Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
20
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 00:01link do post | comentar

Adormeci na frente do computador, sem terminar a monografia. Com o prazo quase esgotado, passara mais de quatro horas digitando como louco a partir de notas desconexas que reunira nos meses de pesquisa, mas em vão. Tanto esforço que minha mente começou a sair de controle e acabei caindo de cara no teclado no meio da madrugada, apesar de todo o café.

Não sei quanto tempo fiquei apagado. Podem ter sido segundos ou horas, porque não estava prestando atenção ao relógio quando dormi. Sei que quando tomei um susto e joguei a cabeça para trás em um gesto brusco, eram 04:12 e fora disparado o maldito alarme de um automóvel que dormia na rua.

Levantei grogue de sono, com a cabeça pesando meia tonelada, e fui tomar um banho antes de ir dormir. O calor não estava mais insuportável, mas eu tinha suado demais. Tomei um banho rápido e frio, dos que gosto quando vou me deitar. Quando voltei do banheiro, pelado e me enxugando na toalha felpuda que cheirava a mofo e a álcool, tomei um susto, que espantou todo sono que ainda pudesse ter.

Tinha deixado o computador ligado. Saíra tão depressa para o banho que não o desligara. O documento da monografia estava aberto no editor de textos e o cursor piscava na tela de fósforo verde. Então notei que o ponto de luz não estava parado à espera do toque seguinte: movia-se rápido pela tela, deixando atrás um rastro de letras e números, mesclados a códigos de formatação LATEX.

Minha primeira reação teria sido — ou deveria ter sido — entrar desastradamente na frente do aparelho e ver que raio era aquilo, mas eu costumava ser um sujeito frio, não o tipo que se apavora e surta. Fiquei parado onde estava, ainda sob o batente da porta, olhando de soslaio para o monitor. Acredito que o computador não me “viu”, pois continuou cuspindo código como se os Digitadores do Inferno estivessem ali. Permaneci observando a cena, tentando decifrar mentalmente a sucessão de códigos que aparecia. Olhei a tomada, na esperança de ver o modem conectado à linha telefônica, mas não. Teria sido fácil admitir como explicação que alguém havia tomado o controle de meu computador doméstico e estava fodendo com a minha pobre monografia, mas não poderia haver acesso remoto se não havia conexão. Ou poderia?

O computador não chegou a notar minha presença. Quando finalmente parou, havia sido digitado \fi e uma sequencia de linhas em branco, como eu tinha por hábito fazer ao terminar os capítulos. Eu não teria notado mudança no código do documento se não tivesse tomado o banho rápido demais.

Sentei-me fingindo que estava tudo bem, dei Control-End e digitei algumas ideias aleatórias do capítulo seguinte. Depois salvei o arquivo no disco rígido, sempre fazendo a cópia de backup no disquete e desliguei aquela máquina do diabo.

Não consegui dormir. Tinha a curiosidade de saber que raio de conteúdo teria sido inserido em meu texto, sabe lá por quem ou que. Poderia ter compilado e impresso o documento, mas teria demorado muitos minutos se houvesse uma matriz XY. Também o computador poderia desconfiar. Preferi deixar para o dia seguinte e tentar pensar melhor.

Quando amanheceu, desisti de tentar dormir e levei o disquete comigo à universidade. Sentei-me diante de um terminal público na biblioteca e abri o arquivo para analisar, como legítimo “escovador de bits”, embora soubesse pouca programação. Logo achei indícios da patranha.

Ao final do terceiro capítulo, havia um \iffalse\iffalse\fi e pouco antes de onde começaria o capítulo seguinte, um \iffalse\fi\fi. Estas enganosas sequências de códigos realizavam algo diferente do que prometiam ao olhar distraído. Tanto o início quanto o fim do código oculto estavam, na verdade, ocultando os comandos de início e fim dos comandos de ocultação, se é que você consegue entender. Talvez esta história maluca só faça sentido para quem manja um pouco de LATEX. Mas digamos que tudo após \iffalse é ignorado, até chegar um \fi. Quem tiver algum talento lógico perceberá a malícia.

O bloco de código não era legível. Era uma sucessão de comandos descrevendo curvas, gráficos, matrizes. Talvez alguém realmente louco de usar LATEX conseguisse o milagre de visualizar a plotagem daquelas fórmulas, mas para mim era como contemplar uma sopa de letrinhas verdes no quadro negro do monitor. Queria logo compilar e descobrir no que dava.

Para isso teria, porém, que ter permissão da bibliotecária, porque os terminais tinham capacidade limitada e a fila de uso era grande. Ela não se opôs, diante da pequena quantidade de alunos que estava na faculdade naquele dia anterior a um feriado prolongado. Dirigi-me ao terminal, então, e ordenei:

latex mono.tex

Naquele tempo os computadores podiam levar horas a compilar documentos complexos, como parecia ser o meu. Por isso logo me cansei de ver a dança interminável das letras elétricas que brilhavam verdes como a fosforescência de uma aparição. Fossem quais fossem os erros, não teria mesmo chance de consertar porque não sabia o que continha o misterioso código. Ainda fiquei uns minutos refletindo sobre mensagens de overfull hbox, lamentando a quebra da margem direita, ou underfull vbox, lamentando os parágrafos separados demais; mas logo me levantei e fui até à cantina tomar um café.

Não contei os minutos na cantina. Ninguém faz isso, a não ser os que já estão loucos e eu não estava. Voltei com um copo cheio de café preto, para espantar o sono que ficara da noite sem dormir, e biscoitos salgados que controlariam a fome enquanto não pudesse ter uma alimentação saudável na lanchonete mais próxima.

Quando retornei ao saguão da biblioteca, notei uma movimentação estranha em frente ao computador que deixara compilando. Havia uns três ou quatro caras do último período de Sistemas que contemplavam a dança das letras parecendo fascinados.

— Caralho, o que é isso que esse louco fez? Vai fritar os circuitos do terminal antes de compilar! — dizia um deles, risonho e preocupado. Aproximei-me quieto, tentando captar a conversa, mas falavam pouco e olhavam muito.

— A Alana precisa ver isso — finalmente disse um, dirigindo-se à porta em frente, com rapidez de elfo. Pigarreei para anunciar minha presença e os outros olharam com respeito inesperado. Os caras de Sistemas não têm o hábito de olhar com essa expressão quem não é de sua própria estirpe.

— Isto aqui é seu? — perguntou um deles, um grandalhão de cabelos ressecados e de cor de cenoura.

— É sim, por que?

— Como pode alguém de Matemática ser besta de programar um loop num documento LATEX?

— Um loop? Merda!

— Eu não sei de nada, a gente estava passando, viu o computador compilando sozinho e resolvemos olhar o código, para tentar adivinhar o que é. Foi aí que notamos que o código está em loop. O que você estava querendo fazer?

Meus olhos percorreram o cabeamento da sala, notando para meu imenso espanto que aquele terminal, sim, estava conectado.

— Contaram quantos loops ele deu? — perguntei, já me sentando.

— Uns dez ou doze nesse meio tempo em que estamos aqui.

— Dez ou doze, hem? Que diabo será isso?

— Você não sabe?

Eu tinha vergonha de confessar, mas preferi ser honesto, afinal eu precisava de ajuda para não ter que, humilhantemente, apertar o botão de reset, como um novato. Eu jamais seria encarado com respeito, sequer pelas namoradas dos caras de Sistemas, aquelas garotas de peitos grandes que cursam “Estudos Sociais” e só passam de ano porque são líderes de torcida.

— Não sei. Achei um documento cheio de códigos os mais estranhos e resolvi compilar para ver o que era.

— Caralho, você é maluco? Sabe-se lá se não é um código malicioso!

— Bem, eu não sei se é nocivo, mas malicioso isso tenho certeza que é.

Eles me olharam, sem entender.

— Alguém entende de LATEX?

O outro cara, que tinha ficado quieto esse tempo todo olhando a dança das letras elétricas, acenou com a cabeça e fez o característico “ahã” dos que estão dizendo que sim.

— Devemos deixar compilar ou tentar interromper?

LATEX não vai fritar os circuitos, a menos que comece a ficar recursivo. É exatamente isso que eu estou tentando entender, se é um loop recursivo ou se é apenas circular. Se for recursivo, você vai ter que desligar no botão de reinício porque vai travar os sistemas de entrada e saída.

Ele tomava notas no seu bloco, em um tipo de taquigrafia pessoal que parecia árabe. Demorou quatro minutos ate ele finalmente decretar:

— Parece que não é recursivo. Deve haver uma condicional em algum lugar que está fazendo o TEX dar várias passagens no mesmo código. Mas essa condicional pode resultar verdadeira em algum momento, então o loop acaba e o arquivo imprimível é gerado.

Alana chegou. Era a única mulher do último ano de Sistemas, era obcecada com criptografia e lia todo tipo de teoria de conspiração. Não era bonita e nem simpática, mas os caras da turma queriam tê-la por perto, fosse como bicho de estimação ou fonte permanente de análise matemática apurada. Era um legítimo “crânio”, capaz de efetuar cálculos mentalmente com facilidade humilhante. Acima de tudo, tinha a capacidade algo sobrenatural de visualizar gráficos a partir de suas fórmulas. Mais que isso, contribuía sob pseudônimo para vários projetos de programação de várias faculdades, inclusive a nossa. Alana não assinava seu nome em documento algum.

No momento em que ainda estava sendo informada do acontecido, dois pares de peitos loiros surgiram à porta chamando os rapazes de forma que nem Alana e nem eu soubéssemos. Não sei se ela soube, mas tenho a visão periférica muito desenvolvida. Os dois caras se despediram e saíram dizendo que tinham que estudar para uma prova e foram levar as duas a alguma festinha. Alana e eu ficamos olhando a tela onde dançavam infernalmente as letras.

— Você já sabe o que é isso, Alana?

— Ainda não.

— Eu imaginei que…

— Não sou uma máquina, Tony — ela me interrompeu.

Tive vergonha do modo como a tratava. Naquele dia, em que justamente o seu lado maquinal estava sendo usado, ela me jogava na cara que era um ser humano. De certa forma, mesmo eu não a achando bonita, naquele dia eu me sentia ligeiramente atraído. Talvez fosse por notar que as suas orelhas tinham um formato curiosamente harmonioso, suas mãos minúsculas pareciam esculpidas. Era só não olhar para seus dentes que teimavam em querer sair dos lábios ou os óculos pesados, que ela parecia ter roubado de sua avó.

Subitamente as letras mudaram de feição. A dança infernal parou e o monitor começou a cuspir uma série de linhas com nomes de arquivo. Era o fecho da compilação. O loop fora interrompido ao encontrar valor positivo. O prompt de comando apareceu então, desafiando enigmaticamente nossa curiosidade. O cursor piscava como se estivesse rindo de mim. Alana foi rápida. Curvou-se sobre o teclado e recuou a sequência de comandos até identificar o arquivo que eu compilara. Então digitou:

more mono.tex

O terminal começou a listar o código, página a página, enquanto ela, ainda curvada, parecia ignorar que eu, olhando por dentro do decote folgado do vestido, contemplava seus dois belos seios, que pareciam as divinas mamas da Vênus de Milo e exalavam um perfume madeirado delicioso. Ela não se interessou nem minimamente pelo meu trabalho, mas quando chegou ao famigerado bloco de código, arregalou os olhos como se tivesse achado um pote de ouro e usou o braço esquerdo para se apoiar no encosto da cadeira, tocando com ele minha nuca, que arrepiou como se estivesse ligado a uma tomada elétrica. Comecei a suar, talvez de sono ou embriaguez do perfume diabólico e da visão daqueles seios miúdos, que pareciam duros como pedras e me imploravam para que os pegasse nas mãos e apertasse gentilmente como botões para abrir uma passagem secreta ao paraíso. Mas quando tentei dizer alguma coisa, acabei dizendo:

— Não prefere se sentar?

Ela ergueu-se, acusando alguma dor nas costas devido à posição, e arrastou uma cadeira. Sentou-se tão perto que todo seu lado esquerdo encostou no meu corpo. Um daqueles seios pontudos cutucava minha axila e minha mente rodopiava sem controle. Queria perder os sentidos rapidamente, antes que ficasse louco e tentasse algo inadequado. Mas não aconteceu nada, porque Alana era rápida com os dedos e com a mente: não demorou a terminar de listar o código. Levantou-se e andou em círculos batendo os saltos pesados dos tamancos nos tacos coloridos do chão da biblioteca enquanto gesticulava e balbuciava multiplicações.

— Acho melhor você não entregar a monografia — disse, por fim.

— Preciso entregar, ou não consigo créditos para passar em trigonometria.

— Tenho um mau pressentimento sobre isso. De onde disse mesmo que saiu esse documento?

Eu não tinha dito nada, mas ela me olhava com a expressão aguda, como se soubesse até as vezes que tinha me masturbado no semestre anterior. Alana intimidava, parecia saber de tudo. Mas não me importava, naquele momento, eu sabia que nenhuma outra mulher do universo teria graça para mim.

— Não sei, nesse exato momento só consigo me lembrar que dormi mal essa noite e preciso sair com você na sexta-feira.

Esta frase a desarmou. Talvez fosse a última coisa que imaginava de mim.

— Sair… comigo? Na sexta-feira?

— No sábado, se preferir.

— Mas por que isso logo agora?

— É a primeira vez que consigo conversar com você a sós.

— Eu… preciso pensar.

— Posso ligar?

Ela deu o número de seu telefone e saiu apressada da biblioteca, me deixando sozinho com minha obra. Então, aproveitando que o lugar estava vazio, comecei a imprimir o dvi, sem testemunhas.

A impressora matricial deu alguns arrotos e rosnados, antes de finalmente acertar a margem do papel. Então o cabeçote começou a dançar, rabiscando linhas interrompidas que formavam o desenho de letras e gráficos.

Uma página, duas, três, vinte, quarenta, noventa e cinco. Quando a impressão terminou, dobrei com cuidado toda aquela tripa de formulário contínuo e guardei com carinho na maleta e voltei ao meu apartamento no campus.

A primeira coisa que fiz, porém, foi ligar. Sentia-me idiota por estar apaixonado, mas nenhum idiota era tão feliz, e não importava nada mais se ela apenas dissesse que sairia comigo. E ela disse. Mas depois disso, enfatizou:

— Você não deve entregar a monografia.

— Tem alguma ideia do que é aquele código?

— Sim. Os comandos lá codificam instruções vetoriais em PostScript. Alguém inseriu no seu texto um código que “desenha” coisas em uma ou mais páginas.

— “Coisas”, que coisas?

— Não sei. Podem ser gráficos, desenhos, uma fonte, um texto até…

Assim que desliguei o telefone, tratei de cortar e encadernar as noventa e cinco páginas, com todo cuidado para que nenhuma rasgasse. Fixei-as num fichário e comecei a folhear, tentando ver onde haviam sido feitas mudanças. Ao fim do terceiro capítulo começava a coisa. Saltava uma página, no meio da qual haviam posto algo que parecia uma ofensa direta contra mim:

«Esta página foi intencionalmente deixada em branco.

«E as anteriores deveriam ter sido mantidas assim também.»

A página seguinte era outra capa, com meu nome, identificação da faculdade, o mesmo título, um subtítulo ligeiramente diferente e um reinício do documento, inclusive numeração, sumário, tudo. Se o tema ainda era «Método de plotagem trigonométrica de órbitas para satélites geoestacionários», o conteúdo quase não tinha a ver. Meu texto ainda estava em grande parte lá, mas entremeado de uma montanha de citações de autores de que nunca ouvira falar e fórmulas de cálculo avançado que eu nem sabia o que eram. Algumas me pareciam referenciar coisas avançadíssimas de física quântica. Várias citações eram em alemão (Schrödinger, Planck, Heidegger, Cantor, Kant), outras em francês (Lamaître, Galois). Autores clássicos eram citados ao lado de outros que talvez fossem novos e pouco conhecidos. Vários trechos não tinham citação, mas fórmulas acompanhadas de ousadas afirmações à banca, do tipo “como se pode provar pelo cálculo a seguir”.

Li todo o trabalho e fiquei embasbacado por não conseguir entender nem metade do que ali estava, muito embora meu estilo de redação estivesse em cada parágrafo. Do pouco que entendi, cheguei à conclusão de que propunha um método através do qual satélites poderiam ser içados a uma órbita, em vez de lançados até ela por um foguete. Os cálculos provariam que a energia necessária a tal sistema seria dezenas de vezes menor, reduzindo o custo do lançamento de satélites a uma fração do então possível, algo revolucionário demais. Eu tinha de entregar a monografia, apesar do alerta de Alana. E o fiz.

Na sexta-feira pela manhã fui buscá-la em seu apartamento. Estava vestida do modo sóbrio de sempre. Trazia apenas bagagem de mão e hesitou em entrar no meu carro. Seus seios pareciam invisíveis naquele vestido. A maioria dos caras da faculdade a chamavam «tábua de carne» por isso. Era difícil crer que uma mulher aparentemente tão reta tivesse seios tão curiosamente belos e harmônicos, e de um formato e consistência tão atraentes.

Almoçamos em um restaurante à beira mar, fomos ao cinema e tomamos cerveja no bar panorâmico do píer; terminando a tarde no meu apartamento, ouvindo Stones e conversando descontraidamente. Não ousei muito coisa. Eu sonhava Alana como se fosse para sempre, e algo que é para sempre não precisa de pressa. Apenas nos beijamos, e nesse beijo senti seus seios contra meu peito e tive a certeza do que queria.

— Alana, pode me achar louco por dizer isso, mas acho que a amo. Acredita em amor à primeira vista?

— Acredito, Tony. Mas amor à primeira vista tem que esperar o mesmo tempo que o amor à décima oitava vista — disse ela, algo cruel, apertando o botão da gola do vestido sem decote que usava.

— Ora, Alana. O que a gente sonha para sempre não precisa começar agora.

Ela riu e me beijou nos lábios, com um tremor na boca que só mais tarde soube ser amor também.

— Por favor, Tony. Leve-me para casa antes que implore para fazer amor com você. Isso não seria bom para nenhum de nós dois agora. Estou me sentindo totalmente frágil e insegura. Não se aproveite de mim.

Os dias seguintes foram de expectativa. Ninguém da Banca Examinadora me contactara ainda, mas eu tinha a estranha sensação de que quando lessem o meu trabalho o meu telefone fatalmente tocaria.

Saí com Alana na sexta-feira seguinte mais uma vez. Não havíamos tido encontro no fim de semana porque ela viajara para visitar os pais, numa distante fazenda nas chatas planícies do Norte. Da segunda vez o encontro se desenvolveu com muito mais fluidez, em parte graças ao traiçoeiro vinho licoroso que lhe servi. Porém, quando ela percebeu que sua cabeça não estava mais tão firme sobre o pescoço, mais uma vez me pediu que a levasse para casa e eu, mais uma vez, me vi moralmente forçado a isso.

Levei-a de volta ao seu apartamento no campus. Àquela hora quase não havia viva alma na universidade. Somente os pobres e que vinham de longe, como nós dois, passávamos os feriados lá. Quando saía, ela me chamou para dizer, depois de jogar um beijo:

— Não entregou aquela monografia, entregou?

Fiquei envergonhado:

— Alana, me perdoe, mas eu a entreguei naquele mesmo dia.

Ela levou as duas mãos à boca, com os olhos totalmente arregalados, e me pediu para entrar. Atirou-me a um sofá e começou a trancar obsessivamente janelas e portas. Depois se atirou sobre mim e quando finalmente percebi o que estava acontecendo já estávamos nus fazendo amor. Ao terminamos, ainda estendidos no tapete macio da sala, tive que perguntar:

— Por que isso, Alana? Não tínhamos que esperar, não havia aquela história de que o que é para sempre não precisa começar hoje.

— Querido, lamento, mas precisava disso. Se não fosse hoje, talvez não fosse nunca. O que vai terminar hoje precisa começar hoje.

Faróis altos brilharam no pátio e um ruído sibilante cortou o ar. Exceto por ele, porém, não havia nenhum outro som em todo o campus. Bateram à porta.

— Oh, querido, lamento muito, muito.

Bateram de novo à porta.

Alana se enrolava no tapete para cobrir sua esguia nudez, enquanto eu tentava me vestir, procurando as peças de roupa espalhadas.

Arrebentaram a porta.

Lá fora uma luz fria e azul oscilava. Entraram homens altos e magros, magros como Alana. Falavam uma língua estranha e eram estranhamente pálidos, como Alana. Senti algo picar o meu peito, olhei e vi um dardo tranquilizante.

Acordei aqui. Você tem que acreditar em mim. Não sei de nada da morte da Alana. Tem que acreditar em mim.

— É difícil, Tony. Muito difícil. Você entregou à Banca Examinadora um bilhete contendo a confissão de que pretendia matá-la, e fez exatamente o que o bilhete dizia. Seu esperma foi encontrado no corpo, suas impressões digitais estão por toda parte, e a polícia o achou lá, ao lado do cadáver ainda quente. O que tem para me convencer de que nada dessa história é verdade?

— Você tem que acreditar em mim, Rick. Os aliens, eles usam a rede elétrica para comunicar-se, alguns são brincalhões e ficam corrompendo arquivos em nossos computadores, ou talvez queiram nos avisar. Alguns estão espionando por aí. Alana era uma espiã, Rick.

— Por isso a matou?

— Não a matei, Rick. Mesmo ela sendo uma deles não a matei porque a amava, porque era a mulher mais interessante que conheci em toda a minha vida. Não a matei, foram eles. Mataram-na porque me avisou para não entregar a monografia, mas não me impediu.

— Tudo bem, Tony. Vou ver o que posso fazer. Mas acho que é melhor alegar insanidade. Se não fizer isso, vai encarar o corredor da morte. Alana poderia ser alienígena, mas apareceram dois pais pobres, lá do interior do Canadá, que confiavam no diploma da única filha para seu sustento na velhice. Uma história comovente, Tony. Nenhum jurado desse país terá simpatia por você.


20
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 20:00link do post | comentar
[Error: Irreparable invalid markup ('<a [...] anchor".">') in entry. Owner must fix manually. Raw contents below.]

<div class="nav"><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha.html" rel="noopener">Parte I</a> <em>·</em> <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha-parte-ii.html" rel="noopener">Parte II</a> <em>·</em> <a anchor"."="anchor&quot;.&quot;" rel="noopener">Parte III</a></div><p>A desolação escaldante da paisagem parecia piorar à medida em que o sol subia no céu, e os fatos da noite, ainda queimando na minha memória, me impediam de pensar com propriedade. Que maldito lugar era aquele? Por que as malditas sepulturas estavam esvaziadas? Quem era a Inês, que se parecia tanto com a mulher que se matara na colina? Tantas perguntas. Nenhuma resposta.</p><p>Fui perdendo o medo de ficar por ali e retornei à casa. Seus longos corredores de paredes sem pintura tinham uma frieza cavernosa, apesar do sol que vergastava a terra lá fora. Uma formidável construção, feita para resistir às intempéries dos trópicos. Curiosamente, uma construção da qual eu nunca ouvira falar, mesmo residindo, em teoria, a menos de cem quilômetros dali.</p><p>O lugar realmente se parecia com um mosteiro abandonado. Os demais quartos, que permaneciam fechados, tinham o seu ar de claustro mais preservado, com móveis ainda mais rústicos e até mesmo um ocasional rosário de contas negras pendurado na parede. Boa parte do que normalmente se encontra em um tal lugar estava, porém, faltando. Não havia biblioteca e a capela estava ausente. Apenas um terreno pavimentado de pedras encaixadas, bem ao lado da construção maior, dava a ideia de que ali existira um templo cristão. O que motivara sua completa destruição era algo que me escapava. A igreja maior, localizada onde deveria ter sido a aldeia, ainda estava lá, mesmo arruinada e coberta de ervas. Apenas a capela dos monges tinha sido obliterada da face da terra.</p><p><a name="more" rel="noopener"></a>Vasculhei o prédio durante todo o dia, na esperança de encontrar algum registro deixado por algum dos antigos moradores. Mas não havia nada. Nenhum livro, caderno ou simples calendário com anotações. Na verdade, à medida em que eu percorria aquele lugar, ficava com a impressão mais forte de que ele estava se desfazendo diante de mim, como se os séculos tivessem resolvido finalmente andar.</p><p>Vendo, então, que não havia nada que pudesse me dar notícia do lugar onde estava, decidi que era melhor mesmo retornar ao único lugar onde encontrara alguém com respostas: a cabana ao pé da montanha. Quem sabe a jovem grisalha estaria lá, embora tivesse me alertado para não permanecer naquele lugar por muito tempo?</p><p>Fiz uma trouxa com comida para alguns dias, escolhendo com cuidado na despensa pouco provida. Montei o cavalo sentindo medo, talvez, de algo mais grave que a morte ou mais dolorido que o pau de arara. Deixei que o animal me levasse, e notei com estranheza que ele parecia não ter mais nenhum tipo de receio, nem de ir e nem de voltar. Como se alguma sombra que antes o assustava tivesse sido removida.</p><p>O caminho de volta à montanha não teve aventuras. Passei com cuidado pelas encruzilhadas que não conhecia, temendo especificamente aquela que me faria dobrar a crista do monte e entrar de volta na pequena estrada vicinal que me trouxera, fugido, do mundo onde eu era um criminoso. A custo localizei a entrada da picada na parede fechada da mata virgem, através da qual cheguei ao prado florido à beira do regato, ao vau por onde se podia cruzar a pé a correnteza e à estrada pavimentada de pedras chatas pela qual se subia ao cume fatal da Montanha.</p><p>Não sei que horas eram, porque meu relógio de corda andava louco desde que deixara a civilização. Sem outros com que conferi-lo, poderia estar marcando qualquer hora. Mas eu sabia que devia ser por volta de seis da tarde, ou pouco mais, porque o sol já ia tocando as serras, o ar já tinha um sopro frio que descia pelas árvores, um vento que fazia os troncos estalarem fantasmagoricamente.</p><p>Encontrei a jovem grisalha, vestindo sua longa túnica negra, sentada em torno de uma mesa de madeira rústica, à sombra de uma alta árvore, cuja copa se perdia acima das copas menos notáveis de outras árvores: um centenário pau-brasil, cuja casca rescendia um aroma suave no ar. Ela me acompanhava com os olhos, sem demonstrar emoções. Aproximei-me calado, sem ter mesmo ideia de como dar início à conversa.</p><p>Quando me aproximei dela, a ponto de poder perceber que ela não era, de fato, tão jovem — mas não tão velha que devesse ter aquela cor lunar nos cabelos.</p><p>— Estou confuso — foi o que eu consegui dizer, depois de algum tempo.</p><p>Ela me mostrou um sorriso, ou rosnado, e olhou para os lados e para cima, como se tivesse algo que eu devesse ver. Mas não havia nada, apenas o silêncio e os estalos dos troncos movidos pelos ventos e o murmúrio da água do regato.</p><p>— Como eu pude ter encontrado Inês ontem se a vi matar-se anteontem?</p><p>A jovem grisalha se levantou e caminhou até mim, sem que seus pés descalços quebrassem as folhas secas do chão. Ela me estendeu os braços, cobertos de marcas azuis de tatuagens e maldições milenares. Os olhos dela tinham uma tristeza tão profunda que eu tive vontade de abraçá-la.</p><p>— Ah, querido. Tudo é tão complicado. Tudo seria tão mais simples. Eu mesma não entendo tudo. Não entendo onde estou mais, é como se eu vivesse um círculo eterno. Uma solidão que nunca passa. Desde que vieram os homens de branco, com aquele maldito ritual. Parece que o tempo sempre volta e vem, e vai e está. As coisas acontecem depois de suas consequências, as vidas e mortes sempre se repetem e eu sempre permaneço aqui em torno desta cabana, tentando ir e nunca indo, tendo de testemunhar através das décadas e dos séculos a traição e a morte que tanto me magoaram.</p><p>— Quem é você? O que é você?</p><p>A jovem grisalha me olhou desolada.</p><p>— Quem eu sou não importa mais, nem o que eu era. Tu és apenas mais um que chega, para enfiar outro espinho no meu coração. Quantas vezes não contei minha história a homens como tu, ou mulheres! Quantas vezes não os amei, matei ou ignorei! Nada importa. Vivos, mortos, amados, feridos, abandonados. O tempo continua sua dança em torno de mim e outros vêm.</p><p>Quando disse que muitas vezes havia matado, não pude deixar de notar a adaga de lâmina curva que levava à cintura: distintivo certamente de uma ordem hermética. Estava diante de uma bruxa, de uma proverbial bruxa das histórias infantis. Das que são capazes de matar ou amar com a mesma intensidade e indistintamente. Isto explicava o livro em língua estranha, língua de bruxa. E por isso aparecia ao anoitecer.</p><p>Recuei dois passos enquanto ela falava. Começava a acreditar em toda aquela loucura. Ela não percebeu, ou fingiu não perceber. Minha curiosidade ainda me queimava, mas não tanto quanto o ferro em brasa dos torturadores:</p><p>— Eu não sei quem és. Mas eu quero, eu preciso ficar por aqui. Eu não entendo onde estou, não sei o que estou fazendo. Mas quero e preciso ficar.</p><p>Ela me olhou sem surpresa:</p><p>— Outros antes quiseram ficar.</p><p>— E não é bom que de vez em quando alguns queiram ficar? Se é como você diz, a solidão das décadas já deve ter se acumulado demais.</p><p>— Oh, querido. Tu não entendes nada, e o que dizes é loucura!</p><p>— Se o que digo é loucura, então ouça o que digo: eu preciso de ajuda. Preciso de um lugar onde possa ficar escondido, por alguns anos, talvez para sempre. Dizem que as irmãs sempre ajudam quem as procura com sinceridade e sem desejar o mal.</p><p>Ao ouvir-me mencionar “as irmãs” a jovem grisalha se empertigou subitamente, como se lhe tivessem cutucado em uma parte sensível do corpo.</p><p>— O que sabes, profano? Como reconheces o nome secreto!?</p><p>Se fosse verdade que ela estava há séculos presa naquele canto perdido de Minas Gerais, fazia sentido que ela não imaginasse a facilidade com que se podia ter acesso aos grimórios do passado.</p><p>— Calma, irmã. É em paz que venho.</p><p>— Quia est nomem tuus?</p><p>— Johannes</p><p>A bruxa pronunciou com uma rapidez quase cômica uma série de imprecações em alguma língua mais antiga e mais assustadora que o latim, durante a qual a forma latinizada de meu nome foi repetida várias vezes. Então ela sentou e começou a chorar:</p><p>— Já não funciona mais. Já nada funciona.</p><p>— O que não funciona?</p><p>Aproximei-me dela com cuidado, mas sinceramente comovido, e acariciei os seus cabelos descoloridos pela dor da solidão eterna. Ela permitiu que eu o fizesse, murmurando entre soluços:</p><p>— Oh, tu sabias, velho maldito. Tu o sabias! A carne é frágil diante da solidão e do tempo. Tu o sabias, maldito!</p><p>A bruxa me conduziu de volta à cabana, à sua cabana. Ali ela me preparou um chá, que eu bebi com receio e vagareza, temendo que ela me envenenasse. Mas não era nada disso: apenas hortelã-brava fervida em pura água da montanha e adoçada com o mel das abelhas selvagens.</p><p>Então ela me contou a sua história. Contou-me que se chamava Júlia Carneiro, que realmente fora bruxa em Portugal, que por isso recebera o degredo para o Brasil, casada à força com um proprietário de terras, que parecia ter a missão de espancá-la, mas que nunca ousara tocá-la, talvez por receios de sua fama de bruxa. Havia histórias horríveis sobre lábios com dentes e sobre escorpiões escondidos no útero. Em vez dela, o bronco engravidava as negras e as índias e se enchia de aguardente e de maldades. Um dia os negros e os índios da fazenda se revoltaram, os empregados não puderam resistir muito, pois uma enchente molhara os paióis de pólvora. Foi assim que ela se tornara viúva, vendo o marido ser esquartejado, “como um porco”, pelos vingativos negros, cujas costas tanto haviam sofrido a mando dele.</p><p>Sobrevivera ao massacre atirando-se no rio gordo e turbulento. Deveria ter morrido, mas salvou-se graças à arte mágica da natação, que bem poucas mulheres daquele século sabiam: só as que tinham sido raparigas de navio ou mulheres de pescadores.</p><p>Os índios a acolheram quando ela demonstrou algumas de suas artes. Mas uma pajé mulher era algo que não fazia sentido e ela acabou tendo de deixar a aldeia. Conseguiu retornar à civilização graças a um convento que estava sendo construído bem no centro da Serra da Estrela, a poucos quilômetros do Pico da Mesa, que dominava dezenas de quilômetros quadrados de planície pantanosa e pedregosa: o perigoso vale do Rio Vermelho.</p><p>Nesse ponto da história, fez uma longa pausa. Seu rosto, mal iluminado pela vela de sebo, parecia corar um pouco ao lembrar dos detalhes.</p><p>— Acreditas no amor?</p><p>— Sim.</p><p>— Acreditas no amor absolutamente sem fronteiras, no amor entre almas, ou crês que o amor está preso a corpos?</p><p>— Não sei o que dizer, mas acredito que o amor não pede licença e nem se explica.</p><p>— Eu ainda tenho receio de falar sobre o que aconteceu.</p><p>— Mas não me disseste, há pouco, que é uma história que já te cansaste de contar?</p><p>— Mesmo que a conte mil vezes, sempre terei receio de que a maldição se renove.</p><p>— Então somente me fales sobre isto se houver necessidade. E se quiseres falar. Eu não te cobro respostas. Tudo que desejo é abrigo na tempestade.</p><p>Lá fora soou um trovão distante.</p><p>— Um dia certamente eu te contarei a parte que mais me enluta. Mas por enquanto te baste saber que os padres descobriram tudo, acharam que havia obras do demônio em curso nesta região. Eles já tinham ouvido histórias, dos índios, dos negros, dos brancos supersticiosos que evitavam estas montanhas. Disseram que havia sido imenso o sacrilégio, tão imenso que havia contaminado toda a terra e que somente arrancando, como um tumor, o foco de infestação, seria possível evitar a “gangrena do mundo”. Foi assim que eles fizeram. Não sei a quem recorreram. Artes escuras de todas as partes foram conjuradas pelos homens de branco, a pedido dos padres e suas crenças. Não foi o Deus deles que fez isto. De uma forma sacrílega e estranha eles acharam que valeria até mesmo o recurso aos maiores inimigos da humanidade para poder fazer algo que a Cristo agradaria. E foi o que fizeram.</p><p>— O que foi que fizeram? Eu não consigo entender!</p><p>— Oh, querido. Não vês este emaranhado do tempo em que estamos? Aqueles malditos sacerdotes do Inominável fizeram o que os padres pediram. Amputaram todo esse território do mundo dos vivos, do presente, do passado e do futuro. Estamos aqui fora da geografia, fora da história, fora de tudo.</p><p>— Como assim? Isso não faz sentido? Como eu entrei aqui?</p><p>— A Arte deles não é perfeita, é claro. Ela não tinha que ser. Bastava que cumprisse o que havia sido pedido: não poderíamos jamais morrer ou sair, nem Inês e nem eu. Deveríamos viver a eternidade experimentando e expiando a culpa de nosso sacrilégio.</p><p>— Então é possível entrar?</p><p>— Sim. Muitos entraram antes. De vez em quando alguém entra. Quase todos acabam saltando do Pico, como você viu Inês fazer. Tu mesmo um dia o farás, quando estiveres cansado de mim e não puderes mais sair. Outros acham outros meios. Não sei de nenhum que saiu, mas deve ser possível sair, tanto quanto é possível entrar. Mas a quantidade de corpos no fundo do vale sugere que achar uma saída não é tão fácil.</p><p>Júlia foi me contando sua história naquela noite e eu tomando o chá de hortelã, segurando a xícara com cuidado para não queimar a mão. As palavras dela eram amargas, amargas como o chá que o mel não conseguia adoçar.</p><p>Foram muitas noites como aquela, na cabana ao pé da montanha. A cabana que Júlia construíra com suas próprias mãos para tentar parar a marcha cíclica do destino.</p><p>Muitas outras vezes nós vimos Inês passar, sem parecer vê-la, ou até mesmo a mim. Ela sempre subia ao alto do Pico e de lá se atirava ao abismo. Cada vez que isso acontecia eu pensava ver brotar um fio branco na cabeleira de Júlia. A contar pelos outros que já tinha entre os seus, eram dois séculos ou mais daquela agonia.</p><p>Todos os domingos, à tarde, ela subia a montanha e se atirava, sem dar mostra de nos ver. Júlia chorava ao ouvir o ruído do corpo dela corpo contra o chão e entrava a recolher-se, mesmo sem conseguir dormir. Lá pela madrugada velha ela acordava e saía, sem nunca dizer aonde ia. Assistir aquele espetáculo era uma terrível forma de começar a noite, praticamente impedindo que Júlia e eu tivéssemos qualquer atração.</p><p>De fato um dia eu não suportei mais tudo aquilo. Permanecera ao lado de Júlia querendo ter alguma explicação. Mas nunca tivera mais do que novas perguntas. Não sei quanto tempo demorou para que me cansasse, mas podem ter sido dois anos, ou vinte. Não quis, porém, atirar-me do alto do pico: preferi procurar uma saída. Afinal, eu já tinha uma vaga ideia de onde poderia haver uma.</p><p>Uma manhã, logo depois que Júlia retornou de seus misteriosos passeios noturnos e foi dormir, como sempre envolta naquela túnica de luto, roubei o caderno encapado em couro, que roubara do cadáver de Inês, e saí pela estrada levando uma magra trouxa com o resto de minhas roupas e alguma comida.</p><p>Cheguei à encruzilhada ao pé do morro. Durante o tempo em que vivera na cabana ao pé da montanha, passara muitas vezes por ali, sem nunca criar coragem para subir o morro e conhecer o que haveria do outro lado. Eu vivia com o pavor de haverem soldados espreitando para localizar-me e prender-me tão logo eu saísse detrás de alguma árvore e pusesse o pé na estrada.</p><p>Mas naquele dia o medo não existia mais: certamente a ditadura acabara e eu não teria mais que fugir de soldados e temer torturas. Subi o morro devagar, conquistando cada metro como se fosse um território inimigo. Esperava chegar ao alto e encontrar a beira de uma estrada, alguns carros passando. Ali talvez haveria o ruído de música e de vida urbana filtrado pela distância.</p><p>Não foi o que vi. O que havia diante de mim era o brejo sem fim do vale do Rio Vermelho, dominado pela presença tétrica do Pico da Mesa. Não fazia sentido: o caminho era praticamente em linha reta em direção ao leste, margeando o rio. Dava para acompanhar pelo sol. Mas eu estava ali, encarando de frente aquela paisagem que eu só deveria ver se viesse do sul. Era como se tivessem recortado aquele pedaço do mundo e emendado em torno de si mesmo, num eterno círculo ou buraco negro, cujos caminhos são todos espirais em torno de um ponto. “O Pico da Mesa domina uma região de dezenas de léguas”, dissera Júlia. Era fato.</p><p>Sentei-me em uma pedra e abri o caderno de Inês. Ele devia conter alguma pista adicional sobre o acontecido, mas estava coberto de garatujas angulosas.</p><p>— Meu Deus, são … são caracteres cuneiformes!</p><p>Ali estavam, desenhados com um tipo secular de pena, símbolos malditos e esquecidos de uma civilização extinta, anteriores à Bíblia e a Jesus. Símbolos anteriores às penas e aos livros, que eram antigamente gravados no barro usando estiletes de cana.</p><p>Guardei o livro no bolso, reconhecendo enfim que haveria uma solução para o mistério algum dia, se conseguisse sair daquele poço no tempo em que me metera. Sim, eu sempre temera sair e ser pego, mas nunca pudera, de fato sair. E no momento em que o queria, e muito, percebia que a saída era uma ilusão como outra qualquer.</p><p>Assim derrotado, saí caminhando a esmo por aquele mundo em redoma, procurando alguma brecha por onde pudesse saltar. Quando finalmente o cansaço me derrotou, e já era noite velha isso, achei uma pedra razoavelmente plana, à beira de uma encruzilhada, e ali me deitei, usando a trouxa como travesseiro.</p><div style="text-align: center;">***</div><p>Acordei na manhã seguinte completamente derrotado. Passara o dia anterior sem sonhar como sair. Depois dormira uma noite de pavores, ao relento e sobre uma pedra desconfortável. Sonhara com monstros que passavam em torno, carregando imensos cascos nas costas. Sonhara com monstros de olhos flamejantes, com homens de túnicas brancas que evocavam forças desconhecidas, fazendo o mal em nome do bem.</p><p>Mas quando amanheci e meus olhos doeram com o sol, percebi que estava à beira de uma rodovia maior do que as que conhecera antes. Por ela passavam continuamente imensos caminhões e inumeráveis automóveis, de modelos que pareciam saídos de filmes futuristas.</p><p>— Deus seja louvado! Voltei!</p><p>A encruzilhada já não existia. A pedra estava longe, empilhada com outras à beira do caminho.</p><p>Aos poucos fui me familiarizando com o mundo. Muita coisa havia mudado, mas não tanto assim. Consegui entrar em contato com a minha família e vieram me buscar. Para eles voltei como voltaria um defunto: receberam-me com uma incredulidade que somente minha semelhança com as fotos e a memória fiel de muitos acontecimentos foi capaz de convencer.</p><p>Havia pouca coisa que eu pudesse fazer. Felizmente eu tinha um irmão que era advogado e ele conseguiu-me uma indenização do governo, em nome dos anos de prisão e tortura que eu supostamente passara. Nunca consegui convencer ninguém da minha história alternativa. Com o tempo desisti de tentar. Aliás, o que me passou naquelas montanhas foi de fato prisão e tortura, mereço esse dinheiro.</p><p>Com ele reconstruí minha vida. Casei-me, tive filhos. Esqueci aquela história, guardei o caderno de Inês em uma gaveta da memória e toquei a vida. Hoje tenho sessenta e cinco anos e passei a ter certos sonhos que me incomodam.</p><p>Foi por causa desses sonhos que eu mandei uma cópia das notas do caderno para um especialista em línguas antigas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Não posso dizer o nome desse homem: ele não leciona as disciplinas proibidas a que recorreu para fazer-me a tradução. Soube dele através de meus contatos com maçons amigos.</p><p>Recebi ontem a tradução. Foi por causa dela que resolvi contar a história que agora termino. O caderno contém muita coisa que não ousarei transcrever. Coisas, porém, que não deveriam condenar nem a Júlia e nem a Inês.</p><p>Deus não deve ter gostado mesmo que se amassem. A demolição da capela certamente serviria para purificar o lugar da mancha do que os padres assistiram naquela noite. Até o mosteiro teve que mudar de lugar, até os mortos já enterrados tiveram de ir junto. Porque o que veio a seguir afetaria a eternidade.</p><p>O motivo de meus pesadelos recorrentes é que eu passei a imaginar, veja só que loucura, a possibilidade de retornar. Amo a minha pobre mulher, claro. Amo aos meus filhos também. Mas este mundo em que tenho vivido parece tão alheio quanto o outro. A diferença é que neste eu envelheço e tenho um câncer.</p><p>Se eu puder retornar à Serra da Estrela, estarei condenado à eternidade. Desde que ache outra entrada, em algum acaso da estrada. Desde que Júlia me perdoe e não me sangre com seu punhal.</p><div class="nav"><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha.html" rel="noopener">Parte I</a> <em>·</em> <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha-parte-ii.html" rel="noopener">Parte II</a> <em>·</em> <a anchor"."="anchor&quot;.&quot;" rel="noopener">Parte III</a></div>

12
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 19:51link do post | comentar

Ela se foi e eu fiquei sozinho o resto da noite naquela casinha de pedras no meio do nada. Não tive, porém, tempo para sonhos loucos ou terrores noturnos: apesar do breve sono da tarde, eu estava cansado demais pelos três ou quatro dias de estrada para negar-me a dormir na cama macia e segura, apesar de suja.

Acordei na manhã seguinte com um sobressalto: nos últimos estertores do sono eu havia encontrado uma abertura para ter um pesadelo e lembrei da misteriosa mulher que se jogara no abismo.

Ao me levantar, deparei-me com o fogo aceso e com a mesa posta para o desjejum. Era curioso que isso acontecesse, visto que eu fora dormir sozinho naquela cabana. Mas sobre a mesa estava um envelope rústico contendo um bilhete numa caligrafia que parecia saída de um manuscrito medieval:

Tente não demorar muito nessa casa: ela não o salvará de si mesmo, e o exporá a muitos perigos que você não conhece. Não deixe que minha irmã Lua o engane.

O caderno que eu subtraíra da suicida estava dentro do envelope: sua capa de couro marrom estava úmida, como se manchada de sangue, do sangue dela. Mas não estivera assim quando o pegara. O cheiro dele era quase insuportável, como se o seu texto revelasse horrendos e imemoriais segredos. Coloquei-o na mochila pensando em tentar ler depois.

Tomei do amargo café e comi dos pães duros, untados de manteiga rançosa, e fui ver o que havia do lado de fora. O cavalo da desconhecida estava pastando no relvado próximo à cabana, e pareceu dócil à minha aproximação. Abracei-o carinhosamente, lembrando a pele áspera, mas feminina, de sua dona morta. O cavalo me olhou profundamente, como se tivesse inteligência em vez de ser apenas uma besta de carga.

Selei e montei aquele animal com o respeito que merecem os cavalos, pelo menos no mundo estranho em que eu tão de repente me perdera. Saímos pelas estradas

A estrada era larga, maltratada e pedregosa. Um cavalo poderia facilmente derrapar e cair naquele chão traiçoeiro. Ninguém seguia no rumo oposto, ou no mesmo, e o silêncio da paisagem conspirava como se todo o mundo se tivesse desabitado de seres humanos e das trevas o mal me espreitasse. Cavalgava por horas sem destino, observando cada traço da paisagem, sempre buscando alguma indicação de rumo.

Quando o sol estava alto no céu, parei à sombra de um imenso pau-ferro à margem da estrada e roí algum pão enquanto observava as estranhas runas do caderno. À luz do sol elas pareciam bem menos misteriosas, dava para ver que estavam em alguma língua humana, embora talvez antiga demais para que eu a reconhecesse. Montei novamente e segui meu rumo sem sentido.

Ao cruzar a crista de um morro bastante íngreme, entrei em um território onde parecia ter chovido recentemente. As folhas estavam tão viçosas que dava vontade de fazer-lhes carícias, e os grilos por toda parte se preparavam para a noite que em breve cairia.

Todo o meu dia foi passado em uma estrada interminável, serpenteando por entre montanhas e vales e matas e rochas. Nenhuma casa, nenhuma viva alma, nenhuma encruzilhada. Mas quando já começava a cair à noite, num raro trecho de vargem à beira de um rio largo, limpo e tão silencioso quanto um lago cheio de sapos, eis que achei a primeira bifurcação da estrada desde que entrara naquele mundo. Lembrei-me dela imediatamente, pois fora através dela que eu entrara naquele lugar.

Contemplar aquele lugar me fez sentir firmeza novamente: ali estava o elo que me levaria de volta aos lugares conhecidos, onde as coisas todas têm explicação. Bastava guinar o cavalo à direita e subir aquele morro baixo e triste, tão cheio de feridas avermelhadas. Do outro lado, salvo engano, haveria a cachoeira onde eu me banhara pouco após sair do cemitério da cidade sem nome.

Porém não havia força no universo capaz de me forçar a tomar aquele caminho. Por ele certamente eu retornava ao mundo conhecido, mas por ele eu igualmente retornava ao mundo no qual havia homens cruéis determinados a me conduzir à presença da lei arbitrária que me enquadrava como um facínora. Permanecer naquele mundo estranho era permanecer longe do pau de arara e da cadeira do dragão.

Por isso não tomei nenhuma atitude, apenas deixei que o cavalo, preguiçosamente, seguisse o caminho do menor esforço, o caminho através do qual eu continuaria margeando o rio e me dirigindo à noite que nascia com a lua entre duas montanhas redondas como seios.

Não demorou que começassem a surgir outras encruzilhadas. Estas, porém, eu não conhecia. Cada uma delas poderia ter me levado de volta, ou ainda para mais longe. Mas nelas eu não tive de deixar que apenas o meu livre arbítrio me guiasse.

Logo na primeira delas havia um lenço dependurado em um galho de goiabeira. Poderia ter sido uma indicação, ou poderia ter sido apenas um pedaço de roupa rasgado quando um cavaleiro passara em disparada. Aquele alvo pedaço de pano já estava tão úmido pelo tempo que não guardava traço algum do perfume ou da catinga de quem o usara um dia.

Na encruzilhada seguinte havia uma pedra grande. De cada lado havia uma fratura que se assemelhava a um assento. Mas somente em um dos lados havia algo diferente: um livro, também mostrando sinais de ter sofrido com a chuva. Apeei e fui buscá-lo, pensando nas informações que ele poderia ter, mas era somente um daqueles livros baratos com histórias para moças.

A noite começava a se desdobrar, como um vestido escuro cobrindo a linda nudez da paisagem. O livro tinha a capa arrancada, indício de que fora talvez comprado a quilo em um encalhe de banca de jornal. Mas ao folheá-lho percebi que a sua presença ali poderia não ser casual: havia frases sublinhadas, palavras isoladas marcadas a tinta. Concatenando os trechos soltos parecia haver uma mensagem, mas ela fazia pouco sentido:

Vivendo em uma linda casa … morrendo por … isso a … enganara … pensava talvez em fugir … enfeitiçar … quem vier …

Segui pelo caminho sugerido por aquele livro. Notei sem espanto que ali a noite caía silenciosa, nenhuma viva alma passava, nenhum pássaro piava. Uma negra solidão foi me envolvendo ao mesmo tempo em que eu sentia uma necessidade absurda de fazer amor outra vez, com a misteriosa morta.

Na virada do morro seguinte se descortinava um vale desolado, um amontoado de construções de pedra muito mal acabadas com um ar mais de fortaleza que de residência. Uma alta torre encimada por uma cruz inscrita dentro de um círculo predominava sobre as demais construções, mais baixas, indicando que aquele lugar, em algum momento perdido de um passado, fora consagrado. Ao lado da enorme e negra igreja de pedra nua, coberta de trepadeiras, um mar de cruzes quebradas e lápides gastas indicava que aquelas colinas cobertas de touças altas de capim haviam sido, num passado distante, uma aldeia populosa.

Mas quando me aproximei eu vi que todas as covas haviam sido escavadas, sabe Deus quando, e que os antigos residentes delas tinham sido levados, somente Ele sabe para onde. O cavalo trotava com familiaridade por aquele terreno, como se tivesse sido apascentado ali desde que fora um potrilho. Depois de passar pelo cemitério o caminho passava a ser calçado de lajotas irregulares de pedra calcária, muito gastas pela chuva de séculos e por cascos e pés de todas as espécies. Detrás da igreja aparecia uma construção que destoava do resto: baixa, clara, geométrica e aparentando modernidade. Estava silenciosa como tudo, e escura também. Outra construção, um imenso paralelepípedo negro com janelas, repousava na parte mais baixa, já perto de um regato que quase não murmurava. Uma luz acesa ali indicava que alguém vivia, ou vegetava, naquele lugar.

Mal podendo imaginar o que me aguardava, em vez disso agradecendo a sorte de um pouso — e talvez até de um lugar onde ficar pelo tempo que fosse preciso — eu me dirigi à porta daquela medonha habitação. A sua porta alta indicava uma construção totalmente fora dos padrões de hoje, com um pé-direito de três metros ou mais. A pesada madeira nem se moveu quando a toquei, nem pareceu sentir quando a pesada aldrava de ferro soou.

Um homem veio atender, macérrimo e pálido. Tinha a fisionomia desolada e os lábios finos. As suas unhas estavam crescidas e as suas costas eram curvadas. Ele poderia ter oitenta anos ou mais.

— O que deseja?

— Encontrei o cavalo por aí venho saber se não pertence a esta propriedade.

— Não criamos cavalos — ele respondeu secamente.

— E nem ao menos pode me dizer de onde é o animal?

O homem deu dois passos para fora e olhou o triste cavalo em que eu viera. Ao vê-lo a besta curvou a cabeça e soltou um relincho de reconhecimento. O homem resmungou alguma coisa que eu não entendi, acariciou o cavalo com uma doçura surpreendente e tirou do bolso algo que lhe deu. Mas quando se voltou tinha os olhos cheios de lágrimas.

— Então o cavalo é daqui?! — eu devolvi secamente.

Ele permaneceu ainda em silêncio por um tempo. Por fim acenou com a cabeça.

— Reconheço a criatura, mas ela não pertence a nenhum proprietário das redondezas.

— Não compreendo.

— O que lhe importa, com mil demônios?! Pode deixá-lo comigo. Quanto à recompensa, receberá do diabo.

— Sua falta de educação finalmente me irritou. Com que então eu tenho a boa vontade de trazer um animal perdido e o senhor me manda buscar recompensa com o demo! Vá à merda e que ele o leve!

A intensidade da minha rudeza surpreendeu-me. Nunca antes me imaginara sendo tão agressivo com alguém, especialmente com alguém que parecia estar visivelmente assustado e agindo contra sua vontade. Mas era bom exercer minha prepotência depois de tantos dias humilhado na estrada, mesmo que ela me atirasse de volta ao desamparo.

— Você não sabe o que diz!

Ele respondeu com um desprezo e uma expressão de desolação tão profunda no rosto que por um momento eu quase me arrependi. Mas logo recompus minha dureza. Nesse momento, uma voz familiar gritou de cima perguntando quem era e simplesmente ao ouvi-la eu retomei minha firmeza absoluta. Uma chuva fina e fria começara a cair, um vento cortante assobiava nas árvores e uma mulher apareceu à porta, com uma expressão gelada no rosto, como se jamais me houvesse conhecido. Ela era loura bela, como a jovem grisalha que eu vira na descida da montanha fatal.

— Jorge!?

— Ele trouxe o cavalo — disse num fio de voz o Jorge.

— Muito obrigada — disse a mulher, estendendo-me a mão com um sorriso — serás recompensado. Jorge, não vamos deixar que este homem siga viagem sob esta chuva cruel e este frio que vem com a noite, faça-o entrar e lhe prepare um quarto de visitas.

— Realmente, senhora, não é de bom-tom deixar que ele atravesse esta noite inclemente a pé…

E me fez entrar.

A aparência interna do lugar não era melhor que seu exterior desolado. Os móveis eram todos muito grandes e de desenho bruto, o chão era de lajotas enceradas e as paredes caiadas não ostentavam nenhum ornamento. Prepararam-me uma mesa na cozinha e comi alimento recém-preparado pela primeira vez em muitas semanas. Jorge e sua mulher, uma criatura gorda e sorridente, eram os únicos empregados daquela imensa casa.

Depois de terminar, me conduziram escada acima até um pequenino quarto de hóspedes localizado logo à direita, antes de um imenso portão de ferro trancado com um cadeado maior que a minha cabeça. Além do portão um longo corredor com várias portas. Seguramente aquele edifício fora um convento e aquelas eram as celas em que dormiam solitariamente os frades ou as freiras do lugar.

Depois que me fez entrar em meu quarto, pude ouvi-lo girar a chave na fechadura e tive medo pela primeira vez em muito tempo. Segurei a maçaneta, mas já era tarde: Estava trancado! O quarto, uma das celas do antigo monastério, era grande o bastante para caber um guarda-roupa, uma cama e uma mesa de cabeceira. Para mais nada, porém. Havia uma única janela vazando as paredes muito grossas que davam para o exterior. Apesar de estreita, era larga o bastante para que eu pudesse debruçar-me nela e contemplar a noite de lua crescente sobre os campos.

Um ar pesado soprava do norte, como se alguma coisa horrível estivesse vindo. A janela, localizada do lado que dava para o riacho, se abria sobre uma escuridão difícil de avaliar. A luz da lua não chegava até ali porque as montanhas e as construções mais altas se interpunham obliquamente no caminho do luar.

Apesar disso, dispus-me a dormir. Mesmo porque não havia remédio. Despi-me parcialmente e me estendi na pequena cama de colchão duro. Quando estava semi-adormecido, apesar do nervosismo, ouvi uma janela batendo, senti o frio da madrugada beijando meu rosto e levantei-me para ver o que era. Minha janela estava aberta. Enquanto imaginava como pudera ela abrir-se, senti uma presença familiar atrás de mim e me voltei.

— Que bom que vieste…

Era a mulher loura que me recebera à porta. Olhei-a de alto a baixo, apreciando cada detalhe de seu corpo entrevisto através da camisola diáfana que usava. Ela sorriu-me e desprendeu-a de seus ombros, fazendo-a cair e deixar diante de mim uma nudez fulgurante. Então abriu os braços e me chamou ao seu seio e fizemos amor com uma intensidade maior que a da vida.

Em dado momento, ouvimos um ruído ecoar pelos campos, um ruído de tiro. Os olhos dela se iluminaram.

— Ei-lo que chega!

A cancela da entrada rangeu e minhas pernas amoleceram. Suei frio e ergui-me num sobressalto. Um ríspido diálogo se travou embaixo na cozinha:

— De quem o cavalo? — pergunta uma voz estrondosa.

— Não sabemos, um cavalheiro chegou nele, dizendo tê-lo encontrado pelos campos. Veio perguntar pelo dono porque quer a sua recompensa. — Respondeu servilmente Jorge.

— E por que pousou aqui em minha casa este estranho?

— Choveu depois que ele chegou e ficamos constrangidos de ordenar-lhe que seguisse viagem sob tão cruel tempo.

Uma torrente de palavrões ribombou pelo salão, simultânea a dois tiros. Catarina, que até então estivera radiante, rompeu em pranto convulso, levantou-se da cama e atirou-se pela janela antes que eu a pudesse impedir! Pesa segunda vez ela me escapava! Assustado, vesti-me rapidamente e, instintivamente, abri o armário. Lá encontrei, por obra de Deus ou de Satanás, não sei, um rifle carregado!

Enquanto o engatilhava ouvi os passos pesados do recém-chegado logo além da porta e o chocalhar de chaves. Apaguei a única vela que havia no quarto e cerrei a cortina. A escuridão mais completa se fez. Apontei a arma para a porta e aguardei que ela se abrisse para atirar duas vezes no peito do desconhecido, antes que ele tivesse tempo de me ver.

O homem arregalou os olhos, deixou cair a pesada carabina que carregava e tombou pesadamente para trás. Fui até seu cadáver e, reacendendo a mesma vela do castiçal ao lado da cama, pus-me a mirar-lhe. Era uma criatura formidável aquele homem: teria mais de dois metros de altura e uma musculatura firme e poderosa. Seu rosto estava tomado por uma cicatriz que lhe dava um ar cruel e os seus dentes eram bastante ruins. Vestia uma espécie de hábito de tecido rústico, bem pouco suficiente para abrigar-lhe do frio que fazia naquela noite. Toquei-lhe a fronte para certificar-me de seu falecimento e, comprovado este fato, desci as escadas.

No salão estava o pobre Jorge com a cabeça aberta pelo rombo do único tiro que levara. A arma usada para isso teria matado um elefante. A sua pobre mulher fora atingida no meio das costas, mas ainda respirava. Aproximei-me dela e dei-lhe a mão. Ela olhou-me nos olhos, lacrimejando de medo na presença do frio do Juízo próximo e disse:

— Maldito seja ele, maldito!

Eu não tinha nada que fazer por aquela pobre criatura. Apenas acariciei o seu rosto com ternura. Ao sentir a sinceridade de meu toque ela me disse:

— Cuida de Inês.

Imaginei imediatamente que este seria o verdadeiro nome da loura e, não desejando aumentar a tristeza da agonizante, informei que Inês estava bem e que eu cuidaria dela. A mulher cuspia sangue pela boca, indicando que seus pulmões haviam sido atingidos. Num último esforço, olhou-me e disse “pobre coitado de ti!”, vindo a morrer em seguida.

Saí em busca de Inês logo em seguida — e não a encontrei. Não havia nenhum corpo abaixo das janelas daquela construção sinistra, nenhum sinal que indicasse qualquer coisa semelhante à remoção de um cadáver. Para mais estranheza ainda, a provável janela de meu quarto era sobre uma horta, cujas alfaces intactas eram ainda mais intrigantes que o formato barroco daquela lua que parecia uma gargalhada no céu.

Pela manhã, sepultei Jorge e sua esposa em duas das covas vazias do cemitério. As armas, eu achei prudente enterrar no solo fofo do fundo da horta, a fim de que aquela noite ficasse esquecida. E tendo feito isso, enquanto tomava da salobra água do único poço que servia à casa, me perguntei o que deveria fazer em seguida. O sol me respondeu que era preciso descansar. Mas descansar não me parecia nada sábio, diante das circunstâncias.


09
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 09:47link do post | comentar

O que estou prestes a contar pode parecer sem pé e nem cabeça a você que me lê (porque a mim mesmo parece), mas sinto algo que me pressiona a falar e não posso desviar-me da missão de te dizer as coisas que vivi naqueles dias.

cabana de madeira

Às vezes tenho a impressão de que, na verdade, tenho sonhado isto que parece ser minha vida — e ainda não consegui acordar. Depois de haver guardado nas gavetas do esquecimento os traços deste pesadelo por muitas semanas, ele volta a me perseguir. Não dá mais para carregar este peso nos ombros, espero que você me ajude a pousá-lo no chão.

Contar essa memória que não me abandona é dividir esta saca pesada de medos e angústia para que, talvez por um breve momento que seja, eu possa tentar reorganizar meus sentimentos e livrar-me dessas imagens intermitentes e insanas.

Em um dia quente e desesperado eu me achei caminhando por uma estrada empoeirada sob um sol abrasador. Nem pássaros ousavam cantar diante da pressão que o ar exercia sobre as montanhas desbotadas.

Às minhas costas eu levava uma mochila pesada de culpas e projetos, alguns já malogrados em broto. Estava fugindo nem me lembro mais de que e temia que todos os meus amigos estivessem mortos ou presos. Tempos depois tive a certeza. Ou será que nunca, de verdade, tive amigos?

Para não ter de enfrentar nenhum dos doidos destinos que se me apresentavam eu saí de casa no meio da noite, furtando apenas roupas, comida para dias e uma Bíblia.

A comida se esgotara rápido, e já eram três dias que eu passava a roer-me de fome, tendo de roubar de comer.

As roupas, não podia trocar porque estava imundo, suado e coberto de pó e a comarca estéril em que estava vagando padecia de seca e infelicidade.

A Bíblia eu trocara por um pão com salame.

Depois de mais alguns dias de caminhada sem rumo pelos lugares aonde ninguém nunca vai, eu já estava exausto e bastante desesperado para fazer qualquer coisa. Mas só havia frutas murchas da estação fracassada nos galhos despojados das raríssimas propriedades habitadas.

Certa noite cheguei a uma cidade cujo nome não se dava a conhecer em nenhuma placa, em nenhuma saudação, em nenhum monumento. Um lugar pequeno, afastado das estradas principais e de Deus, incrustado numa encosta de morro onde não havia nenhum aspecto de beleza a ser ressaltado.

Uma cidade feia e cinzenta, com cerâmica industrial barata cobrindo as paredes das casas, ornadas com estéreis motivos geométricos, parecidas com monumentos funerários. Havia casas abandonadas e decadentes até mesmo nas ruas principais, ruínas ao lado da prefeitura, calçamento revirado na própria praça da matriz. As luzes estavam apagadas para economizar o gerador porque todos dormitam tranquilamente, seguros dentro de suas edificações residenciais sem vida.

Passeei pelo deserto urbano como um fantasma através de uma cerimônia, invisível e suave. E em nenhuma parte vi hotel, lugar nenhum em que se desse pouso a quem se perdesse por lá. Meus últimos trocados lamentaram de dentro do bolso não poderem dar para uma boa cama e um banho tépido, capaz de atravessar as teias de vertigem e o cansaço do tédio.

Com ossos doloridos de um longo dia e ainda por cima faminto, imaginava meios de dormir. Havia bancos na praça, mas me recusei a entregar-me ao nível dos pedintes reles. A dignidade vociferava em mim e me obrigou buscar onde ao menos pudesse ocultar a situação em que estava, e foi no cemitério que vi um lugar perfeito para terminar aquele dia de pesadelo.

Não me pareceu provável que o lugar fosse visitado durante a noite, ou mesmo pela manhã, já que era afastado e mal cuidado. Além do fato óbvio de ser um cemitério de uma cidade que parecia estar morrendo em vez de crescer. Apenas corujas piavam na escuridão e não havia sequer uma vela acesa em túmulo algum.

Buscando um lugar para deitar, encontrei no fim da alameda mais larga um mausoléu imponente cujo portão de ferro estava apenas encostado. Dentro, algumas velas ali postas a arder anos antes e muita, muita poeira e teias de aranha. Apesar disso, não podia negar que era um dos lugares melhores para deixar-me dormir e me rendi a uma grande mesa de mármore junto à entrada, usando minha mochila como travesseiro, e dormi sem pesadelos e nem esperanças.

Despertei com o sol agraciando meu rosto e sentindo a brisa leve e fresca. Pus às costas a mochila e saí pelo mundo para ver onde estava.

As cidades, a dos mortos e a dos que morriam, estavam em um morro um pouco mais ou menos alto do que os outros em torno. Todos morros redondos, pastos nus e salpicados de feridas avermelhadas, inteiramente desprovidos de árvores e imersos na cinza tristeza do outono-inverno, essa espécie de devastação que acomete o interior de Minas Gerais todos os anos a partir de abril.

O cemitério estava fora dos limites, cerca de uns quinhentos metros acima da última rua e apenas um muro baixo o isolava da terra secular. Temeroso de que alguém testemunhasse a minha vergonha apressei-me a sair e continuar a caminhada.

Tendo caminhado cerca de três quilômetros para além, pude ouvir o estrondo de água em pedras e me dei subitamente conta da delícia de poder lavar-me após… quantos dias?

Um segundo depois sorri ao dar-me conta de que minha vida de andarilho me estava devolvendo a sensibilidade aos ouvidos, podia ouvir os grilos no capim, as aves piando a uma distância considerável e o rumor do mundo em movimento. Mesmo na desgraça o ser humano tem motivos para sorrir.

Desci a encosta em direção a um fundo de vale arborizado onde havia a água que criava aquele som familiar. Seguindo a direção do ruído, encontrei uma pequena maravilha à minha espera: uma cascata de uns dois metros de altura que caía sobre um poço com fundo de areia, em meio a árvores que pareciam ter estado ali durante muitos milênios.

Despi-me e brinquei alegre como criança durante algum tempo, finalmente abri o sabonete que trazia de casa e me dei um banho como poucas vezes. Depois de escovar os dentes pela primeira vez em dias e de usar desodorante pela primeira vez desde que saíra de casa eu vesti uma roupa limpa, mesmo calçando os mesmos surrados sapatos e olhei para mim mesmo com um pouco mais de orgulho. Apenas a fome atentava contra a minha auto-estima.

Com tristeza deixei o pequeno pedaço de paraíso onde, apesar da beleza, não havia alimento e voltei ao caminho. Devagar para não suar muito, tão sem destino quanto antes, mas sentindo-me mais limpo e mais leve. Nisso ouvi um cauteloso trotar de cavalo atrás de mim e me virei para averiguar quem caía em meu mundo.

Uma mulher, montando um cavalo castanho e usando um vestido e um chapéu. Bela mulher. Aparentemente apenas o vestido e o chapéu denunciavam alguma irregularidade. Teria trinta anos mais ou menos, mas logo percebi que não era uma das mulheres comuns da região. As mulheres do interior não têm no olhar aquela malícia e nem no semblante aquela firmeza indômita e algo cruel. “Também não usam roupas desse jeito e nem um chapéu assim”. Toda ela me pareceu recuada do tempo, alheia ao mesmo mundo meu. Dominava o cavalo com displicência, mantendo um silêncio ardoroso em seus gestos. Quando me viu, me chamou com um sorriso e fez diminuir o andar do animal, audácia que me chocou.

“Senhora, boa tarde”, eu disse, com palavras que me soaram raras depois que saíram de minha boca porque não pareceram minhas, mas a fala de um personagem de uma lenda antiga.

Ela respondeu com um aceno aberto mostrando dentes claros de padrão algo feroz. Ela continuou e me mantive entre envergonhado e excitado até que finalmente resolvi segui-la.

Ela não olhava para trás, mas para os lados, fingindo ver a paisagem, como para certificar-se de que a estava seguindo. Naquele momento em que a inspiração me faltava e meu olhar vacilava, eu era capaz de dizer qualquer besteira, mas não disse.

Ela não deixou o cavalo parar e nem esperou que eu a alcançasse. Sem o que dizer, eu apressei o passo, vendo que o cavalo soprava com ansiedade, tentando ir mais rápido.

Os passos do animal eram contidos por uma mão mais firme que a minha e por olhos que viam aonde eu não sabia. Mas lentamente estas mãos meticulosas libertaram o trote e tive de cada vez ir mais rápido para não ficar para trás.

A rapidez cada vez maior de meus pés pareceu cancelar as precauções que eu devia ter em minha mente. Logo eu já me havia esquecido de meus pensamentos e até de onde andava. Era como se não enxergasse nada à esquerda ou à direita. Depois de meia hora de perseguição eu estava suado, ofegante, desidratado e com cada músculo esvaído e doendo demais.

Então ela se embrenhou por uma trilha à esquerda, uma que se abria quase imperceptível na parede de galhos que orlava o caminho. Entrei após, pisando folhas e arbustos. Meus passos estalam nos gravetos e ecoavam no ar vazio como se o mundo inteiro estivesse dentro de uma redoma.

Acordei horas depois de um sono impreciso que tive. Estava nu, deitado sobre um gramado pontilhado de flores amarelas à beira de um riacho. Ao meu lado, também nua, a mulher que eu perseguira, adormecida e indefesa.

Olhei em torno num relance e nada reconheci. O murmúrio da água parecia renovar a minha sonolência e eu não conseguia ter noção do tempo — a não ser que, talvez, estivesse terminando o dia; pela brisa fresca que soprava lá.

Não consigo imaginar como cheguei a esse lugar estranho e nem porque subitamente aquela mulher, cujo nome eu ainda não sei, jazia nua ao meu lado, salpicada de pétalas amarelas e com o sol da tarde fazendo luzirem as gotas de suor em sua pele (como se muito recentemente tivesse terminado um grandes esforço! Um esforço comparável ao do amor!).

Quis fugir dali! Mas como? Olhei outra vez em torno e não vi montanhas no horizonte. A clareira estava cercada de escuras paredes de árvores e trepadeiras e eu nem mesmo imaginei por onde deveria tentar sair para estar de volta… À estrada que seguia sozinho e sem saber para onde ir?! Sufoquei-me pensando que não havia nenhum motivo para fugir, nenhuma alternativa que me convencesse de que vale a pena fugir da presença daquela mulher, que de resto era tão bela.

Não consegui senão render-me à contemplação de sua nudez tão bela e simples. Uma sensualidade clássica e farta, com pernas grossas, braços roliços, seios bem feitos e cintura larga. O rosto de uma Vênus de Rubens com mãos maltratadas de serviços, unhas roídas e irregulares, nódoas nos dedos. O seu sexo era coberto de uma penugem macia que parecia não haver sido jamais raspada de tão suave e curta. O seu corpo era de uma cor que parecia não ter jamais tomado sol. De uma cor que não existe mais.

Enquanto eu permaneci atônito a contemplá-la, esqueci o tempo e não vi se anoiteceu ou não (deveria?). Foi com muda surpresa que a vi acordar e espreguiçar-se.

Ela olhou em torno, viu-se e me viu. Cobriu-se subitamente envergonhada e me atingiu:

— Que fizeste, bandido?!

— Nada que eu saiba. Diz-me tu que fizeste comigo?!

— Nada que ferisse. Agora responde que fizeste comigo!

— Nada que te acordasse.

Ela se pôs a chorar, acusando-me de ter tirado proveito do sono que a rendera. Embora certo de minha inocência, não tentei abrir a boca para dizer coisa alguma, ao mesmo tempo em que me embebedava em sua beleza.

Depois de lamentar por um tempo, ela se levantou, tomou as suas roupas e se vestiu  vagarosamente. Assobiou e o cavalo pareceu aparecer do nada. Manso e arreado. Veio pacatamente receber de suas mãos um carinho e um “venha, menino”.

— Você não devia ter tentado me interromper.

— Mas não tentei fazer nada!

— Não pense que isso mudou alguma coisa. Só vai trazer-lhe mais

sofrimento.

— Quem é você, e onde estamos?

Ela montou sem me responder e cavalgou, muda, rumo ao riacho. O animal não hesitou em achar uma travessia através dos bancos de areia enquanto eu me ocupava em vestir-me tão rápido quanto podia para poder tentar acompanhá-la ainda. Sabia que onde estava não podia continuar e que voltar era impossível.

Após o rio e além da primeira curva se erguia uma casa de pedras com teto de folhas de sapé, que eu apenas observei de passagem. Dentro da casa algumas pessoas pareciam ocupadas em talvez um tipo de piquenique.

Passada a curva e seguindo a segunda estrada pelo morro acima, terminei numa clareira ampla entre árvores, com mesinhas de pedra, próprias para piqueniques ou bruxaria. Uma longa escada de lajes de pedra dispostas através da encosta permitia que se subisse ao topo da montanha coberta de relva verdejante (“nessa época do ano? Estranho!”). É pela escada que ela subia a pé — e eu a segui.

Não a tempo de conseguir impedir que chegasse ao alto do mirante antes de mim. Ela olhou para trás, viu que eu estava chegando, disse alto algo que não ouvi, me acenou um gesto que não reconheci… e se deixou cair!

Eu gritei mas não acordei porque não estava dormindo. Eu corri, mas não pude chegar lá a tempo porque não era sonho. O mirante se abria sobre um abismo imenso, cujo fundo era de pedra viva. Lá estava, ensanguentado, o cadáver da mulher que eu seguira e amara sem nem saber por que.

Havia uma escadinha perigosa esculpida na parede de granito. Movido sei lá por que mórbida curiosidade eu a desci em direção ao poço, que fedia a sangue de muitos corpos e a culpas de muitas almas. Noto que havia muitos ossos, mas raramente alguma joia ou coisa de valor.

A misteriosa estava morta. Vasculhei seu corpo e percebi que não trazia brincos, nem pulseiras, nem relógio, nem cordões, nem tatuagens, nem obturações, nem nada de ouro ou prata. Não trazia bolsa e nem dinheiro.

Sua roupa era um vestido negro e largo, por baixo umas anáguas rendadas em branco. O único objeto que portava era um pequeno envelope pardo. Continha um pequeno livro em papel tão fino e letras tão miúdas que mal daria para tentar ler, ainda que fosse escrito em nossa língua. Em vez de uma carta contendo explicações ou qualquer outra coisa, eu encontrei uma escrita estranha e angulosa (ou será que neste sonho ou vida era analfabeto?).

Havia também uma espécie de talismã costurado em couro, com alguma coisa macia por dentro e pendente de um cordãozinho trançado em palha. Tomei aqueles objetos na mão e olhei para cima. A Lua ia alta no céu, embora ainda não fosse escuro.

Pus o conteúdo todo do envelope em meu bolso. Olhei em volta e me vi mais perdido do que jamais antes estivera. Não havia nenhum sentido em estar ali entre aqueles mortos.

“Que diabos vim fazer aqui? Por que raios eu saí de casa?” Deixei a estranha morta lá entre aqueles outros cadáveres mais antigos. Lá onde esperaria as chuvas que o decomporiam e purificariam sua alma de seu gesto.

E subi outra vez, cuidadosamente, pela perigosa escada na pedra. No alto do mirante me dei conta de que estava anoitecendo ainda. Gastei mais uns minutos olhando a paisagem, como se lembrá-la valesse a pena depois e desci de volta ao vale entre as árvores, pensando em que fazer de minha vida a partir de então.

No meio da descida encontrei seu cavalo. Ele pastava tranquilamente e, aparentemente, não me rejeitava enquanto eu me aproximava. Tomei-o pelas rédeas e continuei a descer.

Os que faziam piquenique já haviam ido todos embora. Restava apenas uma jovem de cabelos grisalhos.

“Que estranha essa mulher também!” Ela tinha olhos que pareciam uvas, tão escuros e brilhantes mas ao mesmo tempo cheios de uma luz azulada ou roxa. Usava um vestido semelhante ao da morta e também subia. Sem cavalo.

Olhou-me com uma expressão de espanto no rosto:

— O que está fazendo? Por que está descendo esta montanha e de quem é esse cavalo?

— Boas perguntas. Eu estava atrás de alguém que pudesse me salvar, mas esta pessoa queria se matar. Estou descendo a montanha porque não quero morrer e nem ficar entre os mortos. E esse cavalo ficou sem dono, portanto pode ser meu.

— Que audácia a sua vir até aqui! Você não sabe o que está acontecendo! Aliás você nem devia ter conseguido encontrar esse lugar! Quem o trouxe?

— Eu já contei a verdade. Creia se quiser. Mas não me ofenda porque não sou um ladrão e nem profanador de corpos.

— Este cavalo não poderá nunca ser seu!

— Tudo bem. Então fique com ele se quiser, mas eu peço, por favor me ajude! Eu estou perdido!

— Muito mais perdido do que imagina!

Por um momento um pouco de doçura veio a seus olhos.

Então um certo sentimento de culpa passou em mim. Abri meu bolso e lhe entreguei o envelope:

— Desculpe-me, acho que menti ao dizer que não sou um profanador de corpos. Tirei isso do cadáver da estranha.

— Você nem tem ideia do que é isso, tem?

— Está em alguma língua estranha. Nem é útil para mim. Trouxe porque pensei que poderia obter alguma resposta.

— Querer respostas não é sempre uma boa ideia.

— Mas é melhor uma resposta que continuar vagando sem rumo pelo mundo.

Ela me olhou pensativa:

— Eu posso te oferecer umas respostas, mas isso vai ter um preço. E o preço é que deverás viver aqui entre nós.

— “Nós”?

— Só posso dizer se concordas com o que cobramos.

Lembrei-me dos agentes do governo que queriam o meu sangue e até confesso que senti certa tranquilidade. Tendo alimento, saúde e paz; diante das circunstâncias; eu achei que podia me dar por feliz.

— Está bem.

— Então vamos subir de volta.

Lá do alto, sob o luar estranho que nos banhava, ela me mostrou um horizonte muito largo, sem nenhuma luz que denunciasse a presença da humanidade. Muito profundo era o silêncio daquela noite e muito pesado o cicio dos pássaros e o cricri dos grilos.

De repente, sem que ela precisasse me dizer coisa alguma, eu comecei a perceber.

— Por isso temos este lugar. Nem todos são fortes.

— Eu a tentei salvar!

— Eu li isto em você. Talvez isso me tenha convencido.

Descemos de volta à casa. Ela me mostrou um quarto e me disse que eu deveria viver ali por algum tempo.

— E alguém virá — continuou.

— Quanto tempo?

— Não se sabe. O que for necessário.

— Tenho medo.

— Todos temos.


07
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 21:33link do post | comentar | ver comentários (2)

A Rainha Vashti era uma mulher muito bonita, segundo reza o livro. Tinha de ser, pois os reis antigos eram bem exigentes quanto a isso. A história de sua desgraça exemplifica muito bem como as religiões abraâmicas veem as mulheres e quais são os valores sociais nos quais somos educados.


“Vashti recusa o chamado do rei” — pintura de Edwin Long (1829-1921)

Durante um banquete dado pelo rei aos seus sátrapas, ministros e funcionários — um banquete que já durava sete dias — o rei, alegre pelo vinho, pediu aos seus camareiros que trouxessem a rainha diante dos convivas, para que o rei lhes exibisse a sua beleza.

Há duas interpretações para a natureza do chamado que Assuero faz:

  1. Embora isto não seja dito diretamente no livro, está implícito que a rainha foi convocada para aparecer em trajes sumários, pois completamente vestida a sua figura já devia ser conhecida de todos, não fazendo sentido que o rei a mandasse chamar para isso. Outros indícios das intenções do rei se encontram nas observações, algo maliciosas, de que ele se encontraria “com o coração alegre pelo vinho” e de que os camareiros deviam trazer a rainha “vestindo sua coroa”. Mais à frente o texto bíblico enfatiza que a razão pela qual Assuero fez-lhe tal pedido era que Vashti era “bonita de se olhar”. As representações tradicionais da cena sempre colocam-na vestida de uma camisola—sugerindo que ela se encontraria no harém real. Esta sugestão fica mais forte quando consideramos que Vashti estava dando seu próprio banquete para suas amigas, parentes e visitantes, no momento em que foi chamada.
  2. Uma outra possível interpretação é de que realmente não haveria nenhuma nudez, mas que a simples aparição pública de Vashti seria inaceitável, pois nas culturas do mundo antigo era a norma que as mulheres ficassem protegidas da visão profana (em um harém, por exemplo). Neste contexto, a indecência não estaria nos trajes sumários da rainha, mas em trazê-la — sem véu — diante de um número indistinto de homens, nem todos de alta classe social, apenas para mostrar o quanto era bela. Temos um aspecto de sacrilégio envolvido, além da pura humilhação pessoal de Vashti.

As intenções de Assuero eram totalmente fúteis: exibir a mulher, como um bibelô, diante de uma multidão de homens bêbados. Vashti era, para Assuero, apenas algo bonito de se olhar, uma joia rara que ele devia mostrar aos seus convivas. A convocação de Vashti era uma humilhação, especialmente se considerarmos o papel sagrado que as rainhas ainda possuíam em certas culturas antigas, antes do predomínio do patriarcalismo que está expresso, por exemplo, no Livro de Ester. As circunstâncias do banquete de Assuero são uma afronta completa à dignidade de Vashti enquanto rainha, mulher e ser humano — e por isso não era mais do que natural que ela hesitasse em obedecer. A desobediência de Vashti pode ter três significados, dependendo de como a história for interpretada:

  1. Trata-se de uma manifestação ainda de autoridade, em desafio ao poder monocrático do rei. Neste contexto, a rainha reivindica para si algo da dignidade ancestral da mulher, em uma época e em uma cultura na qual o matriarcado ainda não estaria totalmente esquecido. Esta tese não faz muito sentido se tomarmos o contexto medo-persa, pois tais povos eram pastores e patriarcais há milênios. Mas faz sentido se ela fosse originária de uma cultura diferente.
  2. Trata-se de uma atitude coerente com o papel religioso que a rainha poderia ter, seja no culto oficial persa, seja no culto originário no qual Vashti se inscreveria, no caso de ser estrangeira.
  3. Pode ser uma recusa pessoal a ser exibida como um troféu no salão de banquetes do palácio. Esta interpretação, algo curiosamente, é a que a Bíblia tenta nos convencer a aceitar. De certa forma, é a que parece fazer, também, mais sentido.

Conclui-se isso porque os conselheiros reais argumentaram com Assuero que a recusa de Vashti era uma afronta não apenas ao monarca, mas a todos os homens do Império Persa, cujas mulheres começariam a desobedecer se soubessem que o próprio rei não tinha a obediência da rainha. Então, para evitar que tal coisa acontecesse, Assuero rejeita Vashti, recusando-se a recebê-la (ou seja, negando-lhe não apenas sexo, mas uma descendência) e tomando para si várias concubinas entre as donzelas do reino. Uma destas foi Ester, que justamente obteve seu status graças à sua estrita obediência a Assuero.

Mas antes de passarmos a falar de Ester, é preciso notar a total ausência de julgamento, na Bíblia, sobre a ética do rei em exibir sacrilegamente a beleza de sua esposa. Certamente naquela época a ICAR não havia inventando os “sete pecados capitais”, mas fica claro aí que o rei cometeu, no mínimo, o pecado da futilidade (que não é capital, mas deveria ser). Só que isso não interessa ao autor bíblico: quem teria de se haver com Deus por seus pecados seria o rei em pessoa: à mulher cabe obedecer até quando o marido lhe ordena que cometa um pecado (pois, logicamente, a mulher — eterna criança — não é nem responsável por seus atos perante Deus: é o marido que por ela responde).

Seja qual for a relevância que se atribua aos atos posteriores de Ester (salvar todo o povo judeu, por exemplo), é inegável que a mensagem que se passa é de que se você desobedece ao seu marido, será abandonada e ele escolherá outra mais jovem; mas se você o obedece, consegue influenciá-lo de forma que ele fará o que você deseja.


22
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 13:29link do post | comentar

Teobaldo tentava esquecer. Poderia ser na próxima golada de cachaça, ou na quinquagésima; tinha medo que não fosse nunca. Por via das dúvidas, entornava para dentro da goela a décima oitava enquanto ouvia Sílvio Luiz esculachando algum centro avante que perdia um gol: “Pelo amor dos meus filhinhos, esse até a minha sogra fazia!” As imagens vacilavam com a interferência da geladeira, o som vacilava com a interferência da gritaria, sua mente vacilava com a interferência de uma arma fria que levava no bolso. Ninguém a vira, ninguém morrera, ninguém morria. Sua vida estava atada ao nada, era uma poça estancada, de alma e de hálitos. Estava sozinho, humilhado e não matava ninguém, nem a si mesmo.

O teto do boteco começava a caçoar de sua determinação de derrotar a memória. Girava em gargarejos súbitos que empurravam suas costas para trás e o seu queixo para a frente. Como um malabarista Teobaldo tentava mergulhar no negrume da noite etílica, mas as lâmpadas teimavam em machucar nos seus olhos a certeza do dia. Então ouvi, como se fosse uma buzina de trem no meio da cerração, a voz gosmenta de alguém.

— Para com isso, homem. Cachaça não dá abraço para curar chifre de coitado.

Teobaldo braguejou prandindo os praços belo ar, guerendo sogar um gicante gualguer, mas gaiu de guatro no gongreto ácido e levou uma balda de áqua vrea na vuza e tesmaiou.

Acordou com o rebimbalhar dos sinos de uma ressaca assassina, a sede de um crucificado lá pela tarde do segundo dia. Estava encostado na parede de fora do boteco e fedia a muito mijo. Um anjo o contemplava, com olhos esperançosos como são os dos mensageiros de Deus. E lhe falou:

— Teobaldo, homem. Levante-se dessa calçada imunda e vá para casa. Tome um banho e tome dignidade. Fazer esse papel não combina com você.

Teobaldo começou a chorar como criança e teve vergonha de ouvir aquilo. Teve vergonha também porque o anjo tinha nojo de seu cheiro enjoativo de enxofre e fósforo — o cheiro de um demônio, ou melhor, cheiro de alguém que dormiu na calçada e urinou na calça. Talvez pior, cheiro de alguém que sofreu a troça de jovens impiedosos.

Nem mesmo a mão ousou erguer. Apoiou-se na parede sentindo-se inferior a tudo, até mesmo à cadela de tetas graúdas e caídas que trotava pelo concreto levando a solidão de muitas maternidades e as cicatrizes de muita fome. Quando conseguiu se erguer, nem teve coragem de passar as mãos no rosto. Teve nojo das próprias mãos. Teve nojo do seu próprio corpo, e tinha uma sede de camelo. Mas não pediu água, não pediu apoio. Última dignidade que lhe restava: ficar sozinho, ir para casa com as próprias pernas. “Chega de anjos”.

Mas o anjo o seguia, lento e calado, como devem ser esses pestes. Não serviam nem para ajudar, e Teobaldo caía muitas vezes — e nem tinha trocados no bolso para um bendito copo de água mineral que aliviaria o inferno. Ver as pessoas bebendo nos bares era como ver o pobre Lázaro no paraíso, tão longe e tão perto. Ao contrário do rico, morreria sem pedir. O desespero é uma coisa para a vida póstuma.

Nem sabia se tinha a chave de casa. Ou uma casa ainda. Andava a esmo, talvez estivesse seguindo para um cemitério ou simplesmente acompanhando a cadela, coitada, que só fazia ser o que era por obra de Deus.

Achou-se em frente a um portão. O anjo acenou que sim. Mesmo Teobaldo gritando “suma da minha vida, eu não preciso de nenhum anjo da guarda”; a criatura permaneceu próxima, apenas cerrou o cenho e maquinou nas mãos um gesto agitado e rude que rompeu a santidade insincera que manipulava.

O sol estava melhor, a sede também — ele é que estava a ponto de morrer ou matar por uma simples garrafa de água com gás. E tinha um revólver, a bala era mais cara, mas não salvava sua vida. Apesar disso, covardemente, preferiu entrar em casa; descobrindo que a porta andava aberta, ou fora aberta miraculosamente — maldito sol matinal.

Foi direto para o banheiro. Beberia água no chuveiro. Para a sede, qualquer água serve. Só pensamos em detalhes quando não é questão de morte. Abriu a torneira fria mesmo, precisava acordar, matar alguém, mesmo de terno. Sorveu daquele líquido clorado, deixou aquele frescor banhar suas orelhas, molhar o seu cabelo, acordar o seu sexo. Perdeu a conta do tempo, felizmente ele não tinha futuro para se preocupar. Felizmente as crianças estavam na escola.

Só descobriu que estava vestido ainda quando foi se ensaboar. Ouviu o teto rir, lembrando ainda a noite. Quanto álcool bebera, puta merda! Era álcool ainda ou ficara no cérebro alguma sequela? Despir-se molhado é uma desgraça.

Pode ter sido meia hora ou oitenta minutos, poderia ter sido o dia. Mas quando saiu do banheiro não estava mais fedido a mijo, próprio nem alheio, tinha feito a barba, esfregado bicarbonato nos dentes até estragar a escova e raspado meio quilo de saburra da língua entorpecida. Penteara o cabelo para trás, como fazia na adolescência, imitando ídolos de um século partido. Saíra restituído em alguma dignidade, mas quem tem passado não tem isso: todo mundo já foi besta um dia, e só sofre mais quem foi besta ontem, porque todo mundo ainda lembra. Malditos os que têm memória longa, sempre se acha um bosta desses quando você está feliz. O melhor amigo é o cachorro que se esquece até dos chutes que você lhe dá.

Margarida estava sentada à mesa da cozinha. Tinha um prato de sopa de fubá com alho diante de si — e um saudável copo de água gasosa, cuja presença por si indicava que a mesa era posta para Teobaldo. “Meu Deus, sou uma minhoca, um mosquito, uma lombriga...” Ali estava Margarida, na cabeceira da mesa, silenciosa com seus olhos enigmáticos, poços pretos profundos impermeáveis à pesquisa de um desesperado como ele. E Margarida olhava para o jornal do dia, que o carteiro trouxera outra vez. “Devia cancelar essa merda”.

Sentou-se na cadeira ao lado. Pegou a colher como se fosse um revólver. Levou sopa à boca como se estivesse enfiando uma bala no lobo temporal. Infelizmente a arma fria no bolso da calça era só o telefone móvel. E o único crime que com ele cometia era ainda ter o telefone de Maria. As orelhas lhe queimavam.

Enquanto sorvia a sopa, em um silêncio cadavérico, via Margarida folheando o jornal, interessada. O ruído das folhas sendo viradas soava na cozinha como os remos de Caronte no Estige. Quando virou a última folha, antes de Teobaldo virar a última colherada, finalmente lhe deu na cara, com aqueles olhos que pareciam redemoinhos de raiva, ou uvas inflamadas.

— Não dormi essa noite pensando em você, seu bosta!

Teobaldo continuou quieto. Queria que ela o xingasse de cada palavra, que ela pisasse em seus ovos usando um tamanco de madeira, que ela pegasse seu coração entre os dedos e espremesse até o músculo virar sangue também. Queria que ela fosse uma assassina, uma mula-sem-cabeça, uma messalina.

Mas não, aquela inútil o olhava com uma expressão amante no rosto, pronta para resignar-se, esperando as explicações, quaisquer que servissem, querendo resgatá-lo, regá-lo com suas lágrimas e recuperá-lo. Ele queria morrer, mas não queria isso, não merecia isso, não queria isso, não merecia isso, repetia isso, estava perdendo de novo o controle. Bebeu o resto da água de um gole só, sofreu com isso, continuou quieto.

— E você não me fala o que está havendo? O que acha que sou, Teobaldo? Acha que sou seu anjo da guarda? Como quer que o ajude se não sei nem o que há com você? Eu o amo, quero ajudar, mas você é uma esfinge. Você é… um alcoólatra? Que depressão o jogou nessa fossa? Você não era assim antes, você nem bebia, você tonteou de beber martíni na primeira vez que saímos, falando coisas engraçadas. Eu gostava tanto de você daquele jeito simples, mas gosto de você de qualquer jeito, quero poder ajudar você de algum jeito…

As palavras saíam, meio sem sentido, repetitivas, na lenta imprecisão do destempero controlado. Maria lhe vinha à cabeça: aquela sim, jamais se rastejava por um homem como Margarida lhe fazia. Mas Maria tinha ido embora e ele nem sabia onde jazia. Era Margarida que ali estava, amando-o, implorando apenas que ele permitisse. Mas Teobaldo era um crápula, tinha que ser. Margarida não o merecia, ela precisava odiá-lo enquanto ainda era tempo, precisava deixá-lo, destruí-lo, esquecê-lo, casar-se com um que não fosse verme, lento, poça, lama.

“Chega de anjos” — berrava a sua mente. Mas a boca boboca babava, balbuciava. Repetia-se em colisões de consoantes, ou talvez em gaguejar garatujado de alguém que não rascunha as frases que diz. Ficava lá em silêncio, possesso, doloroso, querendo Maria e tendo Margarida. Maria, a amada. Margarida a amante. Não, amante de Maria, marido de Margarida. Por amor, por dinheiro. Abandonado, uma fuga para o estrangeiro. Ele ali, jogado no subúrbio, joguete de uma mulher como ele, não de uma exótica princesa. O vazio que ficara na saída de Maria era uma treva que quase o recobria, que destruía seu casamento e anestesiava sua vida. Bebia. Não porque o álcool o chamasse, mas porque morria, ou melhor, porque era o que queria. Não buscava torpor, mas o choque, ou um escroque que o cobrisse de pancada durante a anestesia.

Quando finalmente sentiu o efeito do alho nos pulmões, o calor do mingau se espalhando pelos intestinos vazios, recobrou os sentidos. Pela terceira vez em dois anos. Estava vazio, mas não estava mais embriagado, só doía.

— Eu não mereço isso que você fez comigo, Margarida — foi o que disse.

— P-perdão — foi a estranha, tímida, resposta.

— Estou dizendo que eu não sou digno de você!

— Ah…

Por um momento ele não percebeu. Mas depois teve uma sensação de estar olhando para aqueles exercícios de xadrez que apareciam no jornal. O silêncio naquela cozinha continuava cavernoso, só um pouco mais denso. Ouvia-se o jornal estalar sozinho, com o peso do ar que o apertava na mesa. E os olhos de Margarida, mesmo tão negros quanto antes, mesmo ainda parecendo poços de piche, enigmas esféricos, jabuticabas, todas essas coisas poéticas e precárias que se usa para dar dignidade à simplicidade de um corpo de carne, precário e decadente, que abriga esses sonhos nossos, única coisa diferente, motivo solitário de existirem versos, indústrias, guerras, todas essas coisas grandes e bonitas que duram para depois.

— Que diabo está falando, Margarida?

— Que diabo está falando, Teobaldo?

Teobaldo levantou da mesa bem devagar. Movendo cada músculo tão leve que parecia um beija-flor dançando para uma margarida. Dirigiu-se ao quintal dos fundos, deitou na espreguiçadeira e ficou olhando as hortaliças que cultivava nas horas vagas, o pequeno gazebo de madeira, todo belo de ornamentos, que encomendara ao primo Anastácio, que tinha sumido ganhando a vida na Europa com seus entalhes em madeira. Por que diabos gringo gosta tanto de coisas entalhadas em madeira?

Carros passavam pela rua, escondidos pelo muro de quatro metros, monstruosidade de concreto financiada pelo FGTS para consolidar o lar contra os vizinhos. Margarida não saiu com ele. Ficou lavando a louça e o faqueiro na pia da cozinha. De vez em quando caía uma faca ou uma colher, coisas que acontecem. Por azar quebrou-se um dos pratos de louça também — justo aquele em que tomara a sopa — mas era um dos baratos.

O domingo foi escorrendo pelo céu acima, esquentando a laje de cimento que forrava o caramanchão mal arrumado onde fora o churrasco do casamento de Anastácio com Danila, meses antes. Meses antes de partir-se Maria.

Por fim, quando deu fome, quando o sol chegou até a espreguiçadeira, levantou-se dela suado e salvo. A culpa se partira também. Maria que se fodesse, a vida era mesmo uma merda, melhor limpar do que deixar que fugisse ao controle. Chegou na cozinha e ainda achou Margarida, coitada, esfregando pratos e talheres. Pelo tempo que passara devia ser a décima vez que esfregava a esponja em cada garfo.

— Margarida, tenho pensando num monte de coisas, sabe. E tomei uma decisão muito importante hoje.

— O q…? — ela nem conseguia terminar a pergunta.

Teobaldo imaginou o que aconteceria. Filmou cada cena do futuro não acontecido. Margarida que abdicara de uma carreira para poder criar os dois filhos, vivendo de pensão que ele nem sempre poderia pagar em dia. A casa, herança tão afortunada de uma tia, vendida para pagar as custas do desquite, cada um vivendo em seu apartamento. Pensou na barba grisalha que tinha de manter raspada, nos vincos que atrapalhavam a sorrir, nas varizes que rasgariam mapas rodoviários em suas pernas. Futuros dias de pais e mães condensando culpas e acusações de coisas meio acontecidas. Tudo isso parecia pesadelo. Maria tinha ido embora. Tinha ido tarde, ela que fodesse, a piranha, com todos os frescos estrangeiros que encontrasse, que não voltasse nunca depois de usada e jogada fora, que achasse um que a fodesse bastante para ela não querer mais sair daqueles lugares frios aonde Teobaldo jamais iria. “Chega de anjos”.

— Eu entro para os Alcoólicos Anônimos amanhã.

Margarida desprendeu um suspiro imenso e o abraçou com força, manchando de espuma de detergente o pijama que ele ainda vestia. “Chega de anjos” — pensou Teobaldo. Deixou-a terminando de guardar a louça e foi assistir alguma coisa na televisão. Algum jogo idiota de campeonato estrangeiro (talvez Maria estivesse na arquibancada ao lado de algum afortunado gringo, careca e impotente, exibida como troféu, impunemente). Enquanto olhava a tela, resvalava com o olhar a foto da família, parecendo torta. A semente do diabo, plantada por um curto diálogo, ribombava em sua mente apenas com uma determinação quase demente: “Bentinho era imbecil”.

E nessa repetição a saudade de Maria morria e crescia com força a crença indiscutível, de que merecia e queria Margarida.


04
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 22:49link do post | comentar | ver comentários (1)

A camponesa apertou os lábios para protegê-los contra o frio, maldizendo-se pela ideia péssima de subir ao alto daquele monte. Puxou para baixo as abas de seu chapéu de pele de lebre e tratou de esconder a cara morena com a da manta de lã. Estava uma noite bem pouco amável nas colinas da Gaulanítide, mas as promessas da bruxa grega a haviam convencido. Sozinha, persistia subindo o monte, apesar da neve que começava a cair a partir daquela altitude. Encontrou então o início de uns degraus de pedra rústica, que serpenteavam pelo monte desolado. No cume encontrou um pequeno grupo de pessoas, gregos em sua maioria, todos pesadamente vestidos com peles de animais, que lhes davam uma aparência ameaçadora, animalesca.

— Boa noite, em nome de Hécate — pronunciou cuidadosamente uma mulher madura, de cabelos louros e voz dura, cuja pele era quase tão clara quanto a dos escravos gálatas que os romanos ocasionalmente traziam.

— Boa noite, em nome de Javé — pronunciou a pobre moça morena, tentando esconder a cárie de seu dente da frente com a aba da manta.

— É de livre e espontânea vontade que vens? — perguntou-lhe um grego corpulento e de nariz largo, cuja voz trovejante intimidava e seduzia.

— Em nome de Javé, digo que sim.

— Quem a envia, flor das montanhas? — novamente perguntou a mulher loura, ditando as sílabas com uma entonação arcaizante, que soava estranhamente no ouvido de quem apenas conhecia o koiné.

— Filomena, a herbalista de Séforis.

— Sabes bem do que se trata a oferta que lhe foi feita?

— Sei sim.

— E a aceitas, incondicionalmente?

— Sim.

— E o que buscas em troca do sacrifício que farás?

— Que me restaurem a saúde, para que eu possa ajudar minha pobre mãe.

A mulher loura fez um gesto para cima, deixando que a manta de lã corresse por sobre a pele, revelando nos braços pálidos as sombras azuladas de tatuagens. A jovem tremeu e quase saiu correndo, só de pensar nos significados daqueles símbolos, tão arredondados, tão diferentes das letras sagradas. Mas, em vez de desembestar correndo pelo morro abaixo, assustada pelas coisas que via, lembrou-se de seu terrível destino e da perspectiva de afastá-lo. Fincou os pés no chão e permaneceu.

O vento frio assobiou com mais força. Os gregos indicaram que terminasse a subida da escada, e então a fizeram deitar-se numa pedra chata e retangular, que haviam coberto com peles de ovelha costuradas. Quando terminou de deitar-se, enrolaram a pele em torno, abotoando as bordas com broches de ferro. Por fim, ouviu estenderem outra pele, que a isolava de toda luz que pudesse aparecer.

Estava imersa na escuridão daquele estranho casulo. Um perfume suave de almíscar impregnava o ar, disfarçando o cheiro cruel do sangue que vez ou outra vertia de suas feridas que não fechavam. Os gregos terminaram de dispor os artefatos nos quatro cantos do altar assimétrico e declamaram os versos sagrados, enquanto abriam feridas para gotejar de seu sangue nos cálices purificados:

— Ó amigo e companheiro dos viajantes da noite, ó tu que te regozijas no ladrar dos cães e no cheiro do sangue derramado, ó tu que perambulas em meio às sombras entre as tumbas, ó tu que desejas o sangue e trazes o terror aos homens, ó tu que tens mil faces e as revelas somente ao luar! Contempla favoravelmente nosso sacrifício!

Aquela jovem morena teria enlouquecido simplesmente por ouvir essas frases de bocas gentias, mas para benefício de sua sanidade elas foram pronunciadas em uma forma tão arcaica do grego que bem poderia datar de antes da colonização da Hélade, tempo em que navios de velas negras partiam de Creta para espalhar o terror no Mediterrâneo e somente os deuses abissais responderam ao apelo dos argivos, antepassados daqueles que em volta da pedra evocavam as trevas da noite em seu auxílio.

O vento frio soprou mais forte, parecendo até apagar as chamas das estrelas menores, deixando o céu aterrorizado. Dentro das peles firmemente costuradas com agulhas de osso e cordas de nervos e presas com pesados broches de ferro aconteceu uma agitação sutil, uma fala feminina tão abafada que não se podia entender e logo uma comoção muito mais forte e uma voz mais alta, tornada ininteligível pelo desespero, e tudo isso redundou numa frenética sucessão de espasmos e em um som rouco e indistinto, quase animalesco.

Por fim a agitação se acalmou, o vento soprou de novo e foi embora, anunciando que o inverno era velho e logo se abriria a primavera. Os gregos soltaram os broches com todo cuidado, desamarraram as cordas de nervos com paciência e fé. Por fim desdobraram as peles e encontraram a jovem morena imóvel, mas quente. Seus olhos estavam vidrados, mas se moviam imperceptivelmente. Suas mãos se cruzavam com força sobre o peito e suas pernas entreabertas estavam esticadas como se fossem colunas de pedra.

— Acorda, irmã, pois tudo terminou — disse a mulher loura.

A jovem mestiça de pele morena ainda continuou por alguns instantes extática ali sobre o altar, tendo no rosto uma expressão matizada de medo e luxúria. Por fim piscou os olhos e moveu-se, olhando em volta como um cão enxotado que tenta novamente buscar migalhas entre os comensais.

— Calma, irmã — repetiu, ternamente, a sacerdotisa de Hécate.

— O que aconteceu comigo!? — indagou a camponesa das montanhas da Gaulanítide?

— Tu te tornaste parte de uma grande obra, e foste imensamente recompensada.

A jovem olhou para as próprias mãos, que pareciam — pelo menos à luz da lua — isentas das manchas claras que a estigmatizavam perante seu povo. Se tivesse mirado no espelho teria visto limpos igualmente todos os seus dentes.

— Ó Adonai, o que eu fiz de minha vida!?

Os gregos fizeram um círculo em torno dela, reverenciando-a e temendo-a.

— Terrível seja o Fado daqueles que pisarem teu caminho, irmã — declamou um deles.

— Rápida seja a Justiça contra aqueles que a agravarem, irmã — adicionou um segundo.

— Abram-se as portas diante de teus pés, irmã de todos nós — concluiu a sacerdotisa.

O grego de nariz largo trovejou seu vozeirão cavernoso pela última vez naquela noite, ordenando-lhe que retornasse àquele mesmo local a cada lua cheia, até não ser mais possível ou necessário. Para sinalizar-lhe a importância disso, amarrou uma corda em seu tornozelo, dizendo-lhe:

— Aqui atamos teu pé e o de tua sombra. Voa livremente pelas montanhas, mas não além delas para que nada te impeça de retornar nas luas cheias, ou horríveis serão para ti as consequências.

Tendo-a feito ritualmente irmã de todos, deram-lhe o nome de Catarina, a purificada, nome esse que somente poderia ser usado na presença da sacerdotisa. E assim, naquela feia noite de fim de inverno setentrional, uma jovem mestiça da Gaulanítide desceu da montanha curada de suas manchas na pele, passou pela colônia de leprosos onde estivera tão brevemente, e se dirigiu à aldeia para pedir um reexame, conforme permitido pela Lei. E assim foi feito, e assim obteve de volta a sua vida.

Duas semanas depois, enquanto moía trigo para assar o pão, sentiu-se mal. O marido, que tanto festejara o seu retorno, imediatamente reconheceu os sintomas, os enjoos. Deixando-a com as mulheres da casa, tratou de ir à estalagem pagar vinho para todos os seus amigos:

— Eis que Javé me abençoa mais da conta, meus amigos. Não apenas restaurou a pureza de minha amada esposinha, curando-a da horrível lepra, mas também permitiu-nos, tão rápido, a alegria de engendrar uma vida. Sim, amigos, ela está esperando!

Os amigos de Yohanan beberam à sua saúde, desejando que Javé lhe preparasse filho varão para finalmente assegurar a descendência de sua casa. Yohanan retornou tarde para casa, entorpecido de vinho barato da Galiléia, e dormiu pesado como um elefante sobre as imundas almofadas da sala.

Foi no frio dezembro que Hulda deu à luz, em parto fácil e quase indolor, a um menino ruivo como o pai, dotado de choro feroz e olhos negros, muito negros, que abriam com curiosidade para este mundo cruel. Deram-lhe o nome sagrado de Yehuda, ou Yudah na língua do povo, ou ainda Judas na língua dos gentios.


18
Out 10
publicado por José Geraldo, às 19:58link do post | comentar

Eu devo ser uma das pessoas mais inquietas desta cidade. Não por ser irrequieto: não sou nenhum «azougue» (palavra herdada de minha avó que eu guardava numa bonita caixa e fiquei anos tentando encaixar numa crônica, até finalmente conseguir). A questão é que eu preciso estar constantemente com a minha mente ocupada de algo. Nenhuma pessoa leva tão a sério que a mente vazia é a «oficina do demônio» (e olha que eu nem creio nele).

Pensar é imperativo. Se eu não tiver algo sério e útil para ocupar minhas engrenagens cerebrais eu começo logo a inventar futilidades sobre as quais pensar: foi essa a razão e o mecanismo do desenvolvimento de meu hábito literário.

Mas eu não consigo pensar direito se eu não estiver me mexendo. Não necessariamente me exercitando, mas manipulando qualquer coisa já serve. Pode ser um teclado, como nesse momento, uma bolinha de borracha, uma caneta, ou o meu próprio cabelo. Manter o corpo ocupado (ou pelo menos parte dele) me desocupa a mente para malversar vocábulos e conceitos e resulta em ideias, que podem virar textos ou redemoinhar rumo ao olvido nas dobras de minha imaginação confusa e contraditória, que levou dez anos para concluir um romance cuja ação se desenrola toda em quatro dias.

Quando saio caminhando me bate o desespero de sair tomando nota das coisas. Como não tenho caneta e papel à mão, vou repetindo e reelaborando as ideias, como um rapsodo antigo que ia compondo seus versos. Quando retorno para casa eu tenho longas frases prontas, escritas numa cadência ritmada, com o uso de aliterações, metáforas e rimas para servir de marcos mnemônicos.

Quando estou deitado na cama, esperando o sono que ainda não vem, surgem planos para o futuro. Eu já me eduquei para não pensar em ficção na hora de dormir, para controlar o impulso febril de me levantar da cama, pegar um caderno e escrever trinta ou quarenta páginas de prosa vertiginosa e quase ilegível, na minha típica caligrafeia vacilante de quem tem uma personalidade tão rústica e rascunhada. Mesmo assim tais episódios ainda acontecem, especialmente se passa da meia noite e ainda não dormi.

Estou explicando tudo isso para tentar fazer-me entender sobre a reação exacerbada que eu tive um dia desses, na praça central da cidade, ao contemplar uma cena que talvez não tivesse nenhum efeito em uma pessoa comum.

Eu estava caminhando pela praça, em uma missão profissional, quando me deparei com uma Kombi branca, velha e com marcas de um incêndio, estacionada sob o sol de fritar ovo. Dentro do veículo, sentada no banco traseiro, com as pernas abertas e os braços grossos estendidos sobre o encosto do assento, estava uma mulher imensamente gorda.

O que me incomodou nesta cena não foi a mulher ser gorda: eu nada tenho contra gordos. O que me incomodou não foi ela ser feia: problema dela e do marido dela, não meu. O que me incomodou não foi ela estar usando um vestido que parecia uma cortina ou uma capa de abajur (ela o abajur). Nada disso.

O que me incomodou foi ela estar ali parada, olhando para o tempo com um olhar vago, de quem não está absolutamente pensando em nada.

Para mim é difícil conceber que alguém possa estar olhando para o nada sem pensar em coisa alguma. É uma sensação angustiante supor que isso possa estar acontecendo, mais ou menos a sensação angustiante que nos toma quando vemos uma pessoa em coma.

Mas simplesmente a mulher estar lá, inerte, não teria sido suficiente para me chocar tanto se o dia não estivesse tão quente, se não brilhasse no céu aquele sol de arrebentar mamona. Ver aquela criatura sentada dentro do carro sob aquele sol, conseguindo não pensar em nada. Isso começou a me irritar.

Eu tinha lido dias antes que os animais árticos guardam uma camada de gordura sob a pele para proteger-se do frio. Curiosamente, ao ler isso, eu me lembrei que quando era mais magro (vinte e quatro quilos mais magro, para ser exato) eu sentia bem mais frio do que hoje. Então, ver aquela mulher gorda sentada dentro do carro sob aquele sol, suando do jeito que ela estava, mas mesmo assim inerte!… eis o que me fez passar mal.

Voltei para casa naquele dia sentindo uma dúvida existencial profunda, uma sensação de quase inconformismo. Aquela mulher era mais fantástica, ao meu ver, do que qualquer faquir que dorme sobre pregos ou qualquer milagreiro que caminha sobre brasas. Aquela mulher parecia os quatro santos judeus na fornalha (e considerando o tamanho ela bem poderia ser os quatro juntos).

Deve haver uma espécie de beatitude em conseguir não pensar, um tipo talvez de felicidade. Que eu não conheço porque penso o tempo todo em algo. Estou sitiado por ideias e pensamentos que se digladiam o tempo todo, acima e abaixo do nível de minha consciência. A única coisa que falta nesse universo de ideias é a compreensão de como seria possível a calma daquela mulher.

Minha tentativa de entender aquela mulher é como uma tentativa de explicar o silêncio empregando instrumentos musicais. Elétricos.


26
Set 10
publicado por José Geraldo, às 11:44link do post | comentar
O amor de Noêmia é súbito e simples,alívio de dívidas e dúvidas que doem.Espera que açoitemos sua carne rudecom nossas vontades incultas e cruas.Sua passagem aromática pela praçatraz promessas e segredos aos jovense somos expostos ao beijos que esparge,complexas gotas de trevas que escapamde seu sorriso assimétrico e rígidoe escorrem por suas carnes estreitaspelas descontinuidades e curvas.O amor de Noêmia é nota de amargoe seu sorriso, incensado e insincero.Nota-se desespero no cálculo segurode suas mãos que nunca tremem,de seus olhos que estão sempre duros.O amor de Noêmia espalha lacunase lemos léguas de frio em sua pele.O seu corpo habita um claro na noite,ela brilha com vontade, habita na luzcom sua calça vermelha e seus olhos.Floresce em súbitas cores, Noêmiaa mulher que voeja pelos escuros.Olhos rasos, líquidos, atípicos, oblíquosque nos miram duramente, e prometem.O amor de Noêmia tem consigobem no centro de algum lugar perdidouma culpa que esmaga, uma dor que ardesomente nela, nunca nos que a tentam.Mas quando ela passa, trazendo certezaé como uma aurora que rompe, um portona noite imensa, em meio a imagensquebradas e armazéns, todos vazios.

04
Set 10
publicado por José Geraldo, às 11:06link do post | comentar | ver comentários (2)

A mula sem cabeça é um mito de origem ibérica que existe por quase todo o território nacional, e também por toda a América Hispânica (embora com menos intensidade). Um dos mitos mais ricos e complexos de nossa tradição, é também um dos mais internamente coerentes: é possível explicá-lo de forma coesa, do princípio ao fim, sob o prisma da história das ideias: essencialmente falando, a mula sem cabeça é um mito que pretende inculcar na mulher a submissão ao homem através do casamento.

A doutrina cristã ensina que o homem é “o cabeça” do lar, um ensinamento herdado da tradição romana, na qual o pater familias detinha poder de vida e morte sobre todos que residiam sob o seu teto, além de exercer o sacerdócio do culto hereditário. Somente as prostitutas e as bruxas viviam fora desta estrutura, ambas categorias odiadas e frequentemente associadas. Não ter “um cabeça” se transforma, sutilmente, em não ter “cabeça”, dando à figura da mula a sua característica titular e mais óbvia. De razoável importância é a semelhança fonética entre as palavras “mula” e “mulher”, mas é também significativo que a mula tenha sido, nos antigos tempos, o animal usado pelos padres para o seu transporte regular. Somente os bispos, e mesmo assim apenas em tempo de guerra, poderiam usar cavalos.

Ao não se enquadrar no papel de esposa e mãe, permanecendo solteira, a mulher será imediatamente associada aos três únicos papeis que lhe permite a sociedade: o de prostituta, de bruxa ou de mulher de padre. Os dois primeiros frequentemente se confundem, como vemos nas histórias medievais, nas quais as curandeiras populares prestam favores sexuais aos heróis tanto quanto as prostitutas conhecem unguentos. Portanto, se a mulher sem marido não exerce nenhuma das atividades, conservando uma aparência socialmente aceitável ao não se deitar com homens e nem incorrer no risco de heresia ao receitar remédios para as doenças do corpo (que a fé do espírito deveria curar, segundo a fanática crença do catolicismo medieval), automaticamente será chamada de mulher de padre, visto que os padres não podem se casar e nem assumir publicamente nenhuma relação.

Ser mulher de padre significa, então, agir de forma perfeitamente marital, exceto pela falta de filhos, mas fora dos sacramentos e ditames da igreja, conservando uma aparência de normalidade social que é, de fato, muito frágil, pois se espera que a mulher, antes mesmo que lhe terminem de crescer os pelos pubianos, já esteja casada e, de preferência grávida, “para que não peque”. A transformação da “mulher” em “mula” é um desmascaramento do caráter antinatural de sua situação diante das convenções sociais, uma denúncia de que ela deveria ter se casado e sido mãe de uma penca de filhos em vez de ter permanecido solteira. Mulas sem cabeça são todas as mulheres adultas que não estão casadas, seja qual for o motivo.

Animal híbrido, portanto contrário à natureza, a mula é estéril, como a tradição requer (ou melhor, deseja) que sejam as mulheres fora do vínculo familiar. A prostituta não tem o direito a ter filhos: deve entregá-los a orfanatos porque não tem “condições morais” de criá-los. Isso quando os tem, pois se imagina que ela pratique abortos e outros métodos inconfessáveis para evitar a concepção. Por não possuir quem sustente suas crias em um mundo macho, a mulher/mula “sem cabeça” precisa negar-se à maternidade, uma vez mais praticando atos inaturais. Da mesma forma se suspeita que faça a mulher adulta que não se casou.

Existem duas formas de libertar diretamente a mula de sua maldição: ambas significativamente ligadas ao aspecto sexual. A primeira é “derramar algumas gotas” de sangue do monstro, o que equivale a um defloramento simbólico, assim comprovando que, afinal, a mulher não era sexualmente ativa. A segunda é retirar-lhe o cabresto que lhe foi posto pelo amante ilegítimo, ato igualmente emblemático que representa a sua submissão ao macho. Ao revelar-se, de fato, aceitável perante a norma social, inocente da acusação de perda da pureza, ou, alternativamente, ao transigir diante do papel social que lhe é destinado, a mula se liberta da maldição e pode viver como uma mulher normal. Esta liberdade, entretanto, existe dentro de certas limitações residuais, entre as quais a mais significativa é que a sua libertação dura apenas enquanto viva na mesma paróquia que o seu libertador, o que implica na necessidade de manutenção do vínculo matrimonial. Em alguns casos a crendice menciona que a maldição reverte se morrer o libertador.

A mula nunca é vista como inocente na tradição popular. Tanto assim que uma maneira de romper o encanto é que o seu amante a renegue e amaldiçoe sete vezes antes da missa matinal durante setenta e sete dias. Tendo feito isto, o padre se livra da acusadora presença da mula rondando sua paróquia, mas a alma da mulher é imediatamente condenada ao inferno por ter seduzido o sacerdote. A mulher seduz o sacerdote, nunca o contrário, numa curiosa inversão de papeis, típica das sociedades misóginas, que colocam a culpa na parte mais fraca. Mesmo com a ascendência política e moral que o padre tem sobre os ignorantes, é a mulher (quase sempre analfabeta e supersticiosa) quem lhe seduz e ameaça de perdição.

A maldição da mula é bastante semelhante à do lobisomem em seu modus operandi, sendo inclusive significativo que a mula jamais encontre um lobisomem em suas andanças, a não ser na quaresma, época terrível na qual tudo de ruim acontece no mundo. Os lobisomens se transformam nas noites de terça para quarta feira e nas noites de sexta para sábado, enquanto as mulas se transformam nas noites de quinta para sexta feira e nas noites de domingo para segunda, em geral após a última missa (este segundo dia de transformação não é unânime na tradição). Durante a quaresma ambos os monstros campeiam livremente pela noite, inclusive desobrigados, segundo algumas fontes populares, do fardo de percorrerem sete cemitérios, sete encruzilhadas e sete adros de igreja ou sete cruzeiros; tornando-se, assim, muito mais perigosos.

Uma vez transformada, a mulher se apresenta como uma mula de tamanho padrão, pelo negro ou castanho muito escuro, com a cabeça ausente ou em chamas, com cascos de ferro ou de bronze (mas sempre certamente de algum metal capaz de fazer misérias com o corpo que ela atingir com um coice) e um suor de cheiro forte, mas não exatamente desagradável (uma alusão ao cheiro da vulva?). A mula percorre um roteiro predeterminado (conforme acima) sempre trotando com grande intensidade, como um cavalo passando sobre uma ponte de madeira ou sobre um lajedo. Ocasionalmente ela relinchará de forma assustadora, ou chorará tristemente. Estas ocasiões estão normalmente associadas aos pontos obrigatórios aos quais deve chegar: chorando ao passar pelo cemitério ao lembrar-se do inferno para onde vai após morrer, relinchando ameaçadoramente diante da igreja, por ira do padre que a pôs a perder, novamente chorando na encruzilhada, na esperança de que algum viajante solitário a salve.

Mas a mula não tem controle sobre o seu corpo, visto que não tem cabeça. Rendida aos seus instintos, tal qual a mulher sexualmente ativa que se renega o papel exclusivo de mãe, ela ataca quem se aproxime, fazendo com que aqueles que a poderiam querer salvar a evite. Tal como a prostituta é evitada por homens de bem devido ao risco da doença venérea, tal como a mulher do padre é evitada pelos homens por receio do poder de seu amante, numa época em que a Igreja controlava a sociedade. Quem a surpreender deverá ocultar-se (para que o padre não saiba da quebra do segredo e não “queime o arquivo”?), tendo especial cuidado em não permitir que ela veja nada que brilhe (ou o padre usaria de sua influência para extorquir o ouro e a prata do homem rico que a visse?).

A recompensa por libertar a mula é tomá-la para si como amante, mas não mulher. Recompensa que não envolve responsabilidade, visto que ao ser abandonada ela retorna à condição de monstro noturno. A mula liberta viverá sob a permanente chantagem de seu libertador, obrigada a fazer-lhe todas as vontades sob pena de ele renegá-la, trazendo de volta a maldição.

Como a maioria dos mitos brasileiros, a mula sem cabeça expressa a ideologia de uma sociedade violenta, opressiva e fanática, na qual as pessoas estavam obrigadas a cumprir de forma estrita os papeis que a tradição lhes reservava. Sendo qualquer desvio da norma punido com maldições constrangedoras ou dolorosas.


mais sobre mim
Março 2013
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30

31


comentários novos
Ótima informação, recentemente usei uma charge e p...
Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
Fechei para textos de ficção. Não vou mais blogar ...
Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
Este saite está bem melhor.
Já ia esquecendo de comentar: sou novo por aqui e ...
Essa modificação do modo de ensino da língua portu...
Chico e Caetano, respectivamente, com os "eco...
Vai sair em inglês no CBSS esta sexta-feira... :)R...
Posts mais comentados
2 comentários
1 comentário
1 comentário
1 comentário
pesquisar neste blog
 
arquivos
blogs SAPO