Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
12
Mar 13
publicado por José Geraldo, às 17:55link do post | comentar
Provando que eu já era meio ardoroso na defesa de minhas opiniões em 1999, vai uma correspondência por mim enviada à Prefeitura de um município do interior mineiro — com cópia para conhecido jornal de ampla circulação na região — após ter conhecimento do gabarito final de um concurso para provimento de vagas no magistério municipal, no meu caso para lecionar História. O concurso acabou anulado e eu, que havia sido reprovado por uma questão, tive a chance de fazer a prova de novo, mas da segunda vez o concurso estava em um nível no qual provavelmente nem o Eduardo Bueno, nem o Jacques Soustelle e nem o próprio Hobsbawn passariam — mas um número suficiente de candidatos obteve a pontuação necessária, claro.

Esta versão não é idêntica à que foi enviada à Prefeitura pois, além de remover todo dado que pudesse servir para identificar o município (e assim me precavenho contra um processo por calúnia e difamação), também removi alguns parágrafos que não tinham informação suficiente para que alguém sem acesso ao texto da prova pudesse entender do que eu estava falando. Removi também o endereçamento e o fecho.

Tendo me inscrito no último Concurso Público realizado pela Prefeitura para preenchimento de vagas de Professor de História, venho por meio desta pedir a V. Sª. providências referentes ao mesmo, cujas provas tiveram lugar no último domingo dia 16/06 do corrente ano. Faço-o nesta data pois, tendo sido o gabarito definitivo divulgado no dia 19/06, ainda me está facultado o direito de recurso.< Faço uso desta prerrogativa por julgar que o referido concurso sofreu de imperfeições de variada espécie, as quais prejudicaram-me (e acredito que também a inúmeras outras pessoas, embora eu me restrinja a abordar os aspectos referentes ao meu caso particular). Entre essas destacam-se o descuido na elaboração das provas e a existência de diversas incorreções tanto no enunciado quanto nas alternativas em várias questões.

Prova de Conhecimentos Específicos (História)


Em relação à esta parte, a primeira, e talvez a mais grave, das imperfeições foi ter exigido matéria diversa da originalmente definida no programa. O Manual do Concurso Público «Área de Educação, Nível Superior», cita em sua página 9 os «Conteúdos Programáticos» (sic) da Área de História:
  • Construindo o pensamento histórico: reflexões sobre os papéis do professor de História e do Historiador e sobre as suas relações com as grandes correntes da produção do conhecimento histórico;
  • Brasil contemporâneo: República Brasileira: aspectos da vida política; desenvolvimento de políticas públicas; momento atual;
  • Economia e sociedade no Brasil: O Brasil no contexto da globalização mundial; as políticas neoliberais e seus reflexos na economia e no desenvolvimento social (...); meios de comunicação e cultura de massa;
  • A questão agrária e o meio ambiente: uma visão histórica do processo: ocupação da terra e a questão indígena; concentração da propriedade rural, política agrária, (...) agricultura e degradação ambiental;
  • O ambiente urbano e a industrialização do Brasil: industrialização e crescimento urbano; (...) atividades econômicas e meio ambiente, educação e saúde.
A partir desta lista se pode supor que a prova seria centrada na realidade brasileira de hoje. O fato de ser justamente este o conteúdo do currículo do Ensino Fundamental dá sólidas bases a esta suposição. É importante ressaltar isto porque, ao delimitar desta maneira o conteúdo programático, não se está meramente dispensando o candidato do estudo de outras áreas, mas também condicionando-o a desenvolver todo um raciocínio histórico invertido a partir do presente e baseado na demanda do aluno. Não é apenas uma delimitação de conteúdo; é a afirmação de uma maneira de pensar e de ensinar a História. Não se está apenas pedindo do candidato que conheça os temas propostos, mas também que estruture seu raciocínio e o seu método em torno de um paradigma.

Analisemos agora os temas das questões da prova de conhecimentos específicos.
  • Questão 31: Feudalismo (no imaginário popular e na cultura de massas).
  • Questão 32: Absolutismo (características).
  • Questão 33: Significado da vinda da família real portuguesa ao Brasil.
  • Questão 34: O Século XIX na história dos Estados Unidos da América.
  • Questão 35: Contexto histórico do Brasil no pós-guerra.
  • Questão 36: Questão Palestina.
  • Questão 37: Transição do Mito à Razão na Grécia Antiga.
  • Questão 38: Características do Período Regencial.
  • Questão 39: Causas da Segunda Guerra Mundial.
  • Questão 40: Contexto histórico do Brasil nos anos 60.
Como se vê, nenhuma das questões está compreendida nos «conteúdos programáticos» enunciados no manual e poucas, de acordo com o currículo do Ensino Fundamental. Vale ressaltar que no Ensino Fundamental a História Universal é ensinada apenas como complemento à do Brasil.

Ainda que se possa argumentar que ao professor de História cabe conhecer todo o espectro da História Universal (uma afirmação discutível sob certos aspectos*), ao divulgar que o concurso exigiria certos setores da História e não outros, os organizadores do concurso inculcaram nos candidatos a percepção de que deveriam dirigir seus estudos exclusivamene às áreas que seriam tema da avaliação. Os que confiaram nas orientações oferecidas pela organização do concurso ficaram, portanto, em desvantagem em relação aos que, por quaisquer motivos, tenham desconfiado delas. É moralmente aceitável que seja prejudicado quem confia no poder público e recompensado quem dele desconfia?

Faço questão de ressaltar que não me furto a ser avaliado em qualquer área da História. Não tenho medo de submeter a prova os meus conhecimentos. Mas, por uma questão de honestidade, acredito que os candidatos a um concurso têm o direito de saber em que quesitos serão avaliados para que possam todos preparar-se em igualdade de condições. Um concurso deve avaliar os conhecimentos do candidato, não sua capacidade de prever o futuro.

No entanto, ainda que protestando veementemente contra o fato lamentável ocorrido, não deixo de analisar friamente as questões da prova de História, pois iludir as expectativas dos candidatos não foi o maior dos erros cometidos pela organização: na maioria das questões houve problemas em relação ao enunciado ou às alternativas.

Na questão 31, por exemplo, temos um texto que, segundo o enunciado, devemos tomar por base ao analisar as quatro afirmativas propostas. Ocorre que nenhuma das opções oferecidas alude ao texto. A título de ilustração, cito o enunciado da questão:
«Para o homem comum, não especialista, a expressão feudalismo possui um peso fortemente negativo, provocando associações imediatas com imagens colhidas em velhos manuais ou em romances mais ou menos ambientados numa vaga região do passado denominada 'Idade Média' ou 'Tempos Medievais'. Para as gerações mais novas, do cinema de massa e da TV, feudalismo remete para filmes 'de capa e espada', onde a violência, o fanatismo religioso, a fome e 'a peste' encontram-se lado a lado, com figuras melancólicas e românticas de 'cavaleiros e miladies'».*
Dentre as afirmativas que devemos analisar e assinalar a «correta» temos (os grifos são meus):
  1. a abordagem da época medieval pelo cinema e pela televisão, destaca a mobilidade e a flexibilização dos papéis sociais, característicos do feudalismo;
  2. O (sic) clero consolidou o prestígio da Igreja Medieval (sic), apoiando os movimentos heréticos religiosos;
  3. A (sic) intensificação da exploração sobre os camponeses, as crises de fome e a chamada 'peste' estavam associadas às rápidas transformações socioeconômicas (sic) em curso na sociedade européia medieval;
  4. A escravização (sic) dos camponeses nos temos medievais determinou a visão negativa sobre este período da História»
Ocorre que nenhuma das quatro afirmativas é verdadeira em razão de conterem, todas, palavras inadequadas que invalidam qualquer veracidade que ostentem.

A alternativa A menciona uma suposta «mobilidade» e uma «flexibilização dos papéis sociais», quando a Idade Média foi justamente um período caracterizado pela rigidez da estrutura social. A alternativa B incorre em falsidade ao declarar que a Igreja apoiava as heresias, quando ela as combatia a ferro e fogo. A alternativa C, tida como correta, alude a supostas «rápidas transformações socioeconômicas (sic) em curso na sociedade européia medieval», quando a época foi justamente caracterizada pela lentidão das transformações. Embora ao longo do período medieval a sociedade se tenha transformado profundamente, este processo foi tudo, menos rápido, já que levou mil anos! A alternativa D utiliza inadequadamente o termo escravização para referir-se à situação dos camponeses medievais e afirma que foi isso que determinou a visão negativa sobre este período da História, quando a visão negativa sobre a Idade Média foi determinada pela concepção Renascentista de que o período teria sido uma longa «noite» em que a cultura antiga esteve esquecida. Diante do fato de que todas as alternativas estão incorretas, reconheço que assinalei aleatoriamente uma delas na prova, já sabendo que haveria de polemizar depois.

A questão 36 mostra que o seu formulador tem uma concepção bastante superficial dos eventos internacionais contemporâneos. Depois de ter citado fragmentos de uma reportagem de jornal sobre a questão palestina, o enunciado indaga qual alternativa é correta, «sobre o tema» (não sobre o texto, portanto, o enunciado nos instrui a não considerar o texto ao analisar as alternativas. Ao afirmar que «A chamada Questão Palestina refere-se atualmente à situação dos cerca de quatro milhões de refugiados em áreas vizinhas ao estado de Israel;» o formulador mostra não compreender a magnitude do problema. Qualquer pessoa bem informada sabe que a Questão Palestina não é um problema de refugiados, mas uma questão nacional não resolvida. Talvez o erro se deva ao fato de a questão ter sido formulada com base em um artigo de jornal do ano passado mas, há quanto tempo foi formulada esta prova? Ainda que eu tenha assinalado esta alternativa como correta, eu o fiz pela mesma razão que na questão 31: as quatro contêm falsidades evidentes.

A questão 37 incorre num erro digno de um Erich von Däniken, pseudo-historiador célebre por misturar os fatos históricos e freqüentemente se perder no emaranhado de sua própria confusão ao tentar defender suas mirabolantes teorias. O enunciado da questão remete à passagem do Mito à Razão na Grécia Antiga, evento que teria ocorrido, segundo o formulador da questão, entre os séculos VII e VI a.C.* e que teria sido possibilitado, segundo a alternativa dada como correta, pelo surgimento da Filosofia e pelas invasões dos dórios. Em termos lógicos a afirmativa é um absurdo! Ora, é concebível que exista Filosofia sem que exista pensamento racional? Como pode a Filosofia preceder a razão, sendo ela o mais nobre fruto da mais nobre das faculdades humanas? Em termos cronológicos o desastre é ainda maior: como pode a invasão dos dórios haver sido um fato decisivo em um processo ocorrido entre os séculos VII e VI a.C. se ela ocorreu por volta do século XII a.C., 600 anos antes? A invasão dos dórios foi responsável, isto sim, pela destruição da civilização egeano-micênica (os «Tempos Homéricos») e lançou a Grécia em um período de confusão política que é conhecido como a «Época Arcaica» (séculos XI a VI a.C.) ao longo do qual surgiram e se consolidaram os elementos da posterior «Época Clássica». O surgimento da razão não foi fruto de outra coisa senão da urbanização grega, com o surgimento da pólis; motivo pelo qual eu assinalei a alternativa B, a única que menciona o fato mais notável ocorrido entre os séculos VII e VI, único evento capaz de produzir uma transformação radical, evento este que é semente de inúmeros outros. A colonização grega e a expansão da cultura helenística (mencionadas na alternativa C) também têm pontos de contato com a passagem do Mito à Razão. A primeira por ser contemporânea à última fase da «Época Arcaica» e a segunda por representar a «exportação» da cultura grega para o resto da área do mediterrâneo (mas em uma fase posterior ao período citado). Desta análise se conclui que a única alternativa correta é B, não C.

A questão 38 induz o aluno ao erro pois a alternativa tida como «correta» (D) afirma que os partidos surgidos no Período Regencial eram «democráticos». Ou o formulador tem um muito peculiar conceito de democracia, flexível a ponto de considerar democrático um sistema que excluía 99% da população brasileira da época, ou houve erro na correção desta questão. De resto, nenhuma menciona aquela que é, realmente, a principal característica do período regencial: o fato de o governo ter sido exercido por líderes eleitos. Esse é o motivo pelo qual a época foi conhecida como «experiência republicana», como aliás está mencionado no enunciado da questão!

A questão 39, em sua alternativa «correta» identifica como causa da Segunda Guerra Mundial a «ameaça expansionista da União Soviética, pretendendo a difusão da revolução socialista». Aceito que o formulador acredite que comunistas comem criancinhas, mas não aceito que agrida o fato histórico. No período anterior à Segunda Guerra a antiga União Soviética estava passando por um processo de reestruturação social e econômica. Ocorriam crises periódicas de fome, perseguições políticas e escassez de gêneros. O país ainda estava construindo uma infra-estrutura básica e a expansão da revolução era a última de suas preocupações. Não foi por outro motivo a célebre disputa entre Trotsky e Stalin pela primazia no PCUS. Enquanto este defendia a necessidade de uma pausa no ímpeto revolucionário para «consolidar as conquistas da revolução», aquele defendia uma «revolução permanente».

A vitória de Stalin representa o triunfo do pragmatismo e do isolacionismo sobre o idealismo revolucionário. A maior prova de que não havia uma política expansionista russa está no pacto Ribbentrop-Molotov (1939), em que a URSS cedeu territórios e áreas de influência à Alemanha nazista para evitar confrontar-se militarmente com ela: Stalin sabia que, em 1939, a União Soviética ainda não tinha condições de lutar. Pretender que um país que cede ao limite da covardia para evitar um confronto militar está em uma «política expansionista» é mais do que minha pouca inteligência consegue alcançar.

Duas alternativas aludem a fatos históricos coerentes com a origem da Segunda Guerra Mundial: B e D. A letra B, ao mencionar «as rígidas cláusulas dos tratados de paz da Primeira Guerra e a geração espontânea de novos países europeus surgidos com a fragmentação do Império Austro-Húngaro» (ainda que o termo geração espontânea seja inapropriado e o fato em si, de discutível importância na esteira de eventos que conduzem à Guerra). A alternativa B reúne as mais sólidas afirmações, ao aludir à «Política expansionista de regimes fascistas na Ásia e na Europa e à diplomacia do apaziguamento». Atribui, portanto, a culpa aos verdadeiros culpados: Alemanha, Itália e Japão (os tais regimes expansionistas) e Inglaterra, URSS e Estados Unidos (os que assinavam tratados com Hitler achando que ele um dia ficaria satisfeito e a guerra não aconteceria).

Mas é a questão 40 que mais suscita revolta contra os organizadores. O enunciado afirma que:
«No início da década de 1960, a grande novidade no mundo do cinema era a revelação da produção cinematográfica do Terceiro Mundo (do Oriente, da África e da América Latina), que expressava as condições internas dos países destas regiões e o contexto da conjuntura (sic) internacional. No Brasil, o Cinema Novo começava a ganhar expressão e voltar-se para as bases populares de nossa cultura. Como características no plano interno e externo do período, podem ser apresentadas, respectivamente:»
A alternativa correta, segundo os organizadores é a B, em que se lê: «o nacional desenvolvimentismo (sic) e o surgimento do realismo socialista no cinema». Ou seja, a questão afirma que, no Brasil, vivíamos um período «nacional desenvolvimentista» e que, no plano, externo, assistia-se ao surgimento do «realismo socialista». Claro, não?

Bem claro que quem acha que isto está certo deve ter tomado pau em História da Arte na faculdade e deveria voltar para ela para aprender de novo. Protesto contra a afirmação de que o realismo socialista no cinema surgiu nos anos 60. Querem que eu rasgue todos os livros de História da Arte e confie no que algum incompetente desconhecido acha que está certo? «Realismo Socialista» foi o estilo artístico característico da União Soviética -- e de alguns de seus satélites -- entre a década de 1930 e o final da década de 1970. O «Realismo Socialista», na literatura foi criado por escritores como Vladmir Maiakóvski (morto em 1925) e no cinema, por Sergei Eisenstein (cujas produções vão de 1923 a 1941).

Transcrevo a seguir o verbete «Realismo Socialista» da Enciclopédia Larousse:
«O princípio fundamental do Realismo Socialista é a captação da realidade com a visão partidarista, objetivando uma tomada de posição explícita a favor da construção do socialismo. (...) Salientou-se o «herói positivo» (do qual o próprio Stalin seria um arquétipo); adotaram-se as formas simplificadas, a exuberãncia decorativa e a comunicação fácil com o público leitor ou espectador. Foi justificado ideologicamente nos informes de Andrei Jdanov sobre a arte e a literatura e (...) foi a doutrina artística oficial na antiga URSS e em outros países socialistas.»
Note bem a menção a Stalin. Ainda que se discuta a época exata em que surgiu o «Realismo Socialista», é evidente que ele já existia enquanto Stalin e Jdanov ainda eram vivos. Como Stalin morreu em 1953 e Jdanov em 1948, ele não poderia estar surgindo nos anos 60, caramba! Para informar ao ignorante formulador desta questão, o movimento inspirador de nosso Cinema Novo foi o «Neo-Realismo» italiano e o seu protótipo foi «Roma, Cidade Aberta», de Roberto Rosselini (1948).

Prova de Português

Tendo expressada minha posição a respeito da Prova de História, passo a analisar a Prova de Português, a qual, ainda que em grau menor, também apresenta sérios problemas.

Logo na segunda questão temos uma grave razão para controvérsia. Tudo porque o enunciado da questão, citando parcialmente uma frase do texto, indaga o significado da oposição entre sermos «seres no mundo» e sermos «seres do mundo», segundo a ótica do autor. Vejamos o que diz a frase inteira no texto (os grifos são meus):
«A modernidade, com a influência cartesiana e também da física de Newton, nos legou a falsa ideia de que somos seres destacados da natureza, que somos seres no mundo. Quando somos, de fato, seres do mundo.»
A primeira parte da citação é evidente: o pensamento materialista nos apresenta como dominadores da natureza, dissociados dela. Ao afirmar que, na verdade, somos seres do mundo, Frei Betto está apenas querendo afirmar o contrário: nós também pertencemos ao mundo, somos parte de um sistema.

O gabarito apresenta como correta a afirmativa C, onde se lê: «Fomos feitos para habitar este mundo/somos apenas parte deste mundo». É uma afirmativa bastante semelhante à letra A, que afirma: «fomos feitos para reger o mundo/somos parte da natureza». Na verdade nenhuma das duas afirmativas está de acordo com o texto citado: a afirmativa C perde ênfase e coerência ao usar a palavra «apenas» pois o objetivo da exposição de Frei Betto é ressaltar o fato de que somos mais que simplesmente «habitantes» deste mundo. Concordo que trata-se de uma questão de estilo mas, o estilo deve estar a favor da clareza. A afirmativa A também está errada porque Frei Betto não afirma que devemos reger o mundo.

Prova de Conhecimentos Didático-Pedagógicos


Em relação à questão 23 fico perplexo pela possibilidade de a afirmativa D estar correta, uma vez que as três últimas afirmativas tangenciam pelo mesmo ângulo o trecho citado. Se uma delas está correta, todas as três obrigatoriamente estarão. Consequentemente a única afirmativa que as contradiz deve estar correta. Isso, é claro, numa análise simplista e a priori, sem ler com atenção o enunciado.

Quando Veiga afirma que «As novas formas têm que ser pensadas em um contexto de luta, de correlação de forças — às vezes favoráveis, às vezes desfavoráveis. Terão que nascer do próprio chão da escola, com apoio de professores e pesquisadores. Não poderão ser inventadas por alguém longe da escola e da luta de classes» estará ele pregando que deve haver «divisão entre ensinar e aprender»? Estará querendo dizer que deve haver «desvinculação entre sentir e agir»? Estará angariando adeptos para a necessidade de separar o pensar do fazer quando justamente afirma que aqueles que fazem (professores e pesquisadores) devem ser os responsáveis pela elaboração das teorias que os guiarão?! A única afirmativa que concorda com Veiga é A: «unidade entre teoria e prática», por eliminação através da lógica abstrata, mas também por evidente semelhança de idéias.

Na questão 26, creio haver um problema de natureza lógica na formulação da questão. O enunciado nos pede para considerar os «critérios para a verificação do rendimento escolar apresentados a seguir:» Acontece que as frases mencionadas não se referem todas a «critérios para a verificação do rendimento escolar», como se verá.

Ocorre que a afirmativa II declara: «obrigatoriedade de estudos de recuperação, de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo rendimento escolar» enquanto a afirmativa III alude a «possibilidade de avanço nos cursos e nas séries, mediante verificação do aprendizado».

Ora, salta aos olhos do observador que as afirmativas II e III se referem, ambas, a eventos posteriores à verificação do rendimento: II define a possibilidade de recuperação em caso de sub-aproveitamento e III fala do avanço nos cursos e nas séries, «mediante verificação do aprendizado». O próprio enunciado de III já admite que a verificação do rendimento escolar é outra coisa, e uma coisa anterior.

Portanto a única alternativa que define critérios para avaliação do rendimento escolar é I: «avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais.» Estes são critérios, os outros são atitudes a tomar diante dos resultados da aplicação destes critérios.

Ainda que a LDB mencione conjuntamente as três afirmativas, é evidente que a redação do enunciado está capenga e o torna obscuro e inverossímil. Parece ter faltado à mão do redator desta questão um pouco de amor à clareza.

Sumário

Do anteriormente exposto conclui-se que, entre as alternativas que «errei» no concurso, em várias o meu erro foi induzido pela existência de múltiplas alternativas corretas; pela má construção do enunciado, resultando em afirmações absurdas em seus próprios termos; ou pura e simplesmente porque se considerou certo o que está errado.

Causa-me profundo espanto que um concurso organizado por um órgão público incorra em tantas imperfeições. Que exames que levam o nome de «provas objetivas» contenham subjetividades. Que uma tarefa de grande responsabilidade, como a elaboração de um concurso público, seja levada a efeito de forma tão descuidada, temerária até. Que diante do alto valor da taxa de inscrição não se tenha providenciado um sistema de alta qualidade e à prova de falhas.

Não espero que meus protestos resultem em providências, pois estas deveriam incluir a anulação de muitas questões ou, preferencialmente, o próprio cancelamento deste fiasco em que se transformou o concurso; mas faço uso de minha liberdade de expressão para declarar meu repúdio a este. Diante da qualidade dos exames infere-se a qualidade dos que foram responsáveis pela sua elaboração e duvida-se da qualidade das pessoas que serão por tais critérios selecionadas para o serviço público.

Eu não aceito a nota que obtive neste concurso como a medida justa de meu valor, quer sob o aspecto meramente acadêmico, quer sob o aspecto profissional. Justa medida ele é da seriedade e da competência daqueles que o conduziram.

Há que se ter mais respeito pelo dinheiro alheio. Não se pode cobrar R$59,00 de taxa de inscrição e brindar os candidatos com folhas de respostas fotocopiadas. Não se pode ter duas versões do gabarito em uma mesma semana e não depõe a favor da lisura do processo seletivo a limitação do prazo para recursos a 48 horas, especialmente se levamos em conta o restrito horário em que atende o serviço público municipal. Tudo parece conspirar para dificultar uma análise minuciosa das questões e a elaboração de uma contestação efetiva em tempo hábil, para que os candidatos acabem sendo forçados a aceitar o resultado.

Uma administração comprometida com o bem comum não pode tolerar este tipo de falhas, especialmente quando o processo foi alvo de suspeita desde o início, com maldosos comentários à boca pequena aludindo ao seu caráter de mero «arrecadador de fundos para as eleições». Diante de tão graves suspeitas que o populacho levantou, rigorosas providencias de seriedade deveriam ter sido tomadas. Sua ausência decepciona os que, como eu, hipotecaram suas esperanças votando na atual administração e permitem suspeitar da veracidade dos comentários que o zé-povinho fez circular.

Espero que minha indignação motive correções futuras, que instigue os canais competentes a agirem em defesa da cidadania, uma vez mais ferida. Sinto-me ferido em minha dignidade, insultado em meu profissionalismo ao ser ele medido por critérios amadores.

11
Mar 13
publicado por José Geraldo, às 22:45link do post | comentar
Marina leva a xícara aos lábios e, ao vê-los refletidos no café negro, se despe da dureza que vestiu nos últimos meses. “Que falta me faz a Luísa” — confessa em voz alta, sabendo que não há ninguém perto para ouvir.

O último diário de Luísa jaz sobre a mesa do café, ainda lacrado. Justamente neste momento Marina está refletindo sobre o que ainda não leu, enquanto lembra o que viveram.

Um mês da morte de Luísa. A gente não se acostuma com isso, acho que nunca nos acostumamos. Para Marina foi um mês de desinteresse da vida, um mês de purgatório em que mecanicamente foi de casa ao trabalho e vice-versa.

No verso da capa está anotado um telefone, em letras grandes, gordas, escuras, difíceis de não ver.

“Ela queria que eu ligasse” — pensa Marina. “Mas eu não vou fazer isso de jeito nenhum.”

E sorve um gole de café.

O dia tinha sido intenso. Trabalhara como poucas vezes. Apenas a amiga cafeteira a entendia, e lhe fazia um café negríssimo em poucos instantes, para acordá-la para a noite. Hora de terminar o café, começar o banho, continuar a vida.

Ouviu o interfone justamente quando depositou a xícara na mesa. Uma sincronicidade dessas que a vida tem. Tentou ignorar, ele insistiu. Adiou o ritual diário de purificação e foi atender o aparelho ainda com a alma sofrida.

Ricardo.

— Luísa me pediu que a procurasse. Aqui é o Ricardo, lembra de mim?

Marina já tinha pensado que sim,  mas também que gostaria de esquecer. Estava preparada, só que não.

— Sobe, Ricardo.

Abriu a porta quando escutou os passos no corredor. O impacto denunciava que ele ainda continuava com a moda estranha daquelas botas de salto, estilo vaqueiro de cinema. Era ridículo, mas às vezes não era.

— Boa noite, a Luísa me pediu que te procurasse.

Marina franziu o cenho.

— Quando? Tantas semanas…

— Antes, claro.

— Para que?

— Bem. Fomos as pessoas de quem ela mais gostou. Seu namorado, a melhor amiga.

“Ele não sabe de nada”.

— Acho que você está enganado. Estávamos rompidas desde meses. Discussão muito séria. Eu disse coisas feias, ela saiu daqui muito magoada comigo. Não creio que eu fosse mais sua “melhor amiga”.

— Não foi o que ela me disse. Na carta que mandou, disse que lhe amava muito e que entendia o modo como você se sentiu.

Os olhos dela brilharam.

— Uma carta? Ela escreveu?

— Sim.

— Posso ver?

— Não. Ela pediu que eu queimasse.

Marina engole em seco. Mas não deixa transparecer. Uma carta somente para os olhos dele, coisa de filme de espionagem. Somente a mentalidade infantil de Luísa pensaria nalgo assim.

— Acredito que nós temos coisas muito importantes a dizer um ao outrohellip; um dia. Ainda é cedo. Vamos deixar que o tempo pense, que Luísa ache descanso e que nós nos ponhamos as cabeças no lugar. Depois vamos ver o que há para dizer.

— Eu vim em busca de respostas. A carta só tinha perguntas.

— Isso, infelizmente, não posso dar. Todas as que tenho provavelmente são as que você já teve, ou as que você não quer.

Marina viu os olhos de Ricardo se aquecerem por um momento e se lembrou do esforço que devia custar ao pobre estar ali, falando-lhe  naquele tom. Principalmente se suspeitava de algo. Ele não era um cara passivo e honesto, desses que sabem esperar a vez. Somente o choque da morte de Luísa o amansava o suficiente para esperar no umbral da porta, sem meter o pé e entrar à força. Mas, de algum jeito, Marina tinha dó dele não entrar.

— Olha, meu bem, vamos fazer o seguinte. Você volta para sua casa e nós deixamos alguns meses se passarem. Eu ainda não me sinto pronta para conversar a respeito da Luísa e posso ver perfeitamente que você também não está. De acordo?

Ele fez que sim em um gesto breve. Aliviado.

— Tudo bem. Mas quando?

— Te convido a vir tomar um chá aqui em casa dentro de três meses, ou nunca. Pode ser?

— Três meses ou nunca?

— Se dentro de três meses você não quiser mais conversar comigo sobre a Luísa, então terá sido melhor assim.

— Talvez tenha razão. Combinados.

“Ele topou” — Marina sorriu — “e ganhei tempo.”

Ricardo despediu-se educadamente, apesar de não ter sido sequer convidado a entrar, e desceu a rua sem olhar para trás.

Quando ele terminou de descer as escadas, ficou olhando brevemente para o branco da porta recém pintada. Para cobrir a tinta cor de rosa que Luísa sugerira. Estendeu o braço e arrancou com a unha um naco da pintura, revelando a cor antiga, dolorida ainda.

Tinha sido somente naquele dia, pela manhã, que tivera alguma aventura alheia à rotina. Antes do serviço passara no correio para abrir a caixa postal. Dentro do escaninho estava um envelope grande, contendo a pequena preciosidade. Do lado de fora havia a recomendação: entregar somente em 09 de março. Alguém servira de portador à última vontade dela.

“Que surpresas você reservou para o fim, minha amiguinha?”

Dentro do envelope havia uma caixa lacrada, contendo somente aquele caderno de capa dura, monocromática e escura. Um caderno grosso e grande e sério. Bem diferente dos antigos cadernos de escola, tão coloridos e cheios de fantasia. Uma capa verde-escura. Verde-morta.

Na capa, uma etiqueta adesiva onde se lia “de: 01/01/85 — a: ++/++/++”. As cruzes acrescentadas firmemente com outra caneta, meses depois.

Estava embrulhado em celofane e preso por um barbante. Tivera de romper o lacre cuidadosamente para preservar o papel. Tinha essa mania de tentar abrir embrulhos sem estragar o envoltório. Luísa sabia disso, usara um barbante porque fitas adesivas teriam estragado o frágil celofane.

Na primeira página nenhum título, só um desenho feito com esferográfica. A paisagem parece invernal, espectral, por causa da tinta azul clara de uma caneta velha. Um papel solto cai ao chão. Nele se lê:

“Frutos, dão-nos as árvores que vivem,
“Não a iludida mente, que só se orna
“Das flores lívidas
“Do íntimo abismo.”

Sem assinatura, mas é Fernando Pessoa. Marina sabe de onde o tiraram. Só não desconfia do motivo de estar ali. Nas costas do papel, um telefone.

“Ela queria que eu ligasse, e eu não liguei.”

Leopoldina, 30 de abril de 2005
revisado em 10 de março de 2013
com a harmonização temporal
e inversão da primeira cena para o fim.

12
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 09:30link do post | comentar
A série De Profundis (em latim: «De Dentro das Profundezas») trará ao conhecimento do «leitor moderno» deste blogue, ou seja, este que o lê a partir de janeiro de 2013, antiguidades soterradas pela indiferença das eras tecnológicas e pelo bitrot dos anos.

Convido-os hoje à leitura de um texto publicado em setembro de 2010: Literatura e Política: Para Todos e Para Ninguém.

No total teremos 36 episódios, sempre abordando textos publicados nos primórdios do blogue e que tenham menos de 12 acessos.
assuntos:

23
Jan 13
publicado por José Geraldo, às 20:00link do post | comentar
Um dia, conversando casualmente com o meu amigo e também escritor Emerson Teixeira Cardoso, ele me contou uma história curiosa que se passou com ele nos anos 1960, época em que era ator amador em nossa Cataguases natal. Uma história cuja moral, se é que existe alguma, demorei muito para entender.

Era de um grupo não apenas amador, mas também autodidata, que encenava peças diversas na base do amor e do instinto. Certa vez, enquanto ensaiavam para a montagem de “Rinoceronte”, do Eugène Ionescu, calharam de ter a ideia de escrever ao então famoso dramaturgo romeno exilado em Paris, autor da peça. Não sei como conseguiram o endereço, mas conseguiram, e um dos membros do grupo sabia francês, coisa que se sabia naquela época muito mais do que hoje.

Após várias hesitações sobre o conteúdo da carta, que acabou sendo um trabalho escrito a muitas mãos, decidiram que a carta seria mais ou menos assim. Começariam se apresentando como um grupo de teatro amador, localizado no interior do Brasil, em uma cidade que tinha, à época, cerca de 30 mil habitantes. Depois de enfatizarem que tudo o que sabiam de teatro haviam aprendido dos livros que haviam lido sobre o assunto e das peças que haviam ousado encenar, descreviam com minúcias as dificuldades por que passavam e a incompreensão que enfrentavam (e apesar de tudo uma peça teatral daquelas deve ter tido mais público em 1969 do que teria hoje, na mesma cidade, já crescida e mais “desenvolvida”). A carta concluía com uma pergunta ao dramaturgo, como se ele fosse uma espécie de oráculo: “o que devemos fazer?”

A resposta de Ionescu veio quase três meses depois, quando a peça já tinha sido apresentada todas as duas ou três vezes que poderia ser. Era uma frase única, seca, isolada no centro de uma folha de papel ofício:

« tuez-vous »

Meu amigo me contou que todos ficaram perplexos com aquele imperativo formidável pousado na página como um abutre, sutil como uma chifrada de rinoceronte. Não sei se meu amigo já desenvolveu uma teoria sobre as motivações do conselho de Ionescu, ou mesmo se existe uma razão para ele, além do mau humor de um exilado que devia receber centenas de cartas de fãs cada dia.

De fato, tendo refletido posteriormente sobre o enigma desta frase, ainda mais pela carga de gravidade que a exiguidade lhe empresta, eu desenvolvi uma teoria, que vai muito ao encontro (e às vezes de encontro) de certas ideias que eu advogo desde os tempos da revista literária trem azul.

Ionescu, ao tomar conhecimento da existência, no interior do Brasil, de um grupo de pessoas que se dedicava a estudar teatro a partir de livros e montar precariamente as peças teatrais escritas por famosos dramaturgos como ele, deve ter se sentido bastante incomodado com a pergunta que ainda hoje não quer calar em mim quando vejo algo equivalente: o que essa gente pensa que está fazendo?

Veja bem você, vivendo em uma realidade tão específica, e tão oposta à Europa do pós-guerra, enfrentando tantas restrições que te impedem de efetivamente ter acesso à cultura cosmopolita, em uma sociedade que de forma alguma valoriza seu esforço ou compreende o seu trabalho. Se tudo que você faz é tosco, se os seus aplausos são a compaixão de amigos e parentes, se o seu entendimento de teatro se limita aos livros, se seus meios lhe obrigam a improvisar, deformando a cenografia pensada pelo autor etc. Se esta é a sua realidade, você tem mais é que se matar mesmo. Se você vive de costas para a cultura do seu país e busca, ainda que instintivamente, a aprovação de um autor que, por mais talentoso que seja, pertence a outro continente, e praticamente a outro século, então você está se anulando para poder abrir espaço para a imitação do outro. Se você se anula, você se mata metaforicamente. Se você já está morto, matar-se não é uma violência tão maior. Acabe, então, com o serviço já começado. Mate-se.

“Matar-se” adquire, então, um caráter de libertação. Ionescu sabia que os jovens não se matariam por causa de sua frase (que se matassem, porém, se quisessem, que ele provavelmente nem ficava sabendo). Mas ao serem provocados desta forma, certamente eles tiveram uma sacudida que lhes fez pensar muito sobre suas vidas, sua cultura e seus valores.

Talvez tenham se tornado como aquele que, porém, recusa-se a obedecer a esta ordem e, em vez dela, brada de volta aos modelos e ídolos, cuja aprovação inutilmente buscara:

« je tuerai vous »

Com esta determinação em mente, seguir a vida fica mais fácil, porque temos uma desculpa para vivermos. Se não temos um norte, fica fácil seguir o conselho de Ionesco, aliás, o seguimos em modo automático o tempo todo. Talvez, se o norte for firme e a vontade vier acompanhada de algum engenho, talvez não seja preciso confrontar assim, mas com uma frase mais sutil:

« je survivrai »

Porque, talvez, a melhor reação diante de uma determinação que nos destrói não seja destruir o que nos ameça, mas sobreviver. Às vezes a destruição do inimigo nos destrói também.

Pensando desta forma, quer tenha Ionesco pensado assim ou não, o conselho adquire um caráter de verdadeiro oráculo, e os jovens cataguasenses acabaram tendo na mão o direcionamento que esperavam, apenas não da forma que queriam.

22
Jan 13
publicado por José Geraldo, às 21:24link do post | comentar
O texto a seguir, originalmente escrito e publicado por mim em 1997, na Revista Literária Trem Azul, representou a minha “Declaração de Princípios” literários, minha carta de alforria em relação aos autores que eu lia e imitava servilmente, em relação às opiniões dos críticos que eu lia e seguia sem questionar. A partir do instante em que entre para o projeto da revista, decidi romper essas amarras mentais e explicitar o que eu queria. Se foi bom ou foi ruim, o importante é que papel eu consumi.

Por que fazer literatura? Não há resposta bastante abrangente que resuma a experiência de escrever. A obra é um orgasmo — alguém já disse — mas orgasmo é um instante fugidio, é como tentar tocar o intangível e, após tê-lo vislumbrado muito perto, quedar esvaziado. Por que, então, amamos? Igualmente não há resposta. Todos se sentem tristes após o sexo, o orgasmo é um vazio que nos preenche inteiramente. Nem para o amor e nem para a literatura podemos encontrar uma explicação racional. A não ser o gozo do instante: a obra terminada é um amor que se acabou.

Qual a necessidade de se fazer literatura num mundo como o nosso? Simplesmente façamo-la como sempre foi feita: a partir da realidade e dos sonhos dos seres humanos. Buscando realizar a partir deste material comum alguma coisa nobre. Hoje em dia, no entanto, é quase impossível surpreender. Antigamente, ainda que fossem pedras, havia alguma reação à obra de arte. Para nós, porém, restou só a indiferença: tudo o que se faz cai no esquecimento como uma goteira dentro de um buraco fundo. A liberdade tornou ultrapassadas todas as rebeldias.

Talvez, então, seja uma forma de rebeldia tentar encontrar uma alternativa a esta dissolução em que vivemos. Não tenho medo de vir a ser chamado de piegas: quem tem um mundo de experiências para mostrar não precisa restringir seus sentimentos diante da exiguidade das possibilidades da moda, deve buscar quaisquer recursos que possam trazer o que tem dentro de si a uma forma palpável. Os defeitos do ser humano devem transparecer no que escreve: a perfeição fria é característica de quem não se importa com as imperfeições do mundo.

Sempre se deve olhar para o passado, pois é de lá que vêm as novidades. O futuro é provisório, e ser escravo dele é viver na incerteza. Os delírios futuristas de décadas atrás hoje nos parecem risíveis porque se tornaram despropositados. Ninguém é capaz de prever o futuro como será realmente. Por isso, uma literatura sem raiz é uma literatura que se torna rapidamente obsoleta: surfar nas predições do futuro sem um pé na terra é uma temeridade para quem tenta e uma perda de tempo para quem acompanha.

Ainda mais se considerarmos que mesmo um frágil poema tem um valor sólido se possuir alguma coisa de verdadeira humanidade agregada a si. É claro que a sinceridade não o salvará automaticamente para a arte, mas não é de Arte que eu estou falando:1 é da necessidade, inerente ao ser humano, de criar algo de que possa se orgulhar. Contemplar o que se fez é uma realização quase plena de uma forma de comprovar nossa humanidade. Por que, então, devemos pensar primeiro se o que estamos criando está contido e previsto nos cânones da arte formal?

Quem expressa o que pensa já se salva da multidão silenciosa e dá passos firmes rumo aos cinco estágios da reflexão consciente.  

Receber, sem preconceitos, o novo e o velho, sem a pretensão de já saber de véspera, afinal, a busca do homem não tem limites.  

Interiorizar o lido, não deixar que atravesse a mente sem deixar sinais. Significa a capacidade de recordar. Muitas pessoas são incapazes de dizer, minutos após a leitura, o assunto do texto lido.

Discernir, que é compreender o real sentido por trás das palavras do texto,2 vendo nele mais do que simplesmente palavras distribuídas num espaço.3

Discutir, ou seja, não aceitar pura e simplesmente tudo o que se lê. Ter algo a dizer, ainda que não muito apropriado. Articular o próprio pensamento em palavras desenvolve a inteligência, ainda que esse pensamento não valha muita coisa no princípio.

Produzir.  Eis o essenciol, o coroamento do lnteligência humana: saber dizer ou escrever porque concordo ou não.

É claro que nada disso pode ser obtido através de uma arte que exagera a forma exterior e pouca importância dá ao conteúdo.
O problema é que quem for capaz destes cinco estágios será um cidadão na mais complete acepção da palavra, e um cidadão consciente é uma ameaça a este estado de coisas em que vivemos. Deve ser por isso que tudo neste país propaga, intencionalmente ou por incompetência, a alienação. Certamente porque a liberdade de pensamento é a única liberdade a todo prova. A única cuja posse não nos podem revogar se não estivermos nos comportando direitinho.

E o que tudo isso tem a ver com o que eu quero produzir? Muito mais do que eu mesmo possa prever. A minha literatura quer falar do vida humano que nos tem sido roubada pelo mecânico quotidiano de nossos tempos. Eu quero abandonar a página impressa e recolocar o poema em suas fundações orais. E a clareza é essencial porque ainda não inventaram uma telepatia eficiente. E se fivessem inventado, seríamos todos boçais incapazes de racionalizar os pensamentos, confiantes na automática compreensão de nosso indefinido sentimento pelos outros.

É na literatura que o homem tem o seu sonho de Ícaro: escapar dos vermes que o aguardam transcendendo o breve e leve sopro dessa vida através de sua obra. No concretismo, no entanto, o homem está preso pelo rigoroso espaço da página impressa. O conforto dessa estética pouco nutritiva é que, sendo quase incompreensível , o escritor não corre o risco de sofrer reparos procedentes. 0 mais terrivel é que são tachados de arcaicas as pessoas que ainda sobem ler e escrever numa linguagem humana, enquanto se celebra a anarquia de fotos retocodos e colagens indefiníveis e a solidão de poucas palavras no meio de uma grande página quase em branco. Assim, lentamente, vão roubando do povo o acesso à cultura.

Curiosamente, a erudição valorizada hoje em dia não está mais baseada no conhecimento da literatura, mas no domínio de irrelevantes detalhes semióticos ou biográficos. Rebusca-se nas entrelinhas sentidos ocultos ao ponto de quase se esquecer o explicito e julga-se mais importante definir se Thomas Mann era homo ou hetero do que proporcionar ao publico a oportunidade de lê-lo.

Tenho dito, aguardo as pedras.

1 Precisamos escrever mais livros ruins para que o solo da literatura fique fértil para as obras primas nascerem. Esterilizar a terra a espera do fruto perfeito é uma futilidade.

2 Ou imaginar que existe um.

3 Esta frase é uma estocada no concretismo, que dá grande relevância justamente à distribuição visual das palavras.


20
Jan 13
publicado por José Geraldo, às 22:42link do post | comentar
Há momentos na vida em que nos surpreendo com coisas simples, quase a ponto de algum «suor dos olhos» me embaçar a visão. Sou do tipo emotivo a ponto de não gostar de filmes de guerra para não ver carnificina, mesmo que fictícia, e costumo achar finais felizes para meus personagens. Quão mais emotivo não sou quando me deparo com pedaços de minha própria memória recuperados por pessoas com quem interagi!

Há poucos minutos vi na barra lateral deste blogue um link para o blogue parceiro «Chicos Cataletras», um e-zine literário de minha cidade natal, Cataguases. Ali estava o chamado para um mergulho em meu passado: a Revista Literária Trem Azul, de 1997.


Caro leitor, é até complicado controlar esses borbotões de lembranças. Eu tinha 24 anos, muitas ideias e hormônios, muita ingenuidade na cabeça e nenhuma experiência de mundo. Fiz uma revista literária em parceria com o meu amigo Emerson Teixeira Cardoso. Nós dois no conteúdo, com a ajuda de outro amigo meu, o Salvador Márcio (ah, Sassá, saudades daqueles nossos papos sobre música na varanda da casa dos seus pais, bons tempos aqueles!). A revista foi inteiramente digitada no Word 97 (o último grito em termos de edição eletrônica da época) e fotocopiada digitalmente em 100 exemplares pela extinta Tipografia Monteiro. Custou exatamente 300 reais a impressão, o que significava que, pelo preço de capa, teríamos 100 reais de prejuízo se vendêssemos TUDO. Bem, conseguimos alguns patrocínios (70 reais no total, se não me engano) e não, não vendemos tudo.

Mas esse singelo trabalho, adornado por nossas inocentes obras e por colaborações de amigos próximos (Waltencir Oliveira, Antônio Jaime) ou distantes (Ronaldo Cagiano), nos levou longe. Tivemos a ousadia de mandá-lo para gente de toda parte. Até para Cuba, Espanha, Itália, Argentina e Estados Unidos. Conseguimos contatos com escritores, chamamos a atenção a ponto de o número dois crescer imensamente. Esse foi nosso erro.

Contando com as vendas e os patrocínios, tivemos apenas 50 reais de prejuízo. Com a inflação adicionada isso daria uns 125 reais em dinheiro de hoje. Mas a ideia de crescer rápido nos fez ter prejuízos grandes com os números dois e três, o que impediu que a revista se estabilizasse.

Duas coisas curiosas sobre esta revista. A primeira é que ela parece bem mais bonita e agradável do que os números seguintes, feitos com mais «profissionalismo». A segunda é que eu não possuo esse número em meu arquivo pessoal. Sobreviveu apenas um exemplar, no arquivo pessoal do Emerson, isso se ninguém a quem a gente a enviou tiver guardado. Pode ser a revista literária mais rara do Brasil!

Esta revista teve uma linda capa desenvolvida a partir de uma pintura  em estilo naïf feita por uma garota natural de Astolfo Dutra, chamada Daniela (por onde andas, ó Daniela?). A pintura monocromática (preto e branco), em guache sobre papel canson, não existe mais, a menos que o Emerson a tenha salva em seus arquivos também. Se ele não a tiver, resta dela apenas este testemunho na capa da revista.

Como eu não tenho esse exemplar comigo, não tinha (até ontem) acesso ao original de meu ensaio «Literatura e Consciência» (meu ato inaugural de rebeldia, ao atacar o Concretismo e o elitismo de nossa literatura). Cheio de marxismo cultural e de ingenuidade em estado bruto, este texto certamente não seria escrito por mim hoje (embora eu continue cheio das mesmas coisas que o inspiraram), mas mesmo assim eu queria muito tê-lo no meu blogue. E graças à iniciativa do Chico Cataletras eu poderei tê-lo.

02
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 11:28link do post | comentar

A Zona da Mata Mineira vive hoje uma crise – humana, econômica e ecológica. Por toda parte onde se vá, encontramos a descaracterização cultural, a perda das tradições orais, o esquecimento do artesanato (e da própria história) e, mais grave que tudo, uma absurda destruição da natureza que, de tão arraigada, deixou de significar apenas a remoção da vegetação nativa e agora está chegando à remoção do próprio solo e das montanhas: percorrendo a região vemos morros pelados, terra aparente, erosões, cursos d'água assoreados. A Zona da Mata deixou de merecer esse nome: hoje é uma região em processo incipiente de desertificação.

“No começo isso aqui era só mato, bicho e índio. Mas nós limpamos a terra e a fizemos produzir.” A frase foi dita, de verdade, por um proprietário de terras da Zona da Mata Mineira, em algum momento nublado de minha infância. Ele certamente não se lembrava de quando chegaram os primeiros colonos, procedentes do norte do estado do Rio de Janeiro ou dos Campos das Vertentes, mas a presença dos três elementos definidores – mato, bicho e índio – perdurou durante décadas depois, permaneceu no imaginário do povo até bem há pouco tempo. E eu sempre achei curioso como a gente de minha terra contava sua história.

Conheci pessoas que diziam que um ou outro de seus antepassados havia sido “índio pego a laço no mato” – uma referência oblíqua a indivíduos sobreviventes dos massacres dos grupos isolados de tapuias, puris, goitacazes e outros povos ameríndios que aqui viviam. Quando os colonos brancos vieram, trazendo seus escravos e seus machados, a presença dos índios foi sendo extirpada, junto com o mato e com os bichos. As três palavras foram sempre empregadas em um tom pejorativo.

“Mato” era, no português coloquial de antigamente, uma palavra carregada de negatividade. Dizer que algo “era mato” era como dizer que era vulgar, que era encontrado em qualquer lugar. O “mato” era, também, o lugar desorganizado, o caos primevo. “Bola para o mato, que o jogo é de campeonato” e “fugir para o mato” são expressões que mencionam esse sentido. Joga-se a bola para onde ela desaparecerá, para retardar o jogo. Foge-se para longe do alcance do braço da lei. No meu tempo de criança ainda corriam histórias de pessoas que fugiam das cidades e vinham “para o mato” trabalhar em terras de coronéis, e que não eram presas se esses não deixassem, porque a polícia não entrava nas propriedades. Remover o “mato” era um processo civilizatório. Lembro-me de como a professora leiga, de minha escolinha rural, me contou, embevecida, como seus antepassados “desbravaram” a terra. “Desbravar” é cognato de “bravio”. Envolve um sentido de “doma”. Desbravar é amansar a terra. É tirar o mato, o bicho e o índio. E eu me lembro até hoje do desenho que fiz, de um colono enxugando o suor da testa, apoiado em seu machado, no meio da lida hercúlea de derrubar árvores em um campo imenso.

Meus antepassados odiavam árvores. Tanto que construíam suas casas em clareiras lisas, os “terreiros”. O tamanho do terreiro estava vinculado ao poder do proprietário. Viver em uma casa isolada no meio de um terreiro imenso era para os coronéis, ou quem tinha dinheiro equivalente. Manter o terreiro limpo envolvia o trabalho de muitos homens, para remover as folhas do mato, arrancar as ervas que teimavam em nascer. O terreiro era também uma proteção natural contra emboscadas. À noite, mesmo sem lua, era mais fácil ver alguém tentando atravessá-lo para atacar a casa. Mais fácil do que seria se em vez de terreiro a casa fosse cercada de árvores.

“Bicho” tinha um sentido ainda mais forte. A palavra “animal” era reservada para as bestas domesticadas: cavalos, mulas, vacas, jumentos, cabras, ovelhas. Pequenos animais domesticados, ou que viviam próximos à casa – como gatos, ratos e lagartixas – eram chamados de “bichos”, assim como os insetos (bicho-de-pé, por exemplo). Os outros eram os “bichos do mato”, vistos como “invasores” e predestinados à caça ou ao mero extermínio porque interferiam na economia. E o colono sabia muito bem que remover o mato era uma maneira eficiente de afastar o bicho, sem ter que matar cada um, correndo risco. Por isso as grandes queimadas, por isso “desbravar” até mesmo encostas de ângulo impossível para a agricultura e a pecuária. Era preciso “limpar” a terra, para que o bicho não ficasse perto. A onça, o quati, o piriá, a jaguatirica, o guará, o guaxinim, o maracajá, o mão pelada, o caboclo d'água, a lontra – todos bichos que, embora fossem bonitos alguns, tinham o infeliz hábito de ver nas galinhas das fazendas uma caça mais gorda e mais fácil do que os magros e velozes pássaros “do mato”.

E o “índio”, por fim, era o “bicho” por excelência. Dotado de uma inteligência “quase humana”, reunia a ferocidade e a matreirice. Por isso o ódio que despertava no colono, de forma espontânea e natural. Se algum era capturado e trazido à fazenda, era para ser simplesmente morto ou escravizado. Poucos comentam, mas os antepassados pegos a laço eram, em geral, mulheres. Estuprar a índia e fazer filhos nela era uma forma de subjugar este animal estranhamente humano que vivia em torno das regiões de colonização incipiente. Mas uma vez trazido à civilização, se “aprendesse a falar” (o que geralmente só acontecia com crianças) e conseguisse aprender uma profissão, o índio não era mais um inimigo, apenas outro elemento subjugado, na estrutura de poder da grande fazenda.

Não podemos esquecer essa mentalidade se quisermos entender o desastre. Os colonos removeram a mata para afastar o bicho e para exterminar o índio. Removeram a mata até mesmo nos lugares onde isso nem era necessário, como encostas de pedreiras com ângulo de sessenta graus. No lugar da mata plantaram monoculturas que não ofereceram cobertura ao solo, as mais recentes são o eucalipto e a brachiaria. O uso frequente da queimada enfraqueceu a terra, salinizou-a, acidificou-a. Queimada proposital, ou queimada acidental, causada por balões, raios, acidentes domésticos ou, em dias excepcionalmente quentes, pedaços de vidro perdidos em moitas secas. Nos lugares mais queimados já não cresce mais nada: a terra está pelada, mostrando sua derme, vermelha ou amarela. Sem cobertura a chuva arranca e arrasta: surgem erosões imensas. A terra solta vai para os riachos, que ficam rasos e largos. As nascentes são sufocadas, riachos secam na estiagem, coisa que nunca se imaginou acontecer por aqui.

E este desastre acontece aos poucos, sem que ninguém proteste. Os jornais não comentam. A televisão não fala. O cadáver vai apodrecendo e é como se ninguém sentisse o cheiro. As pessoas dirigem pelas estradas olhando exclusivamente para o asfalto, sem ver as feias marcas de destruição que perfilam ao redor. Tal como, nas cidades, ignoram os mendigos, ao sair delas ignoram a destruição.

Ninguém quer ver, porque ninguém quer admitir que tem alguma responsabilidade. Não fomos nós, foram nossos pais, avós e bisavós. Nossos netos e bisnetos também dirão que não foram eles, mas que fomos nós – mas nós estaremos mortos então, o que significa que não veremos seus dedos apontados em nossas caras, e não precisaremos ter vergonha da acusação. Por isso podemos ficar inertes, sem nada fazer, sem nada dizer.

Nascemos em uma cultura violenta, uma cultura de genocídio, estupro, desmatamento, queimada e depredação. Matamos ou “pegamos a laço” os índios, arrancamos as árvores, secamos os brejos, queimamos os montes, destruímos os sinais de tudo que houve antes de nós. Tomamos posse da terra através da terraplenagem e da espólio. Esfolamos a terra, tiramos sua pele, para que crescesse outra, nova, nossa. Agora vemos essa pele que nasceu, ressecada, feia, cicatrizada, e não a queremos. Eis o fruto da ira e da cobiça de nossos antepassados. Até quando os desculparemos, até quando nos desculparemos?

Eu poderia também estar quieto, mas me dói cada vez que vejo uma nova erosão, que noto que esqueci outra cantiga que fez parte de minha infância. Dói quando vejo que a colonização continua, sempre em novas vagas, cada uma determinada a suplantar a que havia antes, sob camadas sucessivas de esquecimento. Rompendo a continuidade, para que tenhamos a ilusão de que o mal lá fora não é fruto nosso: queremos ser novos, fingimos ser outros, porque não queremos saber que matamos os bichos, que laçamos os índios e que limpamos o mato.

Eu não estou quieto porque todo escritor é consciência de sua era. Eu sei muito bem que a perfeição, possível ou não, é apenas um ideal vazio, apenas outra forma de não olhar lá para fora e ver o vazio, de árvores, de bichos e de índios, que o nosso passado produziu. Se eu ficasse obcecado apenas em contar, do melhor modo possível, as histórias e os sentimentos que agradam aos outros, eu estaria sendo apenas outro colono, que vive aqui, mas tem a cabeça no Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar. A mentalidade do colono é transitória. Ele não ama a terra, ela não tem família: seu coração está em outro lugar, para onde quer ir ou voltar, quando arrancar da terra o que seja preciso para viver lá como patrão, ele que veio como ladrão. O colono não é um cidadão.

Então eu começo, aos poucos, a falar disso, e de outras coisas que sinto, da raiva que sinto. Posso estar escrevendo mal, mas cada dia que passa tenho mais definida esta sensação de que é preciso vocalizar esta frustração. Falar em nome das árvores, dos bichos e dos índios. Falar em nome do que esta terra foi antes de ter sido reduzida ao que é.


23
Set 12
publicado por José Geraldo, às 21:31link do post | comentar
Um poema satírico inspirado por uma postagem de minha amiga Ana Feijó da Cruz no Facebook.

Eu juro
Sou de um tempo passado,
em que cupcake se chamava bolinho,
blush se chamava ruge,
van era furgão
sale era liquidação.

Nunca me ocorreu
chamar meu amor de love,
nem referência de benchmark,
nem interessado em stakeholder,
nem artigo de paper
e nem discurso de keynote.

Hoje vivo perdido
comendo cigarrette em vez de enroladinho.
Nunca mais vi jogarem bola ao cesto
e nem futebol de salão.

Acho estranho quando chamam
stickers de adesivos e
entrega em domicílio de delivery.
Especialmente se houver alguma coisa free
nos cookies que compro no shopping.

06
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 18:30link do post | comentar

Incluído nos «Livros de Linhagens» da nobreza lusitana está um breve relato sobre a família de Diego Lopes, que inclui uma personagem que ficou célebre: a misteriosa mulher montanhesa com pés de cabra. Tata-se de uma história interessante por envolver profundamente as fantasias populares lusitanas (e estas fantasias, claro, ecoam na nossa própria cultura).


Aspectos culturais

Como se verá, a deficiência física (um pé deformado) era um sinal de deficiência moral. A Dama Pé de Cabra é apresentada como uma espécie de bruxa, e o seu pé deforme é uma grave advertência disso. Algumas histórias mais exageradas não apenas mencionam a deficiência como falam de uma mulher literalmente dotada de pés de cabra — mas nesse caso o casamento não ocorre pelo afeto espontâneo de Diego Lopes pela dama misteriosa, mas pela promessa que ela lhe faz de honras e glórias caso ele a desposasse e lhe fizesse mãe.

Interessante notar que a Dama Pé de Cabra nunca é mencionada por seu nome nas versões mais antigas da história (e esta que transcrevo parece ser a mais antiga). Tampouco sua filha. Afinal, os livros de linhagens se preocupavam apenas em registrar a linhagem patriarcal da nobreza. Nascer mulher era apenas um acidente, e a Dama, mesmo protagonista da história, não leva um nome.

A história está ambientada no tempo da guerra contra os mouros, antes da tomada de Toledo pelos cristãos (que foi em 1085). Isso significa que a história deve ter se passado por volta do século X ou XI (mas, é claro, sabemos que «ter se passado» é boa vontade deste que escreve, o caso é certamente lendário, ou muito modificado para tender a lenda).

Não consigo perceber muitos elementos semelhantes com contos de fada/bruxaria/cavalaria de outras culturas, e nisso reside justamente a originalidade e a beleza deste pequeno texto, que eu em breve modernizarei, para desgraça dos descendentes de Diego Lopes e da memória de Alexandre Herculano (que certamente romanceou o caso bem melhor). A diferença é que a minha Dama Pé de Cabra viverá no círculo mágico da Serra da Estrela, e não sei ainda como lhe apresentarei um Diego Lopes.

Elementos linguísticos

Saltam à vista as semelhanças com o espanhol. Inúmeros vocábulos do português arcaico (século XIII) se escrevem de forma parecida à castelhana: «muy», «ella» etc. Isto se explica porque, de fato, as duas línguas eram muito mais próximas naquela época.

Em seguida temos variações de ortografia de uma mesma palavra, «el foi», «ell lhe disse», «elle lho outorgou». Três formas diferentes do mesmo pronome e nenhum critério aparente de escolha. É algo parecido com o que acontece na escrita de uma pessoa mal alfabetizada, que erra de várias maneiras diferentes uma mesma palavra. Na Idade Média não havia gramáticas e nem academias, as pessoas escreviam como achavam que deviam e só o costume ditava alguma norma.

Você também notará palavras começadas com «cê-cedilha»: «em çima de huuma pena». Isto é porque no português antigo os grupos «ce» e «ci», bem como o «ç» eram lidos ainda com um resquício do «t» latino original: dependendo do dialeto a pronúncia deste «c» poderia ser lido como «ts» ou «θ» (o «theta» grego simboliza um «t» interdental parecido com o «th» inglês em «them»). A palavra «cima», porém, deriva de um original latino que era pronunciado como «k» (e não de um «t»), o que confunde a cabeça do falante e o leva a usar cedilha. Esta confusão secular fez com que a pronúncia do «c» como «ts» se tornasse pedante e desaparecesse por fim. Em espanhol europeu ainda existe esta pronúncia (também do «z») e pronunciar «Cima» como homófono de «sima» é considerado um vício de linguagem.

Os pronomes oblíquos não ficam separados do verbo por hífen, simplesmente porque o hífen ainda não fora inventado. Assim temos «vioa» (viu-a), «namorousse». A duplicação do «s» (nesse e em outros casos, já indica que o «s» intervocálico estava sendo sonorizado, tornando necessário deixar claros os casos em que fosse lido como «s» mesmo.

No primeiro parágrafo nota-se a menção a «muy alto linhagem». Em português medieval, tal como em espanhol ainda hoje, estas palavras terminadas em «agem» eram todas masculinas.

O pronome «que» escrevia-se «ca», o que confere com a tendência portuguesa a pronunciar o «a» átono como um «e». O «Ll» indica o fonema que hoje se escreve com «lh» e o «lh» era outra coisa, porque o «h» entre uma consoante e uma vogal indicava uma breve semivogal. Alguns autores escreviam «mha» em vez de «mia».

Usa-se o «y» em todo lugar onde a pronúncia seja de semivogal, mas também em monossílabos tônicos («ssy»), como se verá no segundo trecho. Isso parece indicar que a letra «y» não era usada necessariamente para indicar a duração menor do fonema «i», mas para indicar que em certos contextos o «i» seria pronunciado diferente. Os dialetos portugueses preservam esse «i» mais fechado (nem sempre nos mesmos contextos do português medieval), mas nós não o temos mais.

Usa-se «h» no começo de algumas palavras começadas com o fonema «u» para indicar que ele deve ser pronunciado como vogal. Ocorre que a letra «u» ainda não fora inventada e se usava a mesma letra para a vogal «u» e para a consoante «v». Quando o «u» foi inventado, criou-se uma maiúscula redonda para combinar com ele, e essa variação redonda ficou sendo a vogal. Inventaram também uma minúscula «quebrada» para combinar com o «V» e esta ficou sendo a consoante. Em português medieval segue-se a convenção latina: usa-se «u» sempre, inclusive quando a pronúncia é de consoante: «ouuyo» é «ouviu». Mas no início da palavra, especialmente maiúscula, usava-se uma variação do «u» bastante parecida com o «v», razão pela qual em alguns parágrafos você verá a letra «v».

Por fim, além da ausência da distinção entre «V» e «u», já explicada, notem que não se usa nenhum «J», nenhum «X», nenhum «W» e raríssimos «Q».

Mas não se usava o «h» inicial nos contextos em que ele era usado em latim. O verbo «auia» (havia) deriva do latim «habere». O emprego do «h» inicial atendia a uma necessidade fonética, não etimológica.

Um caso à parte é a palavra «pee», derivada do latim «pede». Evidentemente a pronúncia desse duplo «ee» tinha um significado. É provável que as palavras com «ee» final fossem pronunciadas de forma análoga ao que fazemos hoje com as terminadas em «oo».

O verbo «ter» ainda não era muito usado. Era muito recente a lembrança de seu sentido de posse material. Em vez disso usava-se mais o verbo «haver». Diego e a misteriosa dama «ouueram» (houveram) dois filhos.

Usa-se muito a conjunção «e», à maneira bíblica, para introduzir novas frases, evitando-se o ponto final. O que era fácil de fazer, pois a pontuação atual e suas regras ainda não fora inventada. Usava-se muito os dois pontos, para indicar que uma sequencia de frases segue um mesmo raciocínio (formando o que hoje nós agrupamos em parágrafos).

Notem bem que os nossos famosos ditongos nasais ainda não existem: «prisom» (em vez de prisão). Tampouco existem quaisquer acentos, somente o til, mas ele tinha um significado diferente. Não eram necessários porque não havia proparoxítonos (já que não havia latinismos e nem helenismos, apenas palavras devidamente moldadas pela boca do povo) e nem oxítonos (a não ser as palavras terminadas em consoante, inclusive verbos terminados em «s», como «tiraras», que deve ser lido «tirarás»).

Voltando ao til, ele não é usado para indicar a nasalização de uma vogal, mas que uma consoante nasal estava em processo de perda. A palavra «alaão» não contém um ditongo, mas um hiato ao final, provocado pela perda do «n» que havia entre o «a» e o «o».

Transcrição do original

Este dom Diego Lopez era muy boo monteyro, e estando huum dia em sa armada e atemdemdo quamdo verria o porco ouuyo cantar muyta alta voz huuma molher em çima de huuma pena: e el foy pera la e vioa seer muy fermosa e muy bem vistida, e namorousse logo della muy fortemente e preguntoulhe quem era: e ella lhe disse que era huuma molher de muito alto linhagem, e ell lhe disse que pois era molher d'alto linhagem que casaria com ella se ella quisesse, ca elle era senhor naquella terra toda: e ella lhe disse que o faria se lhe prometesse que numca sse santificasse, e elle lho outorgou, e ella foisse logo com elle.

E esta dona era muy fermosa e muy bem feita em todo seu corpo saluamdo que auia huum pee forcado como pee de cabra. E viuerom gram tempo e ouueram dous filhos, e huum ouue nome Enheguez Guerra, e a outra foy molher e ouue nome dona. E quando comiam de suum dom Diego Lopez e sa molher assemtaua ell apar de ssy o filho, e ella assemtaua apar de ssy a filha da outra parte.

E huum dia foy elle a seu monte e matou huum porco muy gramde e trouxeo pera sa casa, e poseo ante ssy hu sia comemdo com ssa molher e seus filhos: e lamçarom huum osso da mesa e veerom a pellejar huum alaão e huuma podemga sobrelle em tall maneyra que a podenga trauou ao alaão em a garganta e matouo.

E dom Diego Lopes quamdo esto uyo teueo por millagre e synousse e disse «samta Maria vall, quem vio numca tall cousa!» E ssa molher quamdo o vyo assy sinar lamçou maão na filha e no filho, e dom Diego Lopez trauou do filho e nom lho quis leixar filhar: e ella rrecudio com a filha por huuma freesta do paaço e foysse pera as montanhas em guisa que a nom virom mais nem a filha.

Depois a cabo de tempo foy este dom Diego Lopez a fazer mall aos mouros, e premderomno e leuaromno pera Tolledo preso. E a seu filho Enheguez Guerra pesaua muito de ssa prisom, e veo fallar com os da terra per que maneyra o poderiam auer fora da prisom. E elles disserom que nom sabiam maneyra por que o podessem aver, saluamdo sse fosse aas montanhas e achasse sa madre, e que ella lhe daria como o tirasse. E ell foy alaa soo em çima de seu cauallo, e achoua em çima de huuma pena: e ella lhe disse «filho Enheguez Guerra, vem a mym ca bem sey eu ao que ueens:» e ell foy pera ella e ella lhe disse «veens a preguntar como tiraras teu padre da prisom.» Emtom chamou huum cauallo que amdaua solto pello momte que avia nome Pardallo e chamouo per seu nome: e ella meteo huum freo ao cauallo que tiinha, e disselhe que nom fezesse força pollo dessellar nem pollo desemfrear nem por lhe dar de comer nem de beuer nem de ferrar: e disselhe que este cauallo lhe duraria em toda sa vida, e que nunca emtraria em lide que nom vemçesse delle. E disselhe que caualgasse em elle e que o poria em Tolledo ante a porta hu jazia seu padre logo em esse dia, e que ante a porta hu o caualo o posesse que alli deçesse e que acharia seu padre estar em huum curral, e que o filhasse pella maão e fezesse que queria fallar com elle, que o fosse tirando comtra a porta hu estaua ho cauallo, e que desque alli fosse que cauallgasse em o cauallo e que posesse seu padre ante ssy e que ante noite seria em sa terra com seu padre: e assy foy. E depois a cabo de tempo morreo dom Diego Lopez e ficou a terra a seu filho dom Enheguez Guerra.

Aspectos léxicos

Conforme prometido, vamos às palavras de sentido peculiar. «Monteyro» significa caçador. Deriva de «monte», porque já na Idade Média as terras baixas estavam ocupadas pela agricultura e as florestas estavam cada vez mais reduzidas às regiões montanhosas. «Atemder» significa «esperar». A «pena» sobre a qual a mulher estava sentada a cantar é uma que você não gostaria que caísse sobre sua cabeça. É cognata do espanhol «peña», que significa «rochedo». Não pensem que dom Diego desrespeitou a moça: «namorarse» significa apenas afeiçoar-se, é o antepassado de «enamorar-se». «Pois» significa «já que» ou «uma vez que», no contexto empregado.

«Alaão» e «podemga» são raças de cães. Era costume, mesmo entre os nobres, comer com cães para jogar-lhes os ossos e, eventualmente, deixar que lambessem a gordura de suas mãos. O inesperado do acontecimento é que o podengo, um cão de caça muito manso, apesar de arisco, tenha ataco e matado um cão de guarda «alano» O verbo «filhar» (cognato do nosso atual «filar») quer dizer «tomar» ou «levar» (que é o que os filadores fazem com o que nos filam, ou «filham»). «Recudir» é «recuar» e «freesta» (do latim «fenestra») é «janela». Imagino que você já saiba que «paço» é a forma popular de «palácio» (esta palavra foi reinjetada no português depois, como um novo aportuguesamento erudito de «palatium»). «Em guisa que» significa «de modo que».

«Pesar» significa «ficar triste». O nome do cavalo significa «pardal» e a misteriosa palavra «hu» significa «onde». Por fim, não imaginemos que os mouros mantinham dom Diego em um «curral» com o sentido que hoje a palavra tem, mas sim meramente em um cercado ou paliçada (esqueçam essa história de masmorra, castelos eram caros de construir e a maioria das prisões medievais eram simples paliçadas). Dom Diego «jazia» lá mas não estava morto, visto que a palavra não tinha ainda o sentido fúnebre de hoje.

Uma observação importante diz respeito aos sobrenomes. Notem que eles não existiam. O pai se chama «Diego Lopes» (provavelmente porque seu pai era um tal Lopo), mas o filho se chama «Enheguez Guerra» (provavelmente por ser famoso no combate). Os «sobrenomes» medievais são apelidos, não tem conotação familiar ainda. As famílias nobres ainda não haviam adotado o costume de identificar-se pelo nome da vila ou feudo onde tinham propriedade, e as famílias plebeias não tinham grande necessidade de identificar-se.

Conclusão

A análise deste texto nos mostra que, se não tivesse acontecido a contaminação etimológica ocorrida entre os séculos XVII e XIX e nem o influxo de latinismos eruditos e helenismos científicos, o português seria uma língua dominada por proparoxítonos, com poucos acentos gráficos, relativamente simples de se escrever e muito mais bonita.


18
Jun 12
publicado por José Geraldo, às 19:30link do post | comentar | ver comentários (1)
— Faça-me feliz, só hoje!

— Não dá, é muita responsabilidade. É como ter uma ficha só no fliperama.

mais sobre mim
Março 2013
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30

31


comentários novos
Ótima informação, recentemente usei uma charge e p...
Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
Fechei para textos de ficção. Não vou mais blogar ...
Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
Este saite está bem melhor.
Já ia esquecendo de comentar: sou novo por aqui e ...
Essa modificação do modo de ensino da língua portu...
Chico e Caetano, respectivamente, com os "eco...
Vai sair em inglês no CBSS esta sexta-feira... :)R...
Posts mais comentados
2 comentários
1 comentário
pesquisar neste blog
 
arquivos
blogs SAPO