Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
03
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 13:17link do post | comentar
Ontem me dei conta da falta que faz visitar ocasionalmente uma livraria. Estive brevemente na Leitura “Megastore” em Juiz de Fora e pude compreender muito daquilo que tenho visto e lido na internet. Algumas conclusões foram animadoras, outras terríveis, a maioria apenas remete a uma neutra mudança de padrões, oscilações de modas que não mudam nada. Mudam-se as palavras, mudam-se os estilos, permanece uma falta de sentido que denuncia os tempos perigosos que vivemos.

A primeira coisa que notei foi a mudança de foco da literatura de auto ajuda. Ela já não predomina tanto nas prateleiras e parece mais focada em livros baseados em experiências reais. Um bom exemplo é a autobiografia de Nick Vujicić, da qual havia nada menos que uma pilha de exemplares. Esse tipo de auto ajuda que agora predomina parece explorar a culpa do indivíduo como um fator motivacional: olha só, esse cara tá todo fodido e ainda assim realiza mais coisas que você. O nome do site de Vujicić é sugestivo desse apelo: “From No Limbs to No Limits” (De Sem-Membros a Sem-Limites) e a sugestão é “você, com quatro membros, não é tão sensacional quanto o Nick”.

Há duas conclusões que eu tiro disso. A primeira é que Paulo Coelho é carta fora do baralho agora: o seu estilo de auto ajuda ficcional chupando antigos textos religiosos e lendas orientais não tem o mesmo apelo porque as pessoas estão procurando coisas reais, e não invenções de magos que fazem chover. Azar da Academia que o aceitou pensando em popularizar-se entre seus leitores. A página de Paulo está sendo virada e dentro de alguns anos ele voltará a ser lembrado apenas como o parceiro de Raul Seixas em algumas de suas melhores composições. Por sorte ele aproveitou seus quase vinte anos de berlinda para ganhar dinheiro a rodo e comprar imóveis em lugares nobres, como o interior da Suíça. Vai ter uma aposentadoria de rei, e morrerá se achando um gênio, enquanto eu vou continuar aqui desconhecido no interior de Minas Gerais, o que, na cabeça da maioria do povo, significa que ele é um “sucesso” e eu, um idiota. Argumentum ad crumenam, mas o povo não liga para falácias, o povo gosta de idolatrar o sucesso, seja qual for. A vida das “famosidades” instantâneas demonstra isso: “artista” no Brasil é quem aparece na TV.

A segunda conclusão é que a auto ajuda cada vez mais se afasta do que seria chamado de “literatura”. Isso é bom para a auto ajuda, porque a literatura está moribunda, e é bom também para a literatura, porque parte de sua doença esteve relacionada à sua contaminação pela auto ajuda. Separadas, veremos como evoluem.

O sintoma mais forte de que a literatura anda moribunda é o sensacionalismo baseado no tamanho. Hoje todo mundo quer escrever trilogias ou, no mínimo, tijolaços. Argumentum ad numerum, mas o povo não liga para falácias. Quanto mais grosso o livro, maior o desafio de escrevê-lo. Desafio é vencer limites físicos, não artísticos. A maioria dos leitores de hoje provavelmente acharia que uma obra breve, como  “O Apanhador no Campo de Centeio”,  é inferior a um peso de porta como “Herança”, último volume da tetralogia de Christopher Paolini. O fato de se poder contar toda a história da tetralogia em vinte ou trinta páginas não faz diferença: um livro de tantas páginas merece respeito, tanto quanto os músculos criados por anos de malhação. O esforço físico importa mais que o efeito. Vivemos uma era que idolatra a teimosia. Talvez por isso o karatê, a arte marcial que idealiza o golpe perfeito, tenha saído de moda, e hoje idolatremos aquela bosta do UFC, uma espécie de briga de rua com regras, tão cronometrada quanto a “luta livre” estilo “tele-catch”, só que com sangue, para “dar realismo”. O carateca “magrelo” é zombado hoje: o objetivo do treinamento é criar massa, tal como o objetivo da literatura é criar páginas.

Isso explica porque os jovens vivem obcecados com trilogias, tetralogias, pentalogias, hexalogias, heptalogias, enealogias, decalogias, fodasselogias. Eles não têm um estilo, mas um objetivo. A ideia é vencer um desafio, não produzir uma obra.

Eu mesmo acabei recaindo nisso ao dizer, zombeteiramente, quando do lançamento de meu romance de estreia: “não produzi mais uma apostila com ISBN para valer de título na Academia, produzi um livro que tem, pelo menos, a dignidade de parar em pé na estante.” Minha declaração maldosa tinha um alvo claro, se ele está me lendo deve estar me xingando, mas tinha uma falha: ao dizer isso eu estava legitimando essas obras que proliferam páginas como um câncer prolifera células. Se o meu livro para em pé na estante, tem gente querendo escrever livros sobre os quais a estante pare em pé. Andar com tais livros é chique, isso é que é livro de macho, mesmo que sua quantidade de páginas seja anabolizada por artifícios que não acrescentam conteúdo. A velha diferença entre crescer, inflar e inchar.

Outra coisa curiosa é que a ampla maioria das obras postas nas estantes de destaque, na entrada da loja, eram literatura de fantasia. Nem estou falando de ficção científica, porque essa exige estudo até para se entender. Estou falando de fantasia desbragadamente desconectada da realidade, ambientada em países fictícios para que o autor não precisa pesquisar sobre um real e o leitor não aprenda, por acidente, algo sobre um que exista. Houve uma época em que o exotismo estava na moda, e muito jovem autor brasileiro queria se chamar Johnny e escrevia histórias ambientadas nos Istêitis, mas o exotismo contém uma busca de conhecimento, da qual a literatura de fantasia está livre, graças a Deus. Se o país e a cultura são inventados a partir do nada, então vale de tudo, dane-se a lógica, foda-se a coerência histórica. Se tudo ficar complicado, aparece um deus ou anjo ou demônio ou dragão e conserta tudo. E sempre se pode ressuscitar o morto para mais um capítulo, ou dar um reboot na história inventando que o nó que a atava era um “sonho”. E vamos que vamos que duzentas páginas ainda está pouco. O bom da fantasia é que sempre se dá um jeito de se chegar aonde se quer, os limites da realidade não interferem.

Claro que a maioria desta fantasia é obra de autores estrangeiros, em sua maioria ianques. Não é um produto cultural, é um fast food que dá mais lucro por ser importado, vindo já de fora com a propaganda grátis das redes sociais e das séries veiculadas na TV por assinatura, onde a classe média se isola da “tosqueira” da TV aberta. Sinceramente, se eu fosse começar de novo a escrever, investiria mais no meu curso de inglês, batalharia um intercâmbio, inventaria um pseudônimo anglo-saxão (aliás, inventei: em certa época andei escrevendo “coisas” sob o nome fictício de Gerald Goldman) e fantasiaria alguma terra imaginária com personagens de nomes toscos baseados em latim macarrônico, pseudogrego ou pseudohebraico. Com um pouco de sorte eu me tornaria famoso, ou então tentaria a sorte dizendo que minha obra era Escritura Sagrada.

No fim de minha visita preferi comprar um pendrive. Saí e entrei num sebo, onde comprei a dez reais o quilo obras muito mais interessantes. O que me dá medo é que os sebos do futuro serão alimentados pelas obras adquiridas hoje. Essas obras abomináveis.

O título deste texto é uma alusão a este conto.

26
Jan 13
publicado por José Geraldo, às 00:24link do post | comentar | ver comentários (7)
Uma das maiores dificuldades que há no mundo é a de se ensinar. Quem tenta ensinar geralmente se expõe. Não raramente surge a cobrança da legitimidade: Como você quer me ensinar a falar inglês sem ser nativo? Como vai me ensinar música se toca toscamente esse violão? Como vai me ensinar a dirigir se tem carteira de motorista e seguro de automóvel há dez anos e o seu bônus é zero? Como vai me ensinar a desenhar se os seus personagens parecem tortos no papel?

Mas os questionamentos não acabam junto com a fase da falta de legitimidade (que chega ao fim por preguiça do aprendiz, que se conforma em não achar instrutor melhor, ou porque aceita que, afinal, nem é preciso saber fazer para ensinar a fazer). Depois que as pessoas resolvem ouvi-lo surge o desafio do poder, e você pode começar a escrever besteiras, desnudando-se de uma forma que não queria. Infelizmente o mundo já não é mais tão escasso de crianças de cinco anos dispostas a apontar que o rei desfila peladão.

Esta semana está bombando nas redes sociais o caso de uma editora que teria postado em seu saite, sob o título de «Dicas Para Escrever um Romance», uma curiosa peça, de autoria de uma certa Thayane Gaspar (quem?) que incluía conselhos polêmicos, como:
Seja original, e para isso fique longe de outros livros. Em total abstinência literária. Será como se só existisse seu romance no seu mundo, do mesmo jeito para o mocinho, só existe a mocinha.
Inspiração é o estado de sintonia entre sua alma e você, é o momento em que a alma consegue se expressar verbalmente. Por isso, busque coisas que evoquem esta sintonia: uma música, um lugar, uma foto que mexa com você. Fique perto dessas coisas, e dê voz à sua alma, e não a force, ela só fala o necessário e quando necessário.
Descreva o mínimo possível a aparência dos personagens. É como se eu fizesse apenas o contorno de seus desenhos e passasse a tarefa adiante, para o leitor. Esse é o trabalho deles. O meu é dar vida a sentimentos, sonhos e histórias. E o nosso trabalho é, que juntos, façamos essas pessoas reais dentro de nossas mentes.
Esses três parágrafos (transcritos ipsis litteris) nos revelam muita coisa sobre Thayane Gaspar, sobre a Modo Editora (que muito antes de ter publicado esse texto havia endossado a autora) e sobre o tipo genérico de escritor que tem procurado as nossas editoras. Mas revela também sobre o arquétipo de literato que vem sendo transmitido em nosso país, de geração a geração. Um dos muitos arquétipos nocivos (ou seja, «preconceitos») que expressam o nosso atraso mental coletivo.

O que Thayane está expressando neste texto é o que ela, certamente, tem dentro de si: a concepção da literatura como o resultado de uma inspiração superior, e não um trabalho com as palavras, algo que exige «inspiração», mas não «transpiração» (não force muito), e que não dialoga com o mundo real (como se só existisse seu romance no seu mundo), mas com um mundo de fábula, uma torre de marfim onde o escritor, este oráculo dos deuses, produz sua obra. Dentro de sua torre de marfim o autor não precisa dialogar com a cultura na qual está imerso (ou não, isso depende de cada um), mas com um plano mais elevado (fisica e espiritualmente) de onde misteriosamente vem a tal «inspiração» (ela só fala o necessário e quando necessário).

Esta personificação da inspiração como algo alheio ao autor, e independente de sua vontade, busca, claro, valorizar o produto obtido como algo que não estaria ao alcance de «qualquer um». Faz parte da mitologia literária nacional imaginar o autor como uma espécie de Escolhido, portador de um dom gratuito de Deus ou da natureza (ou de Satanás, se tiver fechado um pacto numa sexta feira numa encruzilhada sacrificando um bode).

Tão importante é esse trabalho (quase no sentindo umbandista do termo) a que se dedica o Autor (com letras maiúsculas, pois ele é um ser iluminado), que ele não deve perder tempo com detalhes trabalhosos, como descrições. Não é trabalho do autor descrever narizes, imaginar cores, catalogar características, saber tamanhos. O trabalho do Autor é «dar vida» (tal como um Dr. Frankenstein que lida com memórias e inspirações, cadáveres de emoções e sensações) a «sentimentos, sonhos e histórias». 

A autora, apesar do desastroso modo como apresenta o conceito, está, de fato, buscando ser moderninha, ao ecoar a tese da obra literária como um processo aberto, do qual o autor não tem controle, e no qual cabe ao leitor um processo de co-criação durante a leitura. Conheço apenas vagamente o conceito, que meu amigo João Francisco diz originar-se em Roland Barthes (autor de que li um excelente livro certa vez e depois esqueci benditamente cada linha). O que ela não sabe é que ninguém razoavelmente culto ousaria dizer que o autor devia se abster de criar, confiando que o leitor criaria o que faltasse. Parece óbvio que, se o leitor estivesse dispostos a tanto, e soubesse tanto, não haveria necessidade de se valorizar tanto o Autor e sua Inspiração (que o diabo os carregue se eles não servem para produzir bons livros). Thayane não percebe que seus conselhos se chocam uns contra os outros, porque ela tenta harmonizar seus preconceitos arquetípicos com doutrinas filológicas modernas e um pouco de justificação das próprias limitações.

Por fim, a abstinência literária (sic) recomendada pela autora ecoa este privilégio, ao negar a importância, ou o valor, da influência de uma obra sobre outra. Mais que isso, supõe a autora que, por não ter lido outros romances, você não os imitará. Esta afirmativa revela uma profunda ignorância dos mecanismos da literatura, pois ela desconhece a existência de modelos mentais que condicionam a estruturação narrativa até mesmo de pessoas iletradas: os causos contados pelos pitorescos matutos do interior não são menos estruturados do que os bons romances, apenas estão vazados numa linguagem não padronizada e padecem, devido ao contexto oral e informal, de uma série de elementos «poluidores» que desviam seu foco e seu fluxo, dificultando uma linearidade maior. Desconhece, ainda mais, essa continuidade estrutural entre a literatura oral e a literatura escrita, visto que mesmo os que não leiam livros terão acesso à primeira através mesmo de fatos prosaicos, como a repetição de notícias de jornais. E o mais curioso é que justamente esse conceito vem corroborar uma antiga tese provocativa que circulava nas redes sociais: a de que o autor brasileiro não vende porque não escreve bem, e não escreve bem porque é um bronco sem cultura (mais sobre isso no final).

Evidentemente uma postagem tão desinformada acaba por lançar fortes dúvidas sobre quem a escreveu. Eu nunca tinha ouvido falar de Thayane antes (isso não é problema, visto que ela dificilmente terá ouvido falar de mim), mas agora que a conheci por este texto, terei muita dificuldade para levá-la a sério. Se não por suas contradições e erros oriundos de desinformação ou falta de jeito, certamente por não conseguir pontuar corretamente um texto de três parágrafos.

No começo eu dizia que a postagem também revela algo sobre a Modo Editora. Refiro-me ao fato de que a Editora tenha não apenas aceitado difundir um conselho tão tosco, mas que não tenha sequer corrigido o uso de vírgulas no texto. Obviamente a Editora Modo não acha importante corrigir vírgulas, tanto quanto a autora não acha importante descrever personagens, ou ter uma bagagem literária. Imagino que, se não corrigiu vírgulas em três parágrafos, não as terá tampouco corrigido nas dezenas ou centenas de páginas de «Princesa de Gelo», a obra que Thayane produziu.

O problema não está em haver uma editora que dá vez e voz a depoimentos como esse, se fosse uma voz isolada isso não teria nenhum problema. O problema está em haver uma massa crítica de pessoas que acredita nesses conselhos e os põe em prática. Porque Thayane não inventou isso. Por mais que se esforce em «ser original» enterrando a cabeça na areia para não conhecer o resto da literatura universal, a verdade é que esses conselhos são a condensação de um estado de espírito amorfo que vem se formando nas redes sociais há pelo menos uns seis anos. A ideia de que ler outras obras «contamina» o talento do autor é antiga, e eu mesmo já escrevi aqui, há dois anos e meio, sobre o mito do autor genial que não lê.

O caso me faz lembrar a parábola cristã do Guia Cego. “Porventura pode um cego guiar outro cego? Não cairão ambos no barranco?” (Lucas, VI, 39). Se Thayane padece destas deficiências (mais do que o uso das vírgulas, a crença em preconceitos infundados e um conhecimento porco de teoria literária), como pode ensinar a seus leitores como produzir romances perfeitos? A questão da legitimidade urra aqui com uma força ensurdecedora. É aceitável que o professor não saiba fazer, mas saiba ensinar. O técnico de futebol ensina o jogador a jogar sem que ele mesmo saiba dar um drible num cone. Mas é inaceitável que um mestre não tenha nem a prática e nem a teoria. Esse mestre é um guia cego, e todo aquele que o segue vai para o barranco junto com ele.

E para o barranco segue uma multidão de jovens autores brasileiros, que publicam por editoras que os iludem com capas bonitas, noites de autógrafos e estandes em feiras, que afagam seus egos e ordenham seus bolsos enquanto desperdiçam belas árvores. Autores que acham que serão originais caso se tranquem num quarto, de preferência antes de terem lido qualquer coisa.


Quando a polêmica se instalou, a Modo Editora removeu de seu site o arquivo de imagem que continha os conselhos da Thayane, mas continuam lá outros conselhos igualmente inacreditáveis. Tamara Ramos, por exemplo, dá os seguintes conselhos:
Um bom autor precisa conhecer os grandes clássicos da literatura nacional e internacional e deve estar atento às tendências do mercado literário.
Parece ser um conselho sensato, ainda mais em comparação com o de Thayane, mas não tem a mais remota base factual. Porque se tal conhecimento amplo fosse «preciso» para um bom autor, a grande maioria dos clássicos não teria razão para ser lida. Os autores clássicos não conheciam os grandes clássicos (o próprio conceito de «clássico» é uma invenção bastante recente) e até muito recentemente inexistia um «mercado literário» para se prestar atenção.

É certo que conhecer os clássicos não faz mal, mas é errado imaginar que somente um douto literato sabe fazer boa literatura. Esse é, aliás, o motivo pelo qual a acusação de que o autor brasileiro escreve mal porque é inculto não passa de uma trollagem tosca. Há bons autores que tem uma cultura imensa, mas há tantos outros que adquiriram a cultura apenas na forma de uma biblioteca, enquanto que alguns autores genuinamente incultos produziram livros interessantes. A falha está em enxergar uma relação de causalidade entre quantidade e qualidade. Algumas pessoas precisam ler alguns bons livros para conseguirem escrever alguns bons livros, outras precisam ler muitos, e muitas não escreveram bons livros nem que leiam cada página jamais impressa, em cada língua do mundo. A chave está em aproveitar o que se tem, tal como é impossível gastar um bilhão de reais, também é impossível tirar proveito de ter lido dez mil romances clássicos.

Mais do que recomendar o conhecimento dos clássicos como uma estratégia para buscar um nicho de mercado, Tamara acredita que exibir cultura cativa o leitor:
Para começar o processo da escrita de um romance, um autor necessita de uma grande bagagem literária e cultural. Isso enriquece o texto e conquista os leitores.
Novamente ela confunde quantidade com qualidade. Exibir uma grande bagagem cultural não necessariamente enriquece o texto, na maioria das vezes apenas o torna pesado, intimidador. Depende do talento do autor para dosar e apresentar essa bagagem. Porque, definitivamente, não é a bagagem literária do autor que conquista o leitor. O que conquista o leitor é o livro ser bom, ou, pelo menos, atender às suas expectativas do que seja «bom» (e tanto há quem goste do olho como da remela).

O caso é que Tamara sabe disso. Tanto que escreveu em outra postagem sua «não tente um estilo forçado ou literato». Ora, então por que escreveu que uma grande bagagem literária e cultural enriquece o texto e conquista os leitores? A resposta é simples: também Tamara está divida entre a teoria que aprende na faculdade (onde lhe ensinam sobre literatura, mas não ensinam literatura) e os seus antigos preconceitos. A faculdade lhe diz que o autor culto produz uma obra mais densa e de qualidade, mas ela sabe, instintivamente, que a maior parte das obras citadas como exemplo na faculdade são verdadeiros soníferos, do tipo que, como disse Millôr Fernandes, «quando você larga não consegue mais pegar.»

Entre Thayane e Tamara eu acredito que a segunda tenha escrito um livro melhor. Não só porque não levou rasteira das vírgulas, mas também porque ela me passou um conflito mais profundo entre o que lhe dizem e o que ela quer. Um conflito que pode levá-la a uma reflexão de valores mais amadurecedora do que uma abstinência literária para preparar o corpo para o nascer do pão do espírito.

Mas ambas, ambas, são vítimas de uma Editora que atira seus autores aos leões, sem dar-lhes nenhuma assessoria. As duas viraram vítimas das redes sociais porque se expuseram com opiniões caracterizadas, respectivamente, pela ignorância e pela incoerência. Uma editora que realmente cuidasse da carreira de seus contratados não permitiria que elas postassem aqueles conselhos, possivelmente não permitiria nem que publicassem os seus livros. Mas o que fazer se há tantos jovens iludidos pela cobiça do distintivo duvidoso de «escritor» a ponto de justificar o florescimento do mercado de «fábricas de fábulas» que temos visto acontecer? Se a Modo não publicasse, haveria alguém para publicar, e outro lugar onde as duas pudessem guiar rumo ao barranco quem as quisesse seguir.


EM TEMPO: Contrariamente ao que muitos podem pensar, eu não sou nenhum guia cego porque não estou aqui ensinando ninguém a escrever. Como não tenho essa proposição, não tenho o ônus de justificar minhas ideias. Esse ônus pertence a quem pretende ensinar “como”. E se alguém segue minhas ideias, lamento dizer que tal atitude só poderá levar meu seguidor pelos caminhos que trilhei e ao destino a que cheguei. Parágrafo adicionado em 26/01/2013 às 21h00.

18
Out 12
publicado por José Geraldo, às 01:17link do post | comentar | ver comentários (1)
Decidi-me a um passo radical nas minhas relações facebookianas. Estou começando a cortar relações com pessoas com quem não tenho conhecimento direto e, simultaneamente, não formam, em minha opinião, um público potencial para a minha literatura. Vou cortando esta turma porque estou cansado de conversas vazias que não vão a lugar nenhum, cansado de gente cheia de certezas, idênticas ou opostas às minhas.

Acredito que esta medida higiência me favorecerá bastante. Ajudará a me manter afastado da internet e mais perto de coisas como árvores, bichos e trabalho. Mesmo que não tenha esse condão, pelo menos me afasto de uns malas.

Esta semana fiquei conhecendo três.

O primeiro mala é aquele cara que posta coisas e depois reclama se você comenta. O segundo é o mala que te adiciona a grupos que ele acha que você quer participar. O terceiro é o mala que só sabe falar em Jesus.

Eu digo que fiquei conhecendo esses malas somente esta semana porque eu nunca tivera a oportunidade de trombar com eles. Mas tenho a certeza de que já os intuía antes: alguns me acompanhavam desde os tempos de Orkut.

Meu contato com o primeiro mala ocorreu quando ele postou um comentário qualquer, de cunho extremamente provocador. Era alguma coisa sobre uma campanha para desacreditar a campanha movida por alguns grupos na internet em favor de que seja também julgado o chamado «mensalão mineiro». Seu comentário foi o de que não há necessidade de julgar nada daquilo, porque é tudo mentira mesmo, já que a justiça até hoje não achou o que julgar, ou algo assim. E que o livro «Privataria Tucana», que acusa os acusadores do atual governo, seria uma «peça de ficção». Quando eu comentei que ele estava agindo movido por fé cega, sem prestar a mínima atenção à coerência, o mala me atacou com uma versão sofisticada daqueles dizeres de auto ajuda barata, algo como «eu nunca fui poluir o seu mural com as minhas opiniões, por que você vem me criticar no meu?» Senti-me atingido porque, de fato, era o mural dele e, de fato também, ele nunca comentara suas opiniões de ultra direitista no meu mural. Mas se eu não tenho o direito de comentar, mesmo acidamente, o que um «amigo» posta em seu mural, então esse não é um «amigo» meu, apenas um sujeito que está adicionado, sabe-se lá por que acaso. A única reação possível, diante da distância ideológica e da necessidade de preservação de seu cercadinho mental, foi a que tomei: desfazer a amizade. No momento em que o fiz, percebi que existem dezenas de outros «amigos» meus que tampouco são amigos: porque não tenho conhecimento pessoal seu, e nem confiança para, em algum momento, comentar livremente o que postam. Amigos que só aceitam comentários laudatórios ou neutros não são amigos. São pessoas que precisam ser ignoradas.

O segundo tipo de mala é mais sutil e, de fato, eu não tenho enfrentado esse problema nas últimas semanas, desde que excluí alguns adicionadores contumazes. Mas foi só nesta semana que eu percebi que essa prática também é um abuso, e um motivo para não somente eu excluir os «amigos», mas a própria conta no Facebook. Aguardarei o lançamento do segundo livro e talvez o faça.

O terceiro tipo de mala tem me atacado menos, e esse era, talvez, o que eu mais tinha noção anterior de sua existência. O que mudou esta semana foi a percepção de que, invariavelmente, a pessoa que toca no assunto Jesus nas primeiras vezes em que você conversa com ela é alguém que tem Deus na cabeça — e mais nada. Existem muitas pessoas que acreditam em Deus e são simpáticas, mas há pessoas que acreditam que a crença é uma desculpa para ser mala permanentemente ou,  pior, que se tornam tão obcecadas que se tornam malas sem querer. Eu não tenho saco para discernir os dois tipos: ignoro ambos.

Há outros tipos de malas bastante incômodos também, como o mala prolífico, aquele que resulta em 76 notificações de atividade, ou o mala científico, que é uma espécie de crente pregador das últimas descobertas científicas. Ambos são de dar dor de dente em galinha. Imagine você abrir suas notificações e ler que «Beltrano de Tal curtiu uma notícia em G1.com», daí você clica e lê que «Mônica Bérgamo (quem?) prepara pizza com Angélica». Ou, no caso do mala científico: «Observatório americano descobre que Plutão tem 0,5% mais merdato de bóstium do que se esperava — descoberta deve revolucionar a teoria das brânquias hipersônicas de Andrômeda». Daí você passa à notificação seguinte e outro «Fulano de Tal» curtiu uma página com «Todos os personagens de 'Malhação' se reúnem para homenagear Zé Ninguém das Couves». Você ignora, mas a notificação seguinte, novamente, do amigo científico, lhe lembra «Asteróide de 0,025 toneladas passou a 0,05 unidades astronômicas da Terra nesta noite». Daí você assusta achando que foi algo grande que passou perto e descobre que foi uma bosta de pedregulho irrelevante de 25kg que nos errou por um vigésimo da distância até o Sol.

Eu estava acostumado a conviver com esses dois malas, e mais o que a cada cinco minutos compartilha um versículo fofoso da Bíblia, ou uma pérola de auto ajuda. Nesta semana percebi o incômodo dos malas políticos que, por uma estranha coincidência, estão inundando o Facebook de calúnias contra o Fernando Haddad, o Lula, o Hugo Chávez e até contra as cerejas de bolo (porque também são vermelhas). Já vi gente dizendo que «Serra é lindo» (tem gosto para tudo, até para vômito) e outro dizendo que «tinha mais é que acabar com essa merda de democracia para afastar esses petralhas do poder». Sei muito bem o que é isso: é uma campanha de astroturfing em plena ação. Esses idiotas aparentes não vão continuar postando isso depois que acabar a eleição: quem está pagando vai deixar de exigir produtividade e eles vão voltar a compartilhar auto ajuda ou notícias irrelevantes, só alguns mais impressionáveis vão continuar bajulando os candidatos. É difícil conviver com isso, não tenho mais tanto tempo. Prefiro cair fora e torcer para eles caírem na real quando precisarem trocar as fraldas, melhor do que caírem na real quando houver tanques nas ruas, e não para lavar roupa suja.

Então, para evitar esse desgaste de meu humor, estou apagando essa gente chata e dedicando meu tempo livre a assistir os filmes do Monty Python e a pesquisar na Internet por discos de violeiros. Isso enquanto O Pecado da Tristeza não sai — e já tá demorando uma meia eternidade.

19
Set 12
publicado por José Geraldo, às 21:38link do post | comentar | ver comentários (1)

Não sou do tipo que aprecia auto-ajuda e detesto historinhas bonitinhas úteis para fazer team building (as coisas que eu detesto eu prefiro mesmo que tenham nomes em gringuês). Mas hoje ocorreu-me um fato que me fez querer escrever um texto que algum guru motivacional, especialmente desses que trabalham com equipes de venda, vai um dia pinçar e ler para seus discípulos. Sem me dar crédito, lógico, pois nesse negócio de auto-ajuda existe uma regra implícita que proíbe atribuir qualquer texto a um autor conhecido e vivo. Todas as histórias tem que ostentar a chancela de uma «antiga lenda», palavras de um «sábio chinês» ou «ensinamento religioso». Acho que mencionei que eu detesto esse estilo baboso e cheio de pretensão. Mas aí vai a historinha.

Ao sair do serviço, já quase seis horas, lembrei-me de que tinha marcada uma sessão de massagem, para aliviar minha retorcida coluna e minhas comprimidas veias. Porém, por uma dessas perversidades pequenas que a vida nos oferece, eu me esquecera completamente de trazer de minha outra casa um calçado esportivo, um chinelo de dedos que fosse. Como estou vivendo de segunda a sexta em outra cidade, a trabalho, eu não tinha a opção de ir buscar o que tinha esquecido. Vendo o comércio quase a fechar, entrei na primeira loja onde vi calçados, apontei para uma sandália franciscana e perguntei pelo preço e disponibilidade do meu número (43 para quem se interesse em saber). A vendedora foi remexer no estoque, procurando, e então decretou: infelizmente não tinha daquele tipo de calçado no meu número. Como nenhum sapato servia para o que eu queria fazer, agradeci e deixei a loja apressado, procurando outro lugar onde pudesse comprar uma sandália, ou calçado parecido.

Já havia percorrido uns quarenta metros e me aproximava de outra loja quando a vendedora me alcançou correndo, já quase sem fôlego, e me pegou pelo braço.

— Moço, como você anda depressa! Volta comigo, eu achei uma sandália do seu número. Estava caída no fundo da prateleira, mas ainda tinha.

Como não estou acostumado a ser tocado subitamente por pessoas desconhecidas, fiquei meio desconcertado com aquilo tudo.  Principalmente pela cena da vendedora esbaforida correndo pela rua para me pegar pelo braço. Voltei com ela até a loja e comprei a sandália.

Enquanto ela registrava a venda no cartão de crédito, já tendo conseguido superar a surpresa e me inserir na situação, senti-me na obrigação de lhe dizer o que eu estava pensando:

—Você está de parabéns, isso é que é uma vendedora. Foi buscar pelo braço o último cliente do dia, para fazer a última venda. Estou impressionado.

Na verdade se eu fosse dono de alguma loja na cidade eu a contactaria secretamente para oferecer um salário maior. Se eu fosse um comerciante, eu desejaria ter aquela menina vendendo para mim, e não para um concorrente.

Disse o que disse sem mais intenção que a de agradar a garota, que ainda estava descabelada e um pouco suada por causa da corrida, mas naquele momento eu não tive ideia do bem que lhe fazia, pois o vendedor que estava ao seu lado no balcão era o próprio dono da loja. Que deve ter passado a valorizar bem mais a sua funcionária depois de hoje.

Enquanto voltava para casa fui fazendo reflexões semelhantes às que os gurus de auto-ajuda para vendedores costumam dizer que fazem. Tentar extrair do caso alguma «lição de moral» que valha a pena mencionar em uma mensagem corporativa de correio eletrônico. Ocorreram-me três ideias perfeitamente adequadas ao contexto, e eu me descobri palestrando mentalmente para vendedores desavisados.

A maioria das pessoas que eu conheço jamais se exporia ao ridículo de sair correndo pela rua atrás de um cliente. É como se trabalhar fosse algo não merecedor de nossas energias. Pessoas que «soltam a franga» com duas ou três doses de bebida morrem de vergonha de abordar um cliente, gente que joga lixo na rua se constrange de correr atrás de uma venda. Aquela vendedora, porém, sentiu que naquele momento, em que estava trabalhando, a coisa mais importante de sua vida era trabalhar bem. Para isso ela não precisava matar ninguém, apenas recuperar o prejuízo de uma venda não feita por causa de uma distração.

A maioria das pessoas que eu conheço jamais cometeria um ato que revelasse para todos os colegas, e o chefe, um erro cometido. Mesmo descobrindo a caixa de sandália 43 no fundo da prateleira, prefeririam fingir não a terem achado para que ninguém soubesse que um cliente saíra da loja sem comprar o que queria por distração de quem lhe deveria vender. Aquela vendedora, porém, achou que muito mais importante do que impedir os outros de saberem de seu erro era fazer o certo. Se o seu chefe pensa como eu, ele deve preferir trabalhar com quem corre atrás de consertar o que errou do que com quem aparentemente não erra, mas nunca é visto correndo atrás.

Por fim, a maioria das pessoas não teria dado tanta importância ao último cliente do dia, a menos que ele viesse comprar dúzias do item mais caro das prateleiras. Muitos vendedores pensariam que «se ele não comprou aqui, também não vai comprar na concorrência, porque todo mundo está fechando». Talvez alguns pensem que o cliente pode voltar no dia seguinte, quando a loja abrir. Não sabem que há momentos em que no dia seguinte a compra pode ter deixado de ser necessária, ou o cliente pode ter achado outro lugar onde comprar.

Tenho a certeza absoluta  de que a maioria das pessoas não é como aquela vendedora, mas gostaria de tê-la trabalhando para si.


01
Abr 12
publicado por José Geraldo, às 12:12link do post | comentar | ver comentários (2)

Depois de doze longos meses trabalhando na surdina, está perto de sair, pela Aleph, o meu romance «Pedras no Caminho», que tende a ser um marco de minha carreira literária, sinalizando minha estreia no gênero da ficção de auto ajuda, consagrado nacional e internacionalmente pelo nosso grande mestre e acadêmico, Paulo Coelho. Trata-se da história de um jovem interiorano em busca de uma nova identidade na cidade grande, após a perda de seus pais em um acidente de ônibus. Focando nos desafios que enfrenta, e na importância da fé cristã para renovar as energias diante de grandes obstáculos, o romance tem tudo para agradar os fãs do gênero. Aliás, sairá bem recomendado por um prefácio de Augusto Cury e uma orelha escrita por Zibia Gasparetto.

Aguardem para breve as novidades.


27
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 08:10link do post | comentar

Recebo ocasionalmente mensagens não solicitadas que me oferecem cursos de «escrita criativa». À parte o estranhamento de imaginar como podem ensinar criatividade, estas ofertas não me interessam, nem remotamente. Se me fossem feitas pessoalmente eu responderia, educadamente, que «muito obrigado» e, no caso de uma insistência equivalente à da frequência com que tenho recebido tais mensagens, removeria o «educadamente» e o «muito obrigado» de minha resposta e diria apenas que «não me interessa aprender o que vocês pretendem ensinar».

Várias são as razões que me levam a desinteressar-me definitivamente destas propostas. Algumas destas razões são impublicáveis, pelo menos em seu palavreado original, outras podem ser relevantes somente para mim, outras são óbvias; mas o óbvio é o mais difícil de ser visto pela maioria das pessoas, existem povos inteiros no mundo que não sabem que o céu é azul, segundo certo antropólogo que um dia deu uma palestra que assisti, enquanto, para outros, todas as espécies de plantas rasteiras que crescem nas planícies podem ser resumidas na palavra «pasto». Lutando contra estas dificuldades, semânticas e outras, pretendo explicar porque, em minha opinião, não apenas tais cursos não me interessam como não deveriam interessar a ninguém.

Para começar, gostaria de observar que nenhum divórcio é mais amigável que o do tolo e de seu dinheiro. Existem pessoas que, simplesmente, estão dispostas a pagar por ar engarrafado, sentem-se mais ricas por possuírem tais garrafas, sentem-se superiores. Estas pessoas facilmente se ofendem diante da sugestão de que o conteúdo de suas garrafas é apenas ar ou, pior ainda, que elas poderiam ter de graça aquilo porque pagaram. Não é para estas pessoas que eu estou escrevendo, mas elas provavelmente constituirão a maior parte dos que comentarão este texto, se ele, ao contrário dos demais do blogue, tornar-se comentado.

O que tais cursos pretendem com a ideia de ensinar «escrita criativa»? O que é, de fato, «escrita criativa» ou, como alguns pretendem, «escrita para o mercado» ou «escrita comercial». Com todo respeito aos proponentes de tais ideias, os conceitos são incompatíveis. Escrita criativa não é — e nunca poderá ser — «para o mercado». Livro não é peixe e nem é sabonete para ter um desígnio focado no «mercado». Livro que se foca no mercado se rebaixa a ele. Escrita para o mercado, com um pouco menos de respeito, mas ainda dentro da civilidade, é lista de compras. Escrita comercial é contabilidade.

Começa-se, portanto, com um conceito vago, baseado na palavra mágica que a todos seduz: mercado, esse deus (ou monstro) de muitas mãos e cabeças que, supostamente, regula o valor das coisas e das pessoas (e efetivamente iguala ambas as categorias em uma só, embora as segundas sempre fiquem num patamar ligeiramente secundário, por não serem tão maleáveis e nem tão adaptadas). Acima de tudo, o curso se baseia na ideia de que a escrita tem que ser para o mercado.

Quando se parte de uma quimera como essa, fica difícil chegar a algum lugar. Mas esta dúvida se dissipa quando vemos o que é que se ensina. A simples leitura do currículo de certos cursos deveria ruborizar quem os fez, mais ainda quem compra. Se o rótulo de um remédio tivesse a inscrição «placebo ineficaz e amargo que não vai curar seu fígado» e as pessoas ainda insistissem em consumi-lo, isso seria vergonhoso. As matérias incluídas em tais currículos partem de coisas como «gêneros de escrita», «estruturas de enredo», «escrita descritiva», «protagonista e antagonista», «projetos de publicação», «outlining» etc. Obviamente os cursos de «escrita criativa» não incluem a criatividade no plano de curso, apenas técnicas, «macetes», «dicas», «toques». Como dizia Raul: «Enquanto Freud explica as coisas, o diabo fica dando uns toques…»

Não vou aqui fazer afirmativas peremptórias de que «talento não se ensina». Não tenho tanta certeza disso, apenas de que é impossível ensinar talento com o currículo destes cursos de escritores. Uma certeza limitada é sempre mais segura que uma negativa plana e abrangente. Não pretendo terraplenar o mundo de acordo com os meus conceitos. Apenas acredito que nada tenho a aprender e que, para as pessoas que acham que aprenderão alguma coisa, provavelmente já é tarde demais para aprender.

Tarde demais porque já adquiriram muitos vícios, tarde demais porque não tiveram boa formação de leitura durante a infância, tarde demais porque acreditam que a fórmula do sucesso reside na ingestão de uma fórmula. São pessoas com mente de apertador de botões, que acham que seu cérebro possui os botões certos para serem apertados e produzirem um livro genial. Cada um de nós é o produto da gradual transformação, piora ou aperfeiçoamento daquilo que aprendeu, sentiu e viveu quando era ainda criança. Mas as técnicas pseudocientíficas da auto-ajuda sempre insistirão que «nunca é tarde», que se pode «recuperar o tempo perdido» pagando um supletivo, etc. Não se recupera tempo perdido. Tempo passado é tempo esgotado. Tempo é irremediável.

Imagino, porém, que tais cursos não se destinam aos despossuídos das letras, mas a pessoas que já sabem escrever alguma coisa, que apenas querem evoluir. Nesse caso fico mais inseguro. Obviamente, se o curso for frequentado apenas por pessoas que escrevem desde a infância, existe uma tendência a que os formados exibam qualidades literárias evidentes. O fato de terem aprendido a pontuar melhor as frases, dar uma organizada no conteúdo ou apresentarem sua obra devidamente empacotada e pesada (em número de páginas, palavras e capítulos) faz com que tenham a ilusão de que se tornaram escritores melhores. Mas seria justo atribuir mérito ao curso pelo talento que os autores já tinham antes?

Não creio, porém, que haja em suficiente número pessoas que sabem escrever. Um curso dirigido apenas a tais pessoas teria poucos alunos, tão poucos que não se sustentaria. Maior é o número das pessoas que apenas acham que sabem escrever alguma coisa. Parece-me mais provável que este seja o público alvo. Amestrar tais pessoas na arte de construir frases mais claras, distribuir seus conceito em capítulos e organizar suas ideias em sinopses apenas refinará aquilo que elas não possuem: conteúdo. Da destilação deste vazio poderão apenas sair obras vazias, que ajudarão a submergir na massa de sua insignificância a literatura do mundo.

Não quero, de maneira alguma, parecer arrogante, mas um outro ponto que me preocupa em tais cursos, mais até do que o currículo, é o mestre. Todos sabemos que um professor capacitado pode dar uma grande aula, mesmo com um currículo produzido por um inepto. Portanto, a salvação do curso pode estar no nome de quem seja escolhido para dar as aulas. Não vejo tal nome apregoado como o grande plus desse curso. Certamente o mestre não é alguém significativo, porque se fosse pelo menos alguém dotado de notoriedade, ou de um currículo respeitável, estariam imprimindo seu nome em letras vermelhas, negrito, tamanho 48. Que tenho eu para aprender da boca de um anônimo como eu, utilizando um currículo que não me inspira confiança alguma?

Se o professor, mais que alguém com renome, fosse de reconhecido talento, eu nem ligaria para o currículo. Ouvir um autor competente falar sobre abóboras durante vinte minutos ensina mais do que um ano de curso com um professor de português preocupado com a colocação pronominal e que acha que o brasileiro não sabe falar (para estes curiosos espécimes, o povo seria uma criatura simiesca, que precisa ir à escola aprender uma língua de gente). Um diploma sobre abóboras assinado por Carlos Drummond de Andrade é muito mais currículo, para mim, do que uma pós-graduação em Letras Anglo-Saxônicas por uma dessas faculdades fast-food que pulularam por esse país de trinta anos para cá. Tenho muito a aprender, mesmo que seja só sobre abóboras, com muitos autores que ainda estão vivos. Não tenho nada a aprender sobre «escrita comercial» com um professor de literatura. Escrita comercial eu aprendi no curso noturno de Técnico em Contabilidade, no Colégio Cataguases, turma de 1990.


14
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 21:45link do post | comentar | ver comentários (1)

Dei-me conta disso por causa de um desses movimentos literários altruístas e anticapitalistas que surgiram por aí. Acho que o nome é «Doe um Livro», ou coisa parecida. Eu estava esperando em uma fila de banco, ocasião em que o bom gosto fica seriamente comprometido e você pode se pegar lendo com interesse o verso de sua fatura de cartão de crédito ou uma brochura publicitária esquecida por um cliente que foi embora. Estava eu justamente desesperado em busca de letras para ler quando uma moça bonita, apesar do estranho piercing negro em seu nariz, que parecia um troço de catarro, me ofereceu um livro.

— Não, obrigado — recusei educadamente como minha mãe me ensinou a fazer da primeira vez para toda e qualquer oferta.

— Por favor — insistiu a garota com um sorriso de teclado de piano, ou melhor, de sanfona, porque o seu rosto não parava quieto em cima do pescoço.

— Mas… você está… me dando o seu livro…

— Oh, sim. Por favor, não estranhe.

Então ela me falou uns três ou quatro minutos sobre seu movimento de difusão da leitura, sobre a ideia de comprar o livro, ler e depois dar para alguém ler. Acho que era «Esqueça um Livro», ou algo assim, esqueci…

Recebi o livro, cuidadosa e femininamente encapado em plástico vermelho, com uma falta de jeito provinciana. Acho que jamais na minha vida um estranho me dera qualquer coisa além de motivos para desconfiança.

Mas enquanto o recebia notei o olhar fuzilante do segurança em nossa direção, verdadeiro agente da repressão ignara, pronto para confiscar a obra ou para dizer que tínhamos de consumi-la em leitódromos cuidadosamente controlados. Ele veio andando em nossa direção, deixando balançar na cintura o grosso cassetete preto, mais volumoso que os braços de cigarra da garota sorridente e irriquieta. Que se levantou apavorada, uma traficante surpresa pela visita da viatura. Ela se misturou entre os clientes, aproveitando-se de sua estatura de ninfa, e nunca mais a vi.

O guarda chegou perto demais, e me abordou com uma voz de tuba:

— Aquela garota estava incomodando o senhor?

— De forma alguma, ela só me deu iss…

Ainda estava com metade de «isso aqui» dentro da boca e ele já arrancara o livro de minha mão.

— Eu fico muito revoltado mesmo com esse tipo de coisa. É um absurdo completo!! A barbárie tá tomando conta do país, a imundície se alastra pelas ruas e qualquer cidadão de bem está exposto.

— Mas ela só…

O guarda arrancou a capa do livro com violência, usando seus dedos de elefante. Só então percebi do que ele me salvara, quase em lágrimas, agradeci-lhe efusivamente como se ele fosse um irmão que eu não vira por vinte anos:

— É mesmo vergonhoso que a gente não possa esperar em paz na fila do banco sem correr o risco dessa violência — eu lhe disse.

O mundo de Farenheit 451 seria terrível. Baixos espíritos literários são mais memorizáveis do que o Grande Sertão: Veredas, e para malus1 adicional a presença de um declamador de romance de auto-ajuda na sua vizinhança é mais agressiva do que a presença de um romance do Mago na estante, presente da namorada que acha lindo você ser escritor e pensou que lhe estava agradando muito com aquela obra cheia de verdades.2

1 Um «neolatinismo» inventado para ser o antônimo de «bonus».

2 O autor sugere que este conto seja lido de forma iterativa, retornando ao começo depois de ler o último parágrafo, e assim sucessivamente até o leitor ter a certeza de que realmente passou a odiar o autor.


18
Set 11
publicado por José Geraldo, às 23:21link do post | comentar

É claro que eu ocasionalmente me arrisco com um bilhete de loteria (geralmente a Mega Sena), afinal não faz mal correr o risco de subitamente ficar milionário. Mas eu nunca aposto mais do que exatamente um bilhete e não tenho hábito de apostar nada mais. Isto é porque eu não acredito em sorteios, bingos, rifas, , milagres, títulos de capitalização ou acasos felizes. Não acredito porque jamais ganhei nada em minha vida. Todas as poucas coisas que tenho eu tive que comprar com dinheiro ganho trabalhando. Nunca alguém me disse “olha, aqui tem um carro novo para você” ou “você ganhou um milhão de reais”. Por outro lado, já passei por situações que deixaram claro que esse negócio de sorteios não é comigo.

Talvez o caso mais escabroso tenha sido um daqueles bingos promovidos por clubes esportivos que andavam na moda em meados dos anos noventa. Comprei uma cartela daquelas e fui para o campo do Operário de caneta na mão, debaixo de um sol de trinta e oito graus, para ouvir alguém gritar as dezenas sorteadas. Foram duas horas suando e sem beber água porque naquela época em que não havia caixa eletrônico eu não tinha sacado dinheiro durante a semana. Por fim, chegou o prêmio final, o grande prêmio, um automóvel novo (e não era qualquer automóvel, mas um bom automóvel). Os números se sucederam numa sequencia assombrosa que quase me fez perder o fôlego. Até que finalmente me vi a um número de completar a cartela. E assim fiquei por vinte e duas rodadas até que finalmente outra pessoa completou o bilhete e ficou com o carro.

Alguns de meus amigos mais chegados já perceberam essa minha característica. Os mais supersticiosos jamais me convidam para participar de um bolão. Há os que evitam ficar perto de mim se por acaso estivermos em uma quermesse e forem sortear um bingo ou correr uma rifa (que eu quase nunca compro, mas a minha mulher adora). Todas as vezes que as palavras “Você ganhou” me foram dirigidas, foram tentativas de golpe via telefone celular. Telefonemas inesperados invariavelmente são de credores me cobrando dívidas das quais eu não me lembrava. Dia desses reclamaram que deixei de pagar quatro meses de hospedagem de um site que eu cancelei há anos. Devem ter achado uma ficha sem cancelar no fundo de alguma gaveta e resolveram fazer uns cobres nela. Como o valor era pequenino eu preferi pagar.

Quando um conhecido se aproxima dizendo “preciso falar com você em particular”, sempre é para pedir a minha contribuição (monetária) para alguma causa. Nunca algum me chamou para dizer haviam contribuído para a minha causa. Todas as vezes em que tentei buscar apoio na religião, encontrei o carnê dízimo antes de topar com alguma dádiva divina. Não sei o que Deus espera, mas seus profetas esperam que eu pague pedágio para sentar no banco e cantar o hino. Tanto assim que já cheguei a concluir que não quero mais religião. Já que a graça não é de graça, eu fico com o que dá para comprar, ainda que sem graça.

As únicas pessoas que chegaram a me dar alguma coisa foram os meus familiares, mas eles, obviamente, só me deram o que eles próprios haviam antes comprado com o seu trabalho. De forma que isso não invalida o fato de que nada existe em minha vida, hoje ou ontem, que não tenha vindo com cheiro de suor, ou com ardência nos olhos de noites viradas a ler.

Causa-me espanto, considerando quem eu sou e esses valores que carrego desde antanho, que tanta gente viva ativamente a esperar pela loteria. Não falo de pessoas que ocasionalmente arriscam um bilhete, mas de gente que chega a fazer planos para depois de ganhar, gente que visita no sábado a imobiliária para ver preços de casas pensando no sorteio de logo mas à noite. Bem, talvez não chegue a tanto, mas deve ser bastante grande o número dos obcecados com sorteios, visto que este é um dos três assuntos predominantes na Internet e ganhar coisas de graça (honestamente ou não) é a razão de ser da maior parte das mensagens de correio eletrônico.

Enquanto digo isso, analisando friamente, chego a uma conclusão curiosa: se formos usar o spam como uma ferramenta para medir o que as pessoas são e pensam, temos de concluir que os grandes e mais prementes problemas da humanidade são, além dos sorteios, disfunção erétil, pênis pequeno, viúvas indefesas de milionários nigerianos, criancinhas americanas morrendo com câncer e a eterna e insaciável carência de Jesus por mais amigos.


11
Set 11
publicado por José Geraldo, às 21:17link do post | comentar | ver comentários (5)

O sucesso não é algo que cai do céu, não é algo imponderável, não é um privilégio para escolhidos. Existe uma fórmula para chegar até ele e obter o que você deseja só depende de você. Para isso você precisa seguir os passos de quem já chegou lá, de preferência os de quem está chegando lá atualmente. Aprenda a ser bom, seguindo os melhores.

Este texto não pretende ser infalível, mas contém dicas seguras para você que não vê a hora de ter seu livro nas prateleiras das grandes livrarias e sua história adaptada para o cinema ou, modestamente, em uma mini série da Globo. O Prêmio Jabuti e um convite para a FLIP podem estar ao seu alcance, basta querer.

A dica mais importante é a que já está escrita um pouco acima: junte-se aos bons para ser um deles. Como se diz popularmente: quem se mistura aos porcos, come lavagem. Você não quer lavagem, você quer caviar de esturjão do Mar Cáspio acompanhado por Romanée Conti.

Quando você vai construir uma casa, podendo escolher, você não vai fazê-la no brejo, nem na beira do rio, nem em um barranco pedregoso e nem no meio do nada. Sua obra literária é a sua “casa” no mundo das letras, construa-a no melhor terreno que puder. E o melhor “terreno” é aquele que fica nos melhores bairros, vizinho dos bons nomes. A seguir temos uma lista de excelentes temas para o seu trabalho. Muita gente está ganhando dinheiro nesses “ramos”, então você não tem como errar.

Vampiros
Por razões óbvias
Lobisomens
Você provavelmente os incluirá se tiver escolhido o item anterior, mas eles também podem funcionar muito bem sozinhos, ou acompanhados de outros personagens
Uma garota solitária que convive com garotos bonitos
Idealmente essa garota terá passado por alguma circunstância triste, que a obrigou a viver em um lugar onde há tantos garotos bonitos
O cara mais bonito da escola se apaixona pela garota esquisita e/ou impopular
Possivelmente ela pertence a uma minoria étnica, tem algum tipo de relação com magia, é uma espiã alienígena ou então possui algum tipo de raro defeito físico ou dote
Um homem e uma mulher que se odeiam mas são forçados a permanecer juntos por um certo tempo e acabam se apaixonando
O motivo de ficarem juntos pode ser uma aposta, um naufrágio, uma catástrofe natural, uma invasão alienígena ou, idealmente, um feitiço
O clássico conto de fadas da princesa
No qual o príncipe se apaixona por uma garota plebeia inteligente, bonita, simpática, cheia de personalidade mas “comum” demais para os padrões da família real
Encontros amorosos em hospitais, necrotérios, cemitérios, igrejas, castelos abandonados, necrópoles arruinadas ou lugares assombrados
Afinal, nada é mais romântico do que a proximidade com doença, morte, sujeira, germes e… fantasmas, bruxas, duendes, lobisomens!
O amor do aluno pela professora, ou da aluna pelo professor (ou vice-versa)
Apenas tenha o cuidado de evitar uma diferença de idade maior que dez anos (isso seria bléargh!) e ambos têm de ser bonitos (afinal, professores são quase todos jovens e bonitos)
O amor por um fantasma
Além de todas as vantagens da história romântica tradicional, esta ainda tem um plus: devido à impossibilidade de contato físico entre os pombinhos, a história será considerada “segura para todas as idades”
A paixão da vítima pelo sequestrador
Isso não é uma condição psicológica e nem uma estratégia de sobrevivência, é amor do mais puro e verdadeiro
A paixão súbita entre dois amigos
Essas coisas acontecem o tempo todo, então ninguém vai achar estranho. Mas para dar mais realismo à história os dois têm que ser bonitos, bem resolvidos e sem preconceitos. Um deles ser famoso ajuda a tornar a história mais quente.
Super poderes
Nada mais interessante do que ler sobre pessoas comuns que ganham super poderes e resolvem todos os problemas do mundo. Isso inclui garotos sofridos que descobrem que são especiais em um universo paralelo ou garotas sofridas que descobrem ter o poder de matar ou destruir com as suas palavras
Cartas de amor
Pessoas apaixonadas escrevem cartas o tempo todo (e guardam cópias para futura publicação)
Fan fiction
Não são só os fãs da sua série de mangá favorita que vão se interessa em ler os “episódios perdidos” que você criou: todo mundo vai querer ler
Casamentos arranjados
Mas cuidado: no decorrer da história os noivos devem apaixonar-se de verdade e enfrentar uma série de inimigos que vão tentar separá-los. Um desses inimigos será o homem por quem a mocinha pensava estar apaixonada antes de casar-se. O noivo em hipótese alguma forçará a noiva a consumar o casamento, mas será paciente e atencioso até cativá-la
Escrever textos de auto ajuda ensinando os outros a fazer coisas
Porque o mundo está cheio de pessoas que gostam de seguir o que os outros fazem ou mandam fazer

Caso a sua obra não se baseie em nenhuma destas histórias você precisará se acostumar com a ideia de que será pouco lido e receberá poucos comentários. Também ganhará pouco com os cliques no AdSense e dificilmente receberá uma carta de uma grande editora estrangeira se oferecendo para traduzir e publicar sua heptalogia mediante um adiantamento de quinhentos mil dólares pelos direitos do livro um e mais 250 mil a cada novo livro completado.


07
Set 11
publicado por José Geraldo, às 15:57link do post | comentar | ver comentários (3)

Reza uma lenda urbana que um certo cantor gaúcho certa vez entrou em um boteco e encontrou um palhaço comendo uma coxinha com Coca-Cola. Um palhaço desses que animam festa infantil e vendem balões na praça. Dizem que o famoso cantor, bêbado ou drogado (sabe-se lá), implicou com palhaço dizendo-lhe: “Ei, palhaço, faz uma palhaçada para a gente aí”. O palhaço, talvez já de paciência esgotada por aguentar crianças, ou por não ser a primeira vez que lhe provocavam, deixou a coxinha sobre o balcão e sentou a mão na cara do cantor, que saiu rodopiando e caiu de cara na calçada, para gargalhadas gerais dos frequentadores do lugar, e arrematou: “Sou palhaço para quem me paga.”

Esta história — verdadeira, segundo juram os alfarrábios da música brasileira — encerra uma importante moral, aliás, duas importantes morais. A primeira é que as pessoas não costumam ser em sua vida pessoal a mesma coisa que em sua vida profissional. Aquele palhaço era um anjo de paciência com as crianças porque ganhava a vida suportando-as, mas não tinha nenhuma obrigação de ser paciente com bêbados, mesmo que famosos ou pseudo-famosos. A segunda lição é que é uma ofensa pedir ao profissional que faça de graça para você algo que ele faz por dinheiro. O palhaço ganhava a vida fazendo palhaçadas, mas cobrava por isso. Fazer uma palhaçada para o cantor ver seria ridículo.

Acredito que todo profssional tem a sua dignidade, mesmo aqueles a que as pessoas costumam dar valor — como palhaços e escritores. Seja lá o que for que o sujeito faça para ganhar a vida, se não é crime e não faz mal a ninguém, é um meio honrado de ganhar a vida. Merece respeito. Não é porque você pinta a cara com uma maquiagem engraçada que você passa a ser uma pessoa inferior. E nem porque sua arte é ingênua e aparentemente fácil (digo aparentemente, porque não é realmente fácil fazer uma criança feliz).

Mas em geral as pessoas tendem a achar que as pessoas que fazem arte não precisam ou não estão interessadas em dinheiro. Pedem uma “palhinha” para o amigo músico, acham feio o amigo escritor querer vender-lhes o seu livro em vez de dar de presente, querem que o humorista conte suas piadas na mesa do bar. Dizem que o falecido comediante Bussunda certa vez protagonizou um caso desses, ainda no começo da carreira, quando a sua fama de mal-humorado ainda era pouco conhecida. Um parente de um amigo a quem foi apresentado pediu-lhe para ver se ele era mesmo engraçado, pediu-lhe que contasse uma piada. Bussunda se prontificou a contar a piada, mas antes pediu licença ao novo conhecido porque precisava de um favor. Sabendo que o sujeito era médico, começou a descrever-lhe uma série de sintomas e a pedir-lhe opiniões sobre medicamentos. O homem o interrompeu dizendo que não poderia dar uma resposta ali no palco e o convidou para ir ao seu consultório. Bussunda, então, retrucou que não poderia fazê-lo rir ali e o convidou para ir assistir ao espetáculo que estava fazendo (“A Noite dos Leopoldos”) ou comprar um dos livros que fizera ou então assistir ao programa na televisão (na época acho que ainda era o “Dóris Para Maiores”).

Essas histórias me chegaram, todas, por e-mail. Enviadas por conhecidos, alguns escritores outros não, quando chegou-lhes ao conhecimento que eu estou com meu primeiro livro publicado. Alguns ainda me criticaram por publicar quase tudo que escrevo neste blog.

Se você vendesse salgadinho na rua, não sairia dando quibe de presente. Mas você escreve ficção, e fica distribuindo de graça no blog. Você não deveria dar de graça aquilo que você tem para oferecer.

Tudo isso me faz pensar, especialmente considerando a ameaça que a internet realmente representa para o futuro da arte. Um músico pode dar de graça as suas gravações e tentar viver de suas apresentações ao vivo. Mas se eu dou de graça as minhas “escreveções”, onde vou me apresentar ao vivo como escritor para ganhar a vida? Aliás, o que seria a apresentação ao vivo de um escritor, seria eu me sentar na praça com um laptop e escrever as histórias das pessoas que passarem? Alguém vai parar para ver? Alguém vai pagar?


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