Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
26
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 15:24link do post | comentar
Notas para minha participação na mesa redonda sobre o tema “A embriaguez como inspiração artística ainda se justifica?”, ocorrida no dia 11 de novembro de 2011 no III Festival Literário de Cataguases. Esta postagem ocorre com tamanho atraso porque, em virtude de problemas que eu estava enfrentando com o meu computador, perdi duas vezes o texto revisado que já estava quase pronto para postar.

A Licença Poética basicamente significa que o autor tem a prerrogativa de escrever como queira, sobre o que desejar. Então o debate se o artista de hoje ainda pode tomar a embriaguez como inspiração me parece um pouco fora de lugar: é óbvio que ele pode. Talvez o que a gente deva discutir seja outra coisa: a relevância de uma abordagem assim autodestrutiva. Porque embriagar-se é uma forma suave de autodestruir-se. Nesse ponto eu tenho duas opiniões:

Primeira,quanto ao assunto: Não acho que escrever sobre drogas (lícitas ou não) seja tão relevante quanto muitas pessoas creem. Possui uma certa relevância, mas quando um artista se restringe a esse assunto, recai em uma fórmula que já está bastante estabelecida e já tem até mesmo uma tradição. Existe um gênero de «literatura drogada» tal como existe um gênero de histórias de vampiros ou de contos eróticos estilo revista masculina. Ou seja: é uma ilusão imaginar que uma abordagem autodestrutiva possua novidade ou seja uma maneira genuinamente «revoltada» para expressar desencanto com a sociedade e a cultura em que vivemos. Ao fezer isso o autor apenas adere a um gênero, tal como os autores de historinhas de vampiro, ou os magos com seus livros que ensinam a fazer chover. Acredito que o valor da obra não está na «atitude», mas na competência. Bons livros transcendem seus limites e autores realmente talentosos devem ser versáteis, capazes de abordar diversos temas com desenvoltura.

Segunda,quanto à abordagem: Não acho que embriagar-se (seja qual for a química envolvida) seja favorável à produção artística. Um artista bêbado dirige a sua «pena» (hoje de forma metafórica) tal e qual um motorista bêbado dirige o seu automóvel. Você não escreve melhor porque bebe, a verdade é que você certamente escreve pior. Mesmo que consiga escrever coisas interessantes enquanto bêbado, terá conseguido apesar da embriaguez, não por causa dela. Quando pensamos por tal lado, vemos que embriagar-se não é um imperativo da arte, mas algo que brota da personalidade do artista.1 É o artista que se embriga, não é a arte que lhe exige isso.

Tendo feito estas duas considerações iniciais, que praticamente resumem tudo que preciso dizer, passo a fazer alguns detalhamentos também interessantes, embora não acrescentem muito às teses dispostas acima. Não os faço para expandir, mas para reforçar. Mas eu gostaria de desviar ligeiramente o tema desta mesa-redonda. Ligeiramente apenas: o desvio logo voltará ao tema. Prometo.

A Embriaguez Enquanto Reação Alérgica à Cultura

Acredito que todos aqui saberão de algum nome técnico para esta «necessidade» de embriaguez. Nossa sociedade hoje tem um nome técnico e até, talvez, um comprimido, para cada estado de alma possível. Cada indivíduo porta pelo menos um diagnóstico. Cabe muito bem investigar não a droga, não a bebida, não a erva, mas a figura da pessoa que se relaciona com tais substâncias, como e porque. Não investigar pelo lado direto e quase pornográfico, mas pelo lado filosófico. Eu poderia citar aqui alguns autores famosos sobre isso, como Durkheim ou até Proust, mas não desejo tornar este artigo penoso de ler e nem acometê-lo da soberba que aprendi a desprezar nos outros. Limito-me a dizer que há muito tempo é consenso entre cabeças pensantes que o impulso que nos leva à autodestruição é, possivelmente, a única questão filosófica realmente interessante. Dizendo em curtas e brutas palavras: qual o sentido da vida, afinal?

Quando o autor se embriaga ele não está pensando na arte, mas em sua relação com a sociedade. A própria citação de Baudelaire, usada como chamamento para essa troca de ideias aqui é bem explícita: ele dizia embebedar-se para suportar «o horrível fardo do Tempo» que atinge o homem e lhe «quebra os ombros e o curva para o chão». Baudelaire confessa claramente que não é um ideal artístico que o motivava, mas uma espécie de mal-estar social. Não custa lembrar que o poeta foi contemporâneo de Schopenhauer e Nietzsche — e você precisa conhecer esses dois para entender melhor as tentações suicidas das grandes figuras da arte.

É nisso que eu pretendo começar o desvio. Existe um mito fortíssimo, bastante difundido entre nós, provavelmente presente em outros povos também, de que a cultura é uma forma de decadência em vez de progresso. As pessoas parecem pensar que a aquisição de conhecimentos debilita, em vez de fortalecer, desune em vez de unir. Assim, o «homem perfeito» teria de ser alguém «simples decoração», «pobre de espírito».

Este conceito é bem antigo, por isso o chamei de mito. Fazendo uma rápida digressão histórica, vamos lembrar que na mitologia grega havia a figura do profeta cego Tirésias, um visionário cego, vejam que interessante. Ou Cincinato, o rude fazendeiro que salvou a República Romana. Ou Maomé, supostamente analfabeto e autor do Alcorão, o «livro perfeito». Estes homens fortes e simples (sancta simplicitas, dizia um ditado latino) conseguiram impressionar e liderar porque não tinham as hesitações que somente a maturidade traz. A ignorância pode não ser uma bênção, mas ela permite atos de loucura, a que a posteridade chamará de heroísmo.

O contraponto a esse homem «forte» porque simples, sábio porque ignorante é justamente o homem frágil porque culto, louco por ter estudado demais. Quem estuda demais enlouquece, como nos diz a «sabedoria popular». A civilização árabe teria entrado em decadência porque assimilou demais as culturas «decadentes» do mundo helenístico. Li esse absurdo num livro de História. Provavelmente o autor pensou que os muçulmanos teriam dominado o mundo inteiro no século VIII se não tivessem estudado filosofia. Vai saber.

O homem que se torna maduro e culto sofre logo com a descoberta daquilo que já foi chamado de «mal estar da civilização». Como dizia Aristóteles: experimentar é sofrer. Ou, como disse H. P. Lovecraft:

A coisa mais misericordiosa do mundo, eu acho, é a incapacidade da mente humana para correlacionar todo o seu conteúdo. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio aos mares negros do infinito e não nos foi dado viajar para muito longe. As ciências, cada qual puxando em sua direção, até agora nos causaram pouco mais; mas algum dia a montagem do quebra-cabeças de conhecimentos espedaçados abrirá tão terríveis visões da realidade e de nossa horrível posição nela que enlouqueceremos com a revelação ou então fugiremos da mortífera luz para a paz e segurança de uma nova idade das trevas (tradução do autor)

Aquele que aprende, deixa um pouco de si à medida em que incorpora algo do outro, então o aprendizado produz uma incompletude do ego ao mesmo tempo em que o expande com elementos do outro. Esse processo talvez seja o que Marshall McLuhan chamou de «destribalização» e outros chamaram de «desenraizamento». Hoje, mais do que nunca, nós somos criaturas hidropônicas, isoladas da terra que nos deu origem.

Estudar Enlouquece, Aprenda Isso

O fenômeno descrito acima foi percebido muito cedo pela humanidade, que tratou de desenvolver em torno dele um complexo sistema de atenuamento. Ao longo de um processo milenar, surgiu a crença na sobrevivência da alma, surgiram as religiões e seus sistemas de controle, surgiram, cedo, as drogas. É uma vaidade louca tentar acabar com o tráfico de drogas: ele não existiria se as substâncias psicoativas não fossem úteis. Em todas as épocas existiram pessoas que precisavam da fuga, da anestesia, da aniquilação. Em todas as épocas existiram pessoas que precisavam do suicídio. A diferença é que hoje, neste mundo apinhado de gente, onde mal se pode urinar na hora em que a natureza chama, o suicídio deixou de ser um trato pessoal com o destino e passou a ser um fenômeno coletivo, posto que terá testemunhas, herdeiros, sofredores.

Nesse sentido a religião encontrou um terreno fértil para transformar-se em uma força social permanente. Dependendo da época e da cultura, a religião pode dar um sentido ao suicídio, reduzindo o sofrimento da família do falecido, ou pôr um freio no ato, ao dar um sentido à vida daqueles que não veem mais sentido algum. Para que estes processos funcionem é preciso que as pessoas aceitem o pacote da religião, e esta aceitação depende da suspensão da crítica, o mesmo fenômeno que permite ao leitor de uma obra fantástica aceitar, «em tese» e para fins meramente de diversão, a existência de duendes, elfos, dragões ou até deuses. Por isso as religiões e as filosofias têm uma relação conturbada. Em geral os filósofos só aceitam a religião quando eles próprios desenvolvem filosofias que legitimam a religião. A religião, por sua vez, discrimina entre os filósofos aqueles que são tachados de «niilistas» e os condena do alto de seus púlpitos.

O cristianismo, em especial, desconfia da sabedoria, e desconfia com força. Está no Novo Testamento que a sabedoria do homem é loucura para Deus, e vice-versa. Estudar é tornar-se louco aos olhos de Deus. Tornar-se sábio no mundo é afastar-se da salvação. Quem estuda se afasta das respostas prontas dadas pela religião, e no perigoso pântano do pensamento (oh, a horrível liberdade!) pode concluir por valores reprováveis perante a sociedade e seu cão de guarda, o sacerdote.

Sobre estudar demais e ficar doido, nossa cidade teve um personagem mítico,o já falecido professor Geraldo Barbosa, que muitos aqui devem ter conhecido. Não vou dizer que era louco, o que me importa nesse ponto é mais o que diziam dele, do que o que ele realmente era. Diziam que ele, de tanto estudar, teria ficado louco.

No meu tempo de criança havia conhecidos meus, pessoas adultas,inclusive de minha família, que me citavam o Geraldo Barbosa para me convencer que não estudasse «demais». Davam-me como exemplo primos e parentes, que ganhavam a vida já, sem terem grandes estudos,enquanto eu ainda não tinha profissão e nem «futuro» (essa arma abstrata com que os mais velhos atiram nos sonhos dos jovens). O dinheiro adquiriu tal importância entre nós que passou a definir, de forma exclusiva, o sucesso ou o fracasso. Houve uma época em que os homens ricos em dinheiro não tinham poder, mas sim os ricos em terras e em seguidores. Hoje em dia todos os bens somente têm valor enquanto possam traduzir-se em dinheiro — embora, curiosamente, o dinheiro em si seja uma abstração, tal como bem definiu o chefe Seattle, em sua carta ao presidente americano: somente depois que a última árvore for cortada, o último peixe for pescado e o último rio for envenenado o homem branco perceberá que não pode comer dinheiro.

Seria o professor Geraldo Barbosa louco? Machado de Assis, em sua espetacular noveleta O Alienista, já nos mostrou o quanto é tênue e arbitrária esta linha marcada entre a normalidade e o desvio. Mas supondo ainda que fosse mesmo «louco», mesmo que apenas em tese, seria ele louco por ter estudo em excesso?

A Política da Loucura

O povo inculto, de um modo geral, teme e odeia os seus líderes desde há milhares de anos. Desde a Suméria e o Egito, quando a escrita foi inventados, os homens que leem e escrevem são vistos como controladores de forças terríveis, MALÉFICAS. São forças maléficas porque a elite oprime o povo. Logo, as tecnologias da elite, entre elas a escrita e a leitura, são contrárias ao bem do povo. É significativo que ainda sobreviva em nosso meio um filão de filmes de terror focado em Livros Malditos.

Mas o povo precisa de auto-estima, não pode se aceitar como gado. Por isso desenvolve-se a ideia do «preço que a bruxaria cobra». Inicialmente isso era visto como literal: os que se dedicavam aos mistérios deste e de outro mundo eram pessoas distantes, isoladas, malcheirosas devido às experiências que conduziam em suas alcovas. Envelheciam cedo devido às privações de sono e de alimento,enxergavam mal devido a «forçar a vista» em seus livros, diante de velas e cadinhos. Hoje já não se faz alquimia, mas persiste a ideia de que o homem dedicado ao solitário prazer da cultura seria um ser infeliz, amaldiçoado. Salutar e bom é o vigoroso homem do povo, isento da corrupção do passado, cheio da verdade simples e direta que brota da terra.

A figura do artista maldito, degradado, bêbado, drogado etc. nada mais é do que uma variação do Professor Geraldo Barbosa, que estudou tanto que enlouqueceu. Estes artistas têm exposição intensa na mídia, desproporcional até, porque eles atendem a um modelo, a um arquétipo. Com já disse, as pessoas acreditam que a ignorância é «pura», que a sabedoria «corrompe». Então, as pessoas acreditam que o artista é mais natural, mais espontâneo, quando se exibe louco, entorpecido, decaído. Por ser uma pessoa mais «sensível» (seja lá o que for que o povo ache que «sensibilidade» é), o artista seria por natureza uma criatura frágil. Então fecha-se um círculo e pessoas interessadas em ser ou parecer artistas seguem esses modelos de comportamento frágil-drogado achando que se tornam mais artistas por causa disso. É aqui que a frase do Chesterton entra como uma luva. Ou seja, tem gente que acha que é o rabo que abana o cachorro. Há pessoas que acreditam que terão os acertos de uma outra pessoa se copiarem os seus erros.

Já vimos antes que o conhecimento expõe o homem ao confronto com forças que estão além de sua compreensão e que nem todos estão preparados para sair ilesos de tal combate. Voltamos, então, ao tema da embriaguez.

Para mim, tudo o que embota a mente, lícito ou ilícito no Código Penal, tem a mesma função: produzir ignorância artificial. Uma vez que as pessoas, de forma tão prevalente, apreciam a ignorância, o artista se atenua, entorpece, anestesia, a fim de produzir uma obra menos refinada, menos pensada, mais rude, visceral. Todo artista tem que ir aonde o povo está. O artista maldito é a confirmação, aos olhos do povo, que a sabedoria é perigosa, que o conhecimento corrompe. O homem sábio é ambicioso, tenta construir a Torre de Babel, termina confuso.

A concepção do artista como um ser autodestrutivo é uma maneira de desqualificar socialmente. O artista é mostrado como um doidão, não alguém que merece respeito. Isso me lembra um amigo virtual, que postou no Facebook um episódio de sua vida real: quando disse que era músico, lhe perguntaram em que ele trabalhava. Não se concebe que alguém possa ser «escritor», ou «músico», ou «artista». Aliás, na linguagem do povo, «artista» é ator da novela.

No Brasil nós temos um outro interessante paradigma disso. Na sociedade coronelista, que não superamos totalmente, o coronel, geralmente um homem de pouco ou nenhum estudo, contratava serviços especializados de gente diplomada: médico, contador, advogado, engenheiro, professor. Todos lhe eram submissos pela lógica do poder. Então ficava o estigma de que um diploma apenas habilitava o portador a ser subalterno do poder. Posição desejável por homens pobres, mas vista como degradante para os descendentes das famílias quatrocentonas.

Por isso, filhos das classes mais altas, mesmo quando se formavam, preferiam a política: o diploma era só perfumaria, só para não ficarem abaixo de seus subalternos. Exercer a profissão era algo indigno de alguém oriundo de uma família poderosa. Antônio Carlos Magalhães formou-se médico mas jamais clinicou. Quando alguém de origem socialmente alta realmente exercia sua profissão, isso era um sinal de incapacidade ou impossibilidade de manter e expandir o poder herdado. «Pai fazendeiro, filho doutor, neto pescador» — diz o ditado mineiro. Deixar o poder e dedicar-se a uma carreira é uma decadência.

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Não Sejamos Moralistas

Escritores se embriagam. Sim, eles são seres humanos e vivem tudo que os humanos vivem. Sendo humano, dedico-me à viver tudo que é da natureza humana, teria dito um devasso imperador romano. Mas os escritores ainda vivem algo mais, que lhes é peculiar: a experiência da escrita. Quando um estivador, um lixeiro ou um médico se torna alcoólatra, isso não cria um debate sobre estivadores, lixeiros ou médicos alcoólatras. Mas quando as pessoas pensam nos escritores que se drogam (nos artistas, tamem, de uma forma geral), elas logo fazem um «salto lógico» de supor que a embriaguez seria uma característica do ofício. Por isso, creio que talvez seja errado considerar a embriaguez tão definidora de características literárias para que nos dediquemos tanto a ela. O que já dedicamos me parece muito.

A relação disso com a minha digressão sobre o sábio louco e o ignorante vigoroso é que conviver com esse arquétipo é penoso. Há uma série de dificuldades adicionais que o escritor precisa vencer para dedicar-se à sua atividade. Estas dificuldades, por si, podem afastar o escritor do convívio de outras pessoas, porque escrever demanda, principalmente, tempo e silêncio. E parece ser uma característica quase universal das culturas contemporâneas a valorização do ruído, da experiência coletiva. Diante das teletelas reais vivemos nossos momentos de ódio e de amor sempre na companhia do outro, cidadãos de um admirável mundo novo que somos, obrigados a sorrir e a amar quase como por dever cívico.

Então,quando você junta a persistência do arquétipo de que cultura enlouquece, a necessidade de relativa solidão para poder produzir e mais os problemas (psicológicos ou sociais) de que ninguém está inteiramente livre, o que obtém? Se o escritor recair em algum vício você obterá uma série de obras dedicadas ao vício porque, em geral, o grande assunto do autor é a sua própria vida, que ele pode desnudar diretamente em uma autobiografia ou meramente transferir de forma sublimada para cenários de suposta fantasia. Será, porém, que estas obras indicam algum valor no vício?

Uma das características do viciado, do «adicto», como se diz hoje, é negar que seja viciado. Quem tem parente alcoólatra sabe muito bem como inventam desculpas, histórias, explicações. Imagine que desculpas, histórias e explicações não serão inventadas por um alcoólatra que tenha talento com as palavras? Sempre, claro, com o objetivo de glorificar o próprio vício.

Ainda mais porque o vício, sendo algo que pode acometer qualquer pessoa, acaba por servir de traço de união entre o estranho, o homem das letras supostamente elevado e incompreensível, e o normal, as pessoas que vivem vidas naturais, sem preocupações literárias. Papo de bêbado é sempre igual. Beber, então, pode ser uma forma de o escritor mostrar-se acessível, criar uma imagem que o grande público não rejeite. Ele tinha talento, mas tinha uma fraqueza. Ninguém suporta os perfeitinhos. Quer dizer que além de ser rico e talentoso ele também era abstêmio? Ah, alguma podridão ele deve ter!

Perigos Modernos

Existe um outro aspecto a se considerar sobre a embriaguez: hoje em dia ela deixou de ser um ato de contestação. Isso é parte do grande processo de banalização de tudo, fruto de nossa sociedade que produz tudo em escala industrial, inclusive sofrimento e estupidez.

Quando Baudelaire e seus amigos se reuniam nos clubes de comedores de ópio em Paris, eles o faziam como uma afronta à sociedade «certinha» de seu tempo. Eles se sentiam meio mortos naquele mundo de convenções e limites, queriam romper suas amarras e ver coisas novas. Não se sabia, ainda, o quanto as drogas eram ruins. Havia uma certa ingenuidade no mundo, naquela época. Não custa lembrar que até os anos vinte ainda se vendia pastilhas de cocaína e vinho com heroína.

As pessoas foram descobrindo aos poucos que certas substâncias eram perigosas, e reagiram histericamente quando isso caiu no domínio público. Proibiu-se um monte de coisa que não precisaria ter sido proibida, e muita coisa que tinha de ter sido continuou legal. Então a embriaguez voltou à moda. Nada mais contestador nos EUA da Lei Seca do que ser um pudim de cachaça.

O problema é que este aspecto «contestador» da embriaguez perdeu seu sentido. Hoje em dia está tudo normatizado e tolerado, inclusive a rebeldia em nível individual. Você pode se vestir como quiser, tatuar-se aonde quiser, espetar-se com o que quiser, maquiar-se como quiser, talvez até botar um parafuso na cabeça. Então quando você enche a cara, está apenas alimentando mais uma indústria, que é parte do sistema. A rebeldia, hoje em dia, é uma função necessária para a estabilidade do conjunto. A rebeldia idiota, ou seja, a rebeldia do indivíduo isolado. Porque a rebeldia coletiva merece gás de pimenta, cassetetada no lombo e ordens judiciais de reintegração de posse. Enquanto você estiver sozinho contra o Leviatã você tem a liberdade de dizer e fazer muita coisa, mas ao reunir-se diante dele o resultado é todos serem pisoteados.

Veja bem, não estou aqui sendo moralista. Cada um tem o direito de ser o que quiser. Não sou polícia do corpo e nem da alma alheia. O que me incomoda é existir a estética da arte como algo «sujo», do artista como necessariamente alguém que «peca». Não me incomoda porque seja contra isso, mas porque o estereótipo ocupa praticamente todo espaço. Parece que as pessoas acham que o artista é de alguma forma ilegítimo se ele não se tatuar, não brigar com a família,não cometer algum crime, não tiver uma vida antissocial, etc. Esse artista que não agride a sociedade é tachado de «conformista», «nerd», «workaholic» etc., quando não apenas ignorado.

Mas todas estas coisas que alguns artistas fazem não são a arte em si. São idiossincrasias do artista que, muitas vezes, afetam negativamente a arte, mas algumas podem afetar positivamente também. Quantos poetas malditos que se mataram cedo não poderiam ter vivido até uma maturidade muito mais significativa artisticamente? Quantos roqueiros mortos de overdose não poderiam ter feito música ainda melhor se não tivessem partido aos vinte e poucos? Para cada conto de Poe, para cada poema de Coleridge, deve haver uma infinidade de composições de Hendrix.

De fato, são poucos os escritores que bebem para escrever. São muitos os que bebem, claro, mas a ideia de que alguém enche a cara de cachaça e diz, «agora, então, eu estou pronto para escrever» é uma coisa irreal. Escrever exige concentração, coordenação motora, certo domínio dos sentidos. Uma quantidade moderada de álcool, ou qualquer entorpecente, pode não ser suficiente para impedir, mas dificulta. Uma dose maior simplesmente impede o ato criativo. Veja os famosos shows com músicos drogados, aqueles caras cantando com voz arrastada, errando notas na guitarra, tropeçando no palco. Algo parecido acontece com o escritor. Sua voz arrastada é a dificuldade para lembrar vocabulário, seus erros de notas são as omissões de palavras ou pontuação, seus tropeços são as perdas de sequencia lógica.

Minha experiência pessoal com a relação entre a escrita e a bebida foi sempre negativa. Embora eu até tenha escrito textos interessantes sobre a embriaguez, ou até em estado de embriaguez, a verdade é que embriagar-me me retira toda a vontade de escrever. A embriaguez induz à preguiça e abole o raciocínio lógico. Escrita de artista embriagado é como papo de bêbado. Tem quem goste, mas é perfeitamente explicável que tanta gente não goste.

Uma coisa diferente é escrever posteriormente sobre a experiência dita durante a embriaguez. Mas nesse caso a escrita não tem nenhum ingrediente diferente em relação à de alguém que não bebeu, a não ser o assunto, que o autor vai conhecer em primeira mão. Mas é um assunto tão importante assim?

Bebendo Para Ganhar o Nobel

Aí chegamos ao ponto crucial, que é o da anulação do indivíduo, o estágio superior da ignorância. Algumas pessoas, mais do que se anularem, mais do que se estupidificarem, querem cancelar-se definitivamente, querem matar-se. As razões que levam alguém a se matar são tão complexas que vários filósofos dedicaram livros inteiros a isso. Schopenhauer dizia que o suicídio era a única questão filosófica relevante e Durkheim escreveu um famoso ensaio sobre o tema. Hoje sabemos que o suicídio não é uma questão filosófica, mas um problema de saúde pública, que até pode ser tratado com comprimidos, na maioria dos casos.

Mas continua sendo um fenômeno real. E justamente um fenômeno que afeta muito mais as pessoas de certa cultura. Nietzsche dizia que um povo é somente uma maneira que a natureza tem para produzir grandes homens e livrar-se deles depois. Nossa cultura, que produz artistas, malditos ou não, ao mesmo tempo em que lhes dá origem, os devora.

E dos americanos ganhadores do Nobel de literatura somente um não foi alcoólatra ou drogado. Será isto um indicativo de que bebendo se escreve melhor, ou um sintoma da doença cultural do ocidente (e dos Estados Unidos especificamente) que faz as pessoas «sensíveis» tenderem à autodestruição?

1 E sempre precisamos ter muito cuidado com a personalidade do artista pois, como cruelmente disse G. K. Chesterton: temperamento artístico é coisa de amadores.


05
Set 11
publicado por José Geraldo, às 22:02link do post | comentar | ver comentários (1)

Fila de banco. Detesto, como muita gente. E como todo mundo tenho que ir. Aliás, eu devia agradecer por haver fila de banco no mundo: ninguém sobreviveria na minha profissão sem poder relaxar durante uma hora aguardando o atendimento. Antigamente era ruim, hoje tem até banquinho acolchoado para a gente sentar. Daí eu posso apenas ligar o som no meu telefone e ficar ouvindo alguma coisa dentro da minha cabeça, me injetando ritmo enquanto os caixas matraqueiam com os dedos nos teclados baratos.

Fila de banco. Proibiram agora o uso de aparelhos celulares. É uma merda. Não posso mais nem ficar com os malditos plugues no ouvido. As pessoas ficam olhando torto, achando que faço parte de alguma quadrilha. Merda! Tenho que desligar toda vez que entro, e ficar quase uma hora sentado olhando para as caras dos outros clientes. Raramente aparece uma moça bonita que valha a pena olhar. Mas ainda mais ramente ela permite que eu olhe sem começar a me ver torto também, me achando um estuprador. Fila de banco. Detesto, como quase todo mundo.

Estou sonolento hoje, dormi mal e dormi tarde. Acordei cedo para trabalhar, como quase todo mundo. Estou aqui meio zumbi. As pessoas veem meus óculos escuros e me acham com pinta de maconheiro. Fila de banco é um lugar onde se concentram todas as fobias e caretices da humanidade.

Os caixas estão lentos hoje. Teria sido um ótimo dia para música. Dava para ter ouvido quase um álbum cheio. Mas tenho que ficar em vez disso olhando para os lados, tentando evitar que meus olhos incomodados retornem à orelha daquela moça. Porra, até que ela é bem gatinha, mas usa um enorme alargador auricular. Imagino que dentro de dois ou três anos terá uma orelha deformada e com aro grande o bastante para eu passar meu punho. Igual o lábio do Raoni. Eu sou meio careta com essas coisas. Fico pensando se dói. Uma tatuagem já me bastou. Nunca mais banco o macho deixando que me enfiem agulhas. Só de injeção, e por necessidade. Não curto dor. Não curto ficar aqui parado esperando a vez e olhando para a orelha daquela moça e pensando nela mocréia com quarenta anos e o lóbulo todo fodido.

De repente o telefone toca. Metade da fila me olha como se eu estivesse cometendo um assassinado ou comendo uma criança. Não é nada demais, só uma mensagem de texto. Alguém tuitou que vai ter uma festa-surpresa. Adoro essas festas mal organizadas. Geralmente a bebida é quente e ruim, o lugar é uma porcaria e a polícia aparece descendo o cassetete em todo mundo. Mas sempre aparece muita gente diferente. Se não houvesse essas festas malucas seria até difícil fazer amizades fora do bairro. Talvez eu nem tivesse amizades: como você puxa assunto com essa gente na rua, todos andando olhando para frente e preocupados com suas bolsas, olhando para mim como se eu fosse um marginal de estilete na mão, pronto para cortar alguém. O telefone tocou convidando para uma festa dessas. Eu vou, claro. Eu sempre vou, ainda mais que o convite vem do Tõezinho. Faz quase um ano que não vejo o verme.

Quando consigo sair do banco eu respondo via SMS perguntando onde. A resposta vem minutos depois: Fenelon Guimarães 80. Nunca ouvi falar. Essa cidade é bem grande, e tem tanta rua quanto você tem veias. Você não sabe o nome de todas as suas veias, não estranho não saber onde fica essa rua maldita. Respondo de novo: preciso de um GPS ou de uma indicação no Google Maps. Tõezinho responde em três tempos: veio o mapa com um percevejo verde marcando a rua. Gandaia, lá vou eu. Beber muito uísque paraguaio com energético e beijar garotas com cheiro de patchouli e batom verde.

Já são quase cinco da tarde quando chego de volta ao serviço. Tempo para jogar uma cantada tosca na telefonista, bater o cartão e sair. Meu velho Chevette 76 me leva mansamente para casa, espargindo pelo ar um leve odor de gasolina e silicone. Hoje é sexta feira, eu mandei lavar, polir, lubrificar. O carrinho está manso e liso como uma mulher que sai do banho. Ser sobrinho de mecânico tem suas vantagens: o motor ronrona gostoso como uma namorada gozando na cama e as molas macias como um colchão de motel nem me deixam sentir os buracos do asfalto.

Minha mãe quer que eu coma em casa. Isso é absurdo. Sexta feira não é dia de ficar em casa depois que anoitecer. Tem que haver algum lugar qualquer para ir, algum lugar que não seja debaixo da saia da mãe. Ela me xinga enquanto eu tomo banho, meu pai ronca deitado no sofá, pronto para um enfarte, e nem liga quando saio. O velho ainda vai engasgar na própria banha qualquer dia desses. Tenho pena de minha mãe: ela era uma menina bonita quando se casou com esse gordo inútil, que só serve para ganhar uma aposentadoria por invalidez, tão gorda quanto ele.

A turma se encontra no posto de gasolina da BR. Digo que é “a turma” para dar uma boa impressão, mas somos só três. Os “mortos de fome do BNH”, como a Dolores nos chamava nos tempos de escola. Dolores era uma vadia, dava para um dono de loja rico e andava mais emperiquitada que uma dançarina de filme francês. Casou com ele graças à barriga e a habilidades orais. Hoje dirige um carro importado preto e não nos conhece mais quando passa por nós. Imagino que ela acharia engraçado nos ver bebendo cerveja barata sentados no capô de um Chevette 76, no estacionamento de um posto de gasolina à margem da BR, numa sexta feira às sete e meia. Somos três perdedores.

— Que história é essa de festa, Miguel?

— Tô de falando, recebi o recado do Tõezinho hoje à tarde. Não sei se é ele que tá organizando, mas com ele não tinha furo: toda festa que ele convidava ficava dez. Eu vou, nem que seja no inferno.

— Assim é que se fala, camarada, segura a capetinha pelos chifres para ela te chupar gostoso!

Ninguém passando pelo asfalto a cento e vinte por hora teria entendido a gargalhada dos três idiotas montados no Chevette marrom.

Saímos do posto cerca das dez da noite. Deixei o Vavá dirigir porque ele não pode beber. Dentre as muitas ziquizilas que ele tem está uma alergia forte ao álcool. Ele compensa de outras formas, claro, mas dá para dirigir bem. Vavá é um fresco, criado a leite de pera e ovomaltino, ele nunca pegou uma mulher, mas jura que não é veado. Hoje nós vamos dar um jeito de arranjar uma vadia bem doida para ver se ele deixa de ser cabaço. Mas ele não sabe ainda.

— Aonde é esse raio de lugar onde vão fazer a festa?

Pego o telefone do bolso e lhe mostro no mapa.

— Isso é longe pacas, Miguel. Tem gasolina nesse gambá aqui?

— Tem sim, claro. Olha aí!

— Parou de funcionar de novo o marcador de gasolina. Por que você não vende essa merda de carro?

— E compro o que com o dinheiro? Uma mobilete?

Vavá não tem argumentos. Com menos de três mil reais eu comprei um Chevette velho, que eu mesmo retifiquei e reformei, com a ajuda de meus tios, que são mecânicos, tanto o irmão do meu pai quanto o da minha mãe. Eles são sócios. E são mais pais para mim do que o gordão que passa o dia vendo televisão e vira a noite assistindo pornô sueco.

Já são mais de nove da noite quando começo a ficar preocupado. A festa parece cada vez mais distante. O centro da cidade já ficou para trás há muito tempo. E olhe que nós saímos da periferia, passamos por dentro e estamos quase saindo do outro lado. Se o odômetro funcionasse eu saberia o quanto rodamos. Deve ter sido muito.

As ruas são mal iluminadas e vazias. Não tem nem birosca aberta. É um bairro industrial, dá para ver pelos imensos edifícios em formato de caixote, alguns com chaminés do século passado. Eu nunca tinha vindo a essa parte da cidade, parece um filme americano de terror, daqueles com gangues de psicopatas sobre motos, matando os rivais arrastando pela rua. Eu vi um filme assim uma vez quando era bem molequinho.

Direita, esquerda, esquerda, direita e esquerda. De esquina e esquina vamos nos perdendo mais até que, de repente, encontramos uma placa indicativa. Estamos na esquina da Fenelon Guimarães com a Juvêncio Estrada. Duas ruas estreitas e perdidas, onde parece que não mora nem alma penada. Não tem ninguém na rua.

— Caralho, Miguel. Te passaram um trote dessa vez. Não tem nenhuma merda de festa rolando por aqui.

— Deve ser num desses galpões aí. Tipo, dessa vez resolveram fazer organizado. Puseram isolamento acústico para não chamar a atenção e fizeram num lugar sem vizinho chato para chamar a polícia.

— Eu acho que a gente devia voltar — diz o Vitinho, pela primeira vez dando uma opinião.

— Tudo bem, a gente volta. Mas primeiro vamos descer e procurar o número oitenta e ver o que tem lá. Depois a gente vai até para a puta que pariu se for preciso.

Concordamos e vamos procurando o 80. O Chevette vai devagarinho, como um gato se esgueirando pelo muro. Achar vai ser Tarefa difícil porque não tem ninguém na rua e nem os prédios tem número. Somente um imenso portão de ferro se destaca. Não sei porque razão eu imaginei que ali poderia ser o lugar. Estranha premonição. Era lá.

Lá era um cemitério.

Meus amigos desgraçam a rir enquanto eu quase me cago de medo.

— Miguel, acho que você devia entrar, deve ter uma capetinha aí dentro pronta para te chupar! — o veado do Vavá se aproveita para zombar de mim. Logo ele que nem deve saber do que está falando.

— Não se brinca com uma coisa dessas — diz o Vitinho, já beijando seu crucifixo de prata, presente da avó siciliana.

— Deixa de ser medroso, Vitinho. Vamos entrar.

— Entrar!? — o instinto fresco do Vavá se manifesta.

— Uai, e por que não?

— Por que sim, você quis dizer! Para que diabo a gente vai entrar no cemitério hoje, logo na quaresma, Miguel. Não tem nenhuma porra de festa por aqui, nem num raio de vinte quilômetros. Vambora pegar um cinema que ainda dá para pegar uma sessão de meia noite.

Eu não me conformo de ter sido passado para trás. Pego o telefone e envio de volta um SMS furibundo: “o inútil que me convidou aqui hoje vai aparecer ou não é macho para isso?” 

Tenho vontade de jogar longe o telefone. Pena que ainda estou pagando. Pena que preciso e gosto dessa merdinha difícil. Tenho mais amigos me seguindo nele do que na vida real. Se eu tivesse comido metade das mulheres que se dizem minhas fãs no Orkut eu me sentiria um artista. Não vou jogar fora o telefone, queria era sentar a mão na cara do veado que me sacaneou.

Vamos voltando para o carro, desolados, quando o telefone toca de novo. Tõezinho de novo. A mensagem de texto diz simplesmente: “Eu estou aquii”.  Um leve sopro de vento arrepia minhas orelhas. Olho para trás e vejo uma luz vaga dentro do cemitério, vindo em direção à porta.

— Corre, diabo!

Não sei o que foi que tinha no tom da minha voz que os dois entenderam como se fosse um abracadabra. Nem sei como entramos dentro do carro. Lembro-me vagamente de um vidro quebrando e estou com uns arranhões na barriga e a cabeça me doi muito. Por sorte sou sobrinho de mecânico e meu carro velho vive com o motor regulado. Saímos de lá cuspindo fagulha pelo escapamento, que assobiava como um apito de Satanás. Se morava alguém naquele bairro, deve ter acordado. Talvez até os defuntos tenham se incomodado. Sei que alguém chamou a polícia.

Meu pai veio me tirar da delegacia no dia seguinte. Pagou a fiança, soltou o carro. Vavá perdeu doze pontos na carteira e eu vou gastar uma grana boa pondo outro vidro traseiro. Eu não respondo quando me perguntam o que aconteceu, como foi que quebrei o vidro ou que cortei a testa. As pessoas não vão acreditar. Aliás, nem eu vou acreditar se eu me contar. Pode ter sido só a lanterna do zelador, ou uma capa de chuva iluminada pela lua. Ou pode ter sido qualquer outra coisa. 

Eu só sei que foi só no sábado de tarde que eu lembrei de uma coisa que tinha me passado despercebida: Tõezinho morreu, faz um mês, em um acidente de carro na BR, dizem que tava tirando pega usando um Dodginho envenenado. Mas ele me mandou a mensagem. Ou roubaram sua senha para me sacanear. Mortos não dão unfollow. Sei lá.

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07
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 20:57link do post | comentar
Eu não devia te dizer. Mas essa lua, mas esse conhaque… deixam a gente comovido como o diabo — Carlos Drummond de Andrade.

Nos encontramos em um bar imaginário, durante uma digressão sonambúlica. Tentei assaltá-lo com uma pergunta, mas ele é refratário a tais abordagens e sempre reverte a tentativa com uma proposição inesperada. Ontem, por exemplo, quando lhe perguntei quem eram as pessoas cujos nomes ele me recomendara conhecer, ele ignorou o que eu dissera e me perguntou se eu tenho escrito. Reconheço que é inútil tentar conduzir a conversa quando se trata dele, então acabei aceitando a pergunta, na esperança de que as dobras do assunto acabassem por esbarrar na resposta do que eu queria descobrir.

Então lhe disse que andava escrevendo pouco, pois preciso de muito silêncio para refletir, e silêncio é uma mercadoria rara, que bem valeria a pena pagar caro para consumir e que eu queria muito, mas muito mesmo, fazer alguma coisa que atraísse atenção, que me trouxesse leitores. Enquanto falávamos disso, e não das outras coisas que eu queria estar discutindo naquele momento, ele ergueu o dedo, como costuma fazer quando está entrando em transe filosófico, e decretou, como um profeta diante do Templo:

— Acredito que você pode fazer qualquer coisa, desde que não tenha a ilusão de que será lido. Ninguém mais lê ninguém. Não dá mais tempo. Há tanto para fazer, tantas sensações para experimentar.

— E no entanto o que nos resta fazer: ganhar centavos de atenção promovendo eventos inúteis? Ficar em casa trancados em nossas ilusões, esperando que alguém nos leia?

— Você fica?

Tive vergonha de admitir que ainda sonhava em ter leitores. Mas ele não me ridicularizou por isso, não ainda. Apenas disse:

— Não tenho mais a ilusão de que um dia serei lido. Estamos no fim de uma era, meu amigo. Sinto-me como um dos últimos romanos, talvez um que escreveu depois da queda do Império. Sinto-me como se já escrevesse em latim bárbaro, como se eu próprio já fosse filho bastardo da civilização que se foi. Que respeito terá o futuro por mim? Ninguém se lembra dos decadentes.

— Se for mesmo assim, meu amigo, pelo menos nos restará termos vivido e amado, da forma especial com que cada ser humano vive e ama.

Ele ouviu a minha frase com impaciência, quase espreitando uma interrupção para cortá-la, com a faca ensanguentada de seu pessimismo:

— Eu digo mais: não seremos amados.

— Nem mesmo pelas putas?

— Acreditar nelas é uma ilusão romântica estúpida. Putas não são românticas, são só mulheres pobres ou viciadas vagabundas que se degradam por dinheiro. Só péssimos poetas têm a mania de acreditar que possa haver uma Dama das Camélias. Exceto pela tuberculose, tudo era ilusão.

— Não quis dizer que a puta nos ame, mas ao vil metal. Quis dizer que ela nos dá amor em troca de nosso dinheiro.

— Nem isso. A puta não precisa do dinheiro, mas das coisas que ele compra. E sempre escolherá quem tenha mais, da mesma forma como o mineiro preferirá a jazida maior: para não ter de viver sempre à procura.

— Ah, mas você está insuportável hoje. Logo quando eu estava sentindo uma vaga inspiração para escrever uma poesia.

— Esse troço de “vaga inspiração para poesia” é frescura.

Tive de rir da minha própria inocência. Eu já devia saber que aquele iconoclasta não resistiria à oportunidade de reduzir a pó minhas intenções póeticas.

— Eu já escrevi poemas, você sabe. Hoje não mais. Eu tive uma revelação sobre o amor que me matou a poesia: nós não amamos ninguém, nós apenas buscamos satisfações.

— Como assim, meu amigo?

— Não amamos o ser, mas a perspectiva daquilo que o relacionamento com tal ser poderá nos dar: prazer, dor, conforto, orgulho, dinheiro. Diga-me, você gosta de amendoeiras, não?

Ele certamente conhecia minha fixação por estas árvores curiosas, sendo uma das poucas pessoas a quem eu mostrara alguns antigos textos sobre elas.

— Sim, gosto.

— É mentira. Você gosta de amêndoas, ou da sombra que a árvore lhe dá. Se a amendoeira não desse amêndoas e nem sombra, você certamente a desejaria destruir.

Naquele momento me senti firme para discordar:

— Isto não é exatamente verdade: existem várias satisfações possíveis, além da mera utilidade.

— Se é uma satisfação, então é uma utilidade. Nada que satisfaça a algo ou alguém é inútil.

— Mas mesmo que ela fosse inteiramente inútil, mesmo que eu a desejasse destruir… você não acha que o impulso de destruir é uma forma de desejo?

— Mas nesse caso você gosta é da destruição, não da árvore inútil.

Mais uma vez, derrotado. Ele perdeu a poesia, que ainda tenho, mas possui uma agudeza que constrange. E tendo sufocado minha resposta ainda no fundo da garganta, sentiu-se a cavalo para pontificar:

— Se você ama a alguém, é porque essa pessoa lhe faz algum bem. Se essa pessoa cessar de lhe fazer esse bem, você deixará de amá-la.

— Creio que há um engano aí, meu amigo. Você subestima a perversidade do ser humano. Na verdade matamos a amendoeira, apesar da amêndoa e apesar da sombra. O homem é como o escorpião da fábula.

O meu amigo ergueu as sobrancelhas ao ouvir-me dizer isto. Interrompeu sua profecia por alguns segundos, bateu na mesa, quase derrubando a cerveja, e admitiu, para minha glória momentânea:

— Você tem razão! Como não pensei nisso antes!? Isto é irracional, mas é verdade.

— Verdade seja dita, meu amigo, é justamente por ser irracional é que é tão humano. É mentira que sejamos diferentes dos animais por agirmos racionalmente, nós somos diferentes deles porque podemos suicidar-nos. Razão é apenas o nome que damos àquilo que nos diferencia do nosso cão, que não sabe dar nomes às coisas.

Meu momento de glória foi abatido em pleno voo por outro ataque de cinismo da parte de meu amigo:

— E quem sabe se o cão não dá nomes às coisas? É possível que apenas não saibamos compreender os nomes que ele dá.

Parei o copo de cerveja no ar, a meio caminho da trajetória até a boca. Aquelas palavras pareciam caindo da língua dele já gravadas em blocos imensos de granito, como tábuas de mandamentos. Eu não conseguia destruir a impressão que elas me causavam. Falhara minha última tentativa de salvar a dignidade humana dos efeitos avassaladores da presença de meu amigo naquela mesa de bar. Ele seguia, de sabre em punho, decapitando minhas ilusões:

— Pode ser. Somos animais, afinal. Embora animais escritores de poesia, animais construtores de canhões. E de fato não há diferença entre um soneto e um canhão: ambos estimulam os mesmos neurônios.

Meu amigo pediu a conta, deixou trinta reais sobre a mesa e se foi embora depois de uma despedida breve, durante a qual mal consegui balbuciar um boa noite. A conta veio menos de vinte reais, mas eu me senti roubado, mesmo ficando com o troco.


01
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 23:28link do post | comentar

Aonde quer que vá, tudo sempre igual: pessoas agindo comicamente e ele, aliviado por não ser bobo como elas, sentindo por dentro a nódoa de inveja pela felicidade irresponsável que podem ostentar enquanto ele arrasta a solidão, apenas ocasional e temporariamente minorada por relacionamentos passageiros.

Impossível, por exemplo, brincar o carnaval. Basta um bloco de sujos para sentir até vontade de rir daquelas fantasias e caretas estúpidas que fazem. O “Bloco das Piranhas” não lhe faz apenas vontade de rir: dá-lhe horror ver aqueles marmanjos vestidos e maquiados como fêmeas e dizendo indecências. Um amigo dizia-lhe uma vez que “em nossa cidade só se veste de mulher no Carnaval quem é bicha mesmo”. Uma das grandes vergonhas de sua vida é justamente ter saído fantasiado de Batman quando criança.

Beber álcool é algo que evita rigorosamente, por medo de ostentar no rosto os risos imbecis que os bêbados deixam escapar. Lhe enjoa pensar em sair pelas ruas como o famoso bêbado municipal, patrimônio do submundo local. A decadência personificada.

Quando à noite na rua, fica sentado no banquinho do bar, bebendo tônica com gelo e limão — sem perceber nisso nada de ridículo — e tentando paquerar alguma abstêmia, não-fumante e discreta que aparecesse por lá. Como nunca aparece, acabava com alguma alcoólatra, fumante e piranha, só por um corpinho bonito e o prazer mais proibido…

Aí, outro calvário. Nada épico, é claro: apenas a pequena e autêntica tragédia pessoal dessas pessoas sem grandeza e seu leve desespero que as faz sofrerem ridiculamente. Ao lado de seu amor, passa por situações que o expõem a todos os ridículos que antes pretendia evitar até às últimas conseqüências.

Se antes achava ridículo casais beijando-se em público com ardor de endoscopia, tem de aceitar, não sem um pequeno prazer, esta parte do script, exigida pelo ritual humano de acasalamento. Achava mortalmente estúpido uma mulher usar roupa de menos, mesmo no inverno? Agora se vê quieto ao lado de uma que as usa tão minúsculas que parecem trajes de banho ou retalhos de costura.

Um belo dia, depois de sucessivas tragédias o fim do amor sempre anunciado é real. E lá está ele de volta ao bar com a mesma cara e o mesmo ar de toalha-de-mesa. Sozinho com a água tônica e refletindo sobre as peças que a vida prega.

Depois de algumas semanas se desintoxica da vida e retorna à sua inerme abstinência de álcool e de sexo. Então volta a ser de novo a figura estranha que assombra nossas noites. Às vezes acontece-lhe ver o tal Beto Tomás, o “bêbado municipal”, a coisa mais parecida com um junkie que se pode encontrar no interior. Como sempre sujo e bem humorado em sua desgraça risível e inútil.

Pergunta “como vai?” a todos os rostos conhecidos que encontra e responde, se alguém lhe devolve um “e você?”: “entrado em ânus”. Nisso dá sua gargalhada e todos que estão em torno, por um momento, se esquecem da desgraça, da doença e da deformidade e riem dele.


11
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 19:40link do post | comentar

As gotas de chuva eram pouco para vencer o calor que se empoçara na cidade prematuramente em nosso agosto, subia um vapor queixoso e sibilante dos canteiros ainda não inteiramente encharcados e Berenice cruzava a praça sem guarda-chuva.

Eu estava em um ponto de ônibus, recém-saído de meu dia de trabalho e não me confortava nada a certeza de que aquela chuva de sexta-feira prometia durar a noite toda. Ela chegou ao meu abrigo com o corpo suado, chuva escorrendo pelos cabelos e o lindo rosto moreno brilhando de calor. Percebeu a insistência com que eu observava e entre dois sorrisos lamentou a chuva depois de toda uma semana seca e opressiva de calor. Eu comentei a minha teoria particular de que estatisticamente chove mais entre a tarde de sexta-feira e a manhã de domingo do que durante todo o resto da semana, acrescentado a possível conspiração do mundo contra a possibilidade de eu vir a ter um fim-de-semana perfeito.

Finalmente ela desarmou-me apresentando a sua teoria particular de que os homens se dividiriam em duas categorias: os de manteiga — que não saem de casa quando está quente — e os de açúcar — que não saem quando está chovendo. Quando eu tentei abrir a boca para tentar criar algum conhecimento entre nós, ela interrompeu-me dizendo que seu ônibus chegara e entrou nele tão depressa que eu mal tive tempo de dizer-lhe um “tchau” tão tímido que ela nem ouviu.

À noite eu a vi, por imenso acaso, sentada com outras pessoas em um bar, de dentro do meu carro ouvindo o tamborilar das gotas grossas eu pensei por tempo demais se deveria retornar àquela rua e tentar entrar na vida dela: quando tomei a decisão era já tarde demais e não estavam mais lá. Sem o que fazer, sentei-me ao balcão com um chope e uma nódoa de solidão no sorriso que eu distribuía tão barato aos poucos conhecidos que passavam. Enquanto aguardava que o destino, ou alguma outra forma de inspiração, caísse sobre mim; a chuva foi descendo o seu peso e a cidade foi morrendo outra noite.

Na agitação das pessoas que se aglomeravam no único local abrigado eu me senti tolhido, solitário no meio duma multidão que me ignorava e espremia. Pude vê-la passar pela avenida dentro de um Passat cinza, mirei-a com olhos famintos mas ela não recebeu minha transmissão de pensamento e nem soube onde eu estava. Abri caminho por um oceano de braços e copos de cerveja afora até romper na calçada vazia, o carro estava parado em frente ao bar seguinte. Corri até lá rabiscando na capa de meu talão de cheques o número do meu telefone, mas antes que eu chegasse a alcançar a janela o carro saiu, jogando água em mim.

E o sábado foi uma flor amarga que nasceu.

Publicado em 1999 na Revista da Associação Nacional de Escritores, é um dos pontos altos de minha primeira fase depressiva e pessimista (1994–1998) e deve ter sido, provavelmente, escrito em começos de 1998.


29
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 22:06link do post | comentar

Eu sou dos que não sentiram nunca pelo Sérgio nenhuma afeição especial. Na verdade eu pouco menos que o desprezava desde que o conheci. Mal lhe dava motivos para chamar-me de amigo. Mas ele me chamava assim, talvez por falta de verdadeiros.

Era seu jeito auto-suficiente o que mais me indignava. Não era dado a intimidades, raramente sabia dizer palavras simpáticas e parecia que tinha prazer em desdenhar de tudo.

Mas aos poucos foi-se consolidando entre nós um certo tipo de amizade que a convivência adensa. Na faculdade não havia como evitarmos um ao outro: a mesma sala, os mesmos vinte e poucos colegas. Isso pôde nos fazer achar que éramos semelhantes.

Só que o tempo passou e muita coisa saiu dos eixos. Ele largou o curso no meio sabe Deus porque e foi correr atrás de seus sonhos, enquanto eu me tornava professor. Alguns anos depois nos reencontramos: eu ia para a escola onde dava doze aulas semanais no curso noturno e ele vinha pela rua com uma caixa de ferramentas.

Breves palavras e nos informamos de nossas situações. Ele agora trabalhava como eletricista em ocasionais biscates. E trabalhava também em uma loja de material elétrico. Tinha também umas casas que recebera de herança e cuja renda era o que realmente mais lhe sustentava. Em resumo: não morria de fome, mas não havia ido nem à metade da distância que sonhara ir. Triste fim de um sonhador: viver de aluguéis e de um subemprego.

Nessas condições um temperamento inquieto acaba resvalando para o álcool. E Sérgio sempre tivera predileção por aditivos. Enquanto eu achava que estava tudo bem, naquela tarde ele fora despedido por chegar mais uma vez embriagado.

Fiquei realmente preocupado por Sérgio no dia em que me contaram essa história, semanas depois. Pensei nos muitos anos em que não nos víramos. Às vezes uma pessoa se perde pela ausência dos amigos.

Senti uma ponta de remorso por não ter nunca lhe dado a atenção que talvez esperasse de alguém. E nisso resolvi procurá-lo para lhe dar, talvez, algum apoio. Mesmo temendo que ele apenas achasse que mais um ia tripudiar de sua desgraça. Reservei para isso uma de minhas manhãs de Domingo. Assim não atrapalhava o andamento normal de meus negócios.

Desci do ônibus já com a sensação do dever cumprido e o encontrei sentado à mesa em um bar ao pé do morro.

— Olá, Sérgio.

Pelo seu hálito e por sua voz eu podia jurar que ainda não tomara o café-da-manhã, mas havia uma catinga de álcool em seu bafo e ele tinha um copo de cerveja na mão.

— Olá, quem é?

E virou-se para dizer algumas palavras que ele imaginava serem ofensivas a uns velhinhos que jogavam sinuca no fundo. O problema é que, bêbado, ele xingava em calabrês, língua de seus pai, daí resultando que ninguém se ofendia porque ninguém o conseguia compreender.

— Não lembra de mim, da faculdade?

Ele me fixou uns olhos aturdidos:

— Ah, Gato-Preto! Quanto tempo, hem?

Por um momento eu me lembrei porque eu o havia detestado tanto a princípio. O maldito apelido…

— Então eu venho te fazer uma visita e você não está em casa, seu safado. Ouvi dizerem que você mora mais aqui nesse boteco que lá em cima!

Ele revirou os olhos, cambaleando, e disse:

— Acho que eu não estou me sentindo bem!

E desabou de qualquer jeito na calçada. Todo mundo perto se manteve imóvel, exceto por alguns sorrisos e algumas provocações. Tive então de tomar a iniciativa de ajudá-lo.

Em má hora, pois a conta não estava paga e os trocados que ele levava no bolso não eram suficientes para isso. Para evitar mais problemas, usei seus seis reais e cinquenta centavos e ajudei a levar aquele corpo magro e precocemente enrugado pela ladeira acima até a casinha em que vivia.

Ao chegarmos eu o estendi em sua cama desarrumada, tapei o nariz para evitar o cheiro do banheiro recentemente usado e não tão recentemente limpo e saí enfastiado dali.

Bela visita! Linda perda de tempo numa manhã de domingo ver um sujeito esticado como um submarino em sua cama roncando e babando!

Dei uma rápida olhada nos cômodos, todos pouco e mal mobiliados, poeira se acumulando pelos cantos e um cheiro entranhado nas paredes. “É, parece mesmo que o Sérgio está na pior. Melhor que eu visite de vez em quando para dar uma força ou as coisas podem piorar ainda mais.”

Na sala havia uma pequena escrivaninha com uma máquina de escrever e um maço de papel-ofício, uma estante velha com muitos e desordenados livros e uma televisão a cores que parecia nem funcionar mais de tão antiga.

A lixeira estava quase cheia de folhas amassadas que excitaram a minha curiosidade. Desamassei uma ao acaso e nela encontrei esboços de poemas bem melhores que as minhas tímidas tentativas. Verificando com mais atenção o conteúdo daquela e das outras lixeiras da casa encontrei mais dezenas de páginas com muita coisa a meu ver bastante boa que estava a caminho do depósito de lixo municipal. “Que desperdício de talento! Esse cara escreve tudo isso e joga fora!"

Aí passou pela minha mente o malvado pensamento de me apropriar daquilo que nada lhe custara e que tão facilmente descartava. Com algum esforço eu poderia introduzir modificações bastantes para atestar minha autoria sem pôr a perder inteiramente o pulso vibrante ali contido.

Olhei para um lado e para o outro e não havia ninguém fiscalizando minhas intenções. Então entesourei minha coleta em um insuspeito envelope pardo que havia numa prateleira e me preparei para sair, deixando Sérgio entregue à ressaca.

Mas então eu percebi que havia sido vigiado. A janela da sala se abria quase rente ao limite da posse e dava para o quintal vizinho, onde estava uma mulher que me fitava. Era e teria os seus vinte e sete, vinte e oito anos. Seus cabelos eram escuros, compridos, lisos, brilhantes, pesados. E caíam sobre seus ombros, densos e impenetráveis.

Seus olhos eram muito negros e muito vivos e me penetravam acusadoramente. Ela sorriu quando a olhei fazendo aparecerem numerosos dentes muito brancos e grandes e se aproximou da janela com um passo tão resoluto que parecia estar vindo me matar e perguntou-me sem nenhuma timidez:

— Aconteceu alguma coisa com o Sérgio?

— Ele resolveu beber até cair.

— De novo! Coitado! Ele tem estado tão estranho.

— Ele faz isso sempre?

— Desde que se mudou para cá, deve fazer um ano mais ou menos. De onde o conhece?

— Da faculdade.

— Pobre coitado. O que será que o leva a viver assim?

— Desde que o conheço ele tem um certo gosto pela bebida. Mas beber até se arrastar pelo chão é coisa nova.

— Mas é uma pena. Um homem de tanto talento não devia se deixar cair tanto.

Sorri por dentro ao perceber na voz da mulher uma ponta de atração por Sérgio. O ano de vizinhança não fora bastante para que percebesse as nítidas tendências homossexualidade que havia nele. Um incerto sentimento de pena passou por minha mente diante desta constatação e não pude deixar de pensar que era meu dever desiludi-la, mas diretamente.

— Sérgio é o tipo que não tem amigos nem amores.

— Eu percebi, ele é muito mais arredio que o normal…

— Ele sempre foi grosso mesmo. Me surpreende até que ele tenha deixado que você ficasse sabendo o seu nome.

A essa altura, passada já a impressão de que ela vira alguma coisa digna de atenção em minha conduta altamente suspeita, convencido de que ela nem mesmo se lembraria depois de ter me visto sair com um envelope pardo na mão, pedi-lhe licença, fechei a janela e saí. Chamei-a à porta da rua e ela veio, andando com uma elegância de sambista. Os volumosos seios tripudiavam de minha timidez, mas não consegui pensar em nada para dizer de imediato, não antes de ela já haver dito que sentia muito ver Sérgio naquele estado e que seria bom para ele que os amigos aparecessem com mais frequência. Fui sincero ao dizer que realmente pretendia voltar para vê-lo. Mas acrescentei que, embora Sérgio fosse um bom escritor, pelo menos aos meus olhos não era um bom sujeito.

— Não tenha tanta pena dele. Foi a sua própria mão que cavou esta situação em que está. Ele não é flor que se cheire. Sempre mal-educado, mal-agradecido e enrustido em si mesmo. Nenhuma amizade duradoura, nenhum relacionamento amoroso, nada aguenta. Ele parece que tem sempre uma vontade enorme de aparecer e de humilhar os outros.

O brilho foi se apagando de seus olhos enquanto eu falava. Eu previa que o efeito de minhas palavras seria negativo, mas também sabia que não valia a pena passar por herói. As mulheres não amam aos heróis, apenas aceitam ser salvas por eles para poderem voltar a amar homens comuns ou vilões.

— Ele não está tão sem amigos como você diz — havia uma amargura e uma bem nítida recriminação em seu tom de voz — ele tem a mim. Se lhe é tão custoso vir ajudar um semelhante, deixe que eu faço isso!

— Escute o que estou dizendo. Se lhe estender a ele vai bater nela, se lhe der as costas ele aproveitar a chance de enfiar o punhal.

E tomando discretamente o “meu” envelope, despedi-me e saí levando um tesouro.

Originalmente escrito em abril de 2003. Publicado em 24/06/2007.


22
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 13:29link do post | comentar

Teobaldo tentava esquecer. Poderia ser na próxima golada de cachaça, ou na quinquagésima; tinha medo que não fosse nunca. Por via das dúvidas, entornava para dentro da goela a décima oitava enquanto ouvia Sílvio Luiz esculachando algum centro avante que perdia um gol: “Pelo amor dos meus filhinhos, esse até a minha sogra fazia!” As imagens vacilavam com a interferência da geladeira, o som vacilava com a interferência da gritaria, sua mente vacilava com a interferência de uma arma fria que levava no bolso. Ninguém a vira, ninguém morrera, ninguém morria. Sua vida estava atada ao nada, era uma poça estancada, de alma e de hálitos. Estava sozinho, humilhado e não matava ninguém, nem a si mesmo.

O teto do boteco começava a caçoar de sua determinação de derrotar a memória. Girava em gargarejos súbitos que empurravam suas costas para trás e o seu queixo para a frente. Como um malabarista Teobaldo tentava mergulhar no negrume da noite etílica, mas as lâmpadas teimavam em machucar nos seus olhos a certeza do dia. Então ouvi, como se fosse uma buzina de trem no meio da cerração, a voz gosmenta de alguém.

— Para com isso, homem. Cachaça não dá abraço para curar chifre de coitado.

Teobaldo braguejou prandindo os praços belo ar, guerendo sogar um gicante gualguer, mas gaiu de guatro no gongreto ácido e levou uma balda de áqua vrea na vuza e tesmaiou.

Acordou com o rebimbalhar dos sinos de uma ressaca assassina, a sede de um crucificado lá pela tarde do segundo dia. Estava encostado na parede de fora do boteco e fedia a muito mijo. Um anjo o contemplava, com olhos esperançosos como são os dos mensageiros de Deus. E lhe falou:

— Teobaldo, homem. Levante-se dessa calçada imunda e vá para casa. Tome um banho e tome dignidade. Fazer esse papel não combina com você.

Teobaldo começou a chorar como criança e teve vergonha de ouvir aquilo. Teve vergonha também porque o anjo tinha nojo de seu cheiro enjoativo de enxofre e fósforo — o cheiro de um demônio, ou melhor, cheiro de alguém que dormiu na calçada e urinou na calça. Talvez pior, cheiro de alguém que sofreu a troça de jovens impiedosos.

Nem mesmo a mão ousou erguer. Apoiou-se na parede sentindo-se inferior a tudo, até mesmo à cadela de tetas graúdas e caídas que trotava pelo concreto levando a solidão de muitas maternidades e as cicatrizes de muita fome. Quando conseguiu se erguer, nem teve coragem de passar as mãos no rosto. Teve nojo das próprias mãos. Teve nojo do seu próprio corpo, e tinha uma sede de camelo. Mas não pediu água, não pediu apoio. Última dignidade que lhe restava: ficar sozinho, ir para casa com as próprias pernas. “Chega de anjos”.

Mas o anjo o seguia, lento e calado, como devem ser esses pestes. Não serviam nem para ajudar, e Teobaldo caía muitas vezes — e nem tinha trocados no bolso para um bendito copo de água mineral que aliviaria o inferno. Ver as pessoas bebendo nos bares era como ver o pobre Lázaro no paraíso, tão longe e tão perto. Ao contrário do rico, morreria sem pedir. O desespero é uma coisa para a vida póstuma.

Nem sabia se tinha a chave de casa. Ou uma casa ainda. Andava a esmo, talvez estivesse seguindo para um cemitério ou simplesmente acompanhando a cadela, coitada, que só fazia ser o que era por obra de Deus.

Achou-se em frente a um portão. O anjo acenou que sim. Mesmo Teobaldo gritando “suma da minha vida, eu não preciso de nenhum anjo da guarda”; a criatura permaneceu próxima, apenas cerrou o cenho e maquinou nas mãos um gesto agitado e rude que rompeu a santidade insincera que manipulava.

O sol estava melhor, a sede também — ele é que estava a ponto de morrer ou matar por uma simples garrafa de água com gás. E tinha um revólver, a bala era mais cara, mas não salvava sua vida. Apesar disso, covardemente, preferiu entrar em casa; descobrindo que a porta andava aberta, ou fora aberta miraculosamente — maldito sol matinal.

Foi direto para o banheiro. Beberia água no chuveiro. Para a sede, qualquer água serve. Só pensamos em detalhes quando não é questão de morte. Abriu a torneira fria mesmo, precisava acordar, matar alguém, mesmo de terno. Sorveu daquele líquido clorado, deixou aquele frescor banhar suas orelhas, molhar o seu cabelo, acordar o seu sexo. Perdeu a conta do tempo, felizmente ele não tinha futuro para se preocupar. Felizmente as crianças estavam na escola.

Só descobriu que estava vestido ainda quando foi se ensaboar. Ouviu o teto rir, lembrando ainda a noite. Quanto álcool bebera, puta merda! Era álcool ainda ou ficara no cérebro alguma sequela? Despir-se molhado é uma desgraça.

Pode ter sido meia hora ou oitenta minutos, poderia ter sido o dia. Mas quando saiu do banheiro não estava mais fedido a mijo, próprio nem alheio, tinha feito a barba, esfregado bicarbonato nos dentes até estragar a escova e raspado meio quilo de saburra da língua entorpecida. Penteara o cabelo para trás, como fazia na adolescência, imitando ídolos de um século partido. Saíra restituído em alguma dignidade, mas quem tem passado não tem isso: todo mundo já foi besta um dia, e só sofre mais quem foi besta ontem, porque todo mundo ainda lembra. Malditos os que têm memória longa, sempre se acha um bosta desses quando você está feliz. O melhor amigo é o cachorro que se esquece até dos chutes que você lhe dá.

Margarida estava sentada à mesa da cozinha. Tinha um prato de sopa de fubá com alho diante de si — e um saudável copo de água gasosa, cuja presença por si indicava que a mesa era posta para Teobaldo. “Meu Deus, sou uma minhoca, um mosquito, uma lombriga...” Ali estava Margarida, na cabeceira da mesa, silenciosa com seus olhos enigmáticos, poços pretos profundos impermeáveis à pesquisa de um desesperado como ele. E Margarida olhava para o jornal do dia, que o carteiro trouxera outra vez. “Devia cancelar essa merda”.

Sentou-se na cadeira ao lado. Pegou a colher como se fosse um revólver. Levou sopa à boca como se estivesse enfiando uma bala no lobo temporal. Infelizmente a arma fria no bolso da calça era só o telefone móvel. E o único crime que com ele cometia era ainda ter o telefone de Maria. As orelhas lhe queimavam.

Enquanto sorvia a sopa, em um silêncio cadavérico, via Margarida folheando o jornal, interessada. O ruído das folhas sendo viradas soava na cozinha como os remos de Caronte no Estige. Quando virou a última folha, antes de Teobaldo virar a última colherada, finalmente lhe deu na cara, com aqueles olhos que pareciam redemoinhos de raiva, ou uvas inflamadas.

— Não dormi essa noite pensando em você, seu bosta!

Teobaldo continuou quieto. Queria que ela o xingasse de cada palavra, que ela pisasse em seus ovos usando um tamanco de madeira, que ela pegasse seu coração entre os dedos e espremesse até o músculo virar sangue também. Queria que ela fosse uma assassina, uma mula-sem-cabeça, uma messalina.

Mas não, aquela inútil o olhava com uma expressão amante no rosto, pronta para resignar-se, esperando as explicações, quaisquer que servissem, querendo resgatá-lo, regá-lo com suas lágrimas e recuperá-lo. Ele queria morrer, mas não queria isso, não merecia isso, não queria isso, não merecia isso, repetia isso, estava perdendo de novo o controle. Bebeu o resto da água de um gole só, sofreu com isso, continuou quieto.

— E você não me fala o que está havendo? O que acha que sou, Teobaldo? Acha que sou seu anjo da guarda? Como quer que o ajude se não sei nem o que há com você? Eu o amo, quero ajudar, mas você é uma esfinge. Você é… um alcoólatra? Que depressão o jogou nessa fossa? Você não era assim antes, você nem bebia, você tonteou de beber martíni na primeira vez que saímos, falando coisas engraçadas. Eu gostava tanto de você daquele jeito simples, mas gosto de você de qualquer jeito, quero poder ajudar você de algum jeito…

As palavras saíam, meio sem sentido, repetitivas, na lenta imprecisão do destempero controlado. Maria lhe vinha à cabeça: aquela sim, jamais se rastejava por um homem como Margarida lhe fazia. Mas Maria tinha ido embora e ele nem sabia onde jazia. Era Margarida que ali estava, amando-o, implorando apenas que ele permitisse. Mas Teobaldo era um crápula, tinha que ser. Margarida não o merecia, ela precisava odiá-lo enquanto ainda era tempo, precisava deixá-lo, destruí-lo, esquecê-lo, casar-se com um que não fosse verme, lento, poça, lama.

“Chega de anjos” — berrava a sua mente. Mas a boca boboca babava, balbuciava. Repetia-se em colisões de consoantes, ou talvez em gaguejar garatujado de alguém que não rascunha as frases que diz. Ficava lá em silêncio, possesso, doloroso, querendo Maria e tendo Margarida. Maria, a amada. Margarida a amante. Não, amante de Maria, marido de Margarida. Por amor, por dinheiro. Abandonado, uma fuga para o estrangeiro. Ele ali, jogado no subúrbio, joguete de uma mulher como ele, não de uma exótica princesa. O vazio que ficara na saída de Maria era uma treva que quase o recobria, que destruía seu casamento e anestesiava sua vida. Bebia. Não porque o álcool o chamasse, mas porque morria, ou melhor, porque era o que queria. Não buscava torpor, mas o choque, ou um escroque que o cobrisse de pancada durante a anestesia.

Quando finalmente sentiu o efeito do alho nos pulmões, o calor do mingau se espalhando pelos intestinos vazios, recobrou os sentidos. Pela terceira vez em dois anos. Estava vazio, mas não estava mais embriagado, só doía.

— Eu não mereço isso que você fez comigo, Margarida — foi o que disse.

— P-perdão — foi a estranha, tímida, resposta.

— Estou dizendo que eu não sou digno de você!

— Ah…

Por um momento ele não percebeu. Mas depois teve uma sensação de estar olhando para aqueles exercícios de xadrez que apareciam no jornal. O silêncio naquela cozinha continuava cavernoso, só um pouco mais denso. Ouvia-se o jornal estalar sozinho, com o peso do ar que o apertava na mesa. E os olhos de Margarida, mesmo tão negros quanto antes, mesmo ainda parecendo poços de piche, enigmas esféricos, jabuticabas, todas essas coisas poéticas e precárias que se usa para dar dignidade à simplicidade de um corpo de carne, precário e decadente, que abriga esses sonhos nossos, única coisa diferente, motivo solitário de existirem versos, indústrias, guerras, todas essas coisas grandes e bonitas que duram para depois.

— Que diabo está falando, Margarida?

— Que diabo está falando, Teobaldo?

Teobaldo levantou da mesa bem devagar. Movendo cada músculo tão leve que parecia um beija-flor dançando para uma margarida. Dirigiu-se ao quintal dos fundos, deitou na espreguiçadeira e ficou olhando as hortaliças que cultivava nas horas vagas, o pequeno gazebo de madeira, todo belo de ornamentos, que encomendara ao primo Anastácio, que tinha sumido ganhando a vida na Europa com seus entalhes em madeira. Por que diabos gringo gosta tanto de coisas entalhadas em madeira?

Carros passavam pela rua, escondidos pelo muro de quatro metros, monstruosidade de concreto financiada pelo FGTS para consolidar o lar contra os vizinhos. Margarida não saiu com ele. Ficou lavando a louça e o faqueiro na pia da cozinha. De vez em quando caía uma faca ou uma colher, coisas que acontecem. Por azar quebrou-se um dos pratos de louça também — justo aquele em que tomara a sopa — mas era um dos baratos.

O domingo foi escorrendo pelo céu acima, esquentando a laje de cimento que forrava o caramanchão mal arrumado onde fora o churrasco do casamento de Anastácio com Danila, meses antes. Meses antes de partir-se Maria.

Por fim, quando deu fome, quando o sol chegou até a espreguiçadeira, levantou-se dela suado e salvo. A culpa se partira também. Maria que se fodesse, a vida era mesmo uma merda, melhor limpar do que deixar que fugisse ao controle. Chegou na cozinha e ainda achou Margarida, coitada, esfregando pratos e talheres. Pelo tempo que passara devia ser a décima vez que esfregava a esponja em cada garfo.

— Margarida, tenho pensando num monte de coisas, sabe. E tomei uma decisão muito importante hoje.

— O q…? — ela nem conseguia terminar a pergunta.

Teobaldo imaginou o que aconteceria. Filmou cada cena do futuro não acontecido. Margarida que abdicara de uma carreira para poder criar os dois filhos, vivendo de pensão que ele nem sempre poderia pagar em dia. A casa, herança tão afortunada de uma tia, vendida para pagar as custas do desquite, cada um vivendo em seu apartamento. Pensou na barba grisalha que tinha de manter raspada, nos vincos que atrapalhavam a sorrir, nas varizes que rasgariam mapas rodoviários em suas pernas. Futuros dias de pais e mães condensando culpas e acusações de coisas meio acontecidas. Tudo isso parecia pesadelo. Maria tinha ido embora. Tinha ido tarde, ela que fodesse, a piranha, com todos os frescos estrangeiros que encontrasse, que não voltasse nunca depois de usada e jogada fora, que achasse um que a fodesse bastante para ela não querer mais sair daqueles lugares frios aonde Teobaldo jamais iria. “Chega de anjos”.

— Eu entro para os Alcoólicos Anônimos amanhã.

Margarida desprendeu um suspiro imenso e o abraçou com força, manchando de espuma de detergente o pijama que ele ainda vestia. “Chega de anjos” — pensou Teobaldo. Deixou-a terminando de guardar a louça e foi assistir alguma coisa na televisão. Algum jogo idiota de campeonato estrangeiro (talvez Maria estivesse na arquibancada ao lado de algum afortunado gringo, careca e impotente, exibida como troféu, impunemente). Enquanto olhava a tela, resvalava com o olhar a foto da família, parecendo torta. A semente do diabo, plantada por um curto diálogo, ribombava em sua mente apenas com uma determinação quase demente: “Bentinho era imbecil”.

E nessa repetição a saudade de Maria morria e crescia com força a crença indiscutível, de que merecia e queria Margarida.


23
Ago 10
publicado por José Geraldo, às 22:48link do post | comentar

Vou andando sozinho pela escuridão da noite. Volto para casa com os ouvidos amortecidos e com amargura na boca pela décima vez no mês numa noite morna de outubro ou novembro. Subitamente eu me dou conta de estar imerso num silêncio sibilante e imenso que apenas raros carros cortavam.

Com passos duros e pernas doloridas, cruzo a Ponte Nova e subo em direção à praça, onde já quase não há ninguém agora, salvo três fregueses de uma lanchonete comendo cachorros quentes e um bêbado gritando palavrões.

Mais uma vez eu saio do caminho reto para passar perto da casa de Maria Alice. Mais uma vez a esperança de vê-la à janela, mesmo sabendo que é alta madrugada e que as janelas estão fechadas. Evidentemente quando entro na Nogueira Neves constato as lâmpadas apagadas. Conforme esperava, mas mesmo assim alguma coisa morre comigo.

Depois de estar parado à esquina por alguns minutos remoendo velhos dramas e letras de canções do Roberto Carlos eu resolvo atravessar em direção ao Meia Pataca.

Noto que vem atrás de mim a patética figura maltrapilha que atrapalhava a paz dos filhinhos de papai junto à ponte. Apresso o passo, pois o espantalho bêbado que me segue não promete ser boa companhia. Sua roupa amarrotada mostra que esteve deitado em alguma calçada e seus olhos cavernosos devem estar vermelhos de sangue como os de um lobisomem.

Mas é tarde para fugir e ele me grita:

— Ei, você aí!

Insisto em fingir que não o ouço e ando mais.

— Ei! Pare para ouvir a história do poeta! Insisto no silêncio e na pressa.

— Ei, eu sei quem você é. Pare que eu estou precisando te contar umas coisas!

Eu paro apenas o tempo bastante para responder:

— Desculpe, São três da manhã! Quero dormir, outro dia.

Ele xinga misturadamente e se apressa.

— Meu jovem você ganha muito em me ouvir. Pare! E eu vou lhe contar uma história que vale a pena ouvir…

Diz o “pare” com tal determinação que eu paro. Incrível minha disposição a obedecer a ordens dadas seja por quem for… Desde que no tom de voz correto.

De longe eu sinto o inconfundível hálito de cachaça barata, cigarro e cáries. O cheiro entranhado em suas roupas suadas e amarrotadas evoca antigos vícios e perfumes de prostitutas.

Ele tira do bolso um inacreditável lenço e enxuga a testa. Depois pigarreia com como que para despertar do álcool que lhe nubla a razão e me olha coma desolação de quem mal pode suportar a compaixão que desperta.

Sorri. Mostrando-me diversos dentes podres, tortos ou ausentes. E se apresenta:

— Conheça o poeta maldito dos regos e becos da cidade.

O alcatrão de uma vida de fumante lhe fazia respirar chiando e o peito cabeludo e avermelhado, exposto pela camisa aberta, subia e descia como um fole.

— Eu te conheço?

— Se não me conhece vai me conhecer. Muitos já me conheceram, até biblicamente falando. Sou um cara muito conhecido, ainda que a maioria tenha preferido esquecer.

Ele acende mais um cigarro e o fuma soltando baforadas quase artísticas pelo ar. Observa enquanto se desfazem os anéis e mastiga umas palavras:

— Só que hoje eu sou um merda e não tenho ninguém com quem conversar nessa porra de mundo. Agora eu não tenho mais ninguém para foder a minha bunda, ninguém para ler meus versos, ninguém para chorar no meu enterro!

— E onde que eu entro nessa história?

— Até que eu queria que você entrasse, entende? Mas eu fico satisfeito se você for testemunha.

— Testemunha do quê?

— Cala a boca e escuta. Que eu vou te contar minha história. Desde o dia em que dei o cu pela primeira vez debaixo dum pé de mamão no fundo do quintal da escola.

— Só que eu não tenho nada a ver com isso. Se você é poeta, por que não transforma isso em poesia?!

— Sou um poeta moderno. Hoje poesia não se faz mais com versos, e sim com verbas. Para pagar a edição, para o coquetel, para mandar os 150 exemplares às 25 bibliotecas, aos 35 leitores e aos 70 sábios. E dar o resto para 5 amigos e mais uns 15 bobos. Não sobra tempo para falar da vida e de sentimentos. Ser poeta é difícil: não se pode ter sentimentos.

— É mesmo? Parece que os poetas de hoje em vez de fazerem versos enchem o saco dos amigos com suas histórias pornográficas e sua ressaca?

— As únicas novelas que me interessam são as da globo, porque são “fenômeno sociológico”. As outras são alienadas.

— Então inventa algo novo para fazer.

— Hoje em dia os campos estão restringindo as possibilidades, já fizeram tudo: só nos resta aplaudir e ler o cânon.

— Já me disseram uma vez que a única saída para a poesia é entra no consultório do analista?

— Ou entrar pelo cano. Poeta é um sujeito teimoso que ainda não descobriu que é ridículo. É um riquinho com vontade de aparecer que se acha filósofo…

— Mas eu continuo não tendo nada a ver com isso. E francamente eu nem consigo entender a metade do que você diz.

— Mas continuo te mandando calar a boca. Ou não quer saber o que fiz quando fugi de casa e fui pro Rio de Janeiro?

— Não. Talvez até eu achasse engraçado ler isso num livro. Mas a essa hora da madrugada…? Eu quero mais é ir para minha casa dormir em vez de ficar escutando um bêbado.

— Eu quero falar de minhas primeiras taras, porque eu amava Cassandra Rios e Adelaide Carraro. Eu quero falar de orgias e da vinda do Messias.

Nisso um casal passou por nós de braços dados e vivendo tranquilamente o seu idílio. O poeta interrompeu a beatitude em que iam e lhes gritou ironicamente:

— E aí, Messias, ‘tá lembrado de mim?

Messias não respondeu.

— Que é isso, Messias, por que esta cara de quem me comeu e não gostou?

Eu ri discretamente, não querendo estar na pele do Messias. Mas ele simplesmente fingiu que não ouvia nada e seguiu seu rumo levando pelo braço a namorada.

— Eu lhe dizia — disse o Poeta — da dificuldade que era para um rapaz ver uma buceta pela frente em 1962…

Não era isso que ele estava falando, mas eu não estava a fim de alongar o assunto e continuei escutando.

— Para quem teve de fugir pelo pasto com os cachorros da polícia no encalço até que eu me saí bem no Rio de Janeiro. E antes que você pergunte, eu tive que fugir daqui porque o pai do Messias não gostou de saber do que a gente fez…

Então fez uma pausa, como se para puxar outro fio da meada em que a história havia se enredado e reentrou na mesma sucessão de desencontros que fora a sua vida.

— Em que língua é essa música que estão tocando por aí? — perguntou enquanto apurava o ouvido.

— Sei lá. Inglês?

— Não interessa. O que interessa é que eu sou do tempo em que se podia oferecer uma música porque se sabia o que estava tocando. Você sabe o que essa daí diz?

— Não.

— “Don’t want a short-dick man”

— Continuo sem saber.

— “Não quero um homem de pau pequeno!”

Eu ri sem achar graça nenhuma em minha ignorância. Então ele me consolou:

— É engraçado, mas você já reparou que hoje em dia é mais importante o caboclo saber inglês que português?

— E é o que parece, ou não é?

— Isso porque ninguém se preocupa em fazer o Brasil crescer. E eles ficam nos colonizando com esse lixo. E mais ainda. No meu tempo não era era risco de vida tocar de verdade o amor, embora isso fosse raro.

— Não existia zona naquela época?

— Eu nunca tive dinheiro para pagar uma vadia, por isso eu quis ser a vadia…

Outro riso constrangido:

— E então?

— Você gosta de rock?

— Bastante.

— Gosta de Pink Floyd?

— É meu favorito.

— Vejamos se você entende do riscado.

— Ah, de rock eu entendo.

— Você já foi ouvir Pink Floyd num alto de morro à noite, junto com um bando de doidões, fazendo suruba, fumando maconha e ouvindo o “disco da vaca”?

— Não!

— Então você não entende nada de Pink Floyd.

— E nem de poesia, pelo que você me falou.

— É. Mas a diferença é que você não faz a menor questão de entender de poesia…

— Ninguém faz.

— Mas devia. Só com a poesia você pode combater a imbecilidade que há no mundo.

— Mas você não me disse agora há pouco que a poesia no mundo de hoje virou uma coisa imbecil?

— Só que isso ainda não quer dizer que virou crime tentar fazer poesia direito…

— Como você faz?

— Não. Eu não. Eu sou um idiota que sempre correu atrás da opinião alheia. Acho que até homossexual eu virei porque era chique ser bicha na cena literária dos anos 70…

— Ah, nisso eu não acredito. Ninguém dá a bunda sem querer. Dizem que dói demais para um cara fazer isso sem ser de propósito.

— Depois que você fica acostumado é muito gostoso, pode ir por mim que é bom!

— ‘Tô fora dessa!

— E de tudo isso que eu vivi, não guardei nada a não ser o prejuízo dos anos de vida que eu perdi sem ganhar dinheiro e sem virar herdeiro de fazenda. Não, não achei nenhum amor eterno para esquentar a minha cama na velhice, não tive nenhum filho para me botar no asilo.

Diante do meu silêncio ele continuou.

— Todo mundo deixou sua marca em mim. As as putas me deram suas gonorreias, os farmacêuticos, por sua vez, me encheram a bunda de Benzetacyl. Agora estou contando os últimos dias, com um enfisema que já é meio caminho andado para um câncer. Cheirei cocaína até perder o olfato, dei o cu até ficar com hemorroidas e agora eu me sinto um cocô que cagaram neste cu-de-mundo.

— E o que vai fazer para mudar isso?

— Mudar? Que nada! Eu vou é cumprir o meu destino! Chegou a minha Hora Mágica. Devo me juntar aos meus!

E rapidamente, antes que eu possa tentar impedir, atinge a ponte de cimento sobre o Meia-Pataca. De pé no corrimão ele vocifera, como o Nero de Henryk Sienkiewicz:

— Que grande artista o mundo vai perder.

Então abre os braços compridos contra o luar, como um morcego pousado lá e lentamente se deixa cair na lama rasa e fedorenta da margem.

Das profundezas cheias de bosta e espuma industrial eu ainda o ouço dizer, com voz rouca e raivosa:

— Merda! Ponte errada!

Escrito entre 2002 e 2003


16
Ago 10
publicado por José Geraldo, às 19:43link do post | comentar

Estávamos bebendo cerveja e jogando conversa fora. Assunto vai e assunto vem, acabamos chegando a falar sobre a dubiedade do caráter humano. Aí algum humorista presente à mesa em dia de péssimo humor atalhou:

— O ser humano também devia ter cauda. Assim ficaria mais fácil identificar o prazer, a alegria, a dor, a contrariedade ou o cansaço. Não ia ser tão frequente esse sofrimento de decepcionar ao outro por não saber como reagir.

— Quem tem cauda é cachorro, ó João. Deixe de ser besta porque o único rabudo aqui é você!

— E você quer um animal mais afetuoso que o cão? Pare para observar esta pequena maravilha que é a raça canina. O cão de um homem lhe traz mais alegrias que seus filhos!

— Sai dessa! Cão é cão, filho é filho!

— Concordo com você: cães nunca tiram notas baixas na escola, nunca fazem birra na hora do almoço porque não querem carne ou não gostaram dos legumes, não insistem pedindo sorvete quando os levamos para passear mesmo que não tenhamos dinheiro, não precisam ouvir historinhas para dormir, não precisam ganhar presentes caros no Natal, não pedem carro emprestado para sair no fim-de-semana, não chegam de madrugada cheirando a álcool, não usam drogas, não nos dão desgosto quando adotam uma opção sexual diferente, não causam desgosto em ninguém quando tiram a virgindade da filha do vizinho, quando engravidam vagabundas não há problema de pensão alimentícia, etc. e etc.

— Mas cachorro é um bicho. E ainda por cima um bicho fedorento. Você não pode beijar cachorro…

— Mas se beijar seu filho pode dar sapinho ou cáries.

— Cachorro não sabe seu nome…

— Mas não se ofende quando você esquece o dele.

— Cachorro nunca vai ser nada na vida e te dar orgulho…

— Mas também não vai virar nem maconheiro nem puta.

— Ah, João, assim não dá para conversar com você!

— Mas o João aqui tem razão num ponto — entrou na conversa o Frederico, que andava quieto só escutando — cachorro é um bicho que sabe fazer companhia ao dono. Vira-latas principalmente. Nunca vi nada que se compare a um.

— Mas o sentimento que se tem por um cachorro é um sentimento meio mercenário, meio seco demais. Eu não conheço ninguém que dê a vida por seu cachorro…

— Alto lá que eu conheço! — atalhou o João.

— Algum demente, só pode ser!

— Nem tão demente assim. Um sujeito perfeitamente normal até o dia em que tudo aconteceu. Quer ouvir a história?

— Que história?

— Eu já contei essa história numa crônica que escrevi faz uns dois anos para o Correio da Cidade. Você vai me dizer que não leu na época?

— Não tenho o hábito de ler os jornais daqui. Eles não são jornais com J maiúsculo. Se juntar os oito não dá um.

— Discordo! — interveio outra vez Frederico — você está sendo injusto. Não se pode querer que exista aqui um jornal como O Globo ou o Jornal do Brasil. Aliás, aqui nesta cidade quase não acontece nada. De que ia adiantar querer fazer um Jornal com jota maiúsculo, como diz você?

— Estamos saindo do assunto — relembrou o João.

— Então conta logo a tal história do sujeito que morreu por causa de um cachorro — pedimos.

— Bem, ele não morreu exatamente por causa de um cachorro. Foi mais ou menos assim…

“O sujeito era empregado de uma fazenda e levava uma vida normal de tudo. Ele tinha um cachorro vira-latas meio-perdigueiro e meio-terrier que lhe acompanhava para cima e para baixo. Um belo animal, manso como só ele.

“Um bicho amoroso que até parecia meio gente também: brincava com os filhos do cara sem nunca machucar nenhum. Como era grande, as crianças menores costumavam tentar cavalgá-lo. Ele sempre saía de baixo com cuidado e nunca nem rosnou.

“Até o dia ficou doente. Não se sabe qual doença. O animal foi ficando tristonho e arredio e todo mundo achou que houvesse algum problema. Parecia ser vermes, caso que poderia ser facilmente resolvido com meio comprimido de Ascaridil dissolvido no leite. ‘Mas eu não vou dar remédio a meu cão sem a opinião de um doutor — disse ele.

“Ele gostava muito do cachorro e resolveu procurar ajuda.

“Claro que foi difícil encontrar. Naquela época, idos de 1970 pouco mais ou menos, não havia veterinário na região a não ser os que trabalhavam junto às cooperativas de produtores de leite. Mas é claro que estes estavam interessados em vacas ou, na melhor das hipóteses, em cavalos, porcos, bodes, ovelhas, etc.

“E é claro também que estes veterinários atendiam somente ao particular ou então por conta das cooperativas. O nosso amigo estava numa situação difícil porque não podia pagar a consulta, e ninguém se importava com a doença do seu cachorro.

“À medida em que o tempo foi passando e o animal foi piorando, o cara foi ficando cada vez mais alterado. Até que um dia chegou no consultório de um veterinário e atirou sobre a mesa o cachorro já meio lambuzado de fezes — porque havia um pouco de diarreia também — e um maço de notas de pequeno valor, pouca coisa, na verdade. Ele olhou fixamente nos olhos do homenzinho careca e deixou sair de uma só vez: “O doutor vai curar o Baruio ou não vai?”

“E disse isso com tanta convicção que o veterinário até se assustou. Mas aí veio a crueldade. Em vez de mandar que o enxotassem do consultório com aquele animal fedido e sujo. O veterinário quis divertir-se com o sofrimento alheio.

“Mandou que lavasse o cachorro num tanque dos fundos e só depois o trouxesse de volta. Com o cachorro lavado e esticado sobre a mesa de trabalho, o veterinário tomou uma injeção de vermífugo das mais potentes e aplicou no bicho. Vermífugo para boi, vejam vocês. E para complementar o mal feito, ainda pegou um vidro de azeite de mamona…

— Azeite de quê? — perguntou o Frederico, que era carioca e não conhecia muito das coisas da terra.

— De mamona. Antigamente se usava isso para dar purgante em animais, e às vezes até em gente.

— Cruz-credo!

— Mas deixe eu continuar.

“Ele tacou todo o azeite pela boca abaixo do cão usando um funil de plástico. Como o vidro estava sem rótulo, foi só na hora em que o líquido já estava descendo viscoso pelo esôfago do animal que seu dono percebeu o que estava acontecendo.

“Indignado ele interpelou: “Doutor, o senhor não devia estar dando purgante pro meu cão, ele já ‘tá com caganeira demais.”

— Você está enganado, este purgante vai ajudar a limpá-lo por dentro.

— Que revoltante — inclui Frederico.

“O cara também não gostou nem um pouquinho e começou a discutir com o veterinário e a falar muitas palavras duras com ele. Até que o veterinário perdeu a paciência e resolveu mandar o cara ir plantar batatas.

— Não é justo! — adicionei.

— Cale a boca que comunista não entende de justiça, e me deixe terminar:

“Foi preciso chamar a polícia para tirar o cara de lá. E os policiais, como era costume na época, aproveitaram para dar uma surra de cassetete no pobre coitado. Tiveram o requinte de dar umas bordoadas no cachorro também.

“Nosso ar de desaprovação já estava a ponto de nos fazer declarar amor aos cães, contrariamente às coisas que havíamos estado dizendo minutos antes.

“Aquela noite ele passou ao relento na cidade porque já era muito tarde para voltar para casa. Passou-a ao lado de seu cão, afagando-lhe a cabeça e lavando-o continuamente a cada jato de fezes misturadas com lombrigas que o animal expelia.

“Milagrosamente, ou talvez porque o veterinário tivesse — sem querer — feito a coisa certa, o cão sobreviveu.

“Quando o dia amanheceu ele se pôs a caminho de casa. Chegou ali pela hora do almoço, cerca de meio-dia e meia, mais ou menos. Infelizmente o seu sofrimento mal havia acabado de começar…

“Sua mulher o esperava à porta quando ele chegou. Ela estava impaciente e não aceitou desculpas e nem explicações. Xingou-o de todos os nomes que você conhece e mais alguns que inventou na hora. Botou o marido para fora de casa dizendo que era um absurdo que um sujeito passasse três dias fora de casa atrás de remédio para um cachorro inútil que nem doente estava.

“Ele então procurou seu patrão para perguntar se podia construir para si outra casinha de pau-a-pique — já conformado em procurar outra cara-metade. Mas a sorte madrasta ainda não tinha terminado. Nos três dias em que estivera fora, o patrão havia decidido despedi-lo e já havia outro trabalhando em seu lugar. Tamanhos eram os requintes de crueldade do destino que o seu substituto no serviço havia também passado a substitui-lo na cama da esposa.

“Não havia para onde ir e nem o que fazer. Tinha de deixar o próprio filho nos braços da mãe adúltera porque não tinha como conseguir ainda um lugar para dormir a noite.

“Daquele dia em diante ele não foi mais o mesmo. Mas ainda queria consertar a vida. Passou a andar pelas estradas em companhia do cachorro pedindo emprego nas fazendas por que passava e, se não davam o emprego, pelo menos um prato de comida e uma caneca de leite.

“Isso não o ajudou em nada a melhorar a sorte. Ninguém achava boa ideia contratar um homem tão estranho; sujo e usando sempre a mesma roupa porque era apenas uma muda de roupa que possuía — já que nada pudera retirar de casa.

“O cachorro era outra razão de desconfiança. “Por que alguém andará pelas estradas levando um animal desses?” — a gente se perguntava.

“Quando o dono estava dormindo, o cão lhe montava guarda com fidelidade extrema. Atacava com toda ferocidade qualquer um que tentasse se aproximar. Com o tempo circulou a notícia de que havia um mendigo louco vagando pelas estradas com um cachorro zangado. Logo se disse que o próprio mendigo teria contraído a hidrofobia. Definitivamente as portas da vida se fecharam para o pobre coitado.

“Um dia um fazendeiro local se cansou da história e mandou chamarem o hospital psiquiátrico do município vizinho. Internaram o mendigo louco sob seus raivosos protestos, em que insistia que não era louco, que tinha mulher e filho, que queria um emprego para ganhar a vida e que não era crime ter um animal de estimação.

“Sob os protestos também do cão. Foi preciso dar tiro para tudo quanto é lado para afugentá-lo. Mas não o mataram porque ele era esperto: estava acostumado a caçar e sabia o que eram espingardas.

“No hospício lhe deram o tratamento-padrão da época: eletrochoques, barbitúricos, sedativos e surras. Sua revolta contra o fato de o estarem tratando como um louco só fez com que mais ainda lhe dessem o chamado “sossega-leão”. Até que finalmente ele deve mesmo ter perdido o juízo.

“Depois que ele se acalmou e se conformou com a sua situação, as coisas ficaram mais fáceis e dentro de poucos meses já o estavam pondo de volta no mundo.

— Mas para quê? — perguntei — o cara não tinha mais família, não tinha emprego, todo mundo o chamava de doido. Que vida o coitado podia ainda ter?

— Nenhuma. E foi exatamente assim que aconteceu.

“Pelo menos lhe deram uma muda de roupas nova e alguns trocados “para recomeçar a vida, agora que está curado”. Ele voltou à mesma região onde antes vivera. Queria reecontrar o filho que deixara nos braços da mãe com menos de dois anos de idade e queria também procurar pelo seu cão.

“As coisas começaram, então, a ficar ainda mais tristes para ele. Imaginem vocês qual foi a reação da ex-mulher ao vê-lo chegar, ainda de cabeça raspada?

— Foi ao portão recebê-lo rindo? — disse Frederico.

— Não. Não acredito nisso — disse eu. Esse tipo de história nunca tem final feliz.

— Não tem mesmo.

“Ela trancou-se em casa. Trancou-se com o filho e mandou que pedissem socorro ao patrão porque o louco de seu ex-marido estava perambulando em torno da casa querendo roubar-lhe o filho.

“Alguns empregados da fazenda vieram e o expulsaram a chutes na bunda. E o pobre estava de novo jogado ao vento.

— Parece mesmo que o cachorro era o único amigo que ele tinha. Pobre diabo — disse eu.

— Tinha. Você disse bem. Porque já haviam encontrado uma maneira de acabar com a raça do Baruio.

“Mais ou menos nos mesmos dias em que o haviam levado ao hospício, algumas pessoas resolveram tomar o encargo de livrar a região do “cachorro do louco” e começaram a pôr-lhe armadilhas. Muitas falharam até que uma “bola” o pegou.

— O que é uma “bola” — interrompeu o Frederico.

— Xi, o carioca ‘tá vendido outra vez… — disse o João.

— Uma “bola” — eu expliquei — é um pedaço de comida, geralmente carne, com veneno dentro. Se usava lá na roça antigamente para matar o cachorro dos outros quando ele se acostumava a vir comer nossas galinhas.

— Pois deram veneno assim?! Isso não se faz! Covardia!

— Muita covardia — disse João. Mas era uma coisa necessária quando o dono não tomava providências para impedir seu cão de alimentar-se no galinheiro do vizinho. Mesmo assim, muita covardia. E no nosso caso foi algo muito gratuito. O tal cachorro o que fazia era andar pelas estradas uivando de saudades do dono e caçado um animalzinho aqui e ali para comer: piriá, jacu, tatu, etc…

— Mas então deram uma bola ao cão… — insisti.

“A vida do pobre homem, a partir de então, passou a resumir-se à procura por seu cão. Ele nunca ficou sabendo que o haviam matado e nem como fora. Acredito que depois de um tempo ele começou a desconfiar, mas à medida em que essa desconfiança ia se formando ele ia perdendo a noção das coisas e se perdendo nos labirintos de si mesmo.

— Mas não morreu por causa do cão.

— Ah, foi mais ou menos.

— Um dia alguém, de gaiato ou querendo vingar-se, disse-lhe que o cão estava preso na propriedade de um certo Antônio Alves. Isso parece que renovou as energias do coitado. Achando que sabia do paradeiro do querido animal ele passou a viver em função de fazer planos para ir buscá-lo.

— Chegava nas vendas, nos bares, nas esquinas, em todo lugar onde houvesse concentração de pessoas e propunha: “Quem quer me arranjar uma arma para eu ir matar o Tõe Arve e pegar meu cão?”

— Um dia lhe deram a arma. Satanás sabe como escrever torto por linhas tortas. Apareceu um louco mais louco que o louco e lhe deu uma arma de fogo. E, de garrucha à mão, ele se dirigiu à fazenda do tal “Tõe Arve”.

— E o tal “Tõe Arve” tinha alguma culpa na história? — perguntamos os três.

— Provavelmente nenhuma porque era um sujeito do tipo que não se metia na vida dos outros por nada. E sua fazenda era uma das fazendas aonde o pobre “louco” nunca fora nem buscando emprego e nem pedindo comida, já que ficava num canto ainda pouco desenvolvido perto de um mato.

“Logo a notícia correu de que o louco estava indo armado à fazenda do Antônio Alves para matá-lo e roubar seu cão. Chamaram a polícia e o “louco” foi perseguido por um batalhão de soldados com fuzis em punho.

“Quando ficou sabendo o que estava acontecendo ele ficou apavorado. Odiava policiais, mas não gostava de se meter em encrenca. Ou talvez tivesse lhe passado pela cabeça um raio de serenidade e lucidez no meio da tempestade de loucura em que vivera por meses.

“Decidiu abandonar a sua busca e ir render-se. Foi em direção ao lugar onde, lhe disseram, os soldados estavam procurando.

“Quando os viu, gritou-lhes: “Ei, estou aqui!” e visivelmente mostrou-lhes a arma que pretendia deixar cair ao chão. Mais tarde se soube que ele sempre morrera de medo da polícia, mesmo antes de ter tomado a surra do começo da história.

“Mas antes que tentasse qualquer coisa já o haviam enchido com uma rajada de tiros de fuzil que não lhe deixou nenhuma parte do corpo intacta.

— Que revoltante — disse Frederico. Mas como você sabe que ele pretendia largar a arma?

— Por que eu era um dos soldados naquele dia. Quando eu olhei para o homenzinho que apareceu no alto de uma elevação mostrando uma garrucha eu entendi imediatamente que aquilo não era um gesto de ameaça, mas de rendição.

— Essa é a sua opinião.

— Ele poderia ter chegado atirando.

— Isso é verdade.

Então nos demos conta de que toda a alegria inicial havia se dissipado à medida em que a história fora desfiada pelo João.

— Alguém sabe o nome do pobre coitado?

— Dizem que ele se chamava Pedro.

— Pedro de quê?

— Sei lá. Talvez Pedro Silva, mais um dos muitos que há.

— Vamos erguer um brinde em memória desse cara. E desejar que na próxima encarnação ele não nasça para viver outra “vida de cachorro” como essa.

— Não, meu amigo — disse o João — não dá para levantar um brinde ao homem e esquecer a história. Ela está queimando dentro de mim faz quinze anos e nada a apaga.

— Você atirou também?

— Sim.

— Por quê?

— Depois que eu vi que todos haviam atirado e ele ia morrer mesmo de tanta bala, achei melhor dar um tiro porque o sargento estava me olhando feio.

— Solidariedade no crime — observei.

— Se algum de nós não atirasse poderia depois recriminar aos outros, especialmente porque quase que imediatamente todo mundo percebeu a inutilidade e o absurdo daqueles tiros.

— Então você abdicou do direito de apontar o erro alheio, errando de propósito junto com eles? — disse Frederico.

— João — eu acrescentei — você é pior que os seus companheiros. Eles erraram, você calculou.

— Vocês vejam se vão à merda! — disse João e se levantou da mesa e foi embora.

Troquei um rápido olhar com Frederico.

“Merda de mundo esse em que gente de bem às vezes se vê obrigada a fazer maldades para continuar vivendo!”

dezembro de 2003


09
Ago 10
publicado por José Geraldo, às 22:10link do post | comentar

Filipe achou-se inconsolável na semana seguinte à mudança de Amadeu para Janaúba. Acho estranho ter um sentimento assim então. Porque no dia que soubera da promoção do amigo, condicionada à transferência, aconselhara-o positivamente no sentido de aceitar. Ajudara-o a fazer as malas e mantivera vivo o seu entusiasmo nos momentos de incerteza em que pensava na distância da família e dos amigos e na necessidade de refazer tudo em uma cidade estranha.

Não pensara que sentiria tanta e tão súbita saudade. Haviam sido sete anos de convivência, ou mais. Com direito a saírem quase sempre juntos pela noite a dançar, beber e “caçar putas”. Sete anos ou mais de visitas mútuas freqüentes e um grau de entendimento que só almas gêmeas têm.

Tinham em comum o gosto pela mesma música, pelas mesmas comidas, pelas mesmas diversões. Vestiam-se parecido, fizeram a faculdade juntos, trocavam livros, etc. Haviam sido parceiros de copo, parceiros de buraco, companheiros de chapa na eleição do Diretório Acadêmico, sócios numa empresa que faliu, cúmplices numa fraude que ninguém nunca descobriu, sócios numa mulher que sempre pensou que a ambos enganava.

Nos primeiros dias a sensação de ar novo entrando em casa foi maravilhosa. Uma amizade após tantos anos de intimidade se torna também um pouco sufocante. Surgem dúvidas, afloram apreensões e instintos estranhos com imposições que trazem traumas. Mas quando chegou domingo de manhã bateu no peito uma insegurança estranha que o entristeceu mais que a liberdade falsa de antes.

Passou o primeiro dia enfronhado em livros, assistindo inúteis programas de televisão e comendo bolo de baunilha com requeijão. Nenhum medo de engordar. Apenas vontade de satisfazer vontades.

A semana passou chuvosa e arredia, sem a certeza de um ouvido perto para receber a queixa e quando atingiu a sexta-feira, foi com certa pena que abandonou seu posto de trabalho e se pôs a andar pelas calçadas úmidas levando uns olhos ocos e uns sentimentos misturados. A casa o recebeu com um cheiro de mofo, lembrando-o do dia em que estivera hospedado num hotel barato à beira-mar. Ouviu as gotas do chuveiro. O cheiro insistiu com necessidade de estender a toalha após o banho. Ela estava molhada dependurada no prego atrás da porta do banheiro.

Despiu-se ainda na copa e foi executar sua premeditada rotina: escovar os dentes, masturbar-se e tomar banho. Havia a premente necessidade de se preencher com cerveja e salgadinhos. O sabor amargo e frio veio à lembrança e Filipe salivou de desejo, quase sentindo a espuma em seus lábios. Foi perambular hesitante pela noite e acabou voltando para casa cedo, sem trocar palavras com seus semelhantes.

Acordou para o sábado com a certeza de não estar vivendo, quebrou o jejum com café solúvel puro, deitou-se um pouco diante da TV para assistir desenhos animados e horas depois descobriu-se com fome.

Teve de sair para satisfazê-la, ainda que lhe repugnasse a idéia de o ser humano estar forçado à baixeza de interromper várias vezes por dia o fluir de suas atividades para preencher um vazio físico sem grandeza filosófica.

Estava tão insensível a prazeres vulgares que teria comido capim em vez de alface se lho tivessem dado. Mas comeu um prato comercial com um bife duro e batatas murchas e subiu de volta para seu apartamento disposto a esquecer a vida.

No fim da tarde despertou sentindo-se mais gordo e com uma preguiça imoral. Para espantá-la pôs-se a arrumar a casa até dar a hora de aprontar-se de novo para outra noite. Depois de outro passeio sem destino pelos lugares da moda, Filipe viu-se em casa sozinho e sem ninguém capaz de lhe satisfazer uma excitação quase animalesca que o subjugava. Acordou domingo cedo demais e foi caminhar pela avenida ainda coberta de copos de plástico e lama para espantar a dor de haver dormido de mau jeito e o sono insistente que impregnava os seus olhos. Comprou pão e uma pizza semi-pronta e voltou para casa decidido a escrever.

Sentou-se diante da escrivaninha, estalou os dedos amarelados de nicotina e se lançou às teclas desafiadoras de sua pequenina Olivetti. O tec-tec foi desembrulhando palavras casuais em sofreguidão que demonstrava o represamento das idéias, a estagnação dos sentimentos. As idéias relanceavam avassaladoras como se as comportas da mente tivessem sido abertas. Derramou poemas e pornografias com a mesma facilidade a que um dia fora acostumado.

Mas depois de contemplar as páginas cobertas de palavras não sentiu nenhuma dose de satisfação, embora se sentisse um pouco vingado por ter conseguido romper um bloqueio de meses. Levantou-se para tomar uma dose, pôs música a tocar e de repente descobriu-se sozinho num deserto entre papéis, poeira e música. Então foi dormir antes de anoitecer.

E a vida continua. Até para quem não sabe viver.


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