Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
22
Fev 13
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Quem come ostra e camarão
come qualquer coisa,
menos escorpião.

03
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 23:00link do post | comentar
Estas montanhas têm uma história, desde os tempos dos índios, desde antes do primeiro português cortar a primeira árvore. Eles vieram, viveram, morreram, viram o mal que havia e se foram, ficaram apenas alguns pobres puris isolados, entocados quase como bichos. Vieram os emboabas a caminho das minas, tentaram fixar-se aqui, mas não ficou nenhuma vila, queimaram todas as casas, sumiram no tempo como se nunca tivessem pousado, e a estrada real passou ao largo.

Minha avó costumava me contar que toda esta região era pacífica e silenciosa até a segunda década do século, que ela mesma viveu numa casinhola entre árvores, beijada pela sombra fria da mata. Mas veio o café, veio a guerra, a estrada de ferro, vieram as armas. Mataram os índios, abriram clareiras, começaram a produzir. Mas em pouco tempo a terra negou seu seio, os cafezais feneceram, os fazendeiros faliram. O povo restou pobre, em uma terra mais seca e nua. Os trilhos de ferro recuaram, abandonando estações ilhadas nas montanhas.


Nasci aqui, sentindo esse vento seco e duro que cresta a alma e corta a cara, que arranca as folhas das árvores, como se tentasse arrancar os homens da terra. Mas eles só sairão quando chegar a hora da colheita. Toda vez que eu olhava os morros erodidos, as encostas peladas, a terra retalhada com cercas e dividida em lotes de cores diferentes eu me sentia cúmplice dessa violência.

Este ano, porém, começou diferente. O cheiro do ar foi outro desde o início, os dias foram encolhendo, as noites ficando mais frias e quando eu olhava as bordas dos morros cortadas contra as nuvens eu tinha calafrios, temendo que essa Hora maldita estivesse a caminho.

Nas primeiras semanas eu me senti assim, sozinho. Não tinha coragem de falar com ninguém, porque desde menino tivesse essa fama de sensível, de fresco, de frágil. Nem os calos duros em minhas mãos, nem minhas botinas armadas com arame, nem o cheiro forte da terra em meu corpo conseguiram apagar as impressões que os outros tiveram de mim no dia em que saí de mim e disse aquelas coisas que ninguém nunca ousou repetir.

Mas quando o outono começava a envelhecer, notei que não era mais o único. Podia pressentir que os jovens estavam irrequietos  que os velhos estavam mais abatidos. Alguns sonhando em voar, outros querendo dobrar definitivamente as asas. Então senti voltando a mim a sensação, e os cheiros, que me abateram naquela tarde de criança. Eu pressenti a proximidade do escuro, eu enxerguei as dobras do destino direcionando o correr de nossas vidas para o canto da mesa, para a caçapa inevitável. Senti a Presença pela primeira segunda vez, mas não tive medo nem ódio, aliviei-me de toda irritação e adorei aquela época do ano.

Os Gonçalves então apareceram com a notícia de que estavam indo embora. Eles tinham uma fazenda grande, com várias casas, currais, tulhas, silos e cocheiras. Tinham feito um trabalho bonito, por vinte ou trinta anos, desde que o velho Nhonhô Gonçalves chegara de Itaperuna cheio de dinheiro, que as más línguas diziam ser mal havido, e comprora a terra de um colono antigo, que eu nem chegara a conhecer. Eles trabalharam muito, fizeram render o seu dinheiro, tinham vacas, tinham milharais, canaviais, um pomar que dava gosto. Então veio aquela seca longa do ano retrasado, emagrecendo o gado, matando o milho plantado, prejudicando a cana. E justo quando a seca acabava apareceu a praga da erva roxa nos pastos, intoxicando os animais famintos que comiam tudo.

Perderam muito dinheiro, tiveram que vender as vacas boas enquanto valiam alguma coisa, muitas morreram vacas de fome, muitas ficaram vacas maninas, cresceram bezerros de pelo ruço, novilhas de tetas murchas.  Um gado sem valor, em uma terra que precisava ser roçada de novo, com uma praga que ninguém sabe de onde veio, como se o próprio demônio tivesse passado semeando.

Agora estão finalmente vendendo, e é uma tristeza ver os garotos com os olhos cheios de água, tentando sorrir enquanto põem preço naquilo que nada paga. Dizem que vão comprar caminhões, ganhar a vida no transporte de carga. Enquanto eles falam eu escuto um vento soprando forte, um vento que arranca folhas das árvores. O vento que anuncia que chegou o tempo de colher. Os dias continuaram encolhendo, as noites ficando frias. Colheita no inverno, colheita mais amarga. Os jovens irrequietos, os velhos andando de cabeça baixa. Eu sei que a escuridão está mais perto, alguma presença está aqui. Parece que o clima mudou, mas eu não estou mais gostando dessa época do ano.

Sempre vivi nesta casa de fazenda. Hoje fazem dez anos que meu pai morreu. Foi num agosto ventoso como esse, talvez ali eu tenha ouvido esse vento pela primeira vez. Herdei esta terra, estas cercas, estas pobres vacas, companheiras de meu infortúnio, pobres reses que eu nunca consegui vender. Não sei bem do que eu vivo, o leite que tiro mal dá para comer. Tenho a herança de uma tia rica, o ódio de uma mulher que me deixou. Faz muito tempo que não tenho medo, muito tempo que não sentia nada mau. Tinha aprendido a conviver com esta terra, deixar crescer o mato, receber a chuva, proteger a ave, abrigar o bicho. Dizem na cidade que eu também virei meio bicho, só porque não consegui cortar a árvore que nasceu debaixo do Mustang que ficava na garagem. Garagem que já caiu de podre porque não a uso: por que me enjaular entre dobras de ferro e produzir fumaça ruidosa pelo mundo? Vou a pé aonde vou, e sempre é perto. Dizem na cidade que a lucidez também me deixou.

Os Gonçalves eram meus últimos amigos. Catarina a última mulher que não me achava louco. Teria sido minha esposa se eu quisesse, me ajudaria a cuidar de meus coqueiros, meus horta, minhas laranjeiras, de todos esses pássaros que pousam na varando cada silenciosa tarde. Eles me dão uma música melhor que qualquer rádio.

Ficará um buraco em forma de Catarina em minha vida. Um buraco na forma de cada amigo que vai embora, na forma de deus que nunca vi, na forma de cada alegria irrepetida que nunca descobri.

Então esta tarde veio o homem de longe, com cabelos penteados, camisa branca de riscado roxo. Enverga botinas pontiagudas, sem esporas, porque sua montaria é dessas de que não gosto.

Ele me falou de coisas que não entendo — como dinheiro, eucaliptos e carros. Fala em derrubar estas espertas, angicos, paineiras, jenipapos, imbaúbas e ipês. No lugar de todas estas cores e perfumes diferentes, uma árvore apenas há de imperar, com sua resina roxa, seu aroma doce.

“Apenas oito anos”, ele diz, “e pode-se vender a um preço exorbitante. Tão exorbitante, aliás, que eu estou disposto a contratar agora a venda, para protegê-lo da possibilidade de que em oito anos tanta gente tenha plantado que o preço nem seja mais exorbitante. Aproveite esta oportunidade única na vida, está na hora de ganhar dinheiro outra vez, sacudir a poeira desta terra adormecida.”

Eram palavras bonitas, mas eu só consegui me fixar nas listras roxas de sua camisa, pensar nas folhas roxas da praga que matou o gado dos Gonçalves e vai levando embora Catarina. Nada de bonito pode vir de alguém que usa roxo. Cor de morte, cor de hematoma, cor de luto de homem, pois homem não se veste de viúva.

“Uma terra tão grande normalmente a gente oferece em parceria, mas se o senhor preferir podemos fazer-lhe um preço muito bom por seus cento e vinte alqueires.”

Não, não venderei a terra, nem plantarei eucaliptos. Tenho trinta anos e ainda tenho alguns mognos para ajudar a crescer. Espero um dia estender minha rede entre os dois jacarandás que plantei na entrada do terreiro, como sentinelas a bloquear a entrada de qualquer carro.

“Sua propriedade vai ficar isolada entre todas as outras, única ilha de mato e pasto sujo num mar de montanhas verdejantes de reflorestamento.”

Que seja, mas há uma beleza nas ilhas. As únicas que eu conheço são as que existem no rio, que eu costumo contemplar quando vou à cidade receber alguma venda, verificar a renda que me legou a minha tia e fazer minhas compras. São pedaços bonitos de terra que resistem no meio do rio, deixando a água passar ao largo, a turbulência ir embora. Resistem à enchente até. Que seja, minha fazenda será uma ilha. E eu o habitante feliz, Robinson Crusoé eternamente a espera de que não me resgatem dela. Espero viver muito, tenho de me cuidar. Enquanto estiver vivo talvez consiga proteger o trinca-ferro, o mão pelada e a preá.

Que sopre o vento o quanto quiser. Que leve embora as folhas doentes das árvores. Pode ser o tempo de colheita delas, mas as folhas vivas, que ainda bebem a seiva da terra, estas não vão ser arrancadas pelo primeiro vento.

Quando ele foi embora eu senti a escuridão mais perto do que nunca. Senti uma presença estranha aqui por perto. Estava perto da noitinha, mas eu não tinha medo. Faz muito tempo que não acontece nada estranho, esta terra nunca me fez mal. Nunca fizera mal aos índios que ficaram, os que a entenderam.

Mas o calafrio continuou, uma sensação de algo forte caminhando entre os galhos emaranhados, algo acinzentado, peludo e frio. Não tenho medo, mas não saio à noite quando pressinto isso. Fico na varanda contemplando o escuro, e o escuro me contemplando com seus olhos amarelos, que às vezes piscam. Acho que o estranho não deveria ter sido tão ousado, não a ponto de vir aqui em carro conversível.

Os grunhidos que ouvia longe, contidos, pareceram mais perto. Os olhos não estavam me olhando enquanto eles estalavam na noite. Ouvi o motor de um carro acelerar ao máximo, bater contra a minha porteira com a força de quebrá-la, mas por felicidade desapareceu pela estrada aos poucos. Pude ouvir o motor um longo tempo, como se a distância não aliviasse o pé do estranho de camisa roxa. Que nunca mais voltou, nem voltaria sob a mira de uma espingarda.

Ele talvez não saiba, mas não deveria ter falado comigo tão ríspido. Todos me chamam de louco, mas ninguém me incomoda. Não desde que o filho do Gracindo, aquele idiota, veio tentar caçar minhas capivaras. Eu o proibi, adverti, implorei, mas ele me estapeou, abusando de sua força e me chamando de maricas. Entrou na mata e não voltou. Sua mãe só o viu de novo embrulhado em plástico preto, uma fotografia ampliada colada no lugar do rosto.

Tentaram me acusar, mas não havia como associar minhas mãos com aquelas marcas, meus dentes com aqueles nacos de carne arrancada. Mataram uma pobre onça nestas redondezas e deram o caso por terminado. Isso é o que a polícia diz, mas ninguém nunca mais entrou na minha terra pensando em caçar. O povo daqui é mais esperto que esses polícias que vem de Ubá ou Muriaé, e não entendem a língua da terra. A diferença é que eu, diferente do povo, não tenho medo. Não vou me deixar levar.

Os Gonçalves foram embora hoje. Estava lá na despedida, barbeado pela primeira vez em meses. Uma cena de fazer chorar, os pobres homens, despossuídos de suas vidas, condenados a vagar no mundo conduzindo máquinas, a maldição da terra. Catarina estava entre eles, parecia mais triste que todo mundo. Não fui o único a notar que lhe haviam dado remédio outra vez, e amarrado suas mãos e pés.

Voltei para casa triste, sentindo a vida me escapar. Sentei na varanda olhando a noite, ouvindo os curiangos no terreiro, e sentindo falta dos olhos amarelos que me acompanhavam nestas solidões frequentes.

Então ouvi de novo o grunhido, e tampouco tive medo. Tanto faz à vida, se a gente morre tarde ou cedo. Mas a fera não tentou morder, nem veio junto a mim. Apareceram os seus olhos, amarelos, na penumbra do terreiro. E no dia seguinte eu encontrei na horta um lenço arrebentado, como se tivesse amarrado os punhos de alguém.

10
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 23:49link do post | comentar | ver comentários (2)
ou «Porque os discursos superficiais de ódio ecoam com tanto vigor»
Acabo de me deparar no Facebook com alguém compartilhando a pequena história em quadrinhos acima. Logo que a li percebi que ali havia assunto para mais do que meramente um «Curtir» ou um «Compartilhar», mesmo porque não me senti impelido a nenhuma das duas coisas. Como aquela rede social não é muito receptiva a elucubrações mais compridas, preferi postar aqui, mesmo sabendo que menos gente lerá, curtirá ou compartilhará.


A tirinha expressa, de fato, muito mais do que está dito nas palavras de seu protagonista: ela é a vingança, possibilitada pela instantaneidade do fluxo de informações na internet, daqueles que sempre detestaram a poesia, mas sempre tiveram esse ressentimento represado pela inexistência de um canal que o amplificasse e difundisse. Estas pessoas a quem chamo de «ressentidas» sempre existiram, não passaram a surgir ontem, e possivelmente existiam antes em número muito mais significativo em relação à população em geral.

Portanto, que ninguém interprete esse texto como uma catilinária contra nossos tempos e costumes. Limitar-me a isso seria, de fato, dar eco à crítica, pois seria uma defesa estúpida de algo que, por si, não carece de defesa. Aquilo que existe por si não carece de justificativas. As coisas não têm, em si, nenhuma razão moral de ser, como muito bem disse Nietzsche, em um aforisma que é útil em múltiplos sentidos: não existem fenômenos morais, apenas derivações (ou explicações, segundo algumas traduções) morais dos fenômenos. Muita gente «odeia» a poesia, e no entanto a poesia existe, permanece e existirá. Como disse Mário Quintana, «toda essa gente que fica atravancando o meu caminho, eles passarão, eu passarinho».

O que cabe ser dito é, de fato, tentar entender a consistência desse «ódio» (que vai entre aspas doravante, posto que não é um ódio de fato, mas uma coisa outra, que obedece a leis diferentes do ódio em si, que é uma reação irracional momentânea). É preciso que investiguemos a natureza desse ódio, agora que ele extravasa dos bueiros por onde corria, pois já não é possível ignorarmos que algo cheira mal nessa metafórica Dinamarca.

A principal manifestação do «ódio» à poesia se dirige não contra o texto em si, mas contra o «poeta», este ser esfíngico, admirado de uma forma torta e inadequada, a ponto de a palavra ter sido tomada como epíteto por compositores populares (nem sempre poéticos) e apropriada até mesmo em ditos populares: «fulano, calado, é um poeta». Este «ódio» é, de fato, apenas uma faceta da discriminação agressiva (ou «bullying» como hoje se diz) contra os tipos sociais divergentes de uma norma impositiva. Em uma sociedade como a nossa, na qual a cultura originalmente foi apenas um verniz de civilização, tangibilizado por um diploma devidamente europeu ou pela prática de costumes importados daquelas latitudes, sempre foi natural que certos comportamentos fossem circunscritos a certos grupos sociais. Assim como se espera que o negro seja malemolente, que o suburbano seja esperto, que o interiorano seja ingênuo e que o baiano seja indolente; nunca se esperou que alguém do povo possuísse, de fato, os tiques e taques privativos da elite, entre os quais diplomas, erudição e talentos artísticos. Pobre não faz arte, faz artesanato, não faz poesia, mas faz letra de música. Mais ou menos assim.

Exceções acontecem, quando devidamente legitimadas pela elite, que está frequentemente em busca de ídolos, como um Machado de Assis. Mas quando o talento, mesmo equivalente, não encontra essa legitimação, por alguma razão nem sempre inteligível, o pobre artista, além de fustigado pela pobreza que persiste, ainda sofre o escárnio de uma sociedade que vê nele como postiça e ilegítima a mesma atitude que louva como visceral e própria em um dos luminares escolhidos. Um breve estudo comparativo das obras e biografias de artistas malditos, como Lima Barreto ou Cruz e Sousa, por exemplo, nos deixa com a pergunta incômoda sobre o motivo de não terem sido aceitos por um sistema que aceitava gente de talento evidentemente menor.

As explicações estão dadas acima: residem na divisão de classes de cunho pós-escravagista, divisão que só permite a ascensão social daqueles que são, por alguma razão, «aceitos» pelo sistema. Daqueles que são «branqueados» no processo, tal e qual os pecadores são «lavados no sangue do Cordeiro» para poderem entrar no Reino dos Céus.


Este quadrinho, porém, vai mais fundo do que esta manifestação de escárnio contra os «patinhos feios», que sempre existiu e pôde ser sentida por todos nós que escrevemos, pelo menos uma vez ou duas na vida, a menos que tenhamos sido abençoados com uma idiotice beatífica que nos impede de enxergar o desprezo alheio, ou tenhamos adquirido um calo sensorial que nos insensibiliza para isso. Vai mais fundo porque ele não se limita a zombar dos que «ousam» ser poetas sem terem sido, previamente, autorizados a isso, por um concurso, uma editora, uma academia ou a bênção de um figurão das nossas letras belas. Zomba da poesia em si,  e isso nos exige uma reflexão além.

Por que alguém odiaria poesia, a ponto de execrá-la publicamente, dizendo que «limparia a bunda» com a obra de Augusto dos Anjos? A escatologia é um argumento fácil para quem não tem argumentos. O macaco atira excrementos nos visitantes do zoológico. Não obstante ele continua sendo o macaco,  e os visitantes continuam sendo os visitantes. Atirar excrementos não modifica a situação de submissão e desumanidade do símio enjaulado e nem desumaniza os visitantes, que poderão lavar-se depois e ter uma divertida história para contar. E limpar a bunda com a poesia de Augusto dos Anjos em nada a modifica, e nem à bunda de quem a usou para tal fim. Evidentemente essa manifestação bárbara de desprezo pela obra de alguém que morreu há tanto tempo expressa algum tipo de sentimento mais profundo e duradouro do que o desprazer de não ter gostado de um ou dois sonetos. Qual a jaula mental onde se encontra este ser que recorre a excrementos para agredir aquilo que não entende?

Vivemos atualmente uma fase perigosa no mundo, após tantas décadas de triunfo da ciência, com suas conquistas e perigos, com os dois gumes de seus conhecimentos, com a exigência de responsabilidade diante das múltiplas possibilidades de cada conquista nova. Parece que muita gente se assusta com a obrigação de escolher se vai usar a radiação para curar o câncer ou para causá-lo, se vai usar o foguete para nos levar à Lua ou de volta à Idade da Pedra. Diante desses dilemas, há hoje quem reaja ao modo do avestruz mitológico (não o real), que enfia a cabeça na areia diante do susto. Refiro-me à reação anti intelectual que grassa pelo mundo e que, apesar de nossa ignorância de periferia deslumbrada, não começou aqui.

O modo de pensar anti intelectual, não irracional, não confundam por favor, surgiu, de fato, nos Estados Unidos, nos anos sessenta, e hoje podemos ver com clareza como. Alan Bloom já o havia percebido em 1986, ano em que escreveu uma obra hoje esquecida, mas que devia ser mais lida: The Closing of the American Mind («O Fechamento das Mentes Americanas», traduzido porcamente para o português como «O Declínio da Cultura Ocidental», refletindo a subserviência do tradutor e editores, prontos a aceitar o império ianque não apenas como centro do mundo, mas resumo dele). O anti intelectualismo é a crença de que as imperfeições da ciência significam que as soluções científicas não devem ser buscadas. Houve vários momentos de triunfo desta mentalidade, e talvez o mais significativo tenha sido a «luta antimanicomial», que ajudou a desmantelar toda tentativa de abordagem e tratamento científico das patologias da mente em nome de uma filosofia segundo a qual os limites entre a loucura e a normalidade seriam uma convenção social. Ora, vivemos em uma sociedade, e quase tudo nela é convenção social. O triunfo do anti intelectualismo consiste em convencer-nos de que o fato de vivermos sob convenções significa que as convenções são arbitrárias e políticas baseadas nelas são injustas. Em vez de buscar aperfeiçoar as convenções, devemos aboli-las. Com toda sua virtude humanista, a luta antimanicomial abriu caminho para o questionamento da ciência enquanto alternativa viável de abordagem dos problemas sociais. Isto acaba sendo útil aos sistemas de poder, especialmente quando surgem indícios de ação humana na modificação dos padrões climáticos da Terra. Se a ciência está em xeque, então as decisões políticas não precisam considerá-la. Eis o monstro criado pela luta antimanicomial a longo prazo. Tal como não precisamos tratar dos loucos, pois a loucura é uma categoria arbitrária imposta pela cultura, também não precisamos evitar as modificações ambientais que inadvertidamente causamos por nosso estilo de vida, pois os modelos e parâmetros usados pela ciência para determinar a realidade destas modificações são também arbitrários e sujeitos a influências culturais.

O anti intelectualismo é um populismo filosófico. Nada afaga mais o ego instável do ignorante do que ser chamado de sábio. Chame um homem por aquilo que não é e ele se sentirá feliz, desde que acredite sinceramente que não há malícia de sua parte. Desde que ele esteja seguro de que a calúnia é imerecida e o elogio é verdadeiro. Do contrário, se supuser a calúnia uma realidade e o elogio, uma falsidade, reagirá com agressividade. Eu já havia notado isso em 2010, quando escrevi «O Sábio Louco e o Ignorante Vigoroso», pequeno texto no qual observei que, como disse Caetano Veloso, «Narciso odeia tudo que não é espelho». O ignorante odeia o sábio por ele ser sábio, mas quer ter, ele mesmo, o nome de sábio. Diga ao ignorante que o sábio não o é, mas ele sim, e, caso a afirmativa inspire confiança, o afago ao ego do idiota produzirá um deslumbre genuíno.

O ignorante precisa acreditar que não há prejuízo em sua ignorância. De outra forma, sente-se incompleto, precário. Para combater esta sensação de vazio, que o inquieta mas ele não sabe expressar, ele busca o elogio, busca a sensação segura de que «sabe». Venda a este cara a ilusão de que «sabe», de que «pode saber em apenas cinco lições» ou, melhor ainda, que «já sabe». Olavo de Carvalho acredita que conseguiu desmentir Newton e Einstein. Muitos são os que o elogiam, fazendo com que ele se sinta, de fato, um injustiçado pelo Nobel. Dão-lhe até medalha para melhorar a ilusão. Que se multiplica através dos excrementos verbais que ele difunde, e que são assimilados e replicados por outros que, tão vazios quanto ele, aceitamo como sucedânea do conhecimento a mistificação que ele divulga.

Este fenômeno é reforçado quando o ignorante possui algum conhecimento, mas só um pouco. Temei ao homem de um livro só, disse o santo filósofo. Ele não conhece, de fato, quase nada do mundo, mas domina tão bem seu quase nada que adquire uma certeza, uma autoconfiança que intimida. E agarra-se a esta migalha, que lhe confere autoridade.

E onde entra nisso a poesia? Pobre poesia, pobre e inútil poesia. Que sempre sofreu com esta pecha de inutil, e graças a Deus que ela o é. A pior coisa que pode acontecer à literatura é que lhe encontrem alguma utilidade. Não há maior tédio do que nos livros julgados os mais adequados pelo sistema educacional. Se tachados de «educativos» então, aí se encontra um indutor de letargia mais poderoso que a mosca tsé-tsé.

A poesia entra nisso como mais uma manifestação de intelectualidade. Se vivemos uma reação contra a intelectualidade que é útil (ninguém duvida das previsões do tempo, ora bolas, nem da capacidade voadora dos aviões e foguetes), quanto mais contra as pobres formas inúteis de intelectualidade! É muito fácil falar contra a poesia: é algo que poucos entendem, que raros gostam, que poucos praticam. É um saco de pancadas tradicional daqueles que sempre satirizaram os pendores de questionamento que brotassem da boca do pobre. A poesia é o senhor gordo e lento no qual o macaco consegue acertar mais excrementos.

21
Jan 12
publicado por José Geraldo, às 15:54link do post | comentar

Nesta semana em que «Luiza voltou do Canadá» e o estupro da inteligência do povo pela Rede Globo ficou mais do que evidente houve um fato a que pouca gente deu importância, mas que se tornou emblemático do estado de indigência mental em que o país segue mergulhando de cabeça e sem capacete: a pedrada que alguém atirou na testa do Pê Lanza, baixista/vocalista do «Restart».

Diz o ditado que a ocasião faz o herói, esta ocasião em particular tornou o roqueiro colorido um herói improvável diante de seus fãs e, em minha modesta opinião, deu-lhe moral diante de todo e qualquer fã de rock'n'roll do planeta. Imagino que o boçal que deu a pedrada imaginou que Lanza entraria em pânico e deixaria o palco para tomar seu leite de pêra com ovomaltino, mas ele, em vez disso, chamou o «valentão» para acertar as contas nos bastidores, disse que o sangue que saía era pouco, pois ele tinha mais para dar pelos fãs, e cantou mais uma música antes de encerrar o show. Há controvérsias se o show já tinha acabado e ele foi acertado na hora dos aplausos ou a pedrada foi aleatória. Mas certamente ver o rapaz ainda cantando a última canção com a testa escorrendo «melado» deve ter aumentado ainda mais a histeria das fãs do grupo. E, tenho de confessar, até eu virei fã do «Restart» depois dessa.

Devo explicar, porém, que tornar-me fã do «Restart» não significa que passei a gostar de sua música. Continua achando-a ingênua e tosca, tanto quanto antes. Tornei-me fã da atitude e da coragem dos membros da banda, especialmente Lanza. No momento em que aquela pedra acertou a sua testa aquele garoto virou homem. Porque «homem» não é um idiota que se esconde na multidão para tacar uma pedra na testa de um músico porque não gosta do trabalho dele. A única coisa com que os artistas podem ser alvejados é a vaia. Vaiar vale, mas atirar uma pedra, não. Isso algo que não se atira em ninguém. Homem é o Pê Lanza, que desafiou o covardão a acertar as contas nos bastidores, ignorou o próprio sangue que corria, disse que tinha mais uma música para cantar — e cantou. Se ele tivesse saído do palco chorando, como talvez o apedrejador tivesse imaginado, nunca mais poderia subir em outro para cantar. Nem ele e nem ninguém, pois não há intérprete que seja unanimidade. Quem nunca tomou uma vaia que discorde de mim. Se tivesse se acovardado, teria «dado razão» ao imbecil apedrejador, outros macacos apareceriam, atirando pedra ou merda. Mas ao agir como agiu, fez com que a mão apedrejadora se acovardasse, fez com que os fãs tivessem a alma lavada e fez com que muito roqueiro que não gosta do som do «Restart» passasse a respeitar o grupo por sua atitude. Porque a atitude de Lanza foi totalmente rock'n'roll. Lembra Joan Baez grávida desafiando a polícia ao fazer shows para arrecadar fundos para a defesa dos desertores do Vietnã. Lembra Gary Thain (aliás, também um baixista) eletrocutado no palco durante um show do Uriah Heep. Lembra Jim Morrison mostrando o pênis para a plateia em desafio a uma ordem judicial que considerava «obscena» uma de suas letras. Lembra a volta triunfal do AC/DC após a morte do vocalista, quando muitos pensaram que o grupo «tomaria juízo» após ter sido «castigado por Deus» pela letra de «Highway to Hell» (Rodovia para o Inferno).

Mas indo além do heróico ato de Pê Lanza, vale mais a pena analisar a burrice que se expressa na pedra. Apedrejar é uma atitude retrógrada. Apedrejar é uma forma de legar ao anátema. A morte por apedrejamento era destinada a pessoas que eram tão desprezadas que até mesmo tocá-las para (direta ou indiretamente) um estrangulamento, esfaqueamento ou lanceamento seria inaceitável. A pessoa que atirou aquela pedra procurou demonstrar um grau superlativo de desprezo pelo «Restart» e pelo que ele representa. Mas o grupo merece tudo isso?

Obviamente nenhum fã de música boa encontrará no grupo motivos para apreciação. Suas canções são primárias, suas letras são ingênuas, seu visual é adolescente e sua ideologia é mais vazia que uma cuia. Mas eles não tem pretensão de serem novos mestres da música, não pretendem filosofar em suas letras, não vieram ditar moda e não querem ensinar nada a ninguém. Eles estão apenas ganhando a vida honestamente fazendo o que sabem, preenchendo um nicho — o de grupo musical para adolescentes. Não há nada de errado nisso. Eu não gosto porque não sou adolescente, mas talvez gostasse se tivesse quatorze anos. Alguém, por acaso, acha errado ter quatorze anos?

Apesar de sua falta de qualidade, porém, a música que o «Restart» faz é muitíssimo menos desagradável do que a maioria do resto da música popular de hoje. Não se compare o roquinho dos garotos com as obscenidades grosseiras e animalescas do funk e de certo subgênero do «sertanejo» que não merece ser chamado de universitário, mas de «mobral». Os adolescentes que gostam do «Restart» vão crescer e gostar de outras coisas. Mas há marmanjos que fazem esses gêneros «das cavernas» e não estão levando pedras na testa. Será que o que faltou ao «Restart» foi falar de putaria? Será que suas letras fossem pontilhadas de palavrões e de convites a «pegar» e «trepar» eles teriam respeito? Fazer música ruim pode, desde que seja obscena? Eu prefiro uma música que é apenas ruim, mas não contém ofensividade. Eu prefiro o «Restart». E vou comprar um disco deles para minhas filhas. Em homenagem ao Pê Lanza. Que pode não tocar nada, mas se ombreou em atitude com os caras citados acima. Garoto, você se mostrou homem. E um homem roqueiro sem que ninguém possa contestar. Agora, sinceramente, você já está crescendo. Trata de aprender a cantar e tocar melhor esse baixo, porque logo, logo vai ficar difícil manter-se ídolo das meninas e você vai precisar de mostrar música para vender disco. Você não quer virar um Júnior, né?

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25
Set 11
publicado por José Geraldo, às 20:13link do post | comentar
Apontamentos avulsos e incompletos encontrados datilografados sobre o verso de páginas contendo alguns poemas. Tanto os poemas quanto esses apontamentos haviam desaparecido de minha lembrança. A data (dos poemas) é 1994, a destes apontamentos deve ser um pouco depois (um ano, no máximo). Trata-se aqui do texto mais antigo cuja forma original não tem influência alguma de revisões posteriores. Uma verdadeira relíquia da época em que eu ainda estava aprendendo a tentar escrever. Mais do que isso, parecem ser apontamentos para um glossário que ficaria como apêndice de um romance que, sob certos aspectos, evoca muito o «Serra da Estrela». Por uma dessas estranhas coincidências que a vida tem, meu pai encontrou essas folhas soltas no meio de um monte de papel velho que ia queimar, e salvou para mim.
Benzinho
Planta rasteira cujas sementes são envoltas por uns espinhos terríveis que se curvam ao entrar na pele, tornando difícil e dolorosa a retirada. Talvez o sábio homem do campo tenha visto nesta adesão teimosa uma metáfora para o amor obstinado, que machuca a carne, é difícil de largar e deixa uma inflamação persistente depois que é arrancado.
Quinze Bandas
Em Minas Gerais as direções não coincidem com os pontos cardeais, não são as oito da rosa dos ventos: são quinze, que incluem acima, abaixo, para lá, para cá, desse lado, daquele, antes, depois etc. A semente do quinze bandas (um outro espinheiro da região) são recobertas de espinhos orientados para todos os lados (ou "bandas", como se diz por aqui).
Moça Velha
Trata-se de uma flor cujo traço peculiar é a falta de viço: as pétalas parecem um papel crepom sem brilho, áspero, o talo é grosso, mas tem uma consistência murcha e é recoberto de pelinhos. As folhas são escuras e molengonas. As flores, por sua vez, são de muitas cores possíveis: vermelhas, amarelas, alaranjadas, rosadas, violetas, brancas e acastanhadas. As pétalas são radiadas e algumas plantas têm flores com dupla camada
Coração da Índia
Não consegui apurar com certeza o motivo do nome poético dessa fruta, parecida com uma pinha. Sua polpa é delicada e doce, de cor branca semitransparente e consistência de geleia, mas o cheiro é forte e resinoso. O formato lembra vagamente um coração, mas casca é verde.
Chá da Meia Noite
Dito zombeteiro muito comum nas histórias de nossas avós, que relatavam histórias de esposas maltratadas por maridos violentos que encontraram a sua libertação fazendo-os beber o dito chá. Na língua do povo as mortes súbitas de pessoas relativamente jovens e aparentemente saudáveis eram atribuídas a feitiço, veneno ou “artes de mulher”, um termo obscuro que engloba principalmente a exaustão do parceiro no amor. Mas o chá da meia noite, por ser meio menos sacrificado, era o preferido. Muitas plantas nativas de Minas Gerais são venenosas, e algumas podem agir em doses relativamente pequenas.
Os Misteriosos Efeitos da Aparição do Diabo
Consta que o diabo era visitante regular de uma certa sede de fazenda, cujo antigo dono, sacrílego e assassino, morrera sem extrema unção. O fantasma do velho ainda se arrastava pelas ruínas da fazenda abandonada, tão apegado às suas posses que nem o diabo conseguia tirá-lo de lá e levar para o Inferno. As aparições do diabo eram saudadas por uma sucessão de eventos antinaturais: peixes que saíam da água para respirar, ratos caçando gatos, vacas montando nos bois, frutas subindo de volta para as árvores e… o mais extraordinário de todos: a troca de crias entre duas espécies inusitadas. Mesmo o fantasmas sendo invisível e o diabo não fazendo nenhuma questão de aparecer para mais ninguém, era fácil detectar a presença demoníaca pela visão de uma porca que dava de mamar a uma ninhada de pintinhos e de uma galinha que chocava uma ninhada de porquinhos. Ou vice-versa, isso depende de quem conta.

Além desses trechos, estou expandindo uma outra história contida no mesmo manuscrito, que postarei na quarta feira.


07
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 20:57link do post | comentar
Eu não devia te dizer. Mas essa lua, mas esse conhaque… deixam a gente comovido como o diabo — Carlos Drummond de Andrade.

Nos encontramos em um bar imaginário, durante uma digressão sonambúlica. Tentei assaltá-lo com uma pergunta, mas ele é refratário a tais abordagens e sempre reverte a tentativa com uma proposição inesperada. Ontem, por exemplo, quando lhe perguntei quem eram as pessoas cujos nomes ele me recomendara conhecer, ele ignorou o que eu dissera e me perguntou se eu tenho escrito. Reconheço que é inútil tentar conduzir a conversa quando se trata dele, então acabei aceitando a pergunta, na esperança de que as dobras do assunto acabassem por esbarrar na resposta do que eu queria descobrir.

Então lhe disse que andava escrevendo pouco, pois preciso de muito silêncio para refletir, e silêncio é uma mercadoria rara, que bem valeria a pena pagar caro para consumir e que eu queria muito, mas muito mesmo, fazer alguma coisa que atraísse atenção, que me trouxesse leitores. Enquanto falávamos disso, e não das outras coisas que eu queria estar discutindo naquele momento, ele ergueu o dedo, como costuma fazer quando está entrando em transe filosófico, e decretou, como um profeta diante do Templo:

— Acredito que você pode fazer qualquer coisa, desde que não tenha a ilusão de que será lido. Ninguém mais lê ninguém. Não dá mais tempo. Há tanto para fazer, tantas sensações para experimentar.

— E no entanto o que nos resta fazer: ganhar centavos de atenção promovendo eventos inúteis? Ficar em casa trancados em nossas ilusões, esperando que alguém nos leia?

— Você fica?

Tive vergonha de admitir que ainda sonhava em ter leitores. Mas ele não me ridicularizou por isso, não ainda. Apenas disse:

— Não tenho mais a ilusão de que um dia serei lido. Estamos no fim de uma era, meu amigo. Sinto-me como um dos últimos romanos, talvez um que escreveu depois da queda do Império. Sinto-me como se já escrevesse em latim bárbaro, como se eu próprio já fosse filho bastardo da civilização que se foi. Que respeito terá o futuro por mim? Ninguém se lembra dos decadentes.

— Se for mesmo assim, meu amigo, pelo menos nos restará termos vivido e amado, da forma especial com que cada ser humano vive e ama.

Ele ouviu a minha frase com impaciência, quase espreitando uma interrupção para cortá-la, com a faca ensanguentada de seu pessimismo:

— Eu digo mais: não seremos amados.

— Nem mesmo pelas putas?

— Acreditar nelas é uma ilusão romântica estúpida. Putas não são românticas, são só mulheres pobres ou viciadas vagabundas que se degradam por dinheiro. Só péssimos poetas têm a mania de acreditar que possa haver uma Dama das Camélias. Exceto pela tuberculose, tudo era ilusão.

— Não quis dizer que a puta nos ame, mas ao vil metal. Quis dizer que ela nos dá amor em troca de nosso dinheiro.

— Nem isso. A puta não precisa do dinheiro, mas das coisas que ele compra. E sempre escolherá quem tenha mais, da mesma forma como o mineiro preferirá a jazida maior: para não ter de viver sempre à procura.

— Ah, mas você está insuportável hoje. Logo quando eu estava sentindo uma vaga inspiração para escrever uma poesia.

— Esse troço de “vaga inspiração para poesia” é frescura.

Tive de rir da minha própria inocência. Eu já devia saber que aquele iconoclasta não resistiria à oportunidade de reduzir a pó minhas intenções póeticas.

— Eu já escrevi poemas, você sabe. Hoje não mais. Eu tive uma revelação sobre o amor que me matou a poesia: nós não amamos ninguém, nós apenas buscamos satisfações.

— Como assim, meu amigo?

— Não amamos o ser, mas a perspectiva daquilo que o relacionamento com tal ser poderá nos dar: prazer, dor, conforto, orgulho, dinheiro. Diga-me, você gosta de amendoeiras, não?

Ele certamente conhecia minha fixação por estas árvores curiosas, sendo uma das poucas pessoas a quem eu mostrara alguns antigos textos sobre elas.

— Sim, gosto.

— É mentira. Você gosta de amêndoas, ou da sombra que a árvore lhe dá. Se a amendoeira não desse amêndoas e nem sombra, você certamente a desejaria destruir.

Naquele momento me senti firme para discordar:

— Isto não é exatamente verdade: existem várias satisfações possíveis, além da mera utilidade.

— Se é uma satisfação, então é uma utilidade. Nada que satisfaça a algo ou alguém é inútil.

— Mas mesmo que ela fosse inteiramente inútil, mesmo que eu a desejasse destruir… você não acha que o impulso de destruir é uma forma de desejo?

— Mas nesse caso você gosta é da destruição, não da árvore inútil.

Mais uma vez, derrotado. Ele perdeu a poesia, que ainda tenho, mas possui uma agudeza que constrange. E tendo sufocado minha resposta ainda no fundo da garganta, sentiu-se a cavalo para pontificar:

— Se você ama a alguém, é porque essa pessoa lhe faz algum bem. Se essa pessoa cessar de lhe fazer esse bem, você deixará de amá-la.

— Creio que há um engano aí, meu amigo. Você subestima a perversidade do ser humano. Na verdade matamos a amendoeira, apesar da amêndoa e apesar da sombra. O homem é como o escorpião da fábula.

O meu amigo ergueu as sobrancelhas ao ouvir-me dizer isto. Interrompeu sua profecia por alguns segundos, bateu na mesa, quase derrubando a cerveja, e admitiu, para minha glória momentânea:

— Você tem razão! Como não pensei nisso antes!? Isto é irracional, mas é verdade.

— Verdade seja dita, meu amigo, é justamente por ser irracional é que é tão humano. É mentira que sejamos diferentes dos animais por agirmos racionalmente, nós somos diferentes deles porque podemos suicidar-nos. Razão é apenas o nome que damos àquilo que nos diferencia do nosso cão, que não sabe dar nomes às coisas.

Meu momento de glória foi abatido em pleno voo por outro ataque de cinismo da parte de meu amigo:

— E quem sabe se o cão não dá nomes às coisas? É possível que apenas não saibamos compreender os nomes que ele dá.

Parei o copo de cerveja no ar, a meio caminho da trajetória até a boca. Aquelas palavras pareciam caindo da língua dele já gravadas em blocos imensos de granito, como tábuas de mandamentos. Eu não conseguia destruir a impressão que elas me causavam. Falhara minha última tentativa de salvar a dignidade humana dos efeitos avassaladores da presença de meu amigo naquela mesa de bar. Ele seguia, de sabre em punho, decapitando minhas ilusões:

— Pode ser. Somos animais, afinal. Embora animais escritores de poesia, animais construtores de canhões. E de fato não há diferença entre um soneto e um canhão: ambos estimulam os mesmos neurônios.

Meu amigo pediu a conta, deixou trinta reais sobre a mesa e se foi embora depois de uma despedida breve, durante a qual mal consegui balbuciar um boa noite. A conta veio menos de vinte reais, mas eu me senti roubado, mesmo ficando com o troco.


07
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 23:06link do post | comentar | ver comentários (1)

Quando ocorre uma tragédia de grandes dimensões humanas, algo infelizmente frequente, há muitos que se apressam em dizer que “este mundo está é perdido” e que nós vivemos o suposto “final dos tempos”. Quem estuda a História da humanidade a fundo sabe muito bem que jamais deixou de haver este conceito tão popular, de que o mundo “está acabando”, mas apesar de tudo o mundo segue aí, firme e forte em sua marcha rumo ao caos. Podem me acusar de insensível, mas a verdade é que quando fazemos uma análise detida da realidade, o que vemos é que o caos não é um acidente, o caos é uma característica. O mundo vai continuar, monstruoso e caótico como sempre foi.

Em um de seus discursos contra o conspirador Catilina o romano Cícero, contemporâneo ou quase do lendário Jesus Cristo, lamentou a decadência dos costumes de sua época: “Que tempos, que costumes!” — ou, como se dizia em latim: “o tempora, o mores”. Invectivas semelhantes podem ser encotradas por toda parte nas literaturas antigas: Egito, Índia, Mesopotâmia, Grécia. Não foram os gregos que imaginaram que viviam uma insossa “Idade do Ferro”, estágio final de degradação da humanidade, que já havia passado por uma Idade do Ouro, uma Idade da Prata e uma Idade do Bronze?

Mas apesar de toda a lamentação dos que contemplam as mudanças, “o novo sempre vem”, como profetizou Belchior, antes de desaparecer.

Talvez a coisa mais difícil a enfrentar nesse mundo não seja a existência propriamente dita de injustiças e violências, mas o fato de que o mundo continua depois. Como sentenciou Millôr Fernandes, em sua peça “A História é uma História”: “O crime foi espantoso, mas o morto nem liga.”

Apesar de tudo que vivemos, apesar de tudo que nos fizerm (de bom ou de mau), se amanhã estivermos mortos ou esquecidos a marcha amoral do mundo vai continuar. Com ou sem as ararinhas azuis extintas, o mundo vai continuar. A roda inexorável da História vai seguir adiante e o “fim dos tempos” é apenas um desejo que o injustiçado tem de que o seu sofrimento seja o derradeiro sofrimento, de que sua morte seja mais significativa do que todas as demais que aconteceram antes. É apenas uma forma de se sentir especial: achamos que o mundo está acabando porque achamos que sofremos mais do que sofreram nossos pais, pois antigamente “era melhor”.

Quando nascer o amanhã, haverá outras mortes, outros crimes, mais caos. O mundo continuará com as garras vermelhas de sangue, de culpados e inocentes, indistintamente. A poesia não morreu em Auschwitz, ao contrário do que disse um poeta soviético cujo nome não vou pesquisar agora na Wikipedia. Aliás, hipócrita este poeta que não via o caos doméstico, mas tinha a permissão de dramatizar as valas e os fornos alemães.

Somos assim ainda. Somos ainda cegos demais para entender que somos insignificantes, que nossa morte, nosso sofrimento, nada disso representa uma ameaça à continuidade do mundo. Muito pelo contrário: é nosso sonho louco de que possuímos alguma capacidade de afetar a continuidade do mundo que está colocando em risco a nossa própria continuidade enquanto espécie.

Não é o fim dos tempos, é apenas “o de sempre”. Violência é o mel do homem. Com ela estupramos a natureza e criamos para nós um espaço muito maior do que as nossas savanas originais. Nesse momento em que o caos nos aflige de tantos lados simultâneos, com seu ruído e sua cara feia, somos apenas codornas apertadas numa gaiola. O caos é apenas uma estratégia evolutiva: nós nos destruímos para abrir espaço porque estamos sufocados demais pela presença do outro.


16
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 22:20link do post | comentar | ver comentários (2)

Quanto você pagou pelo seu dia de hoje? Nada? Tem certeza? Provavelmente você está enganado, tanto quanto eu estive durante décadas perdidas de minha vida. Cada dia que você vive está pago, e muito bem pago, com uma moeda cujo valor subjetivo é maior que o do dólar e o do iene: a liberdade.

É com liberdade que você paga por lhe terem deixado vivo mais um dia. Com ela você comprou, indiretamente, o pão e o café que o prepararam para outra jornada. Esta, por sua vez, nada mais é do que a privação diária porque passa o homem, obrigado a coisas que não entende e que não lhe fazem sentido. Em vez de estar criando seus filhos, realizando seus sonhos, fazendo amor ou deitado à toa. Durante mais da metade das horas de cada dia, exatamente as horas melhores, aquelas em que você está mais alerta e se sente melhor. Justamente nelas não há mais liberdade, a não ser relativamente.

Em troca de você abandonar a sua liberdade, vão lhe pagando por ela valores variáveis. Nunca lhe pagam o que você quer: é sempre menos ou mais. Quanto mais lhe pagam, em relação ao que você espera, mais lhe tiram. Pagar sempre um valor diferente é uma forma de impedir que você perceba o valor exato desta condição. Se lhe pagam pouco, é porque você provavalmente lhe dá muito valor e é preciso que você passe a crer que ela vale menos. Se lhe pagam muito, é porque lhe deixam apenas o mínimo necessário para que você ainda respire hoje (mas nunca se sabe o dia de amanhã). Fazem isso aproveitando-se de que você acha que ela vale pouco. Se você avaliar com precisão, verá que, no fundo, a sua liberdade vale tanto quanto a do lixeiro que você despreza. Muda apenas quanto pagam.

Há muitas maneiras de tomar a liberdade de alguém, e a mais cruel de todas é a tomada preventiva da liberdade que ainda não pode ser gozada. Em palavras mais piegas: é tomar do homem a liberdade que ele ainda pode vir a ter no futuro. Isso se faz de várias maneiras. Pode ser, por exemplo, pelo acúmulo de responsabilidades (essas notas promissórias que pagamos com liberdade); ou pode ser de forma agressiva, deteriorando o seu corpo para que você não possa chegar a gozar da liberdade futura. O primeiro método é o preferido da sociedade, pois permite dar uma finalidade à liberdade que você não vai aproveitar. O segundo, que a inutiliza, é apenas uma maneira de assegurar que a liberdade seja restrita. Fazem isso quando não há uma demanda suficiente por liberdade, mas há muita oferta. É mais ou menos como fazem os produtores de leite quando não conseguem vender: jogam fora, mesmo com tanta gente passando fome. A economia exige isso: não haveria meios de levar esse leite a quem precisa. Quem pagaria o frete?

A vida vai passando e o seu estoque de liberdade vai minguando. E quanto menos liberdade você tem, menos lhe pagam por ela. Esse é o paradoxo econômico desta moeda, razão pela qual os economistas riem dela. A liberdade é uma commodity que só tem valor quando é farta. Aqueles que tem muita conseguem vender a um preço alto. Aqueles que pouca têm, esta escassa ainda têm de entregar a preço vil, isso quando não lhes é tomada de graça.

Mas um dia percebem que sua liberdade já acabou, nesse dia não existe mais utilidade no homem. Ninguém respeita ao indivíduo que já não é livre, ninguém o ama, ninguém o admira. Todos, no máximo, fingem isso. Neste momento o homem está pronto para aposentar-se. Não sendo já livre, não poderá desfilar pelas ruas com a indecência de seu livre-arbítrio arregaçada no rosto como um sorriso. Toda a admiração da sociedade pelo homem que finalmente se aposenta é idêntica à que ela tem pelo homem que finalmente cumpre uma longa pena. Alguns podem estar festejando lá fora dos portões, mas não creia que será possível reiniciar os esboços abandonados na infância.

Quando você se aposenta lhe dizem que você finalmente terá tempo para seus projetos. Possivelmente terá tempo, mas dificilmente terá ainda projetos. A privação da liberdade é uma condição que induz ao costume: nos tornamos tão afeitos a viver sem aproveitá-la que quando finalmente já não nos obrigam a deixá-la, não sabemos para onder ir.

Nos idos dos anos cinquenta ou sessenta, antes que eu nacesse, havia em minha cidadezinha natal um burrico que puxava a carroça de leite pelas ruas da cidade. Toda manhã o leiteiro o laçava no pasto, botava-lhe arreios e ia à Cooperativa comprar leite em garrafas. Depois saía pela cidade entregando aos fregueses habituais. Quando o burrico ficou velho seu dono, compadecido, como nossa sociedade, deixou o animal em um pasto em um bairro afastado, para que ali descansasse. O pobre bicho não aproveitou sua liberdade tão tardia: toda manhã, em vez de pastar o capim tenro e nadar no riacho, ele cruzava a cidade e parava à porta da Cooperativa, puxando uma imaginária carroça. Depois saía a esmo pela cidade, entregando oníricas garrafas de leite. E assim foi por algum tempo, até morrer, magro de tão pouco pastar. Pois o burrico livre comia menos do que antes, quando seu dono lhe dava capim à boca durante a viagem.

Se este fosse um texto de auto-ajuda eu terminaria dizendo que nossa liberdade é tão pouca e tão pouco nos deixam aproveitá-la, que é preciso, que é imperativo, que é sensato que a empreguemos toda, ao máximo, já, ontem! Ou então que a usemos “com sabedoria” (qualquer coisa feita “com sabedoria”, segundo as pregações dos sábios, precisa ser muito chata—a ponto de quase ser inútil).

Mas este não é um texto de auto-ajuda, eu não estou aqui para ensinar nada a ninguém, eu sou apenas aquele ruído que lhe acorda no meio da noite, parecendo um móvel que caiu ou algo que se quebrou na cozinha. Eu sou esse ruído que lhe faz pensar que há um ladrão em casa, e você treme sem saber se deve ir ver o que é ou se deve fingir dormir e deixar que o ladrão o roube, por medo de um tiro. A verdade é como um tiro, ou como um prato que se quebra na madrugada destruindo o seu sono inocente. Eu escrevi este texto porque eu já não durmo e quero que minha insônia se espalhe: é preciso urgentemente produzirmos liberdade, ou ela deve acabar—e nesse dia nenhum de nós terá valor algum. Pois não valemos nada se não somos livres nem felizes.


03
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 22:08link do post | comentar
Ao mesmo tempo oriental e desorientado
o cãozinho deu no jardim e ficou parado
pela morte que se apanha no mínimo tato.

Deram-lhe bola ou a comeu por destino.
A meia-noite chegou cedo, chegou dura
com estrelas demais e sem promessas.

Assoviaram de algum lugar no escuro,
o silêncio dos olhos empoçados
não se alterou nem de leve.

O silvo passou no ar como uma outra pedra.

Originalmente escrito em 1997. Direto do “Túnel do Tempo”


22
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 13:29link do post | comentar

Teobaldo tentava esquecer. Poderia ser na próxima golada de cachaça, ou na quinquagésima; tinha medo que não fosse nunca. Por via das dúvidas, entornava para dentro da goela a décima oitava enquanto ouvia Sílvio Luiz esculachando algum centro avante que perdia um gol: “Pelo amor dos meus filhinhos, esse até a minha sogra fazia!” As imagens vacilavam com a interferência da geladeira, o som vacilava com a interferência da gritaria, sua mente vacilava com a interferência de uma arma fria que levava no bolso. Ninguém a vira, ninguém morrera, ninguém morria. Sua vida estava atada ao nada, era uma poça estancada, de alma e de hálitos. Estava sozinho, humilhado e não matava ninguém, nem a si mesmo.

O teto do boteco começava a caçoar de sua determinação de derrotar a memória. Girava em gargarejos súbitos que empurravam suas costas para trás e o seu queixo para a frente. Como um malabarista Teobaldo tentava mergulhar no negrume da noite etílica, mas as lâmpadas teimavam em machucar nos seus olhos a certeza do dia. Então ouvi, como se fosse uma buzina de trem no meio da cerração, a voz gosmenta de alguém.

— Para com isso, homem. Cachaça não dá abraço para curar chifre de coitado.

Teobaldo braguejou prandindo os praços belo ar, guerendo sogar um gicante gualguer, mas gaiu de guatro no gongreto ácido e levou uma balda de áqua vrea na vuza e tesmaiou.

Acordou com o rebimbalhar dos sinos de uma ressaca assassina, a sede de um crucificado lá pela tarde do segundo dia. Estava encostado na parede de fora do boteco e fedia a muito mijo. Um anjo o contemplava, com olhos esperançosos como são os dos mensageiros de Deus. E lhe falou:

— Teobaldo, homem. Levante-se dessa calçada imunda e vá para casa. Tome um banho e tome dignidade. Fazer esse papel não combina com você.

Teobaldo começou a chorar como criança e teve vergonha de ouvir aquilo. Teve vergonha também porque o anjo tinha nojo de seu cheiro enjoativo de enxofre e fósforo — o cheiro de um demônio, ou melhor, cheiro de alguém que dormiu na calçada e urinou na calça. Talvez pior, cheiro de alguém que sofreu a troça de jovens impiedosos.

Nem mesmo a mão ousou erguer. Apoiou-se na parede sentindo-se inferior a tudo, até mesmo à cadela de tetas graúdas e caídas que trotava pelo concreto levando a solidão de muitas maternidades e as cicatrizes de muita fome. Quando conseguiu se erguer, nem teve coragem de passar as mãos no rosto. Teve nojo das próprias mãos. Teve nojo do seu próprio corpo, e tinha uma sede de camelo. Mas não pediu água, não pediu apoio. Última dignidade que lhe restava: ficar sozinho, ir para casa com as próprias pernas. “Chega de anjos”.

Mas o anjo o seguia, lento e calado, como devem ser esses pestes. Não serviam nem para ajudar, e Teobaldo caía muitas vezes — e nem tinha trocados no bolso para um bendito copo de água mineral que aliviaria o inferno. Ver as pessoas bebendo nos bares era como ver o pobre Lázaro no paraíso, tão longe e tão perto. Ao contrário do rico, morreria sem pedir. O desespero é uma coisa para a vida póstuma.

Nem sabia se tinha a chave de casa. Ou uma casa ainda. Andava a esmo, talvez estivesse seguindo para um cemitério ou simplesmente acompanhando a cadela, coitada, que só fazia ser o que era por obra de Deus.

Achou-se em frente a um portão. O anjo acenou que sim. Mesmo Teobaldo gritando “suma da minha vida, eu não preciso de nenhum anjo da guarda”; a criatura permaneceu próxima, apenas cerrou o cenho e maquinou nas mãos um gesto agitado e rude que rompeu a santidade insincera que manipulava.

O sol estava melhor, a sede também — ele é que estava a ponto de morrer ou matar por uma simples garrafa de água com gás. E tinha um revólver, a bala era mais cara, mas não salvava sua vida. Apesar disso, covardemente, preferiu entrar em casa; descobrindo que a porta andava aberta, ou fora aberta miraculosamente — maldito sol matinal.

Foi direto para o banheiro. Beberia água no chuveiro. Para a sede, qualquer água serve. Só pensamos em detalhes quando não é questão de morte. Abriu a torneira fria mesmo, precisava acordar, matar alguém, mesmo de terno. Sorveu daquele líquido clorado, deixou aquele frescor banhar suas orelhas, molhar o seu cabelo, acordar o seu sexo. Perdeu a conta do tempo, felizmente ele não tinha futuro para se preocupar. Felizmente as crianças estavam na escola.

Só descobriu que estava vestido ainda quando foi se ensaboar. Ouviu o teto rir, lembrando ainda a noite. Quanto álcool bebera, puta merda! Era álcool ainda ou ficara no cérebro alguma sequela? Despir-se molhado é uma desgraça.

Pode ter sido meia hora ou oitenta minutos, poderia ter sido o dia. Mas quando saiu do banheiro não estava mais fedido a mijo, próprio nem alheio, tinha feito a barba, esfregado bicarbonato nos dentes até estragar a escova e raspado meio quilo de saburra da língua entorpecida. Penteara o cabelo para trás, como fazia na adolescência, imitando ídolos de um século partido. Saíra restituído em alguma dignidade, mas quem tem passado não tem isso: todo mundo já foi besta um dia, e só sofre mais quem foi besta ontem, porque todo mundo ainda lembra. Malditos os que têm memória longa, sempre se acha um bosta desses quando você está feliz. O melhor amigo é o cachorro que se esquece até dos chutes que você lhe dá.

Margarida estava sentada à mesa da cozinha. Tinha um prato de sopa de fubá com alho diante de si — e um saudável copo de água gasosa, cuja presença por si indicava que a mesa era posta para Teobaldo. “Meu Deus, sou uma minhoca, um mosquito, uma lombriga...” Ali estava Margarida, na cabeceira da mesa, silenciosa com seus olhos enigmáticos, poços pretos profundos impermeáveis à pesquisa de um desesperado como ele. E Margarida olhava para o jornal do dia, que o carteiro trouxera outra vez. “Devia cancelar essa merda”.

Sentou-se na cadeira ao lado. Pegou a colher como se fosse um revólver. Levou sopa à boca como se estivesse enfiando uma bala no lobo temporal. Infelizmente a arma fria no bolso da calça era só o telefone móvel. E o único crime que com ele cometia era ainda ter o telefone de Maria. As orelhas lhe queimavam.

Enquanto sorvia a sopa, em um silêncio cadavérico, via Margarida folheando o jornal, interessada. O ruído das folhas sendo viradas soava na cozinha como os remos de Caronte no Estige. Quando virou a última folha, antes de Teobaldo virar a última colherada, finalmente lhe deu na cara, com aqueles olhos que pareciam redemoinhos de raiva, ou uvas inflamadas.

— Não dormi essa noite pensando em você, seu bosta!

Teobaldo continuou quieto. Queria que ela o xingasse de cada palavra, que ela pisasse em seus ovos usando um tamanco de madeira, que ela pegasse seu coração entre os dedos e espremesse até o músculo virar sangue também. Queria que ela fosse uma assassina, uma mula-sem-cabeça, uma messalina.

Mas não, aquela inútil o olhava com uma expressão amante no rosto, pronta para resignar-se, esperando as explicações, quaisquer que servissem, querendo resgatá-lo, regá-lo com suas lágrimas e recuperá-lo. Ele queria morrer, mas não queria isso, não merecia isso, não queria isso, não merecia isso, repetia isso, estava perdendo de novo o controle. Bebeu o resto da água de um gole só, sofreu com isso, continuou quieto.

— E você não me fala o que está havendo? O que acha que sou, Teobaldo? Acha que sou seu anjo da guarda? Como quer que o ajude se não sei nem o que há com você? Eu o amo, quero ajudar, mas você é uma esfinge. Você é… um alcoólatra? Que depressão o jogou nessa fossa? Você não era assim antes, você nem bebia, você tonteou de beber martíni na primeira vez que saímos, falando coisas engraçadas. Eu gostava tanto de você daquele jeito simples, mas gosto de você de qualquer jeito, quero poder ajudar você de algum jeito…

As palavras saíam, meio sem sentido, repetitivas, na lenta imprecisão do destempero controlado. Maria lhe vinha à cabeça: aquela sim, jamais se rastejava por um homem como Margarida lhe fazia. Mas Maria tinha ido embora e ele nem sabia onde jazia. Era Margarida que ali estava, amando-o, implorando apenas que ele permitisse. Mas Teobaldo era um crápula, tinha que ser. Margarida não o merecia, ela precisava odiá-lo enquanto ainda era tempo, precisava deixá-lo, destruí-lo, esquecê-lo, casar-se com um que não fosse verme, lento, poça, lama.

“Chega de anjos” — berrava a sua mente. Mas a boca boboca babava, balbuciava. Repetia-se em colisões de consoantes, ou talvez em gaguejar garatujado de alguém que não rascunha as frases que diz. Ficava lá em silêncio, possesso, doloroso, querendo Maria e tendo Margarida. Maria, a amada. Margarida a amante. Não, amante de Maria, marido de Margarida. Por amor, por dinheiro. Abandonado, uma fuga para o estrangeiro. Ele ali, jogado no subúrbio, joguete de uma mulher como ele, não de uma exótica princesa. O vazio que ficara na saída de Maria era uma treva que quase o recobria, que destruía seu casamento e anestesiava sua vida. Bebia. Não porque o álcool o chamasse, mas porque morria, ou melhor, porque era o que queria. Não buscava torpor, mas o choque, ou um escroque que o cobrisse de pancada durante a anestesia.

Quando finalmente sentiu o efeito do alho nos pulmões, o calor do mingau se espalhando pelos intestinos vazios, recobrou os sentidos. Pela terceira vez em dois anos. Estava vazio, mas não estava mais embriagado, só doía.

— Eu não mereço isso que você fez comigo, Margarida — foi o que disse.

— P-perdão — foi a estranha, tímida, resposta.

— Estou dizendo que eu não sou digno de você!

— Ah…

Por um momento ele não percebeu. Mas depois teve uma sensação de estar olhando para aqueles exercícios de xadrez que apareciam no jornal. O silêncio naquela cozinha continuava cavernoso, só um pouco mais denso. Ouvia-se o jornal estalar sozinho, com o peso do ar que o apertava na mesa. E os olhos de Margarida, mesmo tão negros quanto antes, mesmo ainda parecendo poços de piche, enigmas esféricos, jabuticabas, todas essas coisas poéticas e precárias que se usa para dar dignidade à simplicidade de um corpo de carne, precário e decadente, que abriga esses sonhos nossos, única coisa diferente, motivo solitário de existirem versos, indústrias, guerras, todas essas coisas grandes e bonitas que duram para depois.

— Que diabo está falando, Margarida?

— Que diabo está falando, Teobaldo?

Teobaldo levantou da mesa bem devagar. Movendo cada músculo tão leve que parecia um beija-flor dançando para uma margarida. Dirigiu-se ao quintal dos fundos, deitou na espreguiçadeira e ficou olhando as hortaliças que cultivava nas horas vagas, o pequeno gazebo de madeira, todo belo de ornamentos, que encomendara ao primo Anastácio, que tinha sumido ganhando a vida na Europa com seus entalhes em madeira. Por que diabos gringo gosta tanto de coisas entalhadas em madeira?

Carros passavam pela rua, escondidos pelo muro de quatro metros, monstruosidade de concreto financiada pelo FGTS para consolidar o lar contra os vizinhos. Margarida não saiu com ele. Ficou lavando a louça e o faqueiro na pia da cozinha. De vez em quando caía uma faca ou uma colher, coisas que acontecem. Por azar quebrou-se um dos pratos de louça também — justo aquele em que tomara a sopa — mas era um dos baratos.

O domingo foi escorrendo pelo céu acima, esquentando a laje de cimento que forrava o caramanchão mal arrumado onde fora o churrasco do casamento de Anastácio com Danila, meses antes. Meses antes de partir-se Maria.

Por fim, quando deu fome, quando o sol chegou até a espreguiçadeira, levantou-se dela suado e salvo. A culpa se partira também. Maria que se fodesse, a vida era mesmo uma merda, melhor limpar do que deixar que fugisse ao controle. Chegou na cozinha e ainda achou Margarida, coitada, esfregando pratos e talheres. Pelo tempo que passara devia ser a décima vez que esfregava a esponja em cada garfo.

— Margarida, tenho pensando num monte de coisas, sabe. E tomei uma decisão muito importante hoje.

— O q…? — ela nem conseguia terminar a pergunta.

Teobaldo imaginou o que aconteceria. Filmou cada cena do futuro não acontecido. Margarida que abdicara de uma carreira para poder criar os dois filhos, vivendo de pensão que ele nem sempre poderia pagar em dia. A casa, herança tão afortunada de uma tia, vendida para pagar as custas do desquite, cada um vivendo em seu apartamento. Pensou na barba grisalha que tinha de manter raspada, nos vincos que atrapalhavam a sorrir, nas varizes que rasgariam mapas rodoviários em suas pernas. Futuros dias de pais e mães condensando culpas e acusações de coisas meio acontecidas. Tudo isso parecia pesadelo. Maria tinha ido embora. Tinha ido tarde, ela que fodesse, a piranha, com todos os frescos estrangeiros que encontrasse, que não voltasse nunca depois de usada e jogada fora, que achasse um que a fodesse bastante para ela não querer mais sair daqueles lugares frios aonde Teobaldo jamais iria. “Chega de anjos”.

— Eu entro para os Alcoólicos Anônimos amanhã.

Margarida desprendeu um suspiro imenso e o abraçou com força, manchando de espuma de detergente o pijama que ele ainda vestia. “Chega de anjos” — pensou Teobaldo. Deixou-a terminando de guardar a louça e foi assistir alguma coisa na televisão. Algum jogo idiota de campeonato estrangeiro (talvez Maria estivesse na arquibancada ao lado de algum afortunado gringo, careca e impotente, exibida como troféu, impunemente). Enquanto olhava a tela, resvalava com o olhar a foto da família, parecendo torta. A semente do diabo, plantada por um curto diálogo, ribombava em sua mente apenas com uma determinação quase demente: “Bentinho era imbecil”.

E nessa repetição a saudade de Maria morria e crescia com força a crença indiscutível, de que merecia e queria Margarida.


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