Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
03
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 23:00link do post | comentar
Estas montanhas têm uma história, desde os tempos dos índios, desde antes do primeiro português cortar a primeira árvore. Eles vieram, viveram, morreram, viram o mal que havia e se foram, ficaram apenas alguns pobres puris isolados, entocados quase como bichos. Vieram os emboabas a caminho das minas, tentaram fixar-se aqui, mas não ficou nenhuma vila, queimaram todas as casas, sumiram no tempo como se nunca tivessem pousado, e a estrada real passou ao largo.

Minha avó costumava me contar que toda esta região era pacífica e silenciosa até a segunda década do século, que ela mesma viveu numa casinhola entre árvores, beijada pela sombra fria da mata. Mas veio o café, veio a guerra, a estrada de ferro, vieram as armas. Mataram os índios, abriram clareiras, começaram a produzir. Mas em pouco tempo a terra negou seu seio, os cafezais feneceram, os fazendeiros faliram. O povo restou pobre, em uma terra mais seca e nua. Os trilhos de ferro recuaram, abandonando estações ilhadas nas montanhas.


Nasci aqui, sentindo esse vento seco e duro que cresta a alma e corta a cara, que arranca as folhas das árvores, como se tentasse arrancar os homens da terra. Mas eles só sairão quando chegar a hora da colheita. Toda vez que eu olhava os morros erodidos, as encostas peladas, a terra retalhada com cercas e dividida em lotes de cores diferentes eu me sentia cúmplice dessa violência.

Este ano, porém, começou diferente. O cheiro do ar foi outro desde o início, os dias foram encolhendo, as noites ficando mais frias e quando eu olhava as bordas dos morros cortadas contra as nuvens eu tinha calafrios, temendo que essa Hora maldita estivesse a caminho.

Nas primeiras semanas eu me senti assim, sozinho. Não tinha coragem de falar com ninguém, porque desde menino tivesse essa fama de sensível, de fresco, de frágil. Nem os calos duros em minhas mãos, nem minhas botinas armadas com arame, nem o cheiro forte da terra em meu corpo conseguiram apagar as impressões que os outros tiveram de mim no dia em que saí de mim e disse aquelas coisas que ninguém nunca ousou repetir.

Mas quando o outono começava a envelhecer, notei que não era mais o único. Podia pressentir que os jovens estavam irrequietos  que os velhos estavam mais abatidos. Alguns sonhando em voar, outros querendo dobrar definitivamente as asas. Então senti voltando a mim a sensação, e os cheiros, que me abateram naquela tarde de criança. Eu pressenti a proximidade do escuro, eu enxerguei as dobras do destino direcionando o correr de nossas vidas para o canto da mesa, para a caçapa inevitável. Senti a Presença pela primeira segunda vez, mas não tive medo nem ódio, aliviei-me de toda irritação e adorei aquela época do ano.

Os Gonçalves então apareceram com a notícia de que estavam indo embora. Eles tinham uma fazenda grande, com várias casas, currais, tulhas, silos e cocheiras. Tinham feito um trabalho bonito, por vinte ou trinta anos, desde que o velho Nhonhô Gonçalves chegara de Itaperuna cheio de dinheiro, que as más línguas diziam ser mal havido, e comprora a terra de um colono antigo, que eu nem chegara a conhecer. Eles trabalharam muito, fizeram render o seu dinheiro, tinham vacas, tinham milharais, canaviais, um pomar que dava gosto. Então veio aquela seca longa do ano retrasado, emagrecendo o gado, matando o milho plantado, prejudicando a cana. E justo quando a seca acabava apareceu a praga da erva roxa nos pastos, intoxicando os animais famintos que comiam tudo.

Perderam muito dinheiro, tiveram que vender as vacas boas enquanto valiam alguma coisa, muitas morreram vacas de fome, muitas ficaram vacas maninas, cresceram bezerros de pelo ruço, novilhas de tetas murchas.  Um gado sem valor, em uma terra que precisava ser roçada de novo, com uma praga que ninguém sabe de onde veio, como se o próprio demônio tivesse passado semeando.

Agora estão finalmente vendendo, e é uma tristeza ver os garotos com os olhos cheios de água, tentando sorrir enquanto põem preço naquilo que nada paga. Dizem que vão comprar caminhões, ganhar a vida no transporte de carga. Enquanto eles falam eu escuto um vento soprando forte, um vento que arranca folhas das árvores. O vento que anuncia que chegou o tempo de colher. Os dias continuaram encolhendo, as noites ficando frias. Colheita no inverno, colheita mais amarga. Os jovens irrequietos, os velhos andando de cabeça baixa. Eu sei que a escuridão está mais perto, alguma presença está aqui. Parece que o clima mudou, mas eu não estou mais gostando dessa época do ano.

Sempre vivi nesta casa de fazenda. Hoje fazem dez anos que meu pai morreu. Foi num agosto ventoso como esse, talvez ali eu tenha ouvido esse vento pela primeira vez. Herdei esta terra, estas cercas, estas pobres vacas, companheiras de meu infortúnio, pobres reses que eu nunca consegui vender. Não sei bem do que eu vivo, o leite que tiro mal dá para comer. Tenho a herança de uma tia rica, o ódio de uma mulher que me deixou. Faz muito tempo que não tenho medo, muito tempo que não sentia nada mau. Tinha aprendido a conviver com esta terra, deixar crescer o mato, receber a chuva, proteger a ave, abrigar o bicho. Dizem na cidade que eu também virei meio bicho, só porque não consegui cortar a árvore que nasceu debaixo do Mustang que ficava na garagem. Garagem que já caiu de podre porque não a uso: por que me enjaular entre dobras de ferro e produzir fumaça ruidosa pelo mundo? Vou a pé aonde vou, e sempre é perto. Dizem na cidade que a lucidez também me deixou.

Os Gonçalves eram meus últimos amigos. Catarina a última mulher que não me achava louco. Teria sido minha esposa se eu quisesse, me ajudaria a cuidar de meus coqueiros, meus horta, minhas laranjeiras, de todos esses pássaros que pousam na varando cada silenciosa tarde. Eles me dão uma música melhor que qualquer rádio.

Ficará um buraco em forma de Catarina em minha vida. Um buraco na forma de cada amigo que vai embora, na forma de deus que nunca vi, na forma de cada alegria irrepetida que nunca descobri.

Então esta tarde veio o homem de longe, com cabelos penteados, camisa branca de riscado roxo. Enverga botinas pontiagudas, sem esporas, porque sua montaria é dessas de que não gosto.

Ele me falou de coisas que não entendo — como dinheiro, eucaliptos e carros. Fala em derrubar estas espertas, angicos, paineiras, jenipapos, imbaúbas e ipês. No lugar de todas estas cores e perfumes diferentes, uma árvore apenas há de imperar, com sua resina roxa, seu aroma doce.

“Apenas oito anos”, ele diz, “e pode-se vender a um preço exorbitante. Tão exorbitante, aliás, que eu estou disposto a contratar agora a venda, para protegê-lo da possibilidade de que em oito anos tanta gente tenha plantado que o preço nem seja mais exorbitante. Aproveite esta oportunidade única na vida, está na hora de ganhar dinheiro outra vez, sacudir a poeira desta terra adormecida.”

Eram palavras bonitas, mas eu só consegui me fixar nas listras roxas de sua camisa, pensar nas folhas roxas da praga que matou o gado dos Gonçalves e vai levando embora Catarina. Nada de bonito pode vir de alguém que usa roxo. Cor de morte, cor de hematoma, cor de luto de homem, pois homem não se veste de viúva.

“Uma terra tão grande normalmente a gente oferece em parceria, mas se o senhor preferir podemos fazer-lhe um preço muito bom por seus cento e vinte alqueires.”

Não, não venderei a terra, nem plantarei eucaliptos. Tenho trinta anos e ainda tenho alguns mognos para ajudar a crescer. Espero um dia estender minha rede entre os dois jacarandás que plantei na entrada do terreiro, como sentinelas a bloquear a entrada de qualquer carro.

“Sua propriedade vai ficar isolada entre todas as outras, única ilha de mato e pasto sujo num mar de montanhas verdejantes de reflorestamento.”

Que seja, mas há uma beleza nas ilhas. As únicas que eu conheço são as que existem no rio, que eu costumo contemplar quando vou à cidade receber alguma venda, verificar a renda que me legou a minha tia e fazer minhas compras. São pedaços bonitos de terra que resistem no meio do rio, deixando a água passar ao largo, a turbulência ir embora. Resistem à enchente até. Que seja, minha fazenda será uma ilha. E eu o habitante feliz, Robinson Crusoé eternamente a espera de que não me resgatem dela. Espero viver muito, tenho de me cuidar. Enquanto estiver vivo talvez consiga proteger o trinca-ferro, o mão pelada e a preá.

Que sopre o vento o quanto quiser. Que leve embora as folhas doentes das árvores. Pode ser o tempo de colheita delas, mas as folhas vivas, que ainda bebem a seiva da terra, estas não vão ser arrancadas pelo primeiro vento.

Quando ele foi embora eu senti a escuridão mais perto do que nunca. Senti uma presença estranha aqui por perto. Estava perto da noitinha, mas eu não tinha medo. Faz muito tempo que não acontece nada estranho, esta terra nunca me fez mal. Nunca fizera mal aos índios que ficaram, os que a entenderam.

Mas o calafrio continuou, uma sensação de algo forte caminhando entre os galhos emaranhados, algo acinzentado, peludo e frio. Não tenho medo, mas não saio à noite quando pressinto isso. Fico na varanda contemplando o escuro, e o escuro me contemplando com seus olhos amarelos, que às vezes piscam. Acho que o estranho não deveria ter sido tão ousado, não a ponto de vir aqui em carro conversível.

Os grunhidos que ouvia longe, contidos, pareceram mais perto. Os olhos não estavam me olhando enquanto eles estalavam na noite. Ouvi o motor de um carro acelerar ao máximo, bater contra a minha porteira com a força de quebrá-la, mas por felicidade desapareceu pela estrada aos poucos. Pude ouvir o motor um longo tempo, como se a distância não aliviasse o pé do estranho de camisa roxa. Que nunca mais voltou, nem voltaria sob a mira de uma espingarda.

Ele talvez não saiba, mas não deveria ter falado comigo tão ríspido. Todos me chamam de louco, mas ninguém me incomoda. Não desde que o filho do Gracindo, aquele idiota, veio tentar caçar minhas capivaras. Eu o proibi, adverti, implorei, mas ele me estapeou, abusando de sua força e me chamando de maricas. Entrou na mata e não voltou. Sua mãe só o viu de novo embrulhado em plástico preto, uma fotografia ampliada colada no lugar do rosto.

Tentaram me acusar, mas não havia como associar minhas mãos com aquelas marcas, meus dentes com aqueles nacos de carne arrancada. Mataram uma pobre onça nestas redondezas e deram o caso por terminado. Isso é o que a polícia diz, mas ninguém nunca mais entrou na minha terra pensando em caçar. O povo daqui é mais esperto que esses polícias que vem de Ubá ou Muriaé, e não entendem a língua da terra. A diferença é que eu, diferente do povo, não tenho medo. Não vou me deixar levar.

Os Gonçalves foram embora hoje. Estava lá na despedida, barbeado pela primeira vez em meses. Uma cena de fazer chorar, os pobres homens, despossuídos de suas vidas, condenados a vagar no mundo conduzindo máquinas, a maldição da terra. Catarina estava entre eles, parecia mais triste que todo mundo. Não fui o único a notar que lhe haviam dado remédio outra vez, e amarrado suas mãos e pés.

Voltei para casa triste, sentindo a vida me escapar. Sentei na varanda olhando a noite, ouvindo os curiangos no terreiro, e sentindo falta dos olhos amarelos que me acompanhavam nestas solidões frequentes.

Então ouvi de novo o grunhido, e tampouco tive medo. Tanto faz à vida, se a gente morre tarde ou cedo. Mas a fera não tentou morder, nem veio junto a mim. Apareceram os seus olhos, amarelos, na penumbra do terreiro. E no dia seguinte eu encontrei na horta um lenço arrebentado, como se tivesse amarrado os punhos de alguém.

28
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 20:44link do post | comentar | ver comentários (1)

Há momentos na vida em que você subitamente se dá conta de que as suas certezas viraram dúvidas, e tudo que era sólido parece poeira ao vento. Então você percebe que não adianta mais lutar, que a luta era uma violência inútil. Melhor render-se ao inevitável, flutuar na correnteza da vida, que todos sabemos para onde vai. Vai-se o anel, para a gaveta ou para o olvido, mas fica a mão inteira, e uma vida que resta.

Hoje foi um destes dias. Sinto-me imensamente triste, mas uma semente de alegria brilha sempre, porque descobrir a verdade, mesmo quando nos fere, é uma libertação. Cá estou nesta casa vazia, com meus raros móveis e meus sonhos — o tudo que me resta. A vida acaba de me roubar um pedaço do passado e um naco de futuro possível, mas não me roubou a esperança, essa coisa que ainda brilha no fundo do baú: pelo menos ainda é cedo.

Entendedores entenderão.

05
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 10:24link do post | comentar
Este texto é um trecho avulso do romance «Amores Mortos», que está em fase final de revisão. A história se passa entre 1984 e 2000 e neste trecho em especial está situada em 1994, pouco após o Plano Real. Oswaldo (variadamente referido pelos diversos personagens do livro como Vado, Vadico, Vadinho ou Valdo) é um sujeito que migra de emprego em emprego, por diversas cidades da Zona da Mata Mineira, geralmente trabalhando como representante comercial, vendedor de seguros ou funções assemelhadas. A história acompanha, de forma não linear, a sua vida amorosa, que incluiu mulheres de várias cores, idades e tem­pe­ra­mentos, e a sua busca pela paz interior, através de duas ou três religiões dife­rentes, inclusive atuando como pastor de uma pequena igreja em certa época e tendo um «papo sério» com Jesus no momento mais tenso de sua vida.
Ele parou o carro à sombra de uma árvore, como um espião faria, e abaixou até a metade o vidro. Passou os dedos pelos cabelos uma última vez, para ver se não havia nenhum desleixo excessivo, e olhou pela greta em direção à casa número 156. Tirou do bolso o pedaço de papel onde anotara o endereço e conferiu se não havia distraidamente invertido os números em sua lembrança e respirou fundo. A casa devia ser aquela.

A certeza acelerou o coração, fez amargar a boca, causou aquele aperto por den­tro que acontece nos momentos de grandes escolhas. Ainda poderia simples­mente ligar o carro e ir embora, depois ligar de volta dizendo que… sei lá, qual­quer coisa. Porém, se o fizesse, levaria meses ou anos ou vidas martirizando-se pela falta de ousadia. Decidiu que levaria a coisa toda até o fim.
Tudo começara semanas antes, quando começara a conversar por telefone com Mar­lene, que trabalhava no escritório de alguma das muitas lojas a que vendia. Gos­tara da voz, quisera conhecer o rosto, encontrara-o dentro de um envelope, dese­jara o corpo, deixara o emprego, mas levara o número e chegava então à casa onde ela o esperava. Marlene, auxiliar de escritório em alguma loja pequena, de uma cidade razoavelmente grande para oferecer anonimato, bastante perto para possibilitar aquela aventura.

Lamentou que os telefones celulares ainda fosssem tão caros, ou poderia ter um no porta-luvas para discretamente chamar-lhe e perguntar alguma coisa antes de descer. Ouvir a voz dela o ajudaria a ter mais coragem, ajudaria a borrar um pouco a imagem de Cândida de sua memória.

Por fim desceu, mesmo sem coragem e com as pernas bambas. Atravessou a rua depressa, com as costas queimando como se milhares de olhares mapeassem cada passo. Tocou a campainha e refugiou-se na sombra da soleira esperando que nem todas as pessoas daquele bairro, daquela cidade, do estado, do país, do mundo, do universo, tivessem visto, tivessem notado, tivessem anotado sua presença.

Ouviu passos, pés arrastados no chão. Calcanhar de chinelo batendo. Passos de velha, ou passos também tremendo. A porta se abriu e lá estava ela, a mesma Marlene da foto, ou quase ela. Os cabelos eram mais curtos, o rosto mais estreito, um cheiro que a mulher fotografada não tinha. Marlene sorriu-lhe dentes bonitos, sempre o grande medo que tinha nos primeiros encontros. E começou a destrancar os múltiplos cadeados que protegiam a entrada.

— Tanta tranca — perguntou-lhe — é seguro deixar meu carro na rua aqui nesse bairro?

— Provavelmente — ela disse com uma voz que mal lembrava a do telefone — eu é que sou meio desconfiada.

Aberto o portão, pisou pela primeira vez a casa dela. Piso frio, paredes manchadas pelo uso, um cheiro suave de lavanda, os móveis simples, sofá coberto por uma capa de tecido liso.

— Aceita um copo de água?

— Obrigado, claro, é… foi uma viagem longa.

Ela lhe indicou que se sentasse no sofá, o que ele fez com cuidado, escorregando como se aquele assento o rejeitasse. Ela veio com o copo de água e sentou-se ao seu lado, sorrindo sem jeito às vezes. Tomou a iniciativa de pegar suas mãos, estavam frias, eram magras, eram duras, terminando em unhas pintadas de vermelho escuro, que combinava tão bem com o tom moreno da pele.

— Você veio mesmo.

— Duvidava que eu viesse?

— Claro. Por que você viria?

Fez-lhe uma carícia no rosto macio, apesar de macilento.

— Porque lhe disse que queria vir, é suficiente.

Ela sorriu outra vez, olhando obliquamente para algum canto da sala que ficava em outro universo:

— É suficiente.

E deixou-se escorregar até mais perto dele, até suas coxas se encostarem, separadas pelo brim das calças. Oswaldo se sentia com dezessete anos, como sem­pre se sentia quando surpreso na vida. E a vida vivia a surprender-lhe.

Olhou de novo para o rosto de Marlene: era bonita, mas a sua expressão sofrida o desarmava.

Então ouviu uma terceira voz na casa. Arrepiou-se, fez menção de se levantar. Ela o segurou pela mão e surrou-lhe ao ouvido:

— Calma, é só a minha prima que veio pegar uns discos emprestados. Ela já está indo embora.

Oswaldo não se sentiu seguro com esse consolo, mas não tinha a chave da porta. Sentia-se um coelho pego numa armadilha. Da sala não podia ir a nenhum lugar, nenhum esconderijo a não ser suas mãos. Ouvia os passos da prima que vinha de dentro da casa com passos parecidos com os de Marlene e pensava se não poderia, talvez, desaparecer como um vampiro na fumaça. Não pôde. Ela veio, deu boa noite e dirigiu-se à cozinha, seguida de Marlene, saindo pela outra porta, que foi trancada depois.

— Pronto, querido — disse ainda a meia voz — agora estamos sós.

E sentou-se ao seu lado, oferecendo a segurança que tinha fugido dele ao ouvir a voz da prima. Beijou-o com lábios firmes, olhos fechados e a alma faminta. Oswaldo, então, relaxou e abraçou. Não dirigira quase cem quilômetros desde Juiz de Fora para acovardar-se facilmente. Qualquer coisa que tivesse de dar errado, já daria sem que pudesse evitar.

— Espero que sua prima seja péssima fisionomista — comentou, cedendo pela última vez à covardia.

— Você se preocupa demais, ninguém o conhece aqui na cidade, como você mesmo me disse. Sua mulher nunca vai saber.

Beijou-a por sua vez. Apertou-a num abraço que revelou quão pouca carne havia sobre seus ossos. Então ela o chamou:

— Vem.

Levantou-se do sofá e a seguiu pela casa, rumo ao quarto. Pelo caminho conhe­ceu onde habitava a voz doce que conhecera pelo telefone: um pequeno quarto com beliche, certamente o das crianças, um banheiro pequeno onde ele mal cabe­ria, um quarto abarrotado de roupas e espalhadas pelo chão, contendo uma máquina de costura, um quarto maior, de janela única, com um roupeiro imenso, uma cama que parecia feita para alguém muito maior que Marlene, tão miu­dinha.

— Quer tirar a camisa para não amarrotar?

— Não precisa.

Tão logo ele o disse, Marlene tirou as mãos de seu colarinho e as levou à própria cin­tura, tratando de abaixar as calças rapidamente, revelando-se para ele sem ceri­mônia. Oswaldo se sentiu ridiculamente tímido e foi tratando de desabotoar a camisa, o que só terminou de fezer quando ela já havia pendurado toda a roupa no cabide junto à porta, e ainda não acabara de despir-se e ela já estava toda nua, de pé com seus cento e sessenta centímetros de ousadia. Quando final­mente se desvencilhou das meias, última cobertura de sua carne, abriu-lhe os braços, envergonhado, como um frango exposto no balcão do supermercado.

— Espero que você não se decepcione — comentou, pensando nas próprias per­nas finas, na barriguinha de cerveja que começava a crescer e no tamanho do próprio pênis, que ela poderia julgar insuficiente, considerando toda a fami­li­a­ridade que parecia ter com essas coisas.

— Nem um pouco — ela respondeu, lançando-se contra seu corpo.

O contato com uma carne estranha o fez estremecer. Mas não dirigira por quase cem quilômetros para falhar tão cedo. Abraçou-a quase como se ela fosse uma criança, apesar de seus trinta anos, e a pôs de pé sobre a cama, a uma altura que per­mitia que suas cabeças estivessem no mesmo nível.

— Então, vamos com calma, que ainda é cedo esta noite.

— Mas é tarde na vida — ela respondeu, filósofa.

15
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 12:44link do post | comentar

O ganso grasnou na neblina leitosa e Janaína chegou à janela para ver os raios infantis de sol nas teias de aranha que punham um véu nas folhagens úmidas, o orvalho parecia um salpico de perolazinhas: não havia maior troféu no mundo que estar viva e ver aquilo!

Dona Gertrudes trouxe uma bandeja de torradas com manteiga, café de rapadura e queijo. Tudo cheiroso como na infância soterrada pelo tempo. Há momentos na vida que parecem durar eternidades, mesmo sendo poucas semanas. E Janaína ouvia os ecos da infância como se tivessem sido numa era anterior, quase inimaginável. Estava de volta à cidade pequena e à casa da mãe. Nada era mais surpreendente do que isto. Depois que a mãe saiu num passo abatido, suspirou e começou a morder o desjejum enquanto contemplava o mundo, tão distraída que talvez não notasse um tiro de canhão.

Havia um pé de girassol além da cerca, algo melancólico de se ver, todos os dias, aquele movimento inconsciente da flor, aquela vitalidade vazia de planta… Nem as aranhas são tão desesperadas: fazem teias por instinto, mas não parece que ficam tão presas a um ciclo. Ao contrário dos girassóis elas podem pular de árvore em árvore. E tantas pessoas parecem girassóis. E tantas querem ser aranhas.

Quando deu por si mastigava o resto do queijo, que rangia gostoso na boca. Mal notou quando a mãe tirou a bandeja, resignada.

Afastou-se da janela com o cuidado que se precisa e foi ler outro capítulo do livro de Miguelito. O rapaz era atencioso, trazia-lhe livros e gastava horas preciosas de sua vida dando-lha atenção. Adorava Miguelito, ingênua e desesperada, mesmo sendo tão bonito — era um sonho inconsequente e necessário.

Dessa vez lhe trouxera um romance. Finalmente ela o convencera a parar com obras espirituais: “Não preciso me agarrar tanto a Jesus, pobrezinho. Se ficar o tempo todo falando em seu ouvido ele vai cansar e talvez não me ouça quando eu precisar”.

Miguelito se ofendera com a ideia. Sugerira, ácido, que Janaína “não aprendera nada”. Mas trouxe um livro que não era de orações nem exemplos edificantes. Demorou, porém, deixando-a com medo de ter perdido o amigo. Mas ele voltou, parecendo querer voltar — e isso importava muito.

Logo cansou do livro e preferiu pensar no amigo. Ele tinha uma pele morena muito uniforme, como se jamais tivesse sido agredido pelo sol, um tom moreno de nascença, de herença atávica. Seus olhos eram pretos, completamente pretos, como botões. Olhos que brilhavam, líquidos, quando a contemplavam. E tinha cabelos escorridos, cabelos de índio, grossos e saudáveis. Gostava de pensar nele, mas pensava melhor sob as cobertas.

Aproximou-se da cama com cuidado e com toda a energia que lhe sobrava nos braços. Ainda estava aprendendo muita coisa, ainda estava adquirindo força e delicadeza. Deixou a cadeira de rodas e passou para o leito. Enrolada nas cobertas, pensando nele, voltou a explorar restos de sensações na pele, mapeando-se, descobrindo onde ainda o sentia, imaginando o que poderia oferecer-lhe. Pois Miguelito merecia mais que seus sorrisos.


18
Jun 12
publicado por José Geraldo, às 19:30link do post | comentar | ver comentários (1)
— Faça-me feliz, só hoje!

— Não dá, é muita responsabilidade. É como ter uma ficha só no fliperama.

14
Jun 12
publicado por José Geraldo, às 19:37link do post | comentar
O velho relógio bate nove e quinze no peitosorrindo para um piano que tocou meu lábiocomo o som áspero da morte que vem perto.Como ando provisoriamente vivo, e vivo reto,procuro um desvio que retarde a sorte certaque aguarda os relógios, lábios e pianos.Quando achar um caminho errado destes,escondo minutos da espera que não quero.Aqui comigo nesta sombra, nesta névoa,a ilusão feliz de que tudo ainda é e nada era.

09
Jun 12
publicado por José Geraldo, às 22:43link do post | comentar | ver comentários (1)

Discordo de Cazuza. A sinceridade não é tão importante assim, se o conteúdo for, no fim das contas, desagradável. Queremos a verdade, isso é o mínimo que nós queremos. Mas uma verdade que não doa muito. Pelo menos é o que eu quero. Não posso falar por você que me lê, claro, mas creio ter uma compreensão universal entre os não masoquistas. Quando temos a verdade, a sinceridade é que não importa: muitas vezes descobrimos o que é real enxergando nas entrelinhas do que foi escrito, atentando para gestos ou trejeitos enquanto o interlocutor nos fala. Então se quiser mentir, que minta, se tivermos a capacidade de entender. Nestes casos, uma mentira pode revelar uma forma de atenção, uma espécie de carinho verbal. E há momentos em que, sinceramente, queremos um corpo, com amor ou não.


25
Mai 12
publicado por José Geraldo, às 00:23link do post | comentar | ver comentários (2)

Américo dizia-se amargo de propósito: queria treinar rabugice para quando fosse famoso. Então poderia esnobar entrevistas e desfilar namoradas bonitas em carros do ano. Não conseguia nem ficar famoso e nem realmente ser amargo: era apenas triste e apagadiço. Sentava-se na primeira das carteiras para fingir ser estudioso, mas andava sempre com notas ruins e sapatos rigorosamente engraxados. Meticuloso em suas escolhas, enquanto não ficava famoso e amante de modelos perfeitas deixou-se namorar por Jaqueline, que era vesga, magra, sardenta, desconjuntada e fanha. Casou com ela inclusive, pensando em abandoná-la quando finalmente um estúdio de cinema comprasse os direitos de suas histórias ou quando ganhasse na loteria esportiva. Não entendia de futebol nem de cinema: suas histórias não tinham pé nem cabeça e seus palpites eram desastrosamente azarados. Em um famoso teste caracterizado por oito incríveis zebras, acertou os oito resultados, mas falhou em adivinhar que o Flamengo ganharia do Olaria e que o Atlético venceria o Democrata de Sete Lagoas. Nunca abandonaria Jaqueline, nem sequer a traiu, embora jurasse que não a amava muito.

Quando o conheci, no segundo ano do secundário, ele já tinha uma cara de velho, velhíssimo. Talvez tivesse repetido umas três séries. Estava impaciente: tinha que formar-se logo, pois tinha um futuro promissor no comércio.Precisava aprender muito, antes que o tio Jacinto batesse as botas. Tio Jacinto era velhinho e viúvo. Tivera dois filhos, ambos mortos: um de câncer antes dos trinta, outro de desgosto na curva dos quarenta. Não tinha netos. Não tinha ninguém, somente a amizade da irmã e o carinho de Américo, que se dizia interessado na herança, mas chorou profundamente no enterro. Tio Jacinto morreu antes que Américo tivesse aprendido o suficiente. Ninguém teve a ideia de deixar-lhe a loja. Em vez disso, venderam o estoque, dilapidaram o prédio, teriam demolido até o terreno. As aves de rapina que voejam em torno dos cadáveres dos pobres velhos ricos que morrem solitários. Não sobrou o suficiente. A mãe de Américo usou seu quinhão para comprar uma linha telefônica, necessidade da família. Isso foi em 1994. Poucos anos depois o governo privatizou a telefonia e até o cachorro que quisesse podia instalar um aparelho em seu canil. A única herança que Américo jamais recebeu foi a de Jaqueline. Morta cedo: ele sempre fora fraquinha, tortinha, esquisita. Uma pneumonia galopante. Américo ficou prostrado no cemitério até muito depois que o penúltimo parente fosse embora. Talvez tenha sido só então que ele percebeu que seu afeto pela esposa tinha sido sincero. Tarde demais para demonstrar isso, para tê-la feito realmente feliz, para ter sido realmente entregue.

Foi nesse dia que o reencontrei. Tínhamos estado separados por vários anos: ele trabalhando em chão de fábrica e economizando tudo, até unhas. Eu fugira de nossa cidadezinha em busca de algo mais. Passava férias em casa quando me contaram do acontecido. Fui ao enterro em consideração a ambos: tinha sido também um namorado de Jaqueline, antes dele. Nunca lhe contei, é claro. Ainda tenho vergonha disso. Não de não ter contado: de ter sido ela quem me deixou. Depois de um beijo: ainda não entendo o que foi, ela apenas disse que seu anjo da guarda lhe soprara, exatamente no instante de nosso beijo, que algo estava errado e que não daríamos certo. Não deu. Saiu de minha vida e seguiu mancando mais uns anos pela adolescência afora, crescendo e se enredando em si mesma e suas ilusões. Até chegarmos ao segundo ano e encontrarmos lá o Américo, que tinha muito que aprender para um dia herdar a loja do tio solitário e ganhar muito dinheiro, tornar-se dono de uma rede de armarinhos, comprar os concorrentes, ficar famoso, namorar modelos e morrer de tédio.

Mas cheguei atrasado: o cemitério já esvaziado, Américo sozinho lá, perto da tumba, sem coragem até para ajoelhar-se. Eu também não soube o que fazer:  não se sabe nunca o que fazer diante da dor sincera de um homem, mesmo que este homem nem seja exatamente amigo. Mas ele me ouviu, sapatos rangendo de novos na calçada de calhaus arrebentados a marteladas. Não me olhou: não precisava saber quem era. Quem chega atrasado não faz mesmo nenhuma diferença. Mas depois de tempo suficiente para entender que algo não estava certo eu levei um braço ao seu ombro e disse-lhe: «vamos, homem, vamos que a vida segue.» Ele me viu finalmente, com os olhos calejados de tanta lágrima que até a pele em volta deles parecia sangrando. «Não, Geraldo, a vida não segue.»

Mas ele veio comigo. Para onde iria? O que faria? Esperaria fecharem o cemitério? Convidariam-no a sair sem muita educação e ele ficaria sozinho na rua naquela tarde de sábado, vendo os carros insolentes dos ricaços passando, tocando música alta, carregando mulheres bonitas e vulgares rumo a discotecas, festivais ou simplesmente bares. E ele então se veria sozinho, triste, feio. Principalmente triste, órfão de todos os seus sonhos velhos. Velhísssimos.

Já disse que não sei dizer coisas bonitas e nem filosofar. Se não disse, que tenho péssima a memória para coisas recentes, digo agora. Se disse mais de uma vez, que se repita para guardar melhor: ser homem é uma espécie de insensibilidade que se aprende na adolescência. Aprendi muito: por isso sei não ajudar um amigo em um momento de catástrofe. Não, não havia outra palavra. Américo parecia um robô desligado. Depois daquela frase curta e amarga ele não conseguiu, durante horas, dizer nada mais do que acenos, resmungos e uma dor corrente que mantinha fundos os seus olhos, perdidos em poças de tristeza em seu rosto magro e sardento.

Levei-o a praça e nos sentamos lá, como se fôssemos conversar. Veio o sino da igreja, passaram passarinhos, a tarde também se deitou detrás do morro da matriz e a noite foi se desenrolando devagar. Jaqueline estava lá conosco, uma muralha que nos separava. Américo talvez soubesse, ou nunca. Se homem pudesse chorar eu estaria com ele naquela hora: como ele eu também tive um futuro promissor, também fiz planos de poder magoar todos os meus amigos e pisar nos meus inimigos. Por fim estava fingindo férias longas para disfarçar que estava demitido, sobravam-me apenas os meus amigos e nenhuma mulher. Eu nem podia, diferente do Américo, ter saudades de uma morta. Não há tempo para ter sido feliz quando se precisa ganhar muito dinheiro, para tentar comprar a lua que se sonhou quando menino.

Por fim, desisti de ser homem e conformei-me em ser humano. Disse a Américo, com rudeza de palavras, que entendia como ele estava arrasado e que, como ele, eu tinha às vezes até ideias de me matar. Ele se assustou com isso: «Isso não, Geraldo, isso não.» Não compreendi sua rejeição: não fora ele que dissera antes que a vida não continuava? Tudo muda, tudo muda. A vida não continua: ela é um monte de folhas sacudidas pelo vento. A gente vai pulando de folha em folha esperando finalmente cair no chão. Todo mundo tem a ilusão de que alguma folha voará para sempre, que alguma folha não vai nunca chegar na terra, que a tarde será imensamente longa. Todo mundo tem essa sensação de que a vida não são minutos. Américo estava ali, sentindo-se montado em outra folha, ainda não sabia que estava mais perto do chão.

«Você que enterra a sua mulher, e eu que não sei para onde ir.»

Américo sabia, ao contrário de mim, que o que nos torna mais perdidos não é saber para onde vamos, mas não entender de onde, diabos, saímos. Apesar de suas ilusões trituradas pelos dedos duros da vida, ele sabia de onde vinha. Eu estava mais pobre do que ele, perdido até de minha origem, órfão de um passado. Não tinha nem mesmo uma esposa morta para amar com culpa e arrependimento. Não tinha nem remorsos para ilustrar minhas noites. Em mim cabia a frase tanto quanto nele, um futuro promissor transformado em futuro do pretérito, mas a minha dor seria sempre maior que qualquer outra, justificando até eu poluir o luto arrependido de um amigo. Sim, não tinha mais aquele futuro, não tinha nem mesmo escrúpulos de contar a verdade à minha família, de procurar um emprego por lá mesmo, de procurar uma das antigas colegas de escola, talvez a Luciana, que me deixara um bilhete apaixonado dentro de um caderno na noite de formatura: um caderno que eu só fui abrir anos depois, em uma faxina. Então naquele instante, para monstrar a crueldade imensa da sincronicidade, passou a própria, de mãos dadas com um menino. Éramos velhos demais para viver amores de infância: ela tinha uma franja grisalha no rosto ainda bonito e eu escondia uma barriga com a jaqueta dobrada sobre o colo. Tive vontade de segui-la, mas não tive coragem. No meu futuro do pretérito eu tinha.


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Abr 12
publicado por José Geraldo, às 10:17link do post | comentar
Um poema escrito em 23 de fevereiro de 2007 e achado num caderno velho, que ia a caminho do lixo, junto com alguns sentimentos de segunda mão.
Eu a ouvi ontem à noitee senti aquele punhal de novo em minha carne,tive saudades suas como tenhosaudades dos pedaços que fui perdendo.Tenho saudades de ter sido sozinho,de ter atravessado sábados sofrendo.Aquele silêncio antigo me faz faltaporque há dias em que não quero falare outros em que precisava de fugir,achar um lugar entre as montanhaspara poder me distrair.Tenho saudades de quem me enganou,quanto maior a mentira, maior a dor,maior a falta, poderia ter durado maise com mais cicatrizes eu tinha mais históriae ninguém sente a dor em seu pretérito.Por que fui tão esperto?Se fosse tolo por alguns dias a maisteria vivido ainda outro dia que lembrar.Ah, na verdade agora é que sou tolo:vivendo como meu um plano alheio,um destino sonhado por meus pais,e o amor laçou-me na planície durante meu galope.Sim, tenho saudades. E do tipo pior.Tenho saudades difusas, que não pertencem a coisas,que não evocam pessoas.Essas saudades de cores assombram minhas cinzas.

21
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 10:56link do post | comentar

Um poema (originalmente sem título e sem data) encontrado datilografado no verso de uma folha de rascunho perdida em uma das muitas caixas de papel velho em minha biblioteca. Miraculosamente salvo do lixo, não consigo imaginar a razão pela qual este texto não foi incluído entre os meus «poemas completos» anteriormente.

Temo ferir o teu viçocom os espinhos que adquiri.Talvez a dor, no entanto, a faça ver mais cedoo que tão tarde eu descobri:não há salvação sem a verdade,não há destino sem partilhae não há felicidade,absolutamente.Mas isso não quer dizer somenteque estou insensível: não o ouso dizer, apenas digo.Preciso de um clarão no horizonte,e de calor em minhas mãos,mas isto só se acha ondeeu ache algo que não caiba em mim.Não fui sempre este estranho,sou o que me fui tornando.Não quero mais unir-me ao mundocom toda sua ânsia.Caminho só por entre as pessoascomo um romeiro anônimo de um santo antigo,atravesso pontes como um cão mutiladoem uma estrada hostil,como uma formiga entre os doces da festa.Insignificante,ignorado,incomunicável.Como exigirei que se solidarizem com meu absurdo?Não posso sequer exigir que alguém fique.Eu sei que já era assim quando você me viu,mas não precisa ficar mais, pode fingir que descobriuporque eu sei que os olhos do amor escondem muito.Não, não vou mudar. Ninguém muda ninguém. Ninguém muda.Todos apenas se tornam cada vez mais aquilo que vão ser.Mas como não sei viver nas trevas e sem nada,como não sou bom adivinho, nem Teseu no labirinto,nem artista de circo e nem gênio de caricatura,vou seguindo a trombar entre ilusões, como a sua.Ah, é esperar demais de mim, você pedir que eulhe demonstre mais afeto.Não tenho tanto amor assim:Amor é algo tão restrito, tão pequeno,tão pouco nesse mundo, tão oásis. Como você quer que eu tenha em abundânciao que serve de lenda e consolo para todos,mas não brota como um pasto pelo chão,mas sim como um cacto nas cinzas.Ah, é esperar demais de mim, você pedir que eulhe demonstre mais afeto.A nudez dos sentimentos é pior que a do corpo.Que pouca é a vergonha que você acha que eu tenho!Ah, não. Não é que eu insisto em feri-la.Não sou ferino como você acha,Apenas quero ilusões segurascomo a de não amá-la.

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