. Alguns nascidos lá, a maioria pessoas vindas de fora. Pessoas de todas as idades, mas a maioria residindo na casa mística dos trinta.

Maria Helena Fontes era uma dessas matriarcas do interior que apreciam casa cheia de netos aos domingos e muitos parentes que vêm de longe com histórias. Infelizmente ela tinha ficado viúva e perdido seu único filho em um acidente de automóvel, quinze anos antes. Não se casara de novo porque não conseguia se recuperar do amor imenso que tivera pelo marido, cujas fotos ainda enchiam a casa. Mesmo que se tivesse casado, porém, não teria tido filhos aos quarenta e cinco anos. A família do marido se afastara dela, a própria família morria aos poucos, deixando-a sozinha em uma casa enorme, cuja criadagem ela quase já não podia pagar.

Isabel era professora de educação artística em uma escola pública. Era bonita, embora o viço já lhe tivesse abandonado. Vivia sozinha em uma casinha herdada do pai, cercada por um jardim e por uma horta, cultivados ambos por suas mãos que viviam calejadas e sujas da tinta dos quadros que ela ainda insistia em pintar, embora raramente alguém comprasse.

Aderbal era um comerciante detestado pelos seus empregados devido a muitos erros cometidos no passado. A mulher o abandonara por causa de uma crise de ciúmes que lhe custara dois dentes. Aderbal vivia sob constante supervisão da polícia e o efeito de vários medicamentos de tarja preta. Seus filhos nunca o visitavam.

Artur era empregado de uma loja de material de construção. Era pequeno, feio e dentuço, embora dono de voz afinada e de um raro talento com o violão. Infelizmente, voz e violão não importam mais neste mundo que precisa de belos rostos: o máximo que lhe propuseram como carreira artística fora emprestar talento para um rosto adequado, em troca de um salário que seria uma percentagem pequena. Reagira indignado e abortara a carreira. Agora vendia material de construção e cantava em bares nos fins de semana. Ganhava pouco e vivia em um apartamento pequeno, de quarto e sala.

Dagmar era enfermeira no Hospital Municipal. Anda sempre maquiada e com as unhas impecáveis, mas nunca sorria. Na cidade tinha a fama de ser uma sádica, do tipo que fazia questão que a injeção sempre doesse, que o ponto da cirurgia sempre ficasse um pouquinho mais apertado que o necessário ou que o tapa nas nádegas da criança recém-nascida fosse um pouco mais forte. Colara grau em uma época em que mulher com diploma ainda era um bicho esquisito no interior. Nunca namorara e provavelmente era virgem aos quarenta e dois anos.

Julieta era uma adolescente gorda e que usava maquiagem pesada. Vestia-se pesadamente, tudo nela passava a impressão de peso, de morte, de tristeza. Comia compulsivamente e sentia-se imensamente feia, baleia. Não tinha amigos, não tinha namorado. Seus pais a mandavam de um médico para outro, de um regime para outro. Queriam pagar-lhe uma cara cirurgia em São Paulo. Não suportavam mais, queriam consertar a filha gorda a qualquer preço. Mas ela sempre passava em casa as noites solitárias de sábado, as horríveis manhãs de domingo, cada horrível dia da semana, especialmente os de escola.

Eles foram os primeiros que eu conheci: depois foram vindo outros, saindo outros.

— Vocês devem organizar-se de forma a suprimir a solidão da vida dos demais nos momentos em que eles não estejam se tratando. Mas apenas nesses momentos. Devem organizar-se de forma que cada um esteja longe dos demais durante certas horas, mas ao mesmo tempo esteja com alguém no resto do tempo, para limitar a aplicação do tratamento aos momentos designados. Como vão fazer isso é irrelevante, mas o importante é limitar a dose.

Organizamo-nos de diversas maneiras. A senhora Fontes fazia bolos e nos convidava para tomar o café da manhã de domingo em sua casa. O Aderbal tinha uma chácara onde sempre organizava almoços de domingo à beira da piscina. O Artur nos convidava para estudar com ele para o concurso dos correios. A Isabel nos levava às suas aulas de pintura no campo. E assim cada um ajudava a todos os demais no difícil controle da solidão.

Difícil porque, mesmo em companhia, havia momentos em que a solidão tentava se inserir, como uma cunha, o que poderia destruir a eficácia da aplicação. Era preciso então que alguém se aproximasse e interrompesse a reflexão solitária do paciente que se estivesse desgarrando. Manter a solidão sob controle, limitada aos momentos em que deveria estar ser parte do tratamento, acabava sendo uma tarefa tão complexa que nossas vidas começaram a girar em torno disso.

Éramos um grupo pequeno e difuso, formado por pessoas de temperamentos díspares e histórias de vida que vinham e iam por estradas que nunca ou raramente se encontrariam de outro modo. Mas todos éramos solitários, cobaias do revolucionário tratamento homeopático proposto pelo Doutor Aristides. E por sermos parte daquilo de forma que se tornava cada vez mais obrigatória, acabamos convivendo à força uns com os outros, criando vínculos de amizade ou de afeto.

O tratamento inteiro durou oito meses para mim. Durante este tempo presenciei várias pessoas que se disseram curadas e vários pacientes que chegaram, em momentos distintos. Também houve alguns abandonaram o tratamento por razões de força maior, como o Artur, que passou no concurso e foi embora, levando sua solidão ainda. Ou como a Isabel, que se matou devido ao pensamento fixo de que o tratamento não adiantaria. Foi uma grande perda. Isabel era bonita, eu gostava dela. A maioria, porém, melhorou ou permaneceu em tratamento depois que eu mesmo saí.

A minha saída, aliás, foi gradual. Acredito que lá pelo quinto mês eu já estava “saindo” sem o perceber. Foi preciso que o Doutor Aristides me fizesse ver que eu já estava fora. Nas primeiras semanas do tratamento havia pouca

A cura aconteceu, para mim, de uma forma aleatória. O Doutor Aristides me telefonou no fim de semana. Eu estava na praia, em companhia da Eva, minha namorada.

— Meus parabéns, você está estabilizado. Gostaria que viesse ao meu consultório durante a próxima semana para termos uma conversa.

Apareci no consultório tão logo voltei. Logo ao entrar fiz a pergunta obrigatória:

— Estabilizado ou curado?

— Eu prefiro dizer que está estabilizado. Não existe cura real para a solidão. Mas tenho analisado a sua progressão e posso dizer que você já não precisa do tratamento intensivo. Estou lhe dando alta do grupo de trabalho.

Foi como se removessem o chão sob meus pés.

— Por que diz isso? Como assim? Eu não vou mais participar do grupo? Fiz algo de errado?

— Calma, rapaz. Examine a sua própria vida e entenderá. Isso não é uma punição.

— Mas eu ainda me sinto tão só às vezes.

— Sempre se sentirá. “Sentir-se só” é uma coisa que acontece com os seres humanos de vez em quando. “Sentir-se triste” também. Não existe nenhum pecado nisso, não é crime isso.

— Quer dizer que voltarei a me sentir mal?

— Claro que sim, e muitas vezes. A vida tem dessas coisas: dias bons e dias ruins. As pessoas às vezes se esquecem disso porque nós vivemos em um mundo que parece querer que todos estejam rindo o tempo todo, que todos estejam permanentemente prontos para o sexo, festejando a vida maravilhosa. Mas isso é ilusão, nós dois sabemos que esse mundo é uma merda, que todas as pessoas têm seus dias tortos e que é uma sorte quando o seu santo e o da sua mulher estão em sintonia para uma boa trepada.

— É meio frustrante sair do tratamento assim.

— Exatamente por isso que você precisa sair.

— Hem?

— Uma premissa do tratamento homeopático, mesmo desse tipo estranho de “homeopatia” que eu ando praticando, é que o remédio só funciona enquanto existe doença. A partir do momento em que a doença deixa de existir o remédio passa a causá-la. Sua frustração é resultado de sua participação no grupo de terapia, e não de deixá-lo. Desapegue-se, garoto. Bata suas asas e viva sua vida. Aquilo lá não é mais para você.

— Mas… e os meus amigos?

— Caso não tenha notado, a maioria dos amigos que fez já saíram do grupo. Procure-os. E a propósito, pague-me o resto dos dois mil reais.

Naquele instante eu me dei conta do quanto fora eficaz o tratamento. A convivência com todas aquelas pessoas diferentes me apresentara a figuras paternais, como a Senhora Fontes ou o próprio doutor, a amigos de verdade, como o Aderbal, uma espécie de afilhada, como a Julieta e até uma namorada, a Eva, com quem planejava me casar.

— O objetivo do tratamento — disse-me o doutor indicando-me a saída — não é torná-lo feliz porque isso é impossível nesse mundo. Eu me contendo em tratar a solidão das pessoas. Acredito que você é mais um de meus casos de sucesso, e sem precisar receitar nada do maldito armário.

Na saída do consultório passei o cartão de crédito com a secretária e deixei o prédio me sentindo como quem acaba de montar um quebra-cabeças de duas mil peças, mas descobriu que a figura não fazia nenhum sentido. As palavras do Doutor Aristides eram coerentes, mas eu as ouvia como se elas fossem de madeira. Elas faziam ruído em meus ouvidos e não entravam em minha cabeça. Eu só conseguia continuar me perguntando de que forma o Doutor Aristides merecera os dois mil reais.

Quando perguntei para Eva, no entanto, ela foi pragmática:

— Você não precisa saber como, querido. Basta você aceitar que ele os mereceu muito.

Um mês e meio depois nos casamos. O Doutor Aristides não aceitou de maneira alguma o meu convite para padrinho de casamento. Na hora da cerimônia, porém, o motivo ficou claro: aparentemente não se chamava Aristides o risonho cavalheiro que entrou na igreja levando Eva pelo braço, envergando um rigoroso uniforme de médico da Marinha.


18
Out 10
publicado por José Geraldo, às 19:58link do post | comentar

Eu devo ser uma das pessoas mais inquietas desta cidade. Não por ser irrequieto: não sou nenhum «azougue» (palavra herdada de minha avó que eu guardava numa bonita caixa e fiquei anos tentando encaixar numa crônica, até finalmente conseguir). A questão é que eu preciso estar constantemente com a minha mente ocupada de algo. Nenhuma pessoa leva tão a sério que a mente vazia é a «oficina do demônio» (e olha que eu nem creio nele).

Pensar é imperativo. Se eu não tiver algo sério e útil para ocupar minhas engrenagens cerebrais eu começo logo a inventar futilidades sobre as quais pensar: foi essa a razão e o mecanismo do desenvolvimento de meu hábito literário.

Mas eu não consigo pensar direito se eu não estiver me mexendo. Não necessariamente me exercitando, mas manipulando qualquer coisa já serve. Pode ser um teclado, como nesse momento, uma bolinha de borracha, uma caneta, ou o meu próprio cabelo. Manter o corpo ocupado (ou pelo menos parte dele) me desocupa a mente para malversar vocábulos e conceitos e resulta em ideias, que podem virar textos ou redemoinhar rumo ao olvido nas dobras de minha imaginação confusa e contraditória, que levou dez anos para concluir um romance cuja ação se desenrola toda em quatro dias.

Quando saio caminhando me bate o desespero de sair tomando nota das coisas. Como não tenho caneta e papel à mão, vou repetindo e reelaborando as ideias, como um rapsodo antigo que ia compondo seus versos. Quando retorno para casa eu tenho longas frases prontas, escritas numa cadência ritmada, com o uso de aliterações, metáforas e rimas para servir de marcos mnemônicos.

Quando estou deitado na cama, esperando o sono que ainda não vem, surgem planos para o futuro. Eu já me eduquei para não pensar em ficção na hora de dormir, para controlar o impulso febril de me levantar da cama, pegar um caderno e escrever trinta ou quarenta páginas de prosa vertiginosa e quase ilegível, na minha típica caligrafeia vacilante de quem tem uma personalidade tão rústica e rascunhada. Mesmo assim tais episódios ainda acontecem, especialmente se passa da meia noite e ainda não dormi.

Estou explicando tudo isso para tentar fazer-me entender sobre a reação exacerbada que eu tive um dia desses, na praça central da cidade, ao contemplar uma cena que talvez não tivesse nenhum efeito em uma pessoa comum.

Eu estava caminhando pela praça, em uma missão profissional, quando me deparei com uma Kombi branca, velha e com marcas de um incêndio, estacionada sob o sol de fritar ovo. Dentro do veículo, sentada no banco traseiro, com as pernas abertas e os braços grossos estendidos sobre o encosto do assento, estava uma mulher imensamente gorda.

O que me incomodou nesta cena não foi a mulher ser gorda: eu nada tenho contra gordos. O que me incomodou não foi ela ser feia: problema dela e do marido dela, não meu. O que me incomodou não foi ela estar usando um vestido que parecia uma cortina ou uma capa de abajur (ela o abajur). Nada disso.

O que me incomodou foi ela estar ali parada, olhando para o tempo com um olhar vago, de quem não está absolutamente pensando em nada.

Para mim é difícil conceber que alguém possa estar olhando para o nada sem pensar em coisa alguma. É uma sensação angustiante supor que isso possa estar acontecendo, mais ou menos a sensação angustiante que nos toma quando vemos uma pessoa em coma.

Mas simplesmente a mulher estar lá, inerte, não teria sido suficiente para me chocar tanto se o dia não estivesse tão quente, se não brilhasse no céu aquele sol de arrebentar mamona. Ver aquela criatura sentada dentro do carro sob aquele sol, conseguindo não pensar em nada. Isso começou a me irritar.

Eu tinha lido dias antes que os animais árticos guardam uma camada de gordura sob a pele para proteger-se do frio. Curiosamente, ao ler isso, eu me lembrei que quando era mais magro (vinte e quatro quilos mais magro, para ser exato) eu sentia bem mais frio do que hoje. Então, ver aquela mulher gorda sentada dentro do carro sob aquele sol, suando do jeito que ela estava, mas mesmo assim inerte!… eis o que me fez passar mal.

Voltei para casa naquele dia sentindo uma dúvida existencial profunda, uma sensação de quase inconformismo. Aquela mulher era mais fantástica, ao meu ver, do que qualquer faquir que dorme sobre pregos ou qualquer milagreiro que caminha sobre brasas. Aquela mulher parecia os quatro santos judeus na fornalha (e considerando o tamanho ela bem poderia ser os quatro juntos).

Deve haver uma espécie de beatitude em conseguir não pensar, um tipo talvez de felicidade. Que eu não conheço porque penso o tempo todo em algo. Estou sitiado por ideias e pensamentos que se digladiam o tempo todo, acima e abaixo do nível de minha consciência. A única coisa que falta nesse universo de ideias é a compreensão de como seria possível a calma daquela mulher.

Minha tentativa de entender aquela mulher é como uma tentativa de explicar o silêncio empregando instrumentos musicais. Elétricos.


06
Out 10
publicado por José Geraldo, às 07:22link do post | comentar

No tempo em que eu ainda participava ativamente de comunidades literárias do Orkut, antes de ser reduzido a uma impessoa pelo proprietário delas, eu postei um trecho de um romance que estou desenvolvendo, que tem o título provisório de “Serra da Estrela” (cada dia gosto menos desse nome). Trata-se de um romance do gênero suspense/terror ambientado em algum lugar no interior de Minas Gerais (talvez um lugar que só exista em um universo paralelo) e cujos principais personagens são um lobisomem, uma mula sem cabeça e uma iara — sendo a mula a personagem mais importante dos três. Pois bem, ao postar esse texto eu recebi alguns comentários curiosos, que muito me fizeram pensar…

Pelo menos dois dos comentários eram de jovens internéticos e conectados que se sentiam pouco à vontade com o cenário e com os personagens — tal como os meus primos paulistas que, certa vez, nos meus tempos de infância, se surpreenderam ao ver uma vaca no sítio de meu pai e comentaram que “lá no Brasil não tem vaca”. O primeiro desses garotos comentou que tinha gostado do clima “noir”, mas que achava que a dinâmica da história não combinava com uma ambientação “exótica”. O segundo adicionou que o lobisomem não estava coerente com a mitologia estabelecida a respeito do personagem.

Na época eu preferi não comentar, porque nenhum comentário em relação a estas duas colocações poderia ser educado. Ou melhor, nenhum comentário apropriado que eu fizesse seria aceito como “educado” pelos dois receptores. Por isso preferi ficar quieto e não cultivar dois inimigos, dois não-leitores de minhas obras.

Mas a verdade, verdadeira, é que foram duas observações de uma imbecilidade relinchante. A primeira porque o sujeito que reside no Rio de Janeiro foi chamar de “exótica” a ambientação de uma história no interior de Minas Gerais, que ele pode conhecer simplesmente pegando um carro e dirigindo por três horas e meia para o norte. A segunda porque parte do pressuposto de que o personagem lobisomem que aparece no cinema é o “verdadeiro” lobisomem. No primeiro caso temos uma alienação completa em relação à cultura brasileira (pois dificilmente o garoto em questão chamaria o meu texto de exótico se eu o tivesse ambientado em upstate New York), e no segundo, uma falta de referência literária que é simplesmente indesculpável em alguém que diz gostar de literatura.

O primeiro comentário foi um dos que me inspiraram a escrever o Mistério Islandês, que pretendia satirizar a ambientação de textos em lugares “exóticos”, como os Estados Unidos ou o Japão dos mangás. A sátira falhou, claro, porque embora eu tenha tentado demonstrar o ridículo de se escrever sobre lugares aonde nunca fomos, muita gente tem dito que o texto ficou ótimo e eu não passo uma semana sem receber um pedido para continuar escrevendo a história. Mundo louco esse.

Eu continuo, desde aquela época, matutando sobre o significado, a longo prazo, de termos uma juventude que considera “exótica” uma obra literária ambientada no interior de Minas Gerais. Se pelo menos eu fosse amazonense e escrevesse sobre coisas de lá, ainda seria aceitável que um carioca tivesse algum estranhamento, mas do jeito que a coisa vai, daqui a pouco gente de Juiz de Fora vai achar que é exotismo eu escrever sobre Cataguases e Leopoldina.


19
Set 10
publicado por José Geraldo, às 19:35link do post | comentar

De qualquer ponto da cidade se pode ver a Montanha com sua ampla face de granito, uma larga presença a esconder o horizonte. Seu cume coberto de ralas árvores e rochas menores não é tão imponente, a não ser por estar tão alto. Subindo imponente como uma muralha, firmeza de séculos, sem flores nem poemas, é mais que um acidente geográfico, tornou-se parte da personalidade de Santa Cruz do Monte.

Ao pé da montanha cresceu a cidade, contemplando o granito e se agarrando à lama incerta do vale do Pardo. Santa Cruz do Monte sempre foi lembrada como uma cidade à sombra de uma montanha, não pelo rio nem pela floresta. Formou-se à base da Montanha como outras se formaram ao longo de rios, à margem de lagos ou no encontro de estradas.

Os primeiros habitantes, gente religiosa e nem sempre imune a lendas, aprenderam dos índios que o imenso rochedo guardava mistérios e era o lar de seres sombrios que não andavam pelos caminhos de Deus. Houvesse outra opção eles teriam mudado seu pouso para mais longe, mas a lógica do mundo não obedece aos impulsos da fé. Aquele lugar que transpirava a paganismo era um marco de referência visível desde muitas léguas, por ele as tropas de burros que varavam o sertão do século XIX entre o Rio de Janeiro e o interior de Minas Gerais precisavam orientar-se. Ali os tropeiros acampavam, reuniam-se a contar histórias e a fazer seus negócios. Por isso nasceu a cidade: a serviço das tropas, fruto do comércio desafiando as superstições e os séculos fechados nas matas ainda virgens do Sudeste de Minas, que um dia viria a ser chamado de Zona da Mata justamente por isso.

A gente que ia ficando era uma gente sem grande anseio de aventuras: eram pessoas que ganhavam suas vidas pacatas vendendo e comprando em torno das rotas do sertão. Lar de gente simples, o lugar era abrigo fértil para velhas lendas e superstições, facilitadas pela presença feminina das matas e pela proximidade intensa daquela gigante rocha de fúnebre aspecto.

Da inevitabilidade da convivência surgiu cedo a necessidade de conquista. Os homens que viviam junto àquele grandioso monumento natural não se sentiam tranquilos ao olhar para cima e ver apenas na crista do morro a fímbria do céu e as cores das nuvens. Por isso trataram de arranjar-se com Cristo para apor sua marca visível no sertão, aquela cruz de madeira negra que teve de ser tantas vezes refeita.

Não existem histórias de como ou quando pela primeira vez desbravaram as perigosas encostas ocidentais, através das quais, unicamente, se pode subir, a custo e ao longo de quilômetros, até o topo da Montanha. Não existem estas histórias, mas imagina-se que tenha sido há muito tempo que alguém teve a ideia de estender os caminhos até o cume e lá plantar uma cruz bem grande, visível desde muitas léguas, uma intervenção divina na paisagem pagã e natural do interior.

Não se sabe se foi antes ou depois da primeira capela, o que sabemos é que a primeira cruz estava lá muito, muito antes de alguém pela primeira vez deixar escrito algum relato, antes até de haverem resolvido mudar o antigo e terrível nome índio do lugar para o cristianíssimo Santa Cruz do Monte.

A fé daqueles homens rudes levou-os a cumprir estes desígnios, batizando a machado e a fogo a terra antiga e úmida, arrancando as árvores que vestiam a terra e expondo ao céu o vermelho de sua carne o negro de seus ossos de granito. No ano de 1917 a povoação, já chamada Santa Cruz do Monte, erguia um pequeno templo, que futuramente seria a paróquia de São Jerônimo e comemorava seu jubileu de diamantes. No alto da Montanha homens piedosos implantaram a marca definitiva da conquista daqueles sertões para a Igreja: o primeiro cruzeiro, simples estrutura de madeira enegrecida a fogo, obra tosca de marceneiros que não estavam acostumados a sutilezas, foi substituído por um potente e duradouro outro, gigantesco monumento feito de concreto e feiura, assentado sobre uma irremovível base de rochas prisioneiras do cimento.

A cruz, porém, como toda obra humana, foi pequena diante da imensa extensão que se descortinava desde a Montanha. Mesmo medindo cinco metros de altura e gastando mais cimento que muitas casas, só mesmo de muito perto podiam os viajantes perceber sua existência. Mas ainda assim ele dava aos habitantes a boa sensação de segurança no regaço do Senhor. Já haviam passado os antigos tempos em que os homens cruzavam com medo os sertões e as primeiras estradas já estavam riscando com suas cicatrizes cor-de-rosa a pele do país. Quando a catedral foi construída, décadas depois, a Montanha já não inspirava aquele velho receio e se transformara meramente em uma atração particular do município, apenas outro ponto a ser admirado pelos que passavam pela recém-construída rodovia.

Muito tempo passou e a cidade foi crescendo aos pés da Montanha, ocupou outros vales e outros montes, nenhum deles mais alto que a sombra dela. Com as décadas a paisagem foi se despindo de árvores, de pássaros, de brejos, daquele perfume doce úmido de mata. Ficou mais quente, predominou o cheiro impuro das pessoas e de suas coisas, de seus animais trazidos de longe. Vacas conquistaram as colinas, galinhas eram mais abundantes que jacus, camundongos competiam com as preás e mesmo as vidas das pessoas foram se normalizando, sua fala perdeu o jeito antigo e ganhou modismos trazidos pelo rádio, iguais aos que há em todo lugar.

A primeira vez em que vi a Montanha eu devia ter meus seis anos ou pouco mais ou menos. Lembro-me de tê-la acompanhado da janela do ônibus que me levava a Santo Antônio. Observei com maravilha nos olhos até que não fosse mais possível virar o pescoço. No caminho havia outras montanhas, havia serras imponentes e vales largos. Mas não havia nenhuma montanha majestosa como o Morro da Cruz. Por isso guardei cada detalhe de sua fisionomia, fui lembrando através da viagem e por muito tempo ainda pensava no tamanho daquela selvagem beleza que as crianças não entendem quando veem, apenas veem e lembram.

Ao longo dos anos passei ainda muitas vezes por Santa Cruz do Monte. Eu era uma criança pobre e doente e nunca pude passear muito, a não ser nas vezes em que ia a Santo Antônio consultar um médico famoso que dizia que eu tinha uma doença de nome estranho e fazia meus pais me darem muitos remédios de nomes compridos, um luxo que muitas vezes nos pôs em graves dificuldades financeiras mas não me curou.

Nunca entrava na cidade nessas vezes em que viajava — a não ser nas raras vezes em que dávamos o azar de embarcar num ônibus comercial. Minha mãe detestava quando isto acontecia porque a viagem demorava três horas ou mais, de tanto irmos parando em cada cidadezinha, em cada guarita de beira de estrada. Eu confesso que gostava, pois só assim podia ver ainda mais gente, ver mais lugares diferentes, às vezes até crianças brincando felizes. Nunca entendi porque a minha mãe sempre tinha tanta pressa de chegar. Para mim, e para todas as crianças felizes, a pressa ainda era um mau hábito que só o futuro ensinaria; naquela época eu ainda tinha tempo para ver as belezas do mundo em seu próprio ritmo.

No entanto, a minha infância infeliz, para minha felicidade, acabou por durar bastante tempo, pelo menos o suficiente para que eu conseguisse vir a ser feliz, embora não o bastante para que eu pudesse ser saudável. Ela acabou bem tarde, num belo dia em que descobri que namorar e montar robozinhos com pinos mágicos não eram atividades compatíveis…

Um dia um médico bem menos famoso descobriu que eu não tinha nenhuma doença de nome complicado, que não precisava tomar nenhum remédio de nome comprido. Ele dispensou-me de tudo aquilo e me permitiu fazer Educação Física pela primeira vez. Depois disso eu cresci, terminei os meus estudos e fui trabalhar. Minha vida passou a ser uma vida adulta e eu não tinha mais tempo para coisas tolas como enxergar a beleza do mundo. Piorou ainda mais depois que comecei a namorar. Tantas mulheres, tantos lugares para ir, tantas noites de sábado e nenhum tempo para olhar estrelas. Fui esquecendo as belezas velhas do mundo, as coisas trágicas e incríveis que existem desde sempre. Precisei ficar pobre para perder um pouco destas manhas e mumunhas de adulto e poder ver de novo o que há de bom em coisas simples.

Foi há poucos anos que a Montanha voltou a fazer parte de minha vida. Havia deixado um emprego de muitos anos e estava ganhando a vida como um simples professor contratado. Era uma vida com bem menos dinheiro, mas eu tinha bem mais tempo para pensar em coisas boas como amar, gostar de Deus e ver a beleza das coisas. Também acabei vivendo relações em vão, me esquecendo de Deus e outros medos de infância e enxerguei a fenomenal feiura que pode haver, especialmente nas cidades. Tive bons amigos nesta época, pude fazer com bem pouco dinheiro muita coisa que eu sempre sonhava e não tinha tempo. Aprendi a gostar de Guilherme Arantes e de gente que canta boas músicas, com letras cheias de sentido e melodias agradáveis aos cinco sentidos.

Nessa época eu tinha muitos empregos, nenhum que me prendesse. Um deles era justamente em Santa Cruz do Monte e ele me dava a chance de ir lá algumas vezes por semana, geralmente nas terças, quintas e sábados. Minhas idas repetidas, quase quotidianas, fizeram de Santa Cruz um lugar como qualquer outro. Por isso eu deixei de ver a Montanha com aqueles olhos maravilhados de quando eu era criança: eu passava tanto tempo lá, conhecia tanta gente de lá, fazia tantos lanches no bar da esquina olhando para a parede de granito que não via nada de mais naquela presença toda que lá estava a fazer sombra sobre metade da cidade, emparedando um lado do horizonte. E de repente a Montanha não era mais nada de estranho, de repente ela fazia parte da paisagem, como uma coisa qualquer em que ninguém quase prestava atenção. Nessa época também eu já sabia que a Montanha não era tão maravilhosa quanto fora. Não era mais aquela imponência virgem do passado: haviam derrubado a maior parte das matas, haviam feitos cercas que subiam pelas encostas íngremes, haviam posto postes, torres e antenas em sua crista alta, mais alto até que o cruzeiro. Essa visão de natureza profanada derrubava um pouco o poder de atrair que antes lá houvera.

Já não era mais sentido como aventura haver visitado o topo da Montanha. Na verdade eram bem poucos os jovens santa-cruzenses que não o haviam feito. Namorando ou para outras finalidades menos saudáveis e felizes, muitos subiam pelas estradinhas de terra que levavam ao cume para aproveitar a cada vez mais rara solidão de lá. Frequentemente viam-se faróis brilhando lá no alto quando era alta madrugada, indicando alguma travessura em curso. Nessas circunstâncias os pais se desesperavam querendo que as filhas já tivessem voltado para casa.

Naquele tempo ainda se usava ir de carro a lugares ermos para ouvir música e namorar. Parece que hoje já não ousam mais fazer isto, pois em cada lugar parece que pende uma insegurança, um clima de ameaça que não havia então. Ou talvez fôssemos apenas jovens e loucos, incapazes de enxergar perigos. Bastava entrar pela Avenida Getúlio Vargas e lá pela terceira ou quarta esquina chegava-se ao entroncamento da estrada que, sabíamos, subia até lá em cima, a estrada por onde todos os carros passavam rápido, tarde da noite, com os vidros erguidos mesmo no verão.

Um dia foi o meu carro que subiu por lá, mais ou menos no começo da fase louca de minha segunda adolescência. Dirigi pela estrada íngreme, estreita, empoeirada e deserta. Subindo sempre, até sentir a pressão do ar contra os tímpanos. O último relance de subida era perigoso, um escorregadio lance calçado de paralelepípedos, ainda por cima estreito de caber um carro só. A minha namorada respondia com risos a cada derrapada, no nervosismo alegre de estar numa aventura. Flávia tinha dessas coisas, talvez por isso eu gostava tanto dela: gosto dos que mudam o seu medo em respeito e usam de cautela para brigar contra os limites. Ao lado dela eu tive coragem de acelerar sem medo, hoje penso se faria de novo, numa noite úmida de sereno como aquela, junto a um barranco medonho como aquele. E eu não estava bêbado. Talvez só de amor.

Do alto uma visão quase que mágica: salpicadas pelo horizonte as luzes das cidades vizinhas rompiam o manto negro dos campos na lua nova. Uma, duas, três, quatro. Dependendo da transparência da atmosfera se poderia, talvez, contar mais delas. Pelo menos uma das cidadezinhas deixava transparecer a teia de ruas de um bairro. Dava para imaginar porque os primeiros brancos a andar por esses sertões tinham tanto receio.

A cruz de concreto não estava no cume, ao contrário do que pensávamos. Se estivesse, seria bem pouco visível lá de baixo. Por isso haviam-na colocado à beira do rochedo em um lance de descida da última escarpa do lado mais íngreme, abrindo seus braços brancos para saudar o vale amplo que de lá se abria. E ela que parecia estar contra o céu, posta no alto mais alto da Montanha, inalcançável e tão imensa quando vista de baixo, vista de perto era apenas um pequeno monumento de concreto, sem beleza nem imponência.

Foi muito boa a sensação de sentar no chão da encosta, acima do cruzeiro, sentindo um pouco como se estivéssemos acima de tudo e de lá pudéssemos contemplar um leque bem grande da superfície plana do mundo. Flávia teve naquele momento uma sensação parecida com a minha, parece que fomos crianças por algumas horas lá, ou anjos. Andamos por todo o terreno semiplano, coberto de pasto ralo, sob o escuro da lua nova. Víamos muito mais estrelas naquela noite sem lâmpadas, silenciosa e escura; não ouvíamos, além de nossos risos, nada que pudesse assustar. Eu sorri quando disse a Flávia que a felicidade é bem perto do abismo. Ela sorriu de volta e me chamou para bem perto da escarpa de trezentos metros pelo menos, de lá olhamos a cidade lá embaixo, parecendo tão murcha e adormecida.

Tivemos coragem de beijar por muito tempo, de fazer amor, de demorar por lá, de cheirar bastante o perfume imaculado daqueles ventos frios à beira do abismo. Mas não tivemos coragem de ligar o rádio do carro. Por mais bela que fosse a música, não seria mais bela que aquela oportunidade tão rara de escutar o silêncio.

Voltamos à Montanha ainda algumas vezes, cada vez mais fascinados por aquele escuro silêncio, lá mais perto das nuvens, longe das pacatas vidas das pessoas. Mas começamos a perceber que não éramos os únicos, e aos poucos fomos perdendo a coragem de ficar mais tempo, de sair andando pelo pasto admirando estrelas, de fazer amor no carro ouvindo a calada da noite. Nas últimas vezes nem tivemos mais coragem de chegar. Foi nessa época que fizeram as primeiras construções, para abrigar os instrumentos automáticos das torres de transmissão de televisão e de telefone.

Visitamos algumas vezes durante o dia, mas a mágica não era a mesma, parecia nem existir. Claro, se podia ver um horizonte enorme, uma luz intensa e as cores da distância graduadas como numa pintura da Renascença. Mas a imponência da montanha ficava menor porque não podíamos ver os fantasmas das luzes das cidades, porque não podíamos perceber que ali havia mais estrelas que as que víamos das janelas quadradas de nossas casas no vale.

Nessa época a Montanha perdeu seu resto de selvageria. Depois das torres de transmissão vieram as casas de fazendas e as cancelas nas estradas. Então puseram mirantes, construíram quiosques e fizeram do lugar um ponto turístico; o que quase sempre significa destruir o encanto e transformar a paisagem em um “cercadinho” para gente que não vem sonhar, mas gastar dinheiro. A beleza sempre é de graça, mas o turismo custa dinheiro.

O último golpe contra a montanha foi quando algum desses ricaços construiu sua mansão junto à escarpa, de forma a dominar o vale com sua feia imponência arquitetônica. Uma destas casas feitas para gordos fins de semana de churrascos, para a criação de cães de raça e para festas com mulheres ou amantes. Aquela construção feiosa, com suas telhas e janelas pseudo coloniais, apareceu lá em cima como um castelo medieval dominando uma planície. Para que a fizessem foi preciso cortar a trator um trecho plano na encosta, deixando uma cicatriz vermelha que desmoronou manchando o granito milenar, e foi preciso derrubar bastante da última mancha de mata para que da varanda o proprietário pudesse contemplar a paisagem, como um barão a vigiar os seus domínios.

Nesta época minha tristeza coincidiu com muitas coisas, com o fim dos dias de ingênuo amor com Flávia, breve intervalo infantil e feliz que eu pude ter de novo aos trinta anos. Cada vez que eu olhava para o alto e via aquela casa eu me sentia como se alguém houvesse invadido e destruído o meu mundinho, se assenhorado de meus antigos sonhos e me despejado deles. Aos poucos fui detestando aquela construção, mesmo sem nunca tê-la visto de perto e sem nunca ter conhecido o seu dono. Na verdade eu comecei a perceber que odeio cada coisa que muda o mundo, cada coisa que me lembra de que a vida passa, que os dias de inocência acabaram e agora tudo que me resta é ter momentos de beleza em meio a aridez do dia, flores brotando do calçamento, sujas da poeira, prestes a serem arrancadas pela primeira mão que passe.

E de repente vemos surgirem estas coisas mundanas e sem espírito, casas feitas segundo riscos de arquitetos que copiam de outros arquitetos, torres e antenas fabricadas com peças de montar que vêm de longe e são feitas, idênticas, em milhões de unidades. E percebemos que elas venceram com sua torpe e grandiosa monstruosidade, que conseguiram marcar com mais força a presença da mão humana que dominou e destrói aquele gesto de potência que Deus deixou no meio desta terra que um dia foi chamada de “sertão”.

Imperceptivelmente, porém, uma mudança maior aconteceu. Talvez um velho espírito que por lá vivia resolveu mudar-se, ou talvez morreu. Temos visto nos últimos anos que o granito já não é tão negro, que o verde das encostas desbotou em cinza. E neste último abril uma fenda se partiu na face do rochedo, uma lasca desprendeu-se e desceu a trovejar. Oficialmente dizem que a única vítima foi uma vaca infeliz. Sabemos, porém, no fundo de nós mesmos, que há outras vítimas pelo menos: a beleza do velho marco que já não resiste a ser domado como outra montanha qualquer e a velha graça de uma cidade ousada que o homem plantou no meio do sertão e que hoje é apenas uma cidade comum, até bem perto da civilização graças aos trens, às estradas e aos aviões.

Mas ainda há os que, como eu, olham para a parede de granito e veem na cicatriz da pedra que caiu a evidência de que a saudade não é inofensiva.

Leopoldina, 20 a 22 de julho de 2005


11
Set 10
publicado por José Geraldo, às 22:35link do post | comentar

Estamos tomando uma cerveja no Maneira Mineira quando a figura aparece outra vez, envergando o mesmo sobretudo negro de ontem. Tem os olhos mergulhados numa poça disforme de maquiagem borrada, as orelhas pontiagudas adornadas por alguns brincos de prata, a face pálida parece uma tela virgem perdida no meio da cabeleira solta, esvoaçando, de cor morta e penteado inexprimível. Ela não sorri, parece incomodar-se com o ruído selvagem desta praça animalesca onde se acasala a juventude, mas mesmo assim tão deslocada ela está aqui.

Ninguém sabe dizer de onde veio a monstra. Cada um que a vê chegar diz que é de um lugar diferente. Uns dizem que vem da Fábrica, outros a viram subindo da Cotegipe, outros juram que veio da Avenida Getúlio Vargas, há até quem a tenha visto descer do Morro da Panela. Cada noite ela parece vir de uma direção diferente, mas sempre no mesmo passo miúdo e nervoso, com os mesmos olhos serelepes e tristes.

Ela passa lentamente por entre a multidão, deixando um cheiro leve de mofo e de traça misturado com algum tipo de perfume barato, ou sabonete. Sempre com as mãos nos bolsos, com os dentes dentro da boca, com a boca fechada para não entrar mosquito, com a cara amarrada de quem detesta o que faz. Nós a apelidamos de “vampira”.

A vampira de Leopoldina está sempre sozinha quando aparece, no começo da noite. Sempre andando devagar e atentamente, observando com astúcia e com melancolia enquanto as pessoas se empaturram de carne e cerveja. Depois vira uma esquina e não a vemos mais.

Ninguém sabe onde a vampira vive, ou o que faz. Ela não se parece com ninguém que anda pela cidade durante o dia. Talvez exatamente por isso o apelido lhe assente tão bem. Ninguém imaginaria encontrar tal figura vendendo remédios numa farmácia, atendendo numa loja de móveis, ou servindo num restaurante. E por ser branca, e por ter alguma coisa que evoca beleza, ela certamente seria aceita de preferência em qualquer emprego desses. Ela não vende, não atende, não serve. Tampouco se encaixa.

Hoje resolvi seguir a vampira até o seu covil. Dizem que eu sou louco. Acho que sim. Vou seguir a vampira até onde ela for, extorquir-lhe esse segredo. Descobrir quem ela é, apoderar-me de sua identidade.

Para isso vai ser preciso coragem: estou aqui há duas horas bebendo sozinho e ainda não a tenho. Nem a coragem e nem a vampira.

Tenho é medo de que quando ela venha eu não consiga me levantar, de bêbado ou de atônito. Se a seguir descobrirei quem ela é, então ela deixará de ser a vampira e o seu casaco será, sobretudo, apenas uma roupa velha, talvez somente isso. Quando ela deixar de ser vampira, talvez não me fascine, então por que eu devo extorquir-lhe esse segredo? Com que direito quero me apoderar de sua identidade?

Mas eu prometi a tanta gente, afirmei tanto meu desejo. No fundo eu queria mesmo ir com ela, até onde fosse, ser vampiro com ela por uma noite, descobrir o que há debaixo da maquiagem pesada e do sobretudo, despi-la e banhá-la de beijos. Mas ao mesmo tempo eu temo que debaixo da roupa preta e do rímel borrado não senão uma garçonete de bar, uma vendedora de loja, uma caixa de supermercado. Ainda serei fascinado pela vampira quando a vir diante de mim, com espinhas e tudo, com seios que um dia vão cair, ou já caem, com pernas que têm pelos e joelhos que se dobram como os meus, com unhas quebradas, com dentes que amarelaram de sorrisos tristes?

Será que ela sabe que o sobretudo e o rímel e o cabelo e o perfume que cheira a mofo e as mãos nos bolsos e os dentes dentro da boca… será que é de propósito que uma garota comum assim se traveste, se vampira, para ser, pelo menos na noite, alguém diferente? Se eu soubesse disso talvez gostasse mais da vampira. Talvez eu entendesse porque pus esse casaco preto e estes óculos escuros, que fazem os outros me olharem torto e afastam meus amigos da minha mesa. Terei eu seguido a vampira ontem? Faz tantos dias que eu sonho com isso? Terei sido mordido?

Uma nota importante. A referência ao fato de a personagem ter facilidade para achar certos empregos é uma crítica velada ao racismo inerente à regra da “boa aparência”. Não me xinguem de racista.


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