Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
23
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 21:46link do post | comentar | ver comentários (4)
Ontem, já no comecinho da madrugada, terminei de assistir, via YouTube, o filme “Stalker”, dirigido Andrei Tarkovsky, filmado em 1979, a partir de roteiro escrito pelo próprio diretor, baseado no romance “Piquenique na Estrada”, dos irmãos Bóris e Arcádio Strugatsky, gênios da ficção científica soviética. Romance este que eu já havia comentado elogiosamente aqui, não faz muito tempo.

Desde que lera o romance e ouvira falar do filme, minha obsessão foi encontrar uma forma de assisti-lo. Ficção científica soviética é algo que me interessa muitíssimo (aliás, toda a cultura soviética me interessa demais). Tanto a escrita quanto a que for filmada, cantada ou declamada em versos. Gosto de ficção científica, e mais ainda da que se fazia por detrás da cortina de ferro. Acontece que filmes de arte não passam na televisão brasileira, essa autêntica máquina de fazer doido, o que não dizer, então, de um filme de arte soviético de 1979! Felizmente a produtora estatal soviética Mosfilm, que ainda existe, fez um favor à humanidade e está digitalizando e remasterizando todo o seu catálogo e colocando no YouTube. Eu já tivera a oportunidade de assistir um filme de terror soviético chamado “Viy”, de 1967 (futuramente falarei sobre ele) e a experiência da estética da Mosfilm me impressionara muito.

Eu não estava preparado, porém, para encontrar o que Tarkovsky entrega neste filme. Duvido que alguém esteja — e é difícil explicar exatamente que tipos de impactos o filme causa em quem leu o livro, sem estragar o prazer de quem se proponha a assistir o primeiro ou ler o segundo. Não quero estragar este prazer, por isso tentarei ser econômico em minhas descrições.

Começo falando da trilha sonora, que é uma atração à parte.  Eduard Artemiev compôs a música, tocada em sintetizadores e instrumentos étnicos, e também compôs os ruídos ambientes do filme.  Sim, todo o som do filme, exceto as vozes dos atores, foi “composto” e “tocado” por Artemiev em estranhos sintetizadores artesanais ou usando métodos primitivos mesmo, como tambores, metais, pedras e canos. E muita água. Não tem uma cena seca no filme inteiro. Todo mundo molhado, úmido ou mofado, o tempo todo. Na sequência de abertura ouve-se música, no resto do filme a “trilha” sonora, totalmente atonal e sem seguir nenhum ritmo musical específico, se dedica a acompanhar a ação, fazendo-se presente nos ruídos incidentais (nem uma pedra cai no chão com um som natural), na respiração dos personagens e em interferências sonoras distorcidas que lembram os momentos mais experimentais do Pink Floyd em “Ummagumma”. O fato de Artemiev também ter feito os ruídos (em vez de o sonoplasta capturá-los no ambiente, ou coisa assim) faz o filme ter uma atmosfera surreal, irreal. Um filme no qual os únicos sons naturais são as vozes dos atores é algo que soa “de outro mundo” — e esta foi exatamente a impressão que Tarkovsky quis causar: dentro da “Zona” os sons são surreais porque ali as leis naturais estão afetadas por algo que o homem não entende. É preciso falar, então, deste fenômeno.

No filme de Tarkovsky se fala muito menos da natureza da “Zona” do que no romance dos irmãos Strugatsky, que já não fala quase nada dela. Apenas um diálogo entre os protagonistas, no qual o “professor” explica ao “escritor” que a “Zona” é resultado de um fenômeno inexplicado, que originalmente se pensara ter sido a queda de um meteorito. Não tendo sido encontrado nenhum meteorito, e com as mortes de centenas de pessoas curiosas que a exploravam, o governo tentou destrui-la, mas não conseguiu, pois seus tanques e aviões não funcionaram bem, e foram abandonados por soldados apavorados. Desde então o governo cercou toda a “Zona” com arame farpado eletrificado e muros de cimento e a protegeu com uma patrulha de soldados com ordens de atirar para matar em todos que tentem entrar. Neste sentido, a “Zona” do filme se parece muito com Berlim Ocidental durante a Guerra Fria (um pensamento que não me ocorreu em momento algum durante a leitura do livro). Tarkovsky realmente tinha “cojones” se isso procede, e ainda os teria de qualquer forma, pois a semelhança, mesmo que involuntária, é evidente. Mesmo porque, no filme parece haver a sugestão de que a “Zona” é única.

No romance a “Zona” não é única: existem várias, todas elas alinhadas de maneira curiosa, no sentido da rotação da terra, segundo um padrão que é chamado de “Radiante de Pilman” (leia o livro e caia na gargalhada com a explicação desta expressão e com a história de sua descoberta). Além do mais, o seu caráter é bem menos ambíguo que o do filme: as “Zonas” são mesmo o produto de uma visitação alienígena (daí o título “Piquenique na Estrada”, que é outra ótima piada de humor ultra-negro que você entende lá pela vigésima página). Não existe qualquer sentido de que a “Zona” seja um lugar desejável para se entrar e quase ninguém quer ir lá: somente os “stalkers”, que são pessoas que adentram lá de forma semi profissional.

Muda também a motivação dos “stalkers”: no livro eles fazem por dinheiro, visto que em cada “Zona” podem ser encontrados objetos os mais diversos que alcançam alto preço porque são completamente inexplicáveis, como as garrafas que nunca enchem e as que nunca esvaziam (ambas chamadas de “ânforas”), entre outros. No filme eles levam pessoas desesperadas até o “Quarto”, um local dentro da “Zona” no qual os mais íntimos desejos de cada pessoa são realizados. O “Quarto” também existe no livro, mas não domina a ação da forma como ocorre no filme.

A ação do filme, aliás, é totalmente diferente do livro. A começar pelas visitas à “Zona”. No livro ocorrem duas: na primeira o “stalker” conduz o “professor” em uma busca por artefatos que serão estudados pelo Instituto Internacional para Pesquisas Extraterrestres (note que a afirmação de que as “Zonas” são o produto de uma visitação alienígena é explícita) e na segunda ele conduz o “escritor” (que é um personagem bem diferente) até o “Quarto”. A primeira visita ocorre quando o “stalker” ainda é jovem (aos 23 anos) e a segunda, quando ele já está envelhecido precocemente (aos 31 anos). O filme parece mesclar as duas visitas em uma só, transferindo o “professor” para a segunda e mudando o seu objetivo.

O tipo de ação também é diferente. O livro tem um ritmo de aventura, apesar da narrativa lenta — cheia de paradas para trocadilhos, piadas de humor negro sutilmente disfarçadas no subtexto ou meramente para descrições precisas dos arredores. O filme não tem nada disso. No livro há muitos personagens, ocorrem mortes trágicas, perseguições, prisões, brigas. No filme só vemos seis personagens e ação é toda concentrada em torno deles. Um filme fiel ao livro teria que ser cheio de efeitos especiais, para conseguir representar os inúmeros fenômenos e objetos existentes nas “Zonas”, como o “moedor de carne”, o “leito dos mosquitos” ou o “véu das fadas” (todos nomes que evocam a aparência, não a essência desses fenômenos). No filme nenhum destes fenômenos sensacionais ocorre: não há efeitos especiais quase, mas há sim, certos fenômenos claramente sobrenaturais, embora os personagens, às vezes, se recusem a admitir isso. Entre estes fenômenos está a voz sob a árvore, que amedronta o “escritor”, os morcegos na sala de sal e a brincadeira da filha do “stalker”. A grande diferença está no foco. O livro, apesar de ser feito com palavras, foca na evocação de imagens sensacionais, de outro mundo. O filme, apesar de feito com imagens, prefere evocar palavras. Os personagens do livro andam, pensam, agem, reagem. Os personagens do livro dialogam sobre seus dilemas existenciais, sobre a “Zona”, sobre suas expectativas, sobre seus medos.

Para alguém que busca um filme de ação, "Stalker" é uma decepção total. Mas para alguém que busca um filme realmente intrigante, que faça pensar e que mude seu modo de pensar, então não há filme melhor. As metáforas políticas e artísticas são constantes. Os personagens dialogam sobre temas universais. O diálogo entre o "professor" e o "escritor", à beira do "túnel seco" (uma ironia) é de um impacto profundo, especialmente se você também escreve.

Também é preciso mencionar a pequena "Macaca", a filha do Stalker. No livro ela é uma mutante de olhos negros (no sentido de "totalmente negros") e corpo coberto de pelos dourados, exceto pelas mãos, pés e rosto. Por isso, e também porque ela é extremamente ágil e muito lacônica, foi que a chamaram de "Macaca". No filme, paradoxalmente, ela é paralítica, tem olhos normais e não fala — embora ande o tempo todo coberta por véus, luvas e calçados, que só deixam de fora o seu rosto. Acho que a diferença entre as duas resume as diferenças entre o livro e o filme. O primeiro descreve muito, para trazer o leitor para dentro da história. Os personagens são explícitos, abertos. No filme, porém, que já tem o leitor no cenário e na história, os personagens se fecham, se protegem, revelam o mínimo. O livro procura convencer sobre a existência de coisas que não existem. O filme, partindo do pressuposto de que você acredita na existência de tudo, controla (ou melhor, sonega) as informações e ataca suas certezas, até que você comece a pensar uma coisa, e depois outra, e depois uma terceira. E quando termina, você não sabe se está realmente decepcionado ou se jamais esquecerá as imagens que viu e os diálogos que ouviu.  E se você acha que foi M. Night Shyamalan que inventou o final surpreendente, com "O Sexto Sentido", espere até ver a cena final de "Stalker", que contraria e decompõe boa parte do que foi dito pelos personagens e das conclusões que você foi tirando ao longo da narrativa!

Um último e macabro detalhe a respeito do filme é que ele foi todo rodado dentro das instalações abandonadas de uma indústria química estoniana, à beira do Mar Báltico. Uma região incrivelmente úmida, verdejante e bela. Ali, fábricas poluidoras e usinas nucleares em péssimo estado criavam uma paisagem de natureza semidestruída. Os lugares haviam sido abandonados porque eram imprestáveis para a vida humana — tal como a "Zona". Foi lá que Tarkovsky escolheu filmar. Entre rios cobertos de grossas capas de espuma marrom, pântanos pútridos, fumaças densas e chuvas ácidas. Uma "Zona" criada pelo desastre do homem, não pela interferência dos céus. E Tarkovsky submeteu seus atores, sem o uso de dublês, ao clima intratável  e à insalubridade do lugar, fazendo-os vadear por rios sujos, tatear por túneis por onde sabe Deus o que fora bombeado. Anos depois Tarkovsky, os três atores que interpretaram os personagens perambuladores pela "Zona" e vários técnicos de filmagem morreram de tumores os mais diversos. Posteriormente o governo russo divulgou documentos que evidenciavam que o lugar estava contaminado por plutônio de uma usina nuclar desativada e por produtos químicos altamente cancerígenos de uma fábrica de pesticidas que ainda estava em funcionamento parcial.

10
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 12:29link do post | comentar | ver comentários (1)

Apareceu de repente um barui estrãe no motor do caminhão, chamano a atenção do Remundo, que cochilava no banco de carona pro Jailso dirigir. Tava de madrugadinha e era lua minguante, num dava para ver nada no escuro daquele fim de mundo.

— Jajá, para o caminhão.

Encostar ali era perigoso: ês tava no meio do nada, estradinha de terra. Canavial dum lado e dotro. Não tinha nenhuma luz de cidade apareceno no céu.

— O que foi, Mundim?

— Um barui no motor.

— Não escutei nada, ocê tá bêbo. 

—  Parece que tem um trem quarqué atrapaiano o motor a girar.

— Tem nada. Iss’ é besteira de caminhonero bêbo.

Mas o rai do barui tava lá. Remundo tamém escutô e ficô co os cabelo rupiado da nuca até a bunda. Porquê num era no motor coisa nenhuma, era arguma coisa no meio do canavial. Mas o motor tamém tava estrãe.

— Né não, Jajá. Me chama de Richarlyso se não tá aconteceno alguma coisa.

Descero então e pegaro as chave de fenda. Abriro a tampa do capô da F-150 e ficaro olhano com a lanterna, procurando um trem quarqué solto que fizesse o barui.

Então escutaro um ruído quase que não dava para ouvir, assim como os pezim duma galinha correno. A nuca do Jajá rupiô de novo e ele virô assustado como se alguém tivesse enfiado gelo na carça dele. Pela estrada afora, na luz do farol, ia umas pegada esquisita, que sumia na curva.

— Tá veno isso, Mundim?

— Olha, nem sei o que é, mas vam’ ‘bora daqui!

Montaro os dois, apertaro os cinto e ligaro o motor. Nos matagal em volta da estrada se oviu um bater de asa que parecia revoada de morcego saino do inferno.

— Jajá, acabei de pensar. As pegada vão para lá…

— Cõ efeito, Mundim, deixa de ser medroso.

Aceleraro com força. Poquim depois da virada da curva, um par de zói vermei apareceu no mei da estrada, encarano os farol.

— Ai Santa Mãe de Deus, um lobisome!

Jajá tentou frear, mas já tava muito em cima. O bicho foi na grade, fazendo um barui seco, como uma explosão de pedrera lá longe.

— Será que matamo o demõe?

— Vam’ descer e ver.

De fato mataro, só que não era nenhum demõe, mas uma pobrezinha duma capivara, gorda que só ela.

Os dois começaro a rir da bobiça enquanto examinav’ os resto da bichinha. Uma capivara, cês sabe, é mais ou meno um ratão cotó grande e cabeludo.

Enquanto ês tava lá rino de alívio, nem viro a sombra grande do disco voadô que subiu do meio do canavial, quietim, e sumiu céu acima, sem ês ver.


22
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 23:15link do post | comentar | ver comentários (1)

Anteontem concluí a postagem do nova e melhorada versão do conto Os Estranhos e achei melhor mover todas as informações sobre ele para um texto em separado, se possível acrescentando um pouco mais de informação.

Os Estranhos é um conto de terror do gênero pós-apocalíptico inteiramente baseado em dois sonhos que eu tive, ao longo de uma mesma noite, em 1996. No primeiro sonho eu estava no jardim de uma casa estranha, no alto de uma montanha, acompanhado de pessoas desconhecidas, ocupado em livrar-me de um cadáver enquanto contemplava, cheio de pavor, a presença de criaturas que voejavam sobre o vale abaixo, deitando sua sombra sobre a cidade de onde, no sonho, eu tinha saído. No segundo sonho eu estava esgueirando pelas sombras de minha própria cidade, tentando sair dela a pé, sem saber como entrara, e encontrava sinais preocupantes de uma presença maligna.

Primeiro texto meu publicado após onze anos de afastamento da literatura, sua versão original saiu na coletânea «Solarium», da Editora Multifoco, em 2009, representando um momento importante na minha vida, por três razões. Foi a minha primeira obra publicada em onze anos, a minha primeira incursão no terror e o início de minha relação com a Editora Multifoco, que viria a publicar o meu primeiro romance, Praia do Sossego.

Sobre meu afastamento da literatura, isto será assunto para a minha autobiografia, se um dia quiserem que eu escreva uma. Sobre minha incursão no gênero terror, isto tem a ver com as minhas leituras de então: Lovecraft e Poe, principalmente. Além disso, eu estava envolvido com uma comunidade de literatura no Orkut e encontrava lá muita gente interessada no gênero: acabou sendo natural que eu me interessasse por ele na busca de leitores.

Foi ummomento marcante para mim, não apenas porque eu superei uma fase na qual eu me limitava a apenas blogar ocasionalmente coisas que escrevia, mas também porque foi a primeira vez que me disseram ter selecionado um texto meu para publicação. Não creio que eu mesmo teria selecionado aquela versão dOs Estranhos, mas gosto realmente é algo que não se discute: vários dos leitores da antologia Solarium lembraram do meu conto na hora de citar os melhores do livro.

De qualquer forma, nunca fiquei satisfeito com a maneira como conduzi a versão preliminar. Obcecado com a ideia de agradar a um público mais amplo, tentara incluir um núcleo romântico: dois casais em crise que acabam se “trocando.” Foi uma péssima ideia, segundo o que hoje penso, porque eu não dediquei à construção do relacionamento complicado dos quatro personagens toda a atenção que era necessária para dar credibilidade à mudança de parceria. Nem haveria espaço, em tão poucas páginas, para ser bem-sucedido nesta tarefa. Por isso esperei até esgotar-se a primeira tiragem da coletânea e pedi licença à editora para retrabalhar o texto e publicar uma versão revista e expandida. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que os termos do contrato não proíbem a republicação nestas condições, nem sequer para as coletâneas cujos contratos ainda estão na vigência (dois anos)!

Devidamente autorizado, fiz todas as modificações que gostaria, inclusive restaurando o argumento original da história, no qual a casa no alto do morro não era um refúgio proposital dos protagonistas, mas apenas um lugar aleatório, poupado da invasão dos Estranhos, e não havia nenhum relacionamento romântico conturbado. A versão aqui publicada é mais fiel aos dois pesadelos que me serviram de base e, apesar de mais longa, é mais enxuta e fácil de ler.

Se algum dia publicar este conto em livro, ele deverá formar uma obra única, sem qualquer divisão em partes. Só fiz diferente aqui no blog porque reconheço que meus leitores não teriam boa vontade em ler uma obra de sete mil palavras de um fôlego só.

Parte IParte IIParte III

20
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 18:00link do post | comentar

A Montanha pontificava sobre o vale como um farol no mar de morros do interior de Minas Gerais. Inexplicavelmente os Estranhos não haviam se ocupado dela. Era lá que ficava o refúgio que abandonáramos, era lá que… «Mas, que merda é essa?»

A menos de duzentos metros de nós, uma das coisas voadoras veio pousar, com uma levez realmente Estranha e dobrando-se e estalando sobre si mesma como um origami diabólico. Por fim aquela forma surreal, reduzida a um mero pacote do que fora, caiu pelo chão como uma concha de lesma e foi rapidamente conduzida para dentro de um galpão por alguns seres vestidos com albornozes negros. O ciclo se fechava ali: eu havia presenciado tudo o que precisava para entender muita coisa que me intrigara desde o alto do morro, minha aventura louca fora recompensada.

O sol continuou subindo, estalando nas folhas ressequidas da grama de inverno e nos dando a impressão de que poderia sanear aquela pústula que se abatera sobre o mundo, mas essa esperança vaga começou a morrer quando me dei conta de que nenhum carro passara pelo asfalto desde dias antes, e nenhum passava naquele momento.

Continuamos andando em uma direção qualquer, para longe da cidade, seguindo o caminho de menos esforço. Antes de virarmos a curva seguinte, tive tempo ainda para olhar para trás e ver, sendo rolada para forma do mesmo galpão, outra daquelas dobraduras loucas, que logo adquiriu asas e decolou, para amaldiçoar com sua sombra o que um dia fora um belo vale, sede de uma cidadezinha razoável.

Logo adiante percebemos que não seria fácil chegar a algum lugar: os fios de luz cortados, postes telefônicos tombados, os radares da polícia rodoviária explodidos e estranhas listras escuras marcadas na face dos morros, listras onde o pasto morrera e se transformara em pó, onde as árvores pareciam desesperados carvões acenando para um vento inútil.

Um carro estava parado exatamente sobre a ponte, parecia ter sido queimado. De perto vimos que não era bem isso: ele estava inteiro por dentro e por fora, apenas sua pintura esfarelenta denunciava algum tipo de acelerada corrupção. Os pneus rachados haviam deixado escapar todo ar, e se desfaziam aos cavacos, como a borracha estivesse irremediavelmente leprosa. Ao volante, um esqueleto limpo, com os ossos ligeiramente alaranjados.

Madalena não me perguntou nada sobre o carro. Pobre coitada, imagino como se sentia. Eu mesmo não conseguia falar coisa nenhuma. Em mim, porém, brotou naquele momento a constatação da raride de restos mortais, humanos ou não, desde que penetráramos a cidade. Era muito pouco tempo desde o aparecimento dos estranhos, pouco mais de uma semana, deveria haver uma fedentina insuportável de corpos em decomposição, mas não havia nada. O que poderia haver de mais sinistro nesta constatação eu nem tentei imaginar. Apenas respirei fundo, sentindo-me sortudo por ter conseguido atravessar o vale das sombras da morte como se o Senhor fosse o meu pastor.

Continuamos andando, porém, como se a própria vida dependesse disso. Apesar do peito ofegante, do corpo suado de medo que esquentava à medida em que o sol subia, apesar da alma carregada de dúvidas e das pernas doendo da caminhada de já quase sete quilômetros, traçada entre tantas interrupções, com calma e pavor. Deviam ser seis da manhã, ou menos ainda. No verão o sol nasce muito cedo.

Olhei para Madalena com curiosidade. Ela estava fitando o caminho à frente, com teimosia de quem quer viver. Seu cabelo estava tão empapado de suor que se transformar numa túnica negra que caia sobre as suas costas. O desodorante vencera dias antes e um cheiro forte saía de seu corpo, mas um cheiro que não me repelia totalmente, um cheiro de deserto, de idade da pedra. Fosse outra circunstância eu teria me sentido excitado, mas diante dos fatos o meu cérebro desligou esta emoção. Procriar seria inútil se não achássemos segurança.

O riacho corria preguiçoso e o mundo andava tão silencioso que eu conseguia ouvir o barulhinho da água. O mau cheiro que ele exalara dias antes estava quase inteiramente dissipado. Esta constatação me encheu de esperança, e eu acabei dizendo que era bom estar vivo, afinal, pois o mundo parecia ter sobrevivido.

Passada a curva seguinte encontramos o primeiro automóvel intacto. Ou quase. Estava cuidosamente estacionado em uma entrada que dava para um matagal, ponto conhecido de meus anos loucos de juventude: quando não tinha dinheiro eu estacionava ali para transar. Uma listra negra cruzava o asfalto alguns metros antes, a primeira que pisaríamos em vários dias. Sobre ela estava o que parecia ser outro resto incendiado de automóvel. Mas aquele, escondido entre as folhas ainda vivas daquela moita de beira de estrada, não fora tocado por nenhum fogo divino.

— Parece que tem alguém lá dentro — observou Madalena, que, obviamente, estava enxergando melhor do que eu, pois tinha olhos naturalmente bons enquanto eu lutava contra a gordura acumulada em minhas lentes.

Tentei limpar os óculos no lenço já ensebado de suor, só piorando a situação. Lambi-os em desespero, melhorando um pouco sua transparência, mas criando um cheiro horroroso de mau hálito em torno de meu nariz. E enquanto isso Madalena e eu nos aproximamos cuidadosamente do veículo para ver quem estava dentro.

Era um casal de namorados, obviamente, mas ambos mortos. Hediondamente mortos por balaços através da cabeça.

— Morte matada — novamente Madalena se adiantava, deixando transparecer a leve influência de seu falar.

Nunca lhe perguntara de onde viera. Não se pode conversar muito com putas, ou se corre o risco de descobrir sua humanidade, ou talvez até de brotar uma paixão vexaminosa dessas. Mas aquela expressão, aquele jeito diferente de rolar as vogais, tudo me sugeria que ela vinha de longe, bem longe, ou estivera por lá durante muito tempo. Isso, porém, já não fazia sentido algum. Ainda existiria o «longe»?

Madalena tapava o nariz, contrariada pelo cheiro e pelas moscas nojentas que voejavam em torno dos cadáveres, que já começavam a sorrir, expostos que estavam à umidade e aos vermes.

— Enterramos esses pobres diabos? — perguntei.

— Pelo amor de Deus, não!

— Não é nada humano deixar dois cadáveres assim sem socorro.

— Não se preocupe com esses, não se importam mais. Eles tiveram foi sorte.

Tive de concordar. A única sorte maior que a de estar vivo era ter morrido. Não sabíamos qual era a terceira alternativa, mas nossa passagem por dentro da cidade sugeria que pudesse ser algo bem pior.

Deixamos aquele carro servir de esquife para os dois, apenas tendo o cuidado de usar a gasolina para atear-lhe fogo. Foi um funeral limpo e puro no alto daquela elevação de beira de estrada, coberta por um ralo matagal. As chamas subiram feias e misturadas com a negra mancha do hidrocarboneto, mas o cheiro daquela combustão purificava o ar da putrefação daquelas pobres vidas.

Uma série de estalos graves vindos da direção da cidade me despertou para o perigo. Agarrei Madalena pelo braço e nos atiramos barranco abaixo, através dos galhos e cipós. Caímos estatelados e arranhados à sombra de uma goiabeira e olhamos para cima, apavorados. Duas enormes e negras sombras voejavam em círculos sobre o incêndio, como urubus. Nunca vira os Estranhos tão de perto, nem mesmo em nosso encontro ao amanhecer, na saída da cidade.

Ele voejou e voejou, como se perscrutasse a cena, mas não pareceu nos ver. Talvez o calor forte da queima de tanta gasolina o inebriasse, ou ofuscasse. Lembrei-me da cena na escola e tive esperanças de escapar. Estas esperanças me fizeram congelar de novo, sem dizer palavra. Mas quando Madalena sentiu o vento movido pelo farfalhar abjeto daquelas asas inomináveis ela surtou e se levantou e saiu correndo e chorando em direção ao córrego.

O Estanho logo abandonou seu movimento circular em torno do carro em chamas e soltou um longo assobio que me estalou nos ouvidos e confundiu totalmente os meus sentidos. Senti grogue, tive vontade de vomitar. Voltei o rosto para o lado, preparado para isto, e vi Madalena tropeçar e cair.

No instante a seguir eu acordei em uma poça de vômito. Não havia nenhum Estranho voejando por perto. Levantei-me do chão tão rápido quanto consegui e olhei na direção onde Madalena caíra. Havia algo lá.

A custo movi o primeiro passo. Minhas pernas estavam pesadas, embora me obedecessem. Levantar-me fora relativamente fácil, mas ficar de pé não era. Minha cabeça estava estranhamente confusa e eu não sabia exatamente o que deveria fazer a seguir. Sentia-me como se tivesse estado fortemente sedado, mas só me lembrava daquele longo assobio. E lembrar dele me fez ter novamente vontade de vomitar.

O que estava caído no chão era mesmo Madalena. Ela respirava. Embora tivesse o rosto imerso no próprio vômito, não sufocava porque caíra com metade do rosto sobre o barranco do córrego. Levantei-a daquela posição vexaminosa e atirei na água, para purificá-la do que tivesse acontecido. Desci junto, lembrando da mancha esverdeada entre a minha cara e o peito.

Madalena acordou com água fria e me olhou, soluçando.

— Perdão, perdão, eu não aguentava mais.

— Não tem problema, Madalena, não foi nada.

Na verdade não tinha nenhuma noção do que poderia ter sido. Difícil asseverar que não fora nada.

Apontei-lhe uma casa ali perto, oculta entre as folhagens densas de árvores frutíferas:

— Devemos nos esconder, eles podem voltar.

— Ali não — ela disse. Aquele carrou chamou a atenção deles, não duvido que procurem aqui em volta. Nossa única chance é conseguirmos sair daqui.

E assim, trôpegos e enfraquecidos pelo efeito sonoro inesperado e pelo vômito que provocara, nos levantamos e seguimos o leito do rio, fracos demais para escalar o barranco até o asfalto. Mais abaixo a estrada e a vargem se encontravam em uma ponte, ali seria mais fácil buscar a estrada de novo e tentar achar mais gente, talvez um carro funcionando. Com sorte um carro cujo ocupante tivera a educação de não se matar sentado ao volante para enlamear com sua carne putrescente o estofamento. Talvez de lá conseguíssemos fugir para mais longe, talvez encontrar um lugar onde houvesse mais gente como nós, onde fosse possível cultivar uma simples horta e resistir vivendo, apesar do Inesperado. Seria difícil conseguir isso. A vargem não era nenhuma mesa de bilhar, e não havia árvores que nos servissem de esconderijo.

Enquanto arrastava Madelana comigo — ela estava bem mais enfraquecida — eu olhei para o céu e notei as nuvens negras que se formavam:

— Tomara que seja chuva.

— O que será que nos pega primeiro — perguntou Madalena, algo cínica — a chuva ou os Estranhos?

— Tomara que seja a chuva.

Atrás de nós, na distância, ouvíamos os tétricos estalos daquelas asas malditas. Ao mesmo tempo em que o ar carregado anunciava um aguaceiro de verão a caminho.

— Se tivermos sorte, Madalena, a chuva vai confundir os Estranhos, e nos dará a chance de escapar. Se não chover, querida, essa vargem transformada em pasto não esconde nem um sapo.

— De qualquer forma, com chuva ou sem, vamos andando.

E continuamos andando, torcendo para vir logo a chuva.


18
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 11:00link do post | comentar

À medida em que nos aproximávamos da cidade, sentíamos o ar mais opressivo, mais parado, mais agônico no peito, como se uma mão forte pousasse sobre nossos corações, segurando o tórax em cada inspiração. O ar parecia partido em flocos, granulando nossa visão, ou seria apenas a ilusão que a penumbra traz aos olhos despreparados de quem, como nós, viveu uma vida inteira sob luzes artificiais?

Quando chegamos à primeira rua, pudemos ver a primeira alteração significativa da realidade: tudo parecia muito abandonado, como se as coisas novas não fizessem mais sentido. Como se o tempo estivesse avançando rápido, ou recuando, como se uma espécie de putrefação tivesse vindo com os Estranhos.

O primeiro edifício significativo por que passamos foi uma oficina mecânica. Vários veículos ali estavam abandonados, alguns com as entranhas extirpadas, como pacientes em meio a uma operação. Minha reação diante deles foi paradoxal: fiz-lhes um respeitoso aceno e balbuciei uma oração automática. Na ausência dos cadáveres de seus donos eu reverenciava aquelas máquinas, que podiam servir-lhes de cenotáfios.

Mais abaixo pela avenida chegávamos ao estranho monumento a que chamáramos de "Caldeirão da Bruxa" quando crianças. Normalmente uma rotatória movimentada, com todo tipo de veículo chegando e saindo da cidade por ali. Mas desde nossa entrada na cidade já esperávamos que estaria silencioso e calmo de podermos andar pelo meio da pista. Foi só um pouco mais adiante que começamos a ver sinais preocupantes de coisas que haviam realmente acontecido: ossadas, humanos, caídas pelo chão, incompletas, com sinais de justiça sumária. Aqui e ali fogueiras extintas. A brancura daqueles ossos, quase luminosa sob a rara luz de uma noite de lua nova, me fazia pensar em seres asquerosos que os teriam limpado de uma maneira horrível.

Porém, na avenida não parecia ser possível que ainda acontecesse violência alguma. Passamos diante de uma padaria saqueada, imaginei os ossos do padeiro caídos por detrás do balcão. Um avental azul ensanguentando me fez pensar na balconista vesga que tinha um namorado tatuado e sonhos de se tornar dentista fazendo uma faculdade que não teria nunca como pagar trabalhando ali. Uma pequena tragédia terminada, certamente, com a chegada deles.

Foi então que Madalena, falando com cuidado para que as palavras mal fossem audíveis, me fez perceber o que eu já pressentia, mas não aceitava:

— Não vamos achar nada útil nessa visita.

— A não ser o que pudermos aprender, não é?

— A morte não ensina nada a quem morre.

Não lhe respondi, continuei olhando à esquerda e à direita, tentando imaginar lugares de onde pudesse extrair suprimentos ou objetos úteis. Mas suspeitava que cada faca estivesse cega, que cada lanterna estivesse quebrada, que cada pilha estivesse sem carga.

Porque era incrível a rapidez com que a decrepitude se instalara. Havia erva crescendo sobre os prédios e casas, arrebentando por entre os paralelepípedos, as raízes das casas estavam crescidas medonhamente e sombras escuras corriam pelos cantos, de sombra a sombra.

— Ratos…

Não eram ainda nem nove da noite quando chegamos à praça ao pé do morro e miramos as árvores que ladeavam a Catedral.

— Ainda tem coragem? — perguntou-me Madalena.

Não lhe disse que sim nem que não. Estava ocupando percebendo como o mundo andava estranho. Amassando folhas de árvores para ver se estavam mais secas, pisando no chão com força para ver se não estava esfarelando sob meus pés.

— Ratos, morcegos, insetos…

— Também percebi — ela disse — que tudo que era cultivado está morrendo. Flores plantações, toda forma de cultura. Mas não é surpresa isso, não há ninguém mais cultivando.

— Só não quero que o dia nos surpreenda nessa cidade de pesadelo. Vamos logo ver o que viemos ver, e embora depois.

Subimos o Morro da Catedral mais cuidadosamente ainda. Com o resto da bateria da máquina fotográfica eu registrava tudo que pudesse ser interessante, mesmo sem saber se um dia encontraria fotógrafo onde revelar as imagens ou mesmo computador para descarregá-las. Também evitava vê-las pela tela para não gastar a bateria. Não me lembro quantos flashes foram: havia, de fato, muita coisa interessante para se fotografar. Mas Madalena me chamou à razão:

— Podem perceber-nos pelo flash.

Guardei a câmera em minha sacola, com muito pesar, e continuei trocando passos mecânicos e decidos pelos degraus da escadaria acima. Como se tivessem me hipnotizado.

Chegando à praça percebemos, então, que não estava deserta como o resto da cidade. Apesar de escura como uma cisterna, havia nela um contínuo movimento de sombras fúnebres, cada uma parecendo ter algo a fazer num maquinismo infernal. Dezenas ou centenas de Estranhos perambulavam como formigas, entrando e saindo das ruas laterais, carregando pequenas sacolas e caixas. Foi só então que percebi que eles, apesar de sua aparência diurna formidável, eram pequenos e tinham uma forma quase humana.

A imensa porta da Catedral estava escancarada, abria-se como uma boca monstruosa em direção à cidade, como se faminta por ela. De dentro vinham murmúrios e sopros que pareciam musicais. E pelas portas laterais entravam e saíam os Estranhos, leves sobre o chão, como se já não pertencessem a este mundo.

Tive medo de que pudessem ver-nos. Madalena me abraçou, já temendo o momento em que todos nos cercariam para um linchamento ou pior, mas logo até ela se acalmou: aquelas criaturas passavam por nós sem perceber-nos, pareciam passar até através de nossos corpos, cegas e insensíveis à nossa existência, pelo menos enquanto não dizíamos nada. Não, não tive a coragem de dizer coisa alguma, muito menos Madalena.

Ela me levou pela beira da praça até o muro do Colégio, onde nos escondemos na sombra para descansar, ainda sem coragem de dizer palavra alguma. Depois me arrastou até uma das janelas, cujo vidral se quebrara com alguma pedra ou violência parecida. Dentro estava uma algazarra de mantos, albornozes e vestidos. Faces idênticas, plácidas, pálidas, contritas em alguma forma de emoção incompreensível. Todos vestidos de cores escuras e misturadas, como se um acidente de tinturaria houvesse manchado de luto todas as cores floridas.

Mas os Estranhos eram, como eu pude então perceber, pelo menos parecidos com humanos. Talvez humanos até! Mas como?

Permancemos ali, olhando para eles por quase meia hora. Não havia sentido no que faziam, no que diziam. Aos poucos o medo de que nos vissem foi passando, substituído pela impressão de que não nos veriam nem se deixássemos uma bomba na Catedral. Por fim, enjoado daquilo, puxei Madalena pela mão e saímos da praça.

Descemos de novo pela longa escadaria e passamos em frente à Prefeitura, em cuja fachada, pendurada como um corte de carne no açougue, estava imóvel e úmida, sem oscilar um milímetro no ar parado da noite, uma rota e suja Bandeira Nacional. Saudei o sofrido Pavilhão Auriverde com saudades do que ele representara, mas o que ali estava era o cadáver de um ideal antigo.

Quando já nos sentíamos totalmente perdidos, vimos uma luz brilhar na escuridão. Era uma luz pequena e rútila, que mal conseguia se filtrar por cortinas escuras e gretas, uma luz presa num porão. Procuramos em torno do prédio até acharmos uma porta. Com certa facilidade Madalena a abriu usando alguma coisa que extraiu de sua cabeleira, demonstrando habilidades que eu não conhecia.

Entramos pisando com leveza, tentando não acordar nenhum espírito do local, mas foi uma precaução quase desnecessária diante do ruído incessante que perpassava os corredores daquele prédio. O local havia sido uma escola, conforme me lembrava vagamente. Longos corredores cheios de eco, ladeados de portas que se sucediam como as notas de uma flauta, terminando em uma sombra sinistra, onde nenhuma estava aberta, mas apenas gretas de luz filtravam por ao rés do chão. Em condições normais, teríamos medo. Mas a certeza da morte nos havia despido disso. Tínhamos apenas cuidado e curiosidade.

A porta da primeira sala estava aberta. A luz que víramos não era de nenhuma espécie de lâmpada ou artefato de intenção semelhante. Provinha do zumbido de uma complexa aparelhagem de vidro e metal, que era manipulada com uma vagareza terna por mãos pálidas e magras, que saíam de albornozes escuros.

Havia vários dos Estranhos naquela sala, cumprindo tarefas diversas, todas de alguma forma girando em torno do misterioso maquinismo. Todos estavam completamente cobertos pelas roupas negras, todos tinham pesadas máscaras cobrindo suas faces, como a proteger-se da toxicidade daquela luz que nos atraíra. Olhando melhor, tive a impressão de que a palidez daquelas mãos não era natural, era do material com que haviam feito luvas, também para guardar-se dos efeitos daquele aparelho.

Madalena me puxou pelo braço, sinalizando à frente. Obedeci sem perguntar. Quando tomei o primeiro passo, um dos Estranhos olhou exatamente em minha direção, como se alertado pelo meu movimento, ou por algum ruído meu, ou pela simples agitação do ar. Eu me plantei, apavorado, sem conseguir erguer o pé para continuar andando. Porém, a expressão no seu rosto, se possuía uma, ficava oculta por detrás de uma máscara negra e brilhante que obscenamente evocava traços humanóides, mas não exatamente humanos. Direcionei toda a minha vontade para congelar os meus músculos e impedir que eu fraquejasse. Naquele instante o juízo me voltou e eu percebi o quanto fora louco de buscar entrar no antro dos Estranhos. Maldita a minha curiosidade. Eu não temia pela minha vida, mas por algo muito pior que poderia acontecer.

Aos poucos, a fixidez da expressão do Estranho, isenta de qualquer menção a levantar-se ou a chamar algum dos outros, pelo menos de forma visível, me fez ver que ele não estava me vendo. Talvez estivesse ofuscado pelo excesso de luz que havia naquela sala, ou talvez fosse mesmo cego. Sei que me mantive ali imóvel, segurando a respiração devagar, torcendo para meu coração bater o mais baixo possível. Minhas pernas começaram a doer, mas aquele olhar gélido ainda me encarava, e eu o encarava de volta, como quem mergulha no abismo. «Maldito, está esperando acostumar-se à luz para poder me ver.»

Fui salvo pelo que, na hora, pensei ter sido um simples acaso feliz: a máquina, por alguma razão, pareceu desconcertar-se e começou a produzir fumaça e forte cheiro de ozônio penetrou o ar. Seguiu-se uma série de silvos baixos e ritmados, como sussurro muito apertados. O Estranho volveu os olhos para a aparelhagem que começava a piscar em muitas cores e eu aproveitei aquela nesga de instante para avançar os pés e chegar a Margarida, que estava paralisada na sombra providencial entre duas portas. Mas ela certamente sabia, tão bem quanto eu, que a sombra nada significava para os Estranhos. Foi a minha vez de puxá-la pelo braço. Arrastei-a pela porta de banheiro. Não sei o que foi que me levou à conclusão, que se mostrou correta, de que o banheiro não teria nenhuma serventia para eles.

Encostei a porta com muito cuidado e ficamos sozinhos na privacidade precária daquele banheiro escuro. Sem podermos sequer sonhar a possibilidade de acionar um interruptor de luz. Tateei pelas paredes de azulejos e levei-nos até uma das privadas, no canto oposto, suficientemente distantes da porta para podermos ofegar em paz relativa.

Nenhum de nós tinha coragem de falar. O medo retornara. Os Estranhos tinham deixado de ser figuras fantasmagóricas de crepom negro que voavam sobre o vale, ou fantasmas de pessoas partidas, ou aparições inexplicáveis. Haviam adquirido uma apavorante materialidade, uma maldade que era difícil negar. Uma maldade que não derivava de suas intenções desconhecidas, mas de sua mera e total Estranheza.

Após conseguirmos regular um pouco a força da respiração, tratamos de sair da arapuca em que nos metêramos. Subimos em um dos vasos e alcançamos a janela. Com dificuldade a abrimos, mais por não querermos fazer nenhum ruído do que por sua resistência. E então saímos para o jardim da escola, próximos ao muro.

Para saltar o muro não tivemos tanto cuidado, mas tivemos a sorte de a escada do zelador ainda estar funcional, apesar da grossa camada de ferrugem que a cobria. Pisamos de novo em liberdade, a horrível liberdade, no gramado fedorento das margens do córrego. Felizmente ele era estreito e pudemos saltar à outra margem, escalar o barranco até a rua e tomar o caminho mais rápido para fora daquele inferno de cidade.

Andávamos devagar, querendo muito evitar que nossos calçados fizessem ruído no chão. A partir daquele ponto percebemos que muitas das casas ainda eram «habitadas» — se é que os estranhos podem ser considerados habitantes de algum lugar. Em uma das casas, pudemos ver, pela janela escancarada, um grupo deles examinando um violino, torturando-o para que produzisse grunhidos horrendos, para aparente satisfação do grupo. Estavam tão absortos nisso que não nos notaram passando. Tinham por aquele pobre violino um interesse que me pareceu tão genuíno e humano que quase tive esperanças.

Havíamos chegado à parte mais plana do vale onde a cidade se erguera. Ali era uma antiga praça de comércio, transformada num apinhado estacionamento onde os automóveis pareciam caramujos abandonados por moluscos mortos. Passamos por eles sem reverência, buscando sair da cidade pelo caminho mais curto. Quando pisávamos o asfalto, enfim, olhamos para trás e vimos todo o vale negro, sem luz nenhuma que denunciasse o frêmito ininteligível dos Estranhos. Erguia-se um sol mortiço detrás da Montanha, filtrando raios magros através de nuvens lerdas e gordas que se amontoavam no horizonte. Atravessáramos a cidade, a pé e temerariamente, em uma única noite.


11
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 22:32link do post | comentar

As silhuetas deles poluem agora a visão do horizonte. Há dias que têm estado assim: patrulhando o céu de uma forma quase apática, mas voejando pelo vale como ilhas de escuridão, rutilantes, intangíveis, deitando sombras sobre casas e árvores, fazendo-nos tremer por dentro como se soubéssemos de algo. Mas não sabemos de nada.

Apareceram do nada, sem que estivéssemos preparados para qualquer uma reação. Cortaram-nos uns dos outros, como peças de um tabuleiro cujas casas apareceram subitamente muradas. Estamos presos onde estamos, cada um dentro de onde estava quando tudo aconteceu. Apenas acenos nos contam de quem há nas outras casas, todos trancados e em silêncio, à espera de que a sombra passe e o sol brilhe de novo no jardim.

Devo dizer que nós, cá nesta casa, tivemos sorte. Por estranho que possa parecer estávamos no fim de uma festa, perto do amanhecer. Quando percebemos o acontecido, aqui ficamos, contemplando. Os estranhos nadando na límpida atmosfera da manhã, insondáveis, indiferentes, e todos aqui imersos na poeira e na fumaça de um fim de festa, cansados, sonados, de hálito pesado na boca e suor pregado na roupa.

Ficamos porque tínhamos medo, claro. Não vou inventar nenhuma estratégia, nenhuma razão psicológica ou curiosidade científica. Ninguém aqui é desse tipo. Éramos apenas clientes de um clube de strippers isolado na segurança de uma montanha, fora dos limites da cidade. Lugar privilegiado para contemplá-la, para antecipar quando a polícia vem. Cá estamos nós, alguns homens perdidos, algumas mulheres perdidas. E como o mesmo adjetivo é diferente em cada sexo!

Os Estranhos chegaram, como eu disse, de uma forma tão súbita que nem mesmo os notamos. Tentamos entender algum propósito, algum plano, mas eles não parecem possuir nenhum. Agem de uma forma quase vegetal, flutuam preguiçosamente, como poças de estagnação transformadas em balões, em silêncio, com uma lentidão que apavora.

Madalena chegou à janela na terceira manhã, pela primeira vez. Tinha sido das mais assustadas, mais cheia de culpas, mais supersticiosa. Agarrara-se com seus ícones de bolso e suas figurinhas de gesso e balbuciara tantas palavras que ficara rouca. Tinha medo de demônios e de anjos, de morrer cedo ou de viver "daquele jeito". Seu profundo medo a purificou, deu-lhe uma forma estranha de pudor, de dignidade. Limpou-se de toda pintura e escovou os dentes até remover deles todo resto ou gosto de pecado. Depois pendurou um crucifixo no peito, por fora de uma camiseta de malha escura, e andou entre nós, de cabelos soltos e desgrenhados, quase como uma sacerdotisa.

Mas dizia que ela chegou à janela naquela terceira manhã e observou longamente os espasmos dos Estranhos, ouviu indiferentemente os estalos da estática no rádio, como um espectro irritante de um além tão próximo. E naquele momento, de seu peito socado de tanto choro e vela, brotou uma conversa coerente, finalmente:

— Desta distância é quase impossível saber quantos são.

O senhor grisalho a quem ela se dirigiu não pareceu compreender, preocupado que estava em engolir o máximo do uísque barato, como se esperasse pela redenção de um coma alcoólico antes que o destino o rendesse. Mas eu estava perto, compreendi o esforço que ela fazia para romper o casulo do medo, e lhe recebi com palavras tranquilas:

— Também tenho dificuldade para contar. Às vezes a gente fica com a impressão de que parecem enxamear pelo mundo, outras vezes, que são só alguns que ficam se revezando aqui em volta. Não sei, o que eu sei é que eles parecem dominar os dias, e não há nada que eu saiba que a gente possa fazer.

Os olhos dela continuaram vidrados na paisagem, enquanto a boca falava com uma coerência típica dos traumatizados:

— Parecem grandes pedaços de cartolina, ou de feltro fosco, ou de camurça negra, não sei. Parecem bater asas, contorcer-se, como se estivessem vivos, quase os escuto estalando, como morcegos voando na escuridão do meio dia.

No momento em que ela o disse, também tive, pela primeira vez, a impressão de que ouvia um estalo. E mais ainda:

— Mesmo eles sendo tão completamente negros, dá para sentir, bem de vez em quando, um leve brilho negro, como se o sol os afetasse.

Madalena não me ouvia, ou não dava sinais de me ouvir.

— Parecem bailando no ar, tão inocentes, tão sem maldade, num ritmo lento e seguro, até bonito, como se nem pudessem voar.

Interrompeu-nos um ruído de cadeira caindo. Madalena acordou de seu transe místico e eu finalmente consegui parar de encarar seus olhos negros. O farmacêutico se enforcara. Amarrara o currião na trave da mão francesa e em torno do pescoço, depois chutara a cadeira em que subira, e seu largo corpo, flácido e pálido, saco de vícios e vaidades, estendeu o couro até quase os seus pés tocarem o chão. Havia uma curiosa ironia em ver aquilo: mais três ou quatro milímetros e ponta de seu sapato poderia tocar o chão, se ele quisesse ainda tocar o chão.

Tentamos ainda socorrê-lo, mas não havia o que fazer: os cento e sessenta quilos desajeitados do suicida não eram fáceis de carregar, não depois de dois dias sem uma refeição de verdade, não pelas duas únicas mulheres que estavam na sala, junto comigo, o velho bêbado e o bibliotecário cego — homens inválidos e putas cansadas, reduzidos à feminilidade da espera enquanto os másculos heróis se divertiam com baralho e boquetes no andar de cima. Quando finalmente desceram para ver o que era, os dois olhos do farmacêutico já estavam esbugalhados e a sua língua, roxa e roliça como uma berinjela, mal cabia em sua boca.

— Mas que merda! Esse pacote de banha tinha que se matar bem aqui na sala, no meio do bar! — berrou o Tenente Marcelo, ainda se achando um digno militar, apesar das calças mal abotoadas e do bafo grosso de álcool que espalhava no ar.

Com gestos rápidos ele determinou: cortaram o cinto e deixaram o amontoado humano se estender no chão, sobre a poça de urina e fezes líquidas que descera no momento final. Depois enrolaram o tapete e o levaram para fora. Mas como era dia e as sombras haviam se agitado temporariamente, não ousaram muito mais que abandonarem-no diante da casa, no gramado próximo à piscina que ninguém mais tinha coragem de usar.

A experiência pareceu afetar a todos, pelo menos temporariamente, mesmo os mais empedernidos, os que ainda esperavam, usando o resto de seu dinheiro para pagar por favores sexuais, mesmo as mais alienadas, que ainda se vendiam esperando ter algo a fazer com as joias e as notas de cem. Ninguém subiu para o segundo andar naquela tarde, em vez disso gastaram longos banhos, como se o corpo do pobre farmacêutico obeso lhes houvesse contaminado com algo incompreensível.

Madalena, que voltara à janela para contemplar os Estranhos, atraiu-me até lá. O senhor grisalho, ainda preocupado em beber até a inconsciência, retomara seu assento junto à parede e encarava a garrafa de Orloff como um desafio. Mergulhava a cereja em calda, como se para adoçar a própria morte, e sorvia goles curtos.

Os outros foram vindo, depois de seus banhos, e se instalando no saguão para beber. O assoalho de madeira estava ligeiramente mais claro no lugar onde se estendera o tapete, restando como sinal da morte que ali pousara. Do lado de fora, o cadáver jazia enrolado, próximo à piscina.

Os Estranhos pareciam comportar-se de uma forma ligeiramente diferente. Com movimentos ligeiramente mais rápidos, com uma tendência incômoda de fazerem círculos que pareciam aproximar-se da montanha, como se ela, de repente, lhes atraísse algum interesse. Como se eles já não tivessem a antiga inocência, a indiferença que notáramos. Não sei se fui o primeiro a perceber isso, mas o disse a Madalena:

— Tenho a impressão de que estão querendo ocupar o vale inteiro. Estão circulando mais longe, como urubus procurando carniça.

— Não tenho certeza se sabem da carniça — ela me interrompeu — mas é bem claro que estão circulando uma área mais larga. Dá para ver que estão mais longe uns dos outros.

Naquele momento um grupo, em estratégica fila, como uma esquadrilha decolando para a guerra, subiu do chão junto a um galpão distante, ao lado de uma soturna igreja aonde eu, funcionário burguês, ateu e forasteiro, nunca pusera os pés. Vê-los sair de lá me fez ver, talvez pela primeira vez, que eles eram menores do que pareciam quando voavam pelo céu, tão desfraldados e escuros.

Subiam do chão se desdobrando, se espalhando, jogando vestes imateriais em torno de algum vácuo igualmente ralo. E quando chegavam à altura das nuvens, já pareciam pipas monstruosas que tapavam o sol, sem que sequer uma gota perfurasse sua seda.

Enervado com a movimentação dos Estranhos, que parecia ter se tornado ameaçadora, procurei outras coisas para olhar, seres em que pensar. Mas apenas encontrava o tapete enrolado perto da piscina. Enquanto engolia em seco e criava coragem para sair da janela e buscar água morna para aliviar a garganta irritada, percebi que alguém mais notara o morto: um grande tatu, de pernas peludas e orelhas frenéticas, correu do mato até ele, sem temer nenhuma presença de humanos, como se soubesse já que nós não sairíamos da casa por nada desse mundo. E ao aproximar-se do pacote fúnebre que enfeitava o jardim do bordel, ele encostou o seu focinho na fibra antiga, ansioso como quem entra num banquete, e foi se enfiando pelo túnel de tecido adentro, produzindo movimentos asquerosos, repetitivos, mastigatórios.

Madalena fez uma careta de horror, imaginando o que poderia estar acontecendo ali, quando, então, um horror maior aconteceu: o tapete, deixado numa posição quase precária do jardim, perturbado pelo fossar do animal, começou a girar lentamente sobre si, ganhando velocidade no declive, cada vez mais velocidade, aproximando-se da grande ribanceira, desenrolando-se inominavelmente enquanto se movia, até que o corpo volumoso do farmacêutico apareceu sob o sol, e ainda instável, rolou pela montanha abaixo, para espanto e tristeza do tatu, que o olhou caindo como quem vê meio pão com manteiga caído da mesa com o lado cortado para baixo.

Os Estranhos ficaram ainda mais agitados. Naquele momento eles definitivamente pareceram perceber a casa. Mas, para nossa sorte, era já uma tarde velha, que se carcomia em noite.

— Madalena, eu vou embora.

— Para onde?

— Dentro de duas horas terá anoitecido, e eu não quero ver outro dia aqui dentro nem por nada nesse mundo. Vou pegar o carro e seguir para Juiz de Fora.

— O que você espera ver em Juiz de Fora?

— Não sei, mas não vou ficar aqui esperando a morte chegar, porque é o que vai chegar amanhã.

— Será que ainda existe Juiz de Fora?

— Não sei, pode ser que os Estranhos estejam somente aqui.

— Nesse caso, você tem certa razão em querer ir. Faz sentido querer avisar o mundo.

— Mas o mundo não precisa de aviso. O mundo já deve saber. Quando começou, quem tinha internet mandou o seu recado. Quem tinha telefone, telefonou. Quem pôde fugir, fugiu.

— Pensando bem, a linha telefônica tem estado muda desde que aconteceu. Não tem eletricidade, não tem nada no rádio.

— Sem eletricidade não tem como saber se ainda existe televisão, se a internet está no ar, se o até mundo ainda existe. Mas, principalmente, não dá para saber se é só aqui, ou se foi no mundo inteiro.

— Gostaria de ter um binóculo.

— Já não viu o bastante?

— Nesta vida  já vi tudo que não queria, mas ainda tem muita coisa que eu queria ver.

— Uma saída daqui, por exemplo?

— Não, o que são as manchas brancas lá embaixo no asfalto.

Saí de perto dela para buscar água. Só mesmo muita sede me força a beber água morna. Mas estendi minha saída até a garagem, lá fora. Uma temeridade. Por alguma razão eu deixara de ter medo dos Estranhos. Entrei em meu carro, abri o porta-luvas e retirei de lá a minha câmera fotográfica. Não era um binóculo, mas tinha uma teleobjetiva bastante poderosa. Suficiente para satisfazer Madalena, ela, que tinha fama de se satisfazer com substitutos do que a maioria das mulheres quer. Minha barriga estava tão cheia d'água que a sentia sacolejar quando andava. Com dificuldade a água morna se agarrava em meu estômago, só a força de vontade a impedia de subir.

— Não é um binóculo, mas deve alcançar uma imagem boa lá de baixo no asfalto, Madalena.

Ela tomou a câmera de minhas mãos, eu me aproximei de seu rosto, para ensiná-la a manipular os maquinismos analógicos daquele monstro fora de moda, do tipo que ainda funcionava com filmes. De tão perto o perfume dela não parecia tão vulgar, havia algo de doce nele, cheiro de xampu barato, de suor de puta, mas cheiro que convidava.

Aos poucos as lentes foram perfeitamente ajustadas à distância, e as manchas brancas se discerniram em ossos limpos, humanos. O sol brilhava neles, como em flores de margaridas em um prado verde, o gramado da minha escolinha de infância, coalhado de florezinhas brancas, o gramado onde, um dia, uma outra Madalena, negrinha e bonita, mais velha e mais sabida, me agarra pelo pé, me derrubara como um bezerro de rodeio, e me roubara vinte beijos, para depois sair andando, rindo, dizendo que os havia roubado e não devolveria nunca. Tinha sido um dia divertido quando eu chegara em casa, ainda chorando, traumatizado, dizendo ao meu pai que ela me havia roubado tantos beijos, e não os queria devolver. A risada de meu pai ecoou na minha lembrança. Aumentou a tristeza de ver aqueles ossos. Haveria ainda um dia para as crianças correrem livres sobre os prados?

— Madalena, não vou passar outra noite aqui. Vem comigo?

— Vou. Aonde?

— Quero ir ao centro da cidade, descobrir o que fazem os Estranhos durante a noite.

— É loucura.

— E é exatamente por isso que eu vou fazer. De que adiante ficar aqui em companhia de tanta gente mentalmente sã?

Ao dizer-lhe isso nos viramos para ver os outros homens, quase estuporados de tanto beber. As outras prostitutas se injetavam coisas inomináveis nas veias.

— Eu quase poderia ir agora. Não quero morrer aqui dentro como um passarinho abandonado na gaiola pelo dono. Não sei se Juiz de Fora existe ainda, por isso eu não vou lá, vou ao centro da cidade ver o que fazem à noite esses Estranhos. Acho uma resposta ou uma morte rápida, qualquer coisa é melhor que isso aí.

Madalena fez que sim.

— O que levamos?

— Uma moeda de ouro sob a língua seria uma boa ideia.

Mas levamos mais do que isso: banhados e vestidos com adequadas roupas negras, saímos da casa tão logo a primeira estrela veio. Logo notamos como o fundo do vale, onde a cidade se deitava, parecia tão mais escuro do que deveria. Era a falta absoluta da iluminação.

Descemos, em silêncio e bem devagar, a mesma encosta que o farmacêutico descera com tanto estrépito. Cadáveres adiados são mais lentos que os cumpridos para certas coisas. Era difícil tentar falar: o ar tinha um peso, um cheiro de medo que embriagava. Apesar disso, escolhemos o caminho mais rápido, mesmo sendo o mais devassado. À luz do dia, qualquer coisa que tivesse olhos nos veria descendo pela encosta do morro e seríamos ossos no dia seguinte, mas era noitinha e eu não tinha medo de olhos.


11
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 18:25link do post | comentar | ver comentários (6)
Inicio hoje um projeto de longo prazo, de traduzir para o português o romance “The House on the Borderland”, publicado em 1907 pelo inglês William Hope Hodgson. Trata-se de uma obra obscura da literatura gótica britânica (a meu ver imerecidamente esquecida), que está de certa forma relacionada a dois outros textos do mesmo autor, merecedores ambos de mérito literário: “The Night Land” (A Terra Noturna) e “The Boats of the Glen Carrig” (Os Botes do Glen Carrig) — uma obra de ficção científica e um romance de capa e espada mesclado com fantasia e piratas.

Acredito que as três obras tenham grande potencial de atrair leitores modernos, especialmente porque, ao traduzi-las para o português, tenho a oportunidade de remover o principal defeito do original: o estilo excessivamente arcaizante e empolado que o autor empregou naquelas duas, ou a relativa falta de polimento que caracteriza “A Casa no Fim do Mundo”. Tais defeitos fazem com que muitas pessoas que se interessariam pelo tema em si destas histórias acabem se afastando. Mas uma tradução é sempre uma oportunidade de recriação do original. Embora não me julgue à altura de um Eça de Queirós, proponho-me a fazer pelas obras de Hodgson algo análogo ao que o genial autor de “Os Maias” e “A Relíquia” fez com “As Minas do Rei Salomão”, do obscuro H. Ridder Haggard.

Esta postagem servirá de índice para que os interessados na leitura possam acompanhar o progresso, em estilo folhetim, de meu trabalho de tradução.
Introdução do Manuscrito pelo AutorCapítulo I — A Descoberta do ManuscritoCapítulo II — A Planície do SilêncioCapítulo III — A Casa na ArenaCapítulo IV — A TerraCapítulo V — A Coisa no AbismoCapítulo VI — As Coisas SuínasCapítulo VII — O AtaqueCapítulo VIII — Depois do AtaqueCapítulo IX — Nos PorõesCapítulo X — Os Tempos de EsperaCapítulo XI — A Busca nos JardinsCapítulo XII — O Abismo SubterrâneoCapítulo XIII — O Alçapão no Porão MaiorCapítulo XIV — O Mar do SonoFragmentos [continuação do capítulo XIV]Capítulo XV — O Ruído na NoiteCapítulo XVI — O DespertarCapítulo XVII — A Redução da RotaçãoCapítulo XVIII — A Estrela VerdeCapítulo XIX — O Fim do Sistema SolarCapítulo XX — Os Globos CelestesCapítulo XXI — O Sol EscuroCapítulo XXII — A Nebulosa EscuraCapítulo XXIII — PimentaCapítulo XXIV — Passos no JardimCapítulo XXV — A Coisa da ArenaCapítulo XXVI — O Ponto LuminosoCapítulo XXVII — ConclusãoLuto
Algumas Palavras Sobre a Obra de William Hope Hodgson
O romance inicia com a seguinte nota:
A partir do Manuscrito descoberto em 1877 pelos Srs. Tonnison e Berreggnog nas Ruínas ao Sul do Povoado de Kraighten, no Oeste da Irlanda. Aqui transcrito, com Notas.
ATUALIZAÇÃO: A versão definitiva, que disponibilizarei em formato e-book, terá o título «A Casa no Limiar», conforme sugerido por um leitor. 

ATUALIZAÇÃO em 20 de janeiro de 2013: Disponibilizado e-book em formato ePUB.

20
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 00:01link do post | comentar

Adormeci na frente do computador, sem terminar a monografia. Com o prazo quase esgotado, passara mais de quatro horas digitando como louco a partir de notas desconexas que reunira nos meses de pesquisa, mas em vão. Tanto esforço que minha mente começou a sair de controle e acabei caindo de cara no teclado no meio da madrugada, apesar de todo o café.

Não sei quanto tempo fiquei apagado. Podem ter sido segundos ou horas, porque não estava prestando atenção ao relógio quando dormi. Sei que quando tomei um susto e joguei a cabeça para trás em um gesto brusco, eram 04:12 e fora disparado o maldito alarme de um automóvel que dormia na rua.

Levantei grogue de sono, com a cabeça pesando meia tonelada, e fui tomar um banho antes de ir dormir. O calor não estava mais insuportável, mas eu tinha suado demais. Tomei um banho rápido e frio, dos que gosto quando vou me deitar. Quando voltei do banheiro, pelado e me enxugando na toalha felpuda que cheirava a mofo e a álcool, tomei um susto, que espantou todo sono que ainda pudesse ter.

Tinha deixado o computador ligado. Saíra tão depressa para o banho que não o desligara. O documento da monografia estava aberto no editor de textos e o cursor piscava na tela de fósforo verde. Então notei que o ponto de luz não estava parado à espera do toque seguinte: movia-se rápido pela tela, deixando atrás um rastro de letras e números, mesclados a códigos de formatação LATEX.

Minha primeira reação teria sido — ou deveria ter sido — entrar desastradamente na frente do aparelho e ver que raio era aquilo, mas eu costumava ser um sujeito frio, não o tipo que se apavora e surta. Fiquei parado onde estava, ainda sob o batente da porta, olhando de soslaio para o monitor. Acredito que o computador não me “viu”, pois continuou cuspindo código como se os Digitadores do Inferno estivessem ali. Permaneci observando a cena, tentando decifrar mentalmente a sucessão de códigos que aparecia. Olhei a tomada, na esperança de ver o modem conectado à linha telefônica, mas não. Teria sido fácil admitir como explicação que alguém havia tomado o controle de meu computador doméstico e estava fodendo com a minha pobre monografia, mas não poderia haver acesso remoto se não havia conexão. Ou poderia?

O computador não chegou a notar minha presença. Quando finalmente parou, havia sido digitado \fi e uma sequencia de linhas em branco, como eu tinha por hábito fazer ao terminar os capítulos. Eu não teria notado mudança no código do documento se não tivesse tomado o banho rápido demais.

Sentei-me fingindo que estava tudo bem, dei Control-End e digitei algumas ideias aleatórias do capítulo seguinte. Depois salvei o arquivo no disco rígido, sempre fazendo a cópia de backup no disquete e desliguei aquela máquina do diabo.

Não consegui dormir. Tinha a curiosidade de saber que raio de conteúdo teria sido inserido em meu texto, sabe lá por quem ou que. Poderia ter compilado e impresso o documento, mas teria demorado muitos minutos se houvesse uma matriz XY. Também o computador poderia desconfiar. Preferi deixar para o dia seguinte e tentar pensar melhor.

Quando amanheceu, desisti de tentar dormir e levei o disquete comigo à universidade. Sentei-me diante de um terminal público na biblioteca e abri o arquivo para analisar, como legítimo “escovador de bits”, embora soubesse pouca programação. Logo achei indícios da patranha.

Ao final do terceiro capítulo, havia um \iffalse\iffalse\fi e pouco antes de onde começaria o capítulo seguinte, um \iffalse\fi\fi. Estas enganosas sequências de códigos realizavam algo diferente do que prometiam ao olhar distraído. Tanto o início quanto o fim do código oculto estavam, na verdade, ocultando os comandos de início e fim dos comandos de ocultação, se é que você consegue entender. Talvez esta história maluca só faça sentido para quem manja um pouco de LATEX. Mas digamos que tudo após \iffalse é ignorado, até chegar um \fi. Quem tiver algum talento lógico perceberá a malícia.

O bloco de código não era legível. Era uma sucessão de comandos descrevendo curvas, gráficos, matrizes. Talvez alguém realmente louco de usar LATEX conseguisse o milagre de visualizar a plotagem daquelas fórmulas, mas para mim era como contemplar uma sopa de letrinhas verdes no quadro negro do monitor. Queria logo compilar e descobrir no que dava.

Para isso teria, porém, que ter permissão da bibliotecária, porque os terminais tinham capacidade limitada e a fila de uso era grande. Ela não se opôs, diante da pequena quantidade de alunos que estava na faculdade naquele dia anterior a um feriado prolongado. Dirigi-me ao terminal, então, e ordenei:

latex mono.tex

Naquele tempo os computadores podiam levar horas a compilar documentos complexos, como parecia ser o meu. Por isso logo me cansei de ver a dança interminável das letras elétricas que brilhavam verdes como a fosforescência de uma aparição. Fossem quais fossem os erros, não teria mesmo chance de consertar porque não sabia o que continha o misterioso código. Ainda fiquei uns minutos refletindo sobre mensagens de overfull hbox, lamentando a quebra da margem direita, ou underfull vbox, lamentando os parágrafos separados demais; mas logo me levantei e fui até à cantina tomar um café.

Não contei os minutos na cantina. Ninguém faz isso, a não ser os que já estão loucos e eu não estava. Voltei com um copo cheio de café preto, para espantar o sono que ficara da noite sem dormir, e biscoitos salgados que controlariam a fome enquanto não pudesse ter uma alimentação saudável na lanchonete mais próxima.

Quando retornei ao saguão da biblioteca, notei uma movimentação estranha em frente ao computador que deixara compilando. Havia uns três ou quatro caras do último período de Sistemas que contemplavam a dança das letras parecendo fascinados.

— Caralho, o que é isso que esse louco fez? Vai fritar os circuitos do terminal antes de compilar! — dizia um deles, risonho e preocupado. Aproximei-me quieto, tentando captar a conversa, mas falavam pouco e olhavam muito.

— A Alana precisa ver isso — finalmente disse um, dirigindo-se à porta em frente, com rapidez de elfo. Pigarreei para anunciar minha presença e os outros olharam com respeito inesperado. Os caras de Sistemas não têm o hábito de olhar com essa expressão quem não é de sua própria estirpe.

— Isto aqui é seu? — perguntou um deles, um grandalhão de cabelos ressecados e de cor de cenoura.

— É sim, por que?

— Como pode alguém de Matemática ser besta de programar um loop num documento LATEX?

— Um loop? Merda!

— Eu não sei de nada, a gente estava passando, viu o computador compilando sozinho e resolvemos olhar o código, para tentar adivinhar o que é. Foi aí que notamos que o código está em loop. O que você estava querendo fazer?

Meus olhos percorreram o cabeamento da sala, notando para meu imenso espanto que aquele terminal, sim, estava conectado.

— Contaram quantos loops ele deu? — perguntei, já me sentando.

— Uns dez ou doze nesse meio tempo em que estamos aqui.

— Dez ou doze, hem? Que diabo será isso?

— Você não sabe?

Eu tinha vergonha de confessar, mas preferi ser honesto, afinal eu precisava de ajuda para não ter que, humilhantemente, apertar o botão de reset, como um novato. Eu jamais seria encarado com respeito, sequer pelas namoradas dos caras de Sistemas, aquelas garotas de peitos grandes que cursam “Estudos Sociais” e só passam de ano porque são líderes de torcida.

— Não sei. Achei um documento cheio de códigos os mais estranhos e resolvi compilar para ver o que era.

— Caralho, você é maluco? Sabe-se lá se não é um código malicioso!

— Bem, eu não sei se é nocivo, mas malicioso isso tenho certeza que é.

Eles me olharam, sem entender.

— Alguém entende de LATEX?

O outro cara, que tinha ficado quieto esse tempo todo olhando a dança das letras elétricas, acenou com a cabeça e fez o característico “ahã” dos que estão dizendo que sim.

— Devemos deixar compilar ou tentar interromper?

LATEX não vai fritar os circuitos, a menos que comece a ficar recursivo. É exatamente isso que eu estou tentando entender, se é um loop recursivo ou se é apenas circular. Se for recursivo, você vai ter que desligar no botão de reinício porque vai travar os sistemas de entrada e saída.

Ele tomava notas no seu bloco, em um tipo de taquigrafia pessoal que parecia árabe. Demorou quatro minutos ate ele finalmente decretar:

— Parece que não é recursivo. Deve haver uma condicional em algum lugar que está fazendo o TEX dar várias passagens no mesmo código. Mas essa condicional pode resultar verdadeira em algum momento, então o loop acaba e o arquivo imprimível é gerado.

Alana chegou. Era a única mulher do último ano de Sistemas, era obcecada com criptografia e lia todo tipo de teoria de conspiração. Não era bonita e nem simpática, mas os caras da turma queriam tê-la por perto, fosse como bicho de estimação ou fonte permanente de análise matemática apurada. Era um legítimo “crânio”, capaz de efetuar cálculos mentalmente com facilidade humilhante. Acima de tudo, tinha a capacidade algo sobrenatural de visualizar gráficos a partir de suas fórmulas. Mais que isso, contribuía sob pseudônimo para vários projetos de programação de várias faculdades, inclusive a nossa. Alana não assinava seu nome em documento algum.

No momento em que ainda estava sendo informada do acontecido, dois pares de peitos loiros surgiram à porta chamando os rapazes de forma que nem Alana e nem eu soubéssemos. Não sei se ela soube, mas tenho a visão periférica muito desenvolvida. Os dois caras se despediram e saíram dizendo que tinham que estudar para uma prova e foram levar as duas a alguma festinha. Alana e eu ficamos olhando a tela onde dançavam infernalmente as letras.

— Você já sabe o que é isso, Alana?

— Ainda não.

— Eu imaginei que…

— Não sou uma máquina, Tony — ela me interrompeu.

Tive vergonha do modo como a tratava. Naquele dia, em que justamente o seu lado maquinal estava sendo usado, ela me jogava na cara que era um ser humano. De certa forma, mesmo eu não a achando bonita, naquele dia eu me sentia ligeiramente atraído. Talvez fosse por notar que as suas orelhas tinham um formato curiosamente harmonioso, suas mãos minúsculas pareciam esculpidas. Era só não olhar para seus dentes que teimavam em querer sair dos lábios ou os óculos pesados, que ela parecia ter roubado de sua avó.

Subitamente as letras mudaram de feição. A dança infernal parou e o monitor começou a cuspir uma série de linhas com nomes de arquivo. Era o fecho da compilação. O loop fora interrompido ao encontrar valor positivo. O prompt de comando apareceu então, desafiando enigmaticamente nossa curiosidade. O cursor piscava como se estivesse rindo de mim. Alana foi rápida. Curvou-se sobre o teclado e recuou a sequência de comandos até identificar o arquivo que eu compilara. Então digitou:

more mono.tex

O terminal começou a listar o código, página a página, enquanto ela, ainda curvada, parecia ignorar que eu, olhando por dentro do decote folgado do vestido, contemplava seus dois belos seios, que pareciam as divinas mamas da Vênus de Milo e exalavam um perfume madeirado delicioso. Ela não se interessou nem minimamente pelo meu trabalho, mas quando chegou ao famigerado bloco de código, arregalou os olhos como se tivesse achado um pote de ouro e usou o braço esquerdo para se apoiar no encosto da cadeira, tocando com ele minha nuca, que arrepiou como se estivesse ligado a uma tomada elétrica. Comecei a suar, talvez de sono ou embriaguez do perfume diabólico e da visão daqueles seios miúdos, que pareciam duros como pedras e me imploravam para que os pegasse nas mãos e apertasse gentilmente como botões para abrir uma passagem secreta ao paraíso. Mas quando tentei dizer alguma coisa, acabei dizendo:

— Não prefere se sentar?

Ela ergueu-se, acusando alguma dor nas costas devido à posição, e arrastou uma cadeira. Sentou-se tão perto que todo seu lado esquerdo encostou no meu corpo. Um daqueles seios pontudos cutucava minha axila e minha mente rodopiava sem controle. Queria perder os sentidos rapidamente, antes que ficasse louco e tentasse algo inadequado. Mas não aconteceu nada, porque Alana era rápida com os dedos e com a mente: não demorou a terminar de listar o código. Levantou-se e andou em círculos batendo os saltos pesados dos tamancos nos tacos coloridos do chão da biblioteca enquanto gesticulava e balbuciava multiplicações.

— Acho melhor você não entregar a monografia — disse, por fim.

— Preciso entregar, ou não consigo créditos para passar em trigonometria.

— Tenho um mau pressentimento sobre isso. De onde disse mesmo que saiu esse documento?

Eu não tinha dito nada, mas ela me olhava com a expressão aguda, como se soubesse até as vezes que tinha me masturbado no semestre anterior. Alana intimidava, parecia saber de tudo. Mas não me importava, naquele momento, eu sabia que nenhuma outra mulher do universo teria graça para mim.

— Não sei, nesse exato momento só consigo me lembrar que dormi mal essa noite e preciso sair com você na sexta-feira.

Esta frase a desarmou. Talvez fosse a última coisa que imaginava de mim.

— Sair… comigo? Na sexta-feira?

— No sábado, se preferir.

— Mas por que isso logo agora?

— É a primeira vez que consigo conversar com você a sós.

— Eu… preciso pensar.

— Posso ligar?

Ela deu o número de seu telefone e saiu apressada da biblioteca, me deixando sozinho com minha obra. Então, aproveitando que o lugar estava vazio, comecei a imprimir o dvi, sem testemunhas.

A impressora matricial deu alguns arrotos e rosnados, antes de finalmente acertar a margem do papel. Então o cabeçote começou a dançar, rabiscando linhas interrompidas que formavam o desenho de letras e gráficos.

Uma página, duas, três, vinte, quarenta, noventa e cinco. Quando a impressão terminou, dobrei com cuidado toda aquela tripa de formulário contínuo e guardei com carinho na maleta e voltei ao meu apartamento no campus.

A primeira coisa que fiz, porém, foi ligar. Sentia-me idiota por estar apaixonado, mas nenhum idiota era tão feliz, e não importava nada mais se ela apenas dissesse que sairia comigo. E ela disse. Mas depois disso, enfatizou:

— Você não deve entregar a monografia.

— Tem alguma ideia do que é aquele código?

— Sim. Os comandos lá codificam instruções vetoriais em PostScript. Alguém inseriu no seu texto um código que “desenha” coisas em uma ou mais páginas.

— “Coisas”, que coisas?

— Não sei. Podem ser gráficos, desenhos, uma fonte, um texto até…

Assim que desliguei o telefone, tratei de cortar e encadernar as noventa e cinco páginas, com todo cuidado para que nenhuma rasgasse. Fixei-as num fichário e comecei a folhear, tentando ver onde haviam sido feitas mudanças. Ao fim do terceiro capítulo começava a coisa. Saltava uma página, no meio da qual haviam posto algo que parecia uma ofensa direta contra mim:

«Esta página foi intencionalmente deixada em branco.

«E as anteriores deveriam ter sido mantidas assim também.»

A página seguinte era outra capa, com meu nome, identificação da faculdade, o mesmo título, um subtítulo ligeiramente diferente e um reinício do documento, inclusive numeração, sumário, tudo. Se o tema ainda era «Método de plotagem trigonométrica de órbitas para satélites geoestacionários», o conteúdo quase não tinha a ver. Meu texto ainda estava em grande parte lá, mas entremeado de uma montanha de citações de autores de que nunca ouvira falar e fórmulas de cálculo avançado que eu nem sabia o que eram. Algumas me pareciam referenciar coisas avançadíssimas de física quântica. Várias citações eram em alemão (Schrödinger, Planck, Heidegger, Cantor, Kant), outras em francês (Lamaître, Galois). Autores clássicos eram citados ao lado de outros que talvez fossem novos e pouco conhecidos. Vários trechos não tinham citação, mas fórmulas acompanhadas de ousadas afirmações à banca, do tipo “como se pode provar pelo cálculo a seguir”.

Li todo o trabalho e fiquei embasbacado por não conseguir entender nem metade do que ali estava, muito embora meu estilo de redação estivesse em cada parágrafo. Do pouco que entendi, cheguei à conclusão de que propunha um método através do qual satélites poderiam ser içados a uma órbita, em vez de lançados até ela por um foguete. Os cálculos provariam que a energia necessária a tal sistema seria dezenas de vezes menor, reduzindo o custo do lançamento de satélites a uma fração do então possível, algo revolucionário demais. Eu tinha de entregar a monografia, apesar do alerta de Alana. E o fiz.

Na sexta-feira pela manhã fui buscá-la em seu apartamento. Estava vestida do modo sóbrio de sempre. Trazia apenas bagagem de mão e hesitou em entrar no meu carro. Seus seios pareciam invisíveis naquele vestido. A maioria dos caras da faculdade a chamavam «tábua de carne» por isso. Era difícil crer que uma mulher aparentemente tão reta tivesse seios tão curiosamente belos e harmônicos, e de um formato e consistência tão atraentes.

Almoçamos em um restaurante à beira mar, fomos ao cinema e tomamos cerveja no bar panorâmico do píer; terminando a tarde no meu apartamento, ouvindo Stones e conversando descontraidamente. Não ousei muito coisa. Eu sonhava Alana como se fosse para sempre, e algo que é para sempre não precisa de pressa. Apenas nos beijamos, e nesse beijo senti seus seios contra meu peito e tive a certeza do que queria.

— Alana, pode me achar louco por dizer isso, mas acho que a amo. Acredita em amor à primeira vista?

— Acredito, Tony. Mas amor à primeira vista tem que esperar o mesmo tempo que o amor à décima oitava vista — disse ela, algo cruel, apertando o botão da gola do vestido sem decote que usava.

— Ora, Alana. O que a gente sonha para sempre não precisa começar agora.

Ela riu e me beijou nos lábios, com um tremor na boca que só mais tarde soube ser amor também.

— Por favor, Tony. Leve-me para casa antes que implore para fazer amor com você. Isso não seria bom para nenhum de nós dois agora. Estou me sentindo totalmente frágil e insegura. Não se aproveite de mim.

Os dias seguintes foram de expectativa. Ninguém da Banca Examinadora me contactara ainda, mas eu tinha a estranha sensação de que quando lessem o meu trabalho o meu telefone fatalmente tocaria.

Saí com Alana na sexta-feira seguinte mais uma vez. Não havíamos tido encontro no fim de semana porque ela viajara para visitar os pais, numa distante fazenda nas chatas planícies do Norte. Da segunda vez o encontro se desenvolveu com muito mais fluidez, em parte graças ao traiçoeiro vinho licoroso que lhe servi. Porém, quando ela percebeu que sua cabeça não estava mais tão firme sobre o pescoço, mais uma vez me pediu que a levasse para casa e eu, mais uma vez, me vi moralmente forçado a isso.

Levei-a de volta ao seu apartamento no campus. Àquela hora quase não havia viva alma na universidade. Somente os pobres e que vinham de longe, como nós dois, passávamos os feriados lá. Quando saía, ela me chamou para dizer, depois de jogar um beijo:

— Não entregou aquela monografia, entregou?

Fiquei envergonhado:

— Alana, me perdoe, mas eu a entreguei naquele mesmo dia.

Ela levou as duas mãos à boca, com os olhos totalmente arregalados, e me pediu para entrar. Atirou-me a um sofá e começou a trancar obsessivamente janelas e portas. Depois se atirou sobre mim e quando finalmente percebi o que estava acontecendo já estávamos nus fazendo amor. Ao terminamos, ainda estendidos no tapete macio da sala, tive que perguntar:

— Por que isso, Alana? Não tínhamos que esperar, não havia aquela história de que o que é para sempre não precisa começar hoje.

— Querido, lamento, mas precisava disso. Se não fosse hoje, talvez não fosse nunca. O que vai terminar hoje precisa começar hoje.

Faróis altos brilharam no pátio e um ruído sibilante cortou o ar. Exceto por ele, porém, não havia nenhum outro som em todo o campus. Bateram à porta.

— Oh, querido, lamento muito, muito.

Bateram de novo à porta.

Alana se enrolava no tapete para cobrir sua esguia nudez, enquanto eu tentava me vestir, procurando as peças de roupa espalhadas.

Arrebentaram a porta.

Lá fora uma luz fria e azul oscilava. Entraram homens altos e magros, magros como Alana. Falavam uma língua estranha e eram estranhamente pálidos, como Alana. Senti algo picar o meu peito, olhei e vi um dardo tranquilizante.

Acordei aqui. Você tem que acreditar em mim. Não sei de nada da morte da Alana. Tem que acreditar em mim.

— É difícil, Tony. Muito difícil. Você entregou à Banca Examinadora um bilhete contendo a confissão de que pretendia matá-la, e fez exatamente o que o bilhete dizia. Seu esperma foi encontrado no corpo, suas impressões digitais estão por toda parte, e a polícia o achou lá, ao lado do cadáver ainda quente. O que tem para me convencer de que nada dessa história é verdade?

— Você tem que acreditar em mim, Rick. Os aliens, eles usam a rede elétrica para comunicar-se, alguns são brincalhões e ficam corrompendo arquivos em nossos computadores, ou talvez queiram nos avisar. Alguns estão espionando por aí. Alana era uma espiã, Rick.

— Por isso a matou?

— Não a matei, Rick. Mesmo ela sendo uma deles não a matei porque a amava, porque era a mulher mais interessante que conheci em toda a minha vida. Não a matei, foram eles. Mataram-na porque me avisou para não entregar a monografia, mas não me impediu.

— Tudo bem, Tony. Vou ver o que posso fazer. Mas acho que é melhor alegar insanidade. Se não fizer isso, vai encarar o corredor da morte. Alana poderia ser alienígena, mas apareceram dois pais pobres, lá do interior do Canadá, que confiavam no diploma da única filha para seu sustento na velhice. Uma história comovente, Tony. Nenhum jurado desse país terá simpatia por você.


02
Out 10
publicado por José Geraldo, às 13:23link do post | comentar

O louco dançava à beira do rochedo, desafiando as ondas com seus versos:

— Vamos para o céu, ou talvez… pulem, pulem! Andem logo, ele espera. Vocês não tem escolha! Pulem, pulem para os braços do dragão que esconde suas asas e seus dentes na maciez das ondas.

Os homens continuavam construindo o barco sobre o gramado. Enquanto as mulheres colhiam frutas e preparavam carne-seca — provisões para a viagem. O louco observava e cantava seus versos desafinados:

— Vocês não tem escolha, as velas serão rasgadas pelos ventos. Os mastros serão destroçados pelas ondas. Em vez da Torre ou da Terra Prometida vocês serão mortos e seus corpos trespassados pelos espinhos longos do dragão.

O contramestre cansou-se da litania e raspou a garganta:

— Cale-se, estúpido. Esta ilha é teu destino, por blasfemar desta maneira contra a esperança. Pára de gritar, pelo menos, enquanto nos preparamos para cruzar o mar.

Mas o louco não tinha medo do poder, quem teve a morte diante de si e viveu, mesmo que por um tempo, perde esse pudor, da dor. Com uma lágrima solitária no olho, o louco dirigiu-se a uma das mulheres:

— Madame, você veja o que diz seu marido. Oh, cuidado o homem que acha que sabe o que quer. Ele nunca para em lugar nenhum. Sempre haverá outro mar, sempre haverá outros braços. Alguma promessa da grande cidade perdida, da grande vida que não houve, e nada é tão favorito do aventureiro quanto o desejo de partir outra vez.

— Cala-te, louco. Ninguém mais suporta tuas dores. Guarde-as para ti.

— Como, madame, se eu tampouco as suporto?

Fez-se um silêncio na colina. O silêncio da compreensão. Mesmo os loucos falam a verdade, precisamente. E quando os sãos a entendem, uma dor profunda, dessas que exigem um assassinato, passa pelos corações dos sensatos.

O contramestre pegou um machado e ameaçou outra vez.

— Some de nossa presença, besta!

O louco amansou um pouco e continuou os versos num outro tom:

— Então vão, viagem, vão para o céu, ou o inferno. Vocês não têm escolha. Por favor, me deixem aqui, prometo fechar meus olhos quando o Grande Polvo surgir. É bom e é seguro estar perdido no mato, não é tão mau quanto estar triste na praia. O mato não me diz nada, não me mata. E o que eu digo lá não é ouvido por ninguém que me odeie. Então vão, viagem, iscas vivas, crianças lambuzadas de mel andando entre as colmeias.

O louco deixou escapar uma gargalhada cortantemente triste e correu pela praia, tropeçando na areia.— Por favor, deixe-nos em paz — berrou um rapaz que parecia sensato.

O louco mirou-o com olhos agudos e disse:

— Prometo fechar os meus olhos, mas como fechar meus ouvidos?

O vento soprou e as folhas das árvores lamentaram os troncos cortados pelos homens para fazer os barcos.

— Por favor, não me ponham na bagagem — insultava o louco.

O contramestre deu por terminada a obra. Uma garrafa de antiga cerveja, choca pelas décadas, mas ainda cerimonialmente útil, foi quebrada no casco. O cheiro doce do levedo estragado preencheu o ar com saudades. Um discurso. A bruxa da tribo subiu na proa, desafiadoramente penetrando a maré.

— Os mares alcançam o mundo, amados. Eles continuam, apesar de tudo, iguais. Não precisamos voar, nem morrer nesta ilha miserável. Quanto mais ficamos, menores somos. Vamos embora, chega de arrastar-nos pela areia. O calor do vento é nosso amigo, nossas cantigas nos darão força para cruzar o mar. Venham, todos, amigos, amantes, maridos. Ponham-se a bordo e vamos!

Do alto de uma pedra, o louco chorava. Era um homem ainda jovem e razoavelmente belo. Em sua loucura amava a donzela cujo nome não sabia. Por ela chorava, mais do que pelos outros, porque ela não ia por querer, mas por força da vontade do seu pai — segundo contramestre.

E na tarde do quinto dia o barco foi empurrado para dentro do mar, e navegou suavemente até os arrecifes, deixando o louco na praia, derramando-se em lágrimas e versos de pé quebrado.

Então os tentáculos do monstro surgiram das profundezas, cheios de agulhas longas e penetrantes, e abraçou o barco, diante dos gritos da tribo inteira. O louco descobriu o ombro e olhou a cicatriz que tinha sob a clavícula, lembrando da dor e do desespero, da sorte de ser trazido, esquecido, até aquela praia.

Ergueu-se ali e estendeu um punho fechado contra o céu, dizendo:

— Tu já foste bastante surdo ou bastante mau. Já me convenci o suficiente de ambas as coisas. Mas tenho duvidado se devo mesmo ter medo de você, mais do que do Polvo. Porque ele, ele eu sei que existe e vai me matar um dia, quando tiver aprendido a cercar-se da terra pouca dessa ilha. Mas tu, tu podes ser somente uma ilusão que sobrou, de um mundo que não existe mais. Mas se existes, então salva justamente Ela, como salvaste justamente a mim. Salva-a não por misericórdia, mas porque és mau e te deleitarás mais no sofrimento da morte dela adiada. Salva-a para minha luxúria, como me salvaste para ser palhaço dos ignorantes.

O louco deixou-se cair na areia, chorando sem controle, esperando que sua prece fosse ouvida. E o mar rugia, e dezenas de impotentes gritos se ouviam.


18
Ago 10
publicado por José Geraldo, às 07:30link do post | comentar

“Não há uma história para contar” — disse o homem depois de olhar nos olhos os amigos que o rodeavam. “Lá em cima é frio e solitário, não há nada para ver e aquele vento que vem não te traz nenhuma sensação além do desespero. Não há nenhuma sensação mística, nenhuma experiência espiritual.”

E desceu, ainda com as botinas molhadas de orvalho, carregando nas costas a enorme mochila de acampamento. Os demais permaneceram ao pé do monte observando o acúmulo de nuvens brancas em torno do pico, temendo e ansiando pelo desafio de tocar com as mãos a ponta de pedra que diziam haver ali, oculta por aquela névoa sobrenatural que nunca desaparecia.

“Vento? De que diabos ele estará falando? Não pode haver vento lá em cima, ou não haveria aquelas nuvens”. O líder da expedição parecia confiante, embora algo ainda o fizesse hesitar: a lembrança dos gritos que ouvira logo que o guia atingira o cume para fixar as garras de metal.

“Esse homem só pode ser mesmo um louco” — disse um outro, um jovem de cabelos crespos e olhar luminoso.

Então todos concordaram em ir e fixaram-se à corda que bamboleava, seduzindo e assustando, saindo como uma serpente vermelha de dentro da névoa branca.

“Os últimos passos sempre são os mais difíceis… — pensou o líder — O ar falta, as pernas já não querem obedecer e ainda nos vem esta sensação estranha de que algo está acabando dentro de nós e que já devíamos voltar.”

A três mil metros de altitude falar torna-se penoso. Exaurida a última dose de tenacidade, todos lamentavam o excesso de ambição. Talvez tivesse sido bastante contentarem-se com a vista deslumbrante da planície verde pontilhada de coisinhas brancas e fitas de prata que pareciam rios serpenteando em meio às arvores.

“Estamos chegando.”

E a névoa aos poucos foi se abrindo, como braços. Deixando atrás deles uma luz cada vez mais difusa e fazendo as moitas de capim parecerem negras línguas emitidas pela terra raramente tocada pelo sol.

Ou pelo som de vozes, que pareciam amortecidas pela neblina.

Talvez aquelas pedras fossem a parte mais traiçoeira da subida, difícil enxergá-las em meio à brancura densa e úmida que se apegava a tudo e trazia para perto o limite da visão. Em qual delas pisar, de qual desconfiar.

Subitamente tudo parecia lindo, “como peixes nadando num aquário de leite”. Os homens subiam respirando com pulmões mais limpos, de tantos dias longe da humanidade, ali naquele lugar em que todos somos estrangeiros.

Então viram.

Veio como um murmúrio surdo, talvez de… não. Não podia ser. Assobiava como a ventania de agosto nas folhas finas do capim-navalha. Um assobio de fantasmas mesmo, algo como você ouviria se estivesse sonhando estar em uma montanha distante, sem nenhum telefone e sem a lembrança de deuses. Eles o sentiram contra suas barbas e cabelos, um frio mais fundo os tocou, um frio desses de alma, desses que a pele não sente, apenas pelo arrepio da nuca.

Subia e rodopiava, rápido o bastante para agitar seus cabelos, para fazer aquele assobio tenebroso nas folhas do capim. Lento, porém, para afastar aquela névoa dura que partia-os do mundo.

“Lugar feio mesmo” — concordou alguém.

“A partir dali parece que já é plano, não vamos precisar de corda nos últimos metros”.

“Ainda bem, porque a que temos precisamos deixar presa para usarmos como guia na volta, ou nos perdemos nessa neblina do c…”

A frase foi cortada pelo recrudescer do vento.

“Como se a montanha não gostasse de nós.”

“Você não devia ficar lendo estes livros malucos, eles ficam pirando sua cabeça com essas idéias místicas.”

Mas de repente era inegável que estavam sós em um platô desnudo, junto ao último lance de subida daquele pico sempre oculto pela névoa, que ninguém sabia quanto alto era e nem se estava em nosso lado da fronteira.

“As bússolas não estão funcionando.”

“Esta rocha em que estamos deve ser quase pura magnetita, um verdadeira ímã natural gigantesco!”

“O GPS também está estranho.”

“Interferencia magnética. Deus sabe em cima do que nós estamos!”

Os últimos metros de subida não foram os mais fáceis, talvez pelo ar tão ralo, aquele vento estranho e aquela neblina que não parecia pertencer ali. Tiveram de apoiar-se muito, escorregavam e por sorte havia aquela muralha de pedra tão perto da superfície lisa da encosta.

“Liso demais isso aqui. E frio como… vidro?”

“Sílica vitrificada pela ação do calor, e talvez da pressão. Este lugar parece ter sido mais interessante.”

Então chegaram ao topo e ali viram. Viram o que não queriam e não podiam ver. Viram o que viram e acabaram por esquecer: ali havia nada mais que uma rocha nua, de formato mais ou menos triangular. E sobre ela, em ângulo de quase 45°, uma lisa haste de material escuro terminando em um globo. Firmemente fixada. Inquestionavalmente ali.

Justo ali onde as nuvens chegavam ao seu teto e eles podiam ver o céu violáceo estendido acima, como um pergaminho místico.

“Não, ele tinha razão. Não há nenhuma experiência mística nisso.”

E desceriam, calados e temerosos, retornando às suas vidas normais, não sendo mais eles normais como antes. Mas enquanto se recompunham para a longa jornada de volta, o líder, fatidicamente, lembrou-se de dizer: “Vale a pena voltar aqui”.

Os demais o encararam, surpresos. Tinha sido tão difícil subir e tão difícil a experiência de contemplar a cena em que estavam. Pensar em retornar era até desagradável.

Mas à mera sugestão de que valia a pena voltar, a ideia começou a tomar forma em cada um. E todos perceberam, desde aquele momento, que fatalmente voltariam.


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