Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
20
Jan 13
publicado por José Geraldo, às 22:42link do post | comentar
Há momentos na vida em que nos surpreendo com coisas simples, quase a ponto de algum «suor dos olhos» me embaçar a visão. Sou do tipo emotivo a ponto de não gostar de filmes de guerra para não ver carnificina, mesmo que fictícia, e costumo achar finais felizes para meus personagens. Quão mais emotivo não sou quando me deparo com pedaços de minha própria memória recuperados por pessoas com quem interagi!

Há poucos minutos vi na barra lateral deste blogue um link para o blogue parceiro «Chicos Cataletras», um e-zine literário de minha cidade natal, Cataguases. Ali estava o chamado para um mergulho em meu passado: a Revista Literária Trem Azul, de 1997.


Caro leitor, é até complicado controlar esses borbotões de lembranças. Eu tinha 24 anos, muitas ideias e hormônios, muita ingenuidade na cabeça e nenhuma experiência de mundo. Fiz uma revista literária em parceria com o meu amigo Emerson Teixeira Cardoso. Nós dois no conteúdo, com a ajuda de outro amigo meu, o Salvador Márcio (ah, Sassá, saudades daqueles nossos papos sobre música na varanda da casa dos seus pais, bons tempos aqueles!). A revista foi inteiramente digitada no Word 97 (o último grito em termos de edição eletrônica da época) e fotocopiada digitalmente em 100 exemplares pela extinta Tipografia Monteiro. Custou exatamente 300 reais a impressão, o que significava que, pelo preço de capa, teríamos 100 reais de prejuízo se vendêssemos TUDO. Bem, conseguimos alguns patrocínios (70 reais no total, se não me engano) e não, não vendemos tudo.

Mas esse singelo trabalho, adornado por nossas inocentes obras e por colaborações de amigos próximos (Waltencir Oliveira, Antônio Jaime) ou distantes (Ronaldo Cagiano), nos levou longe. Tivemos a ousadia de mandá-lo para gente de toda parte. Até para Cuba, Espanha, Itália, Argentina e Estados Unidos. Conseguimos contatos com escritores, chamamos a atenção a ponto de o número dois crescer imensamente. Esse foi nosso erro.

Contando com as vendas e os patrocínios, tivemos apenas 50 reais de prejuízo. Com a inflação adicionada isso daria uns 125 reais em dinheiro de hoje. Mas a ideia de crescer rápido nos fez ter prejuízos grandes com os números dois e três, o que impediu que a revista se estabilizasse.

Duas coisas curiosas sobre esta revista. A primeira é que ela parece bem mais bonita e agradável do que os números seguintes, feitos com mais «profissionalismo». A segunda é que eu não possuo esse número em meu arquivo pessoal. Sobreviveu apenas um exemplar, no arquivo pessoal do Emerson, isso se ninguém a quem a gente a enviou tiver guardado. Pode ser a revista literária mais rara do Brasil!

Esta revista teve uma linda capa desenvolvida a partir de uma pintura  em estilo naïf feita por uma garota natural de Astolfo Dutra, chamada Daniela (por onde andas, ó Daniela?). A pintura monocromática (preto e branco), em guache sobre papel canson, não existe mais, a menos que o Emerson a tenha salva em seus arquivos também. Se ele não a tiver, resta dela apenas este testemunho na capa da revista.

Como eu não tenho esse exemplar comigo, não tinha (até ontem) acesso ao original de meu ensaio «Literatura e Consciência» (meu ato inaugural de rebeldia, ao atacar o Concretismo e o elitismo de nossa literatura). Cheio de marxismo cultural e de ingenuidade em estado bruto, este texto certamente não seria escrito por mim hoje (embora eu continue cheio das mesmas coisas que o inspiraram), mas mesmo assim eu queria muito tê-lo no meu blogue. E graças à iniciativa do Chico Cataletras eu poderei tê-lo.

18
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 10:00link do post | comentar

Este post foi escrito originalmente no sábado, mas agendado para hoje, domingo, para não encavalar com o outro que já havia sido escrito ontem. Mas tive de escrevê-lo logo após porque o assunto era urgente, não podia ficar para hora melhor, não havia hora melhor. Ontem, sábado, assisti de novo uma peça perdida de meu passado: o dia em que entrevistei Andy Latimer.

Vamos por partes. Andy Latimer, para quem entende de rock progressivo, é um dos nomes mais queridos e importantes da história do gênero. Guitarrista, flautista, vocalista principal e único membro permanente do grupo «Camel», ele é uma lenda viva da música, embora não seja tão famoso quanto outros que tiveram mais sucesso nas paradas. Andy Latimer esteve em turnê no Brasil no ano 2001 e uma das paradas da turnê foi em Cataguases. Sim, você leu certo. Cataguases recebeu um show de um dos maiores grupos de rock progressivo de todos os tempos, lá no Cine Edgard. E eu entrevistei Andy Latimer. Se você consegue acreditar que o Camel esteve em Cataguases, talvez consiga crer que eu fiz mesmo a entrevista.

A loucura foi responsabilidade de Rodrigo «Nômade» Rocha, empresário cataguasense, proprietário da Voltage, extinta loja de discos onde, por muito tempo, eu deixava meu dízimo (mínimo de 10% do salário gasto comprando obras primas da música). Rodrigo descobriu que trazer artistas de rock progressivo renomados não era difícil: além do cachê ser razoavelmente barato, eles em geral eram pessoas acessíveis e dispostas a aventuras, como encarar horas de estrada para ir tocar em lugares obscuros no interior do Brasil.

Infelizmente pouca gente acreditou na época. Sei disso porque ajudei a divulgar o evento e quando eu começava a falar muita gente achava que eu estava brincando. Mas Latimer veio a Cataguases, hospedou-se no Bevile Hovel com a banda, andou a pé pela rua desfilando seus famosos pés tamanho 46 (motivo do apelido “Sasquatch”). E na noite de 22 de março, às 21h00, subiu no palco do Cine Edgard para mais de oitenta minutos de puro delírio musical na presença de uma platéia de cerca de 100 pessoas mais ou menos (que nem chegou a dar metade da lotação).

Acredito que se Rodrigo morresse sem ter feito mais nada na vida ele já teria deixado algo para ser lembrado: levar o Camel a Cataguases foi uma realização estupenda. Feita na base do puro amor à música, sem pensar em ganhar dinheiro, na base do amadorismo mesmo. Isso é algo que deve dar orgulho. Eu, por exemplo, tenho orgulho de minha pequena parte desempenhada: fiz o cartaz, o fôlder (cuja frente, contendo um autógrafo de Latimer, ilustra esta postagem) e fiz uma entrevista com Latimer, que tenho agora transcrita em DVD a partir do surrado VHS que guardei por onze anos na gaveta — e que um dia vou postar no YouTube.

Claro que a entrevista ficou uma porcaria. Eu não tenho boa dicção (nem em português, quanto mais em inglês), não sou repórter, não tinha nenhum roteiro prévio e jamais aparecera na televisão. Então, de repente, eis que me aparece uma equipe da TV Minas que ia fazer uma reportagem sobre o evento. Eles tinham vindo sem intérprete e precisavam de alguém para fazer o programa. Alguém me indicou como um «carinha que manja muito de inglês» e eu, num acesso desses de insanidade que tenho de vez em quando, topei a parada. Não havia roteiro, havia quinze minutos para o fim da passagem de som. Rabisquei algumas perguntas em um pedaço de papel qualquer, com sugestões de pessoas que estavam por perto, passei o pente no cabelo mal e mal e me sentei ao lado de Andy para a entrevista, tentando parecer natural, tentando ignorar a luz forte dos refletores e a presença incômoda daquela luzinha vermelha da câmera, que indicava que estavam me gravando.

Andy percebeu o amadorismo da situação e deve ter se perguntado onde, diabos, estava com a cabeça quando topara aquele show, mas mesmo assim concedeu-nos vinte e cinco minutos, respondendo a perguntas que já devia ter respondido cem vezes ou mais em toda a vida. Mas algumas pessoas me disseram que eu fui bem, apesar de gaguejar várias vezes e ter congelado por dez segundos em certo momento. Fui bem porque resisti a tietar e consegui interagir com Andy, mudando as perguntas de acordo com o contexto das respostas. No fim, apertei a mão de meu ídolo e fui pedir autógrafos.

Esta é uma das histórias que levo pela vida toda, como demonstração inequívoca de que temos de estar preparados para as oportunidades que aparecem, sem medo da luzinha vermelha acesa, sem medo de parecer ridículo como o meu cabelo despenteado.

Naquela noite o Camel tocou com:Andy Latimer: guitarra, vocais, flautaColin Bass: contrabaixo, vocaisGuy LeBlanc: tecladosDennis Clément: bateria

Não tenho o set list, mas sei que o bis foi “Lady Fantasy” (vídeo compartilhado abaixo, com muito medo do ECAD).

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29
Jan 12
publicado por José Geraldo, às 11:50link do post | comentar | ver comentários (1)

Há algumas semanas descobri que o meu amigo Flávio Sousa, pela primeira vez em anos, resolveu abrir um blog e divulgar seus escritos. Para alguém que é vocalista de grupo musical seria natural fazer poesia, mas ele é ficcionista — e dos bons. Pena que seja tão tímido para mostrar suas histórias, e pena ainda maior que escreva tão bissextamente. A descoberta me excitou com a possibilidade de avaliar como anda evoluindo a escrita do meu amigo, por isso lhe mandei um e-mail perguntando-lhe se ele aceitaria que eu fizesse um comentário sobre seu novo conto.

Flávio de Sousa é um jovem (já nem tanto, mas sempre mais do que eu) músico e escritor mineiro. Mineiro de Cataguases, como poderia enfatizar Washington Magalhães1. Conheço-o pessoalmente desde há tanto tempo que nem me lembro direito quando, mas ainda me lembro da circunstância: ele era um rapazola magro, espinhudo e usava óculos. Líamos na Biblioteca Municipal de Cataguases e estudávamos na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Ele ficou sabendo que eu estava organizando uma revista literária e me procurou com textos. De lá para cá continuamos amigos, embora raramente nos vejamos. Flávio é uma dessas pessoas das quais você não precisa de nenhum motivo para gostar, você simplesmente começa a conversar e percebe que o papo flui, que as ideias são interessantes e por isso, naturalmente, você acaba entornando várias cervejas para regar a história, sem ver o tempo passar. Faço questão de dizer isso porque jamais um de nós salvou a vida do outro ou lhe fez qualquer favor: nossa amizade existe porque simplesmente os santos combinam. Amizade de verdade é assim.

Atualmente Flávio é vocalista de um grupo de heavy metal chamado Spectrum. Como eu gosto do gênero, ele imaginou que eu gostaria de conhecer o seu trabalho. Por isso, tão logo o grupo gravou seu primeiro CD, em 2010, ele fez questão me presentear com um exemplar. Na época eu me senti constrangido com o presente porque me lembrava do desastre que fora o meu comentário sobre um conto dele, anos antes (mais sobre isso a seguir). O CD me queimou nas mãos quando o peguei porque, obviamente, Flávio queria minha opinião. Porque, obviamente, a minha opinião tinha que ser sincera, pois eu não acho honesto com um amigo mentir para agradar. E eu tinha receio de que minha crítica pudesse chateá-lo, como o episódio do conto chateara.

Essas dúvidas, porém, se dissiparam quando ouvi a música. Apesar da produção não ser a melhor possível (a voz dele ficou em alguns momentos pisoteada pelo peso das guitarras), o som é bastante limpo e claro para que se possa avaliar a qualidade das composições. Pena que são só quinze minutos de música. Não foi um sacrifício ouvir o CD, muito pelo contrário. Até o ripei e coloquei na minha coleção de música digital. Apesar de não ter gostado muito da primeira faixa («Cuidado com o Diabo») por achar a letra pueril demais e por ser justamente aquela em que a voz do Flávio ficou pior, as outras três são interessantíssimas, especialmente «O Irolevo», que é algo totalmente inesperado para uma banda de heavy metal, gênero cujos praticantes valorizam mais a mitologia nórdica, celta ou greco-romana. Trata-se de um rock pesado baseado no folclore brasileiro! É uma canção que se destaca das outras três, pela melodia mais elaborada, pelo vocal mais entregue. Deixo para a perspicácia do leitor descobrir o que significa o título.

Pois bem, na época eu não tive dúvidas em dizer ao meu amigo que o disco tinha ficado bom. Em outros tempos, talvez a banda tivesse até potencial para chegar ao sucesso. Mas hoje… se ao menos eles fossem mulheres e tivessem bundas bonitas! Como fazer sucesso fazendo música sem falar de sexo, beber até cair, chifre de namorada ou «pegação»? O resulto é esse que está aí: no ano de 2011 somente uma entre as 50 canções mais tocadas foi do gênero rock'n'roll. Respeito muito o talento dos caras do Spectrum, mas é uma pena que o mundo de hoje não respeite.

Como já disse antes, houve uma vez em que comentei um texto do Flávio, na melhor das intenções, e acabei «pegando pesado» demais. Nem eu nem ele tínhamos a maturidade que temos hoje para lidar com estas coisas, mas ele, pelo menos, já tinha a maturidade de não deixar uma coisa dessas ficar no caminho da amizade.

O texto em questão era um conto sobre uma visita a uma casa abandonada. A casa era real, um prédio histórico localizado no centro de Cataguases, Minas Gerais, recentemente demolido em nome da especulação imobiliária, quando deveria ter sido restaurado pelo seu valor histórico.2. Lembro-me vagamente, não retive nenhuma linha do texto propriamente dito. Apenas me recordo que era a história de dois jovens que, para pagar uma aposta, passavam a noite na casa, que tinha a fama de mal-assombrada, aproveitando o tempo para explorar o lugar, tecer comentários sobre o tipo de gente que fora responsável por aquela construção e nela vivera etc., enquanto evitavam chamar a atenção dos vizinhos ou da polícia, que os prenderia sob suspeita de atos obscenos ou consumo de drogas.

Minha reação diante do texto foi de espanto. Gostei muito do modo como o Flávio organizou a história. Impressionou-me particularmente sua descrição do interior da casa e o modo como conseguiu fazer com que fosse interessante a narrativa de dez horas sem nenhum acontecimento fora das imaginações dos personagens. Foi narrando esta impressão que eu comecei a responder, via e-mail, o pedido de comentário que o meu amigo fizera. Porém, para ser honesto, era preciso também apontar as falhas do texto. Para um autor que escreve a intervalos irregulares, o Flávio obviamente escreve bem, bem demais. Mas a falta de treino cobra o seu preço na forma de tergiversações excessivas, que às vezes cansam, parágrafos inteiros que ficam supérfluos, erros de pontuação ou de ortografia etc. Talvez o meu rigor em enumerar as falhas tenha assustado o meu amigo, que ficou anos sem me mostrar qualquer coisa que tivesse escrito. Temo até que ele tenha ficado anos sem escrever.

No dia seguinte Flávio me respondeu, simpaticamente como sempre, acrescentando a parte final do conto, que ainda estava inédita (foi publicada no decorrer da semana que está acabando). Copiei então as partes que já estavam no blog, acrescentei a parte final, montando o texto todo em uma sequência, como prefiro ler, e dediquei cerca de quarenta minutos a lê-lo e entendê-lo.

«Furo no Futuro» é uma história difícil de classificar. Certamente não é um conto realista, mas não é exatamente nem fantasia e nem ficção científica. Prefiro dizer apenas que é uma história fantástica (use os sentidos que quiser para a palavra) sobre um caso de dopplegänger (não foi na Wikipedia que eu aprendi essa palavra, mas você a encontra muito bem explicada lá).

Como toda boa história fantástica, a explicação não é óbvia. Precisei ler duas vezes para achar que entendi. Talvez uma terceira leitura me traga uma terceira opinião. Diferentemente do primeiro texto do Flávio que eu li, neste acontece muita coisa, e em um ritmo tão frenético que é até difícil assimilar. Os cortes narrativos, com mudança de tempo/espaço/narrador (ainda que uma boa parte da ação ocorra em flashback), levam o leitor em ziguezague, como as imagens de um clipe.

Narrativamente falando, Flávio continua seguro. Talento ele tem, isso fica óbvio dentro de poucos parágrafos. Infelizmente, porém, o texto não me parece uma obra acabada. A impressão de provisório se instala a cada cena, culminando em três pontos-chave da história.

No diálogo entre a personagem Cláudia e sua tia (aqui chamada «Drica», sem qualquer explicação para um tratamento tão incomumente informal entre tia e sobrinha) as falas são introduzidas pelo que parecem ser marcações de teatro ou indicações de um rascunho. No diálogo entre o personagem Tales e o delegado, além da repetição do problema das introduções de diálogo, ainda temos a construção apressada da cena, que falha em produzir o necessário clima de suspense. A cena final, por sua vez, embora seja bem sucedida em explicar a natureza do fado que sobreveio ao quieto Tales, falha no efeito de embasbacamento que deveria provocar no leitor. Ou eu estou sendo muito rigoroso nesse ponto, possivelmente.

Gostaria de ressaltar que a questão das marcações de teatro pode não ser um problema, se o texto no geral assumisse uma ousadia narrativa e tentasse se organizar de uma forma diferente da narrativa tradicional. Só coloquei as marcações como um problema porque estão em desacordo com a estrutura geral do texto.

É sempre difícil, para mim, comentar a obra de outro escritor amador como eu, porque sempre me vejo tentado a observar de que maneira diferente eu mesmo teria organizado a história. Não é diferente neste caso: eu certamente teria disposto as cenas em uma ordem muito diferente. Não necessariamente melhor, mas diferente. A cena de Cláudia na ponte poderia abrir o texto de forma mais eficaz, em minha opinião, do que as tergiversações sobre o medo. O diálogo entre ela e sua tia, bastante reduzido ao essencial, seria dividido em duas partes, uma logo ante da cena de sangue e outra ao final. O problema com a minha ideia é que ela tornaria desnecessário o aspecto fantástico — e isto, talvez, matasse o próprio sentido da história, a motivação que levou Flávio a escrevê-la. Acontece que somos pessoas diferentes, com valores diferentes, com objetivos diferentes. Naturalmente produzimos obras diferentes e eu não posso julgar a obra dele pela semelhança com a minha. Na cabeça de Flávio, o verso de Raul Seixas tem uma importância tão grande que ele o usa como epígrafe (aliás, o motivo de eu ter pensado em usar a cena da ponte como abertura do texto se deve ao fato de a citação do Raul aparecer antes dela). Na minha cabeça o conflito pessoal de Tales seria mais importante e Cláudia, apenas um instrumento do narrador para evitar a onisciência. Se eu reescrevesse o conto ele seria diferente, não necessariamente pior ou melhor, apenas diferente — e não teria aquilo que o torna especial para o Flávio.

Por essa razão, em vez de fazer recomendações sobre a estrutura narrativa propriamente dita (no máximo aludo às escolhas que eu teria feito, deixando claro que o faço sem nenhuma pretensão), prefiro avaliar o impacto do texto sobre o leitor. Acredito que a finalidade de uma obra literária não é a perfeição absoluta, «parnasiana», mas esse efeito que produz sobre o leitor e o muda, de alguma forma. Quando um texto sucede em fazer com que o leitor pense — o que é cada vez mais difícil hoje, por culpa do leitor, não do texto — é preciso reconhecer o seu valor. Eu pensei muito lendo «Furo no Futuro», mas percebi que poderia ter pensado mais, que poderia ter ficado mais «encucado» com as coisas que li (ou que não li, por estarem nas entrelinhas).

Por isso minha única recomendação ao autor é que madure mais o seu texto, que pratique mais. O talento está lá, em estado bruto e pulsante. Falta a segurança. Se a escrita de Flávio fosse uma bicicleta ele a pedalaria com ziguezagues ocasionais, perdendo um pouco de embalo nas subidas e freando com excessivo cuidado nas curvas. Mas um pouco mais de prática lhe permitirá andar quase o tempo todo em linha reta, ter força nas pernas para aguentar as subidas e coragem para entrar inclinado nas curvas, sem ter de frear. Eu gostaria muito que ele se dedicasse a esse treino, especialmente por causa de textos como o mini-conto «Reencontro», que saiu na revista «Verbo» e que ele não publicou ainda no blogue. Naquele texto, muito mais do que neste, a força da escrita de Flávio rasga e grita seu espaço na cena. Mas estou sendo justo ao cobrar isso de um cara que já demonstrou um talento excepcional em outra arte?

1 Em recente conversa, regada a generosas doses de vodca com gelo, o escritor cataguasense Washington Magalhães, mostrando-me na capa de sua revista, Tic-Tac, as reproduções das capas de mais de uma centena de obras literárias escritas por autores nascidos na cidade, comentou que em quase todas elas os autores, ou seus prefaciadores, fizeram questão de usar a expressão mineiro de Cataguases. Para Magalhães, esta insistência indica duas coisas: primeiro, um entendimento de que os mineiros de Cataguases não são exatamente como os outros mineiros, precisando ser deles diferenciados e segundo, uma espécie de «grife» literária que o município adquiriu desde os longínquos tempos da Revista Verde. Para mim a expressão não tem nada demais e é apenas uma maneira convencional de se aludir à origem do autor, comum em qualquer biografia. Como sempre acontece nesse tipo de discussão, não se chegou a um acordo, mas bebeu-se bastante.

2 Cataguases é uma cidade curiosa, onde primeiro demolem e destroem tudo quanto há de bonito ou digno de nota, depois querem atrair turistas para ver seu «patrimônio histórico». Em minha curta vida tive a dor de acompanhar impotente a destruição de pelo menos quatro prédios belíssimos que havia no centro da cidade, todos substituídos por construções totalmente desprovidas de estética, planejadas por um arquiteto sem imaginação e executadas em nome da grana bruta e absurda, que terraplena a beleza para abrir caminho no mundo.


26
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 15:24link do post | comentar
Notas para minha participação na mesa redonda sobre o tema “A embriaguez como inspiração artística ainda se justifica?”, ocorrida no dia 11 de novembro de 2011 no III Festival Literário de Cataguases. Esta postagem ocorre com tamanho atraso porque, em virtude de problemas que eu estava enfrentando com o meu computador, perdi duas vezes o texto revisado que já estava quase pronto para postar.

A Licença Poética basicamente significa que o autor tem a prerrogativa de escrever como queira, sobre o que desejar. Então o debate se o artista de hoje ainda pode tomar a embriaguez como inspiração me parece um pouco fora de lugar: é óbvio que ele pode. Talvez o que a gente deva discutir seja outra coisa: a relevância de uma abordagem assim autodestrutiva. Porque embriagar-se é uma forma suave de autodestruir-se. Nesse ponto eu tenho duas opiniões:

Primeira,quanto ao assunto: Não acho que escrever sobre drogas (lícitas ou não) seja tão relevante quanto muitas pessoas creem. Possui uma certa relevância, mas quando um artista se restringe a esse assunto, recai em uma fórmula que já está bastante estabelecida e já tem até mesmo uma tradição. Existe um gênero de «literatura drogada» tal como existe um gênero de histórias de vampiros ou de contos eróticos estilo revista masculina. Ou seja: é uma ilusão imaginar que uma abordagem autodestrutiva possua novidade ou seja uma maneira genuinamente «revoltada» para expressar desencanto com a sociedade e a cultura em que vivemos. Ao fezer isso o autor apenas adere a um gênero, tal como os autores de historinhas de vampiro, ou os magos com seus livros que ensinam a fazer chover. Acredito que o valor da obra não está na «atitude», mas na competência. Bons livros transcendem seus limites e autores realmente talentosos devem ser versáteis, capazes de abordar diversos temas com desenvoltura.

Segunda,quanto à abordagem: Não acho que embriagar-se (seja qual for a química envolvida) seja favorável à produção artística. Um artista bêbado dirige a sua «pena» (hoje de forma metafórica) tal e qual um motorista bêbado dirige o seu automóvel. Você não escreve melhor porque bebe, a verdade é que você certamente escreve pior. Mesmo que consiga escrever coisas interessantes enquanto bêbado, terá conseguido apesar da embriaguez, não por causa dela. Quando pensamos por tal lado, vemos que embriagar-se não é um imperativo da arte, mas algo que brota da personalidade do artista.1 É o artista que se embriga, não é a arte que lhe exige isso.

Tendo feito estas duas considerações iniciais, que praticamente resumem tudo que preciso dizer, passo a fazer alguns detalhamentos também interessantes, embora não acrescentem muito às teses dispostas acima. Não os faço para expandir, mas para reforçar. Mas eu gostaria de desviar ligeiramente o tema desta mesa-redonda. Ligeiramente apenas: o desvio logo voltará ao tema. Prometo.

A Embriaguez Enquanto Reação Alérgica à Cultura

Acredito que todos aqui saberão de algum nome técnico para esta «necessidade» de embriaguez. Nossa sociedade hoje tem um nome técnico e até, talvez, um comprimido, para cada estado de alma possível. Cada indivíduo porta pelo menos um diagnóstico. Cabe muito bem investigar não a droga, não a bebida, não a erva, mas a figura da pessoa que se relaciona com tais substâncias, como e porque. Não investigar pelo lado direto e quase pornográfico, mas pelo lado filosófico. Eu poderia citar aqui alguns autores famosos sobre isso, como Durkheim ou até Proust, mas não desejo tornar este artigo penoso de ler e nem acometê-lo da soberba que aprendi a desprezar nos outros. Limito-me a dizer que há muito tempo é consenso entre cabeças pensantes que o impulso que nos leva à autodestruição é, possivelmente, a única questão filosófica realmente interessante. Dizendo em curtas e brutas palavras: qual o sentido da vida, afinal?

Quando o autor se embriaga ele não está pensando na arte, mas em sua relação com a sociedade. A própria citação de Baudelaire, usada como chamamento para essa troca de ideias aqui é bem explícita: ele dizia embebedar-se para suportar «o horrível fardo do Tempo» que atinge o homem e lhe «quebra os ombros e o curva para o chão». Baudelaire confessa claramente que não é um ideal artístico que o motivava, mas uma espécie de mal-estar social. Não custa lembrar que o poeta foi contemporâneo de Schopenhauer e Nietzsche — e você precisa conhecer esses dois para entender melhor as tentações suicidas das grandes figuras da arte.

É nisso que eu pretendo começar o desvio. Existe um mito fortíssimo, bastante difundido entre nós, provavelmente presente em outros povos também, de que a cultura é uma forma de decadência em vez de progresso. As pessoas parecem pensar que a aquisição de conhecimentos debilita, em vez de fortalecer, desune em vez de unir. Assim, o «homem perfeito» teria de ser alguém «simples decoração», «pobre de espírito».

Este conceito é bem antigo, por isso o chamei de mito. Fazendo uma rápida digressão histórica, vamos lembrar que na mitologia grega havia a figura do profeta cego Tirésias, um visionário cego, vejam que interessante. Ou Cincinato, o rude fazendeiro que salvou a República Romana. Ou Maomé, supostamente analfabeto e autor do Alcorão, o «livro perfeito». Estes homens fortes e simples (sancta simplicitas, dizia um ditado latino) conseguiram impressionar e liderar porque não tinham as hesitações que somente a maturidade traz. A ignorância pode não ser uma bênção, mas ela permite atos de loucura, a que a posteridade chamará de heroísmo.

O contraponto a esse homem «forte» porque simples, sábio porque ignorante é justamente o homem frágil porque culto, louco por ter estudado demais. Quem estuda demais enlouquece, como nos diz a «sabedoria popular». A civilização árabe teria entrado em decadência porque assimilou demais as culturas «decadentes» do mundo helenístico. Li esse absurdo num livro de História. Provavelmente o autor pensou que os muçulmanos teriam dominado o mundo inteiro no século VIII se não tivessem estudado filosofia. Vai saber.

O homem que se torna maduro e culto sofre logo com a descoberta daquilo que já foi chamado de «mal estar da civilização». Como dizia Aristóteles: experimentar é sofrer. Ou, como disse H. P. Lovecraft:

A coisa mais misericordiosa do mundo, eu acho, é a incapacidade da mente humana para correlacionar todo o seu conteúdo. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio aos mares negros do infinito e não nos foi dado viajar para muito longe. As ciências, cada qual puxando em sua direção, até agora nos causaram pouco mais; mas algum dia a montagem do quebra-cabeças de conhecimentos espedaçados abrirá tão terríveis visões da realidade e de nossa horrível posição nela que enlouqueceremos com a revelação ou então fugiremos da mortífera luz para a paz e segurança de uma nova idade das trevas (tradução do autor)

Aquele que aprende, deixa um pouco de si à medida em que incorpora algo do outro, então o aprendizado produz uma incompletude do ego ao mesmo tempo em que o expande com elementos do outro. Esse processo talvez seja o que Marshall McLuhan chamou de «destribalização» e outros chamaram de «desenraizamento». Hoje, mais do que nunca, nós somos criaturas hidropônicas, isoladas da terra que nos deu origem.

Estudar Enlouquece, Aprenda Isso

O fenômeno descrito acima foi percebido muito cedo pela humanidade, que tratou de desenvolver em torno dele um complexo sistema de atenuamento. Ao longo de um processo milenar, surgiu a crença na sobrevivência da alma, surgiram as religiões e seus sistemas de controle, surgiram, cedo, as drogas. É uma vaidade louca tentar acabar com o tráfico de drogas: ele não existiria se as substâncias psicoativas não fossem úteis. Em todas as épocas existiram pessoas que precisavam da fuga, da anestesia, da aniquilação. Em todas as épocas existiram pessoas que precisavam do suicídio. A diferença é que hoje, neste mundo apinhado de gente, onde mal se pode urinar na hora em que a natureza chama, o suicídio deixou de ser um trato pessoal com o destino e passou a ser um fenômeno coletivo, posto que terá testemunhas, herdeiros, sofredores.

Nesse sentido a religião encontrou um terreno fértil para transformar-se em uma força social permanente. Dependendo da época e da cultura, a religião pode dar um sentido ao suicídio, reduzindo o sofrimento da família do falecido, ou pôr um freio no ato, ao dar um sentido à vida daqueles que não veem mais sentido algum. Para que estes processos funcionem é preciso que as pessoas aceitem o pacote da religião, e esta aceitação depende da suspensão da crítica, o mesmo fenômeno que permite ao leitor de uma obra fantástica aceitar, «em tese» e para fins meramente de diversão, a existência de duendes, elfos, dragões ou até deuses. Por isso as religiões e as filosofias têm uma relação conturbada. Em geral os filósofos só aceitam a religião quando eles próprios desenvolvem filosofias que legitimam a religião. A religião, por sua vez, discrimina entre os filósofos aqueles que são tachados de «niilistas» e os condena do alto de seus púlpitos.

O cristianismo, em especial, desconfia da sabedoria, e desconfia com força. Está no Novo Testamento que a sabedoria do homem é loucura para Deus, e vice-versa. Estudar é tornar-se louco aos olhos de Deus. Tornar-se sábio no mundo é afastar-se da salvação. Quem estuda se afasta das respostas prontas dadas pela religião, e no perigoso pântano do pensamento (oh, a horrível liberdade!) pode concluir por valores reprováveis perante a sociedade e seu cão de guarda, o sacerdote.

Sobre estudar demais e ficar doido, nossa cidade teve um personagem mítico,o já falecido professor Geraldo Barbosa, que muitos aqui devem ter conhecido. Não vou dizer que era louco, o que me importa nesse ponto é mais o que diziam dele, do que o que ele realmente era. Diziam que ele, de tanto estudar, teria ficado louco.

No meu tempo de criança havia conhecidos meus, pessoas adultas,inclusive de minha família, que me citavam o Geraldo Barbosa para me convencer que não estudasse «demais». Davam-me como exemplo primos e parentes, que ganhavam a vida já, sem terem grandes estudos,enquanto eu ainda não tinha profissão e nem «futuro» (essa arma abstrata com que os mais velhos atiram nos sonhos dos jovens). O dinheiro adquiriu tal importância entre nós que passou a definir, de forma exclusiva, o sucesso ou o fracasso. Houve uma época em que os homens ricos em dinheiro não tinham poder, mas sim os ricos em terras e em seguidores. Hoje em dia todos os bens somente têm valor enquanto possam traduzir-se em dinheiro — embora, curiosamente, o dinheiro em si seja uma abstração, tal como bem definiu o chefe Seattle, em sua carta ao presidente americano: somente depois que a última árvore for cortada, o último peixe for pescado e o último rio for envenenado o homem branco perceberá que não pode comer dinheiro.

Seria o professor Geraldo Barbosa louco? Machado de Assis, em sua espetacular noveleta O Alienista, já nos mostrou o quanto é tênue e arbitrária esta linha marcada entre a normalidade e o desvio. Mas supondo ainda que fosse mesmo «louco», mesmo que apenas em tese, seria ele louco por ter estudo em excesso?

A Política da Loucura

O povo inculto, de um modo geral, teme e odeia os seus líderes desde há milhares de anos. Desde a Suméria e o Egito, quando a escrita foi inventados, os homens que leem e escrevem são vistos como controladores de forças terríveis, MALÉFICAS. São forças maléficas porque a elite oprime o povo. Logo, as tecnologias da elite, entre elas a escrita e a leitura, são contrárias ao bem do povo. É significativo que ainda sobreviva em nosso meio um filão de filmes de terror focado em Livros Malditos.

Mas o povo precisa de auto-estima, não pode se aceitar como gado. Por isso desenvolve-se a ideia do «preço que a bruxaria cobra». Inicialmente isso era visto como literal: os que se dedicavam aos mistérios deste e de outro mundo eram pessoas distantes, isoladas, malcheirosas devido às experiências que conduziam em suas alcovas. Envelheciam cedo devido às privações de sono e de alimento,enxergavam mal devido a «forçar a vista» em seus livros, diante de velas e cadinhos. Hoje já não se faz alquimia, mas persiste a ideia de que o homem dedicado ao solitário prazer da cultura seria um ser infeliz, amaldiçoado. Salutar e bom é o vigoroso homem do povo, isento da corrupção do passado, cheio da verdade simples e direta que brota da terra.

A figura do artista maldito, degradado, bêbado, drogado etc. nada mais é do que uma variação do Professor Geraldo Barbosa, que estudou tanto que enlouqueceu. Estes artistas têm exposição intensa na mídia, desproporcional até, porque eles atendem a um modelo, a um arquétipo. Com já disse, as pessoas acreditam que a ignorância é «pura», que a sabedoria «corrompe». Então, as pessoas acreditam que o artista é mais natural, mais espontâneo, quando se exibe louco, entorpecido, decaído. Por ser uma pessoa mais «sensível» (seja lá o que for que o povo ache que «sensibilidade» é), o artista seria por natureza uma criatura frágil. Então fecha-se um círculo e pessoas interessadas em ser ou parecer artistas seguem esses modelos de comportamento frágil-drogado achando que se tornam mais artistas por causa disso. É aqui que a frase do Chesterton entra como uma luva. Ou seja, tem gente que acha que é o rabo que abana o cachorro. Há pessoas que acreditam que terão os acertos de uma outra pessoa se copiarem os seus erros.

Já vimos antes que o conhecimento expõe o homem ao confronto com forças que estão além de sua compreensão e que nem todos estão preparados para sair ilesos de tal combate. Voltamos, então, ao tema da embriaguez.

Para mim, tudo o que embota a mente, lícito ou ilícito no Código Penal, tem a mesma função: produzir ignorância artificial. Uma vez que as pessoas, de forma tão prevalente, apreciam a ignorância, o artista se atenua, entorpece, anestesia, a fim de produzir uma obra menos refinada, menos pensada, mais rude, visceral. Todo artista tem que ir aonde o povo está. O artista maldito é a confirmação, aos olhos do povo, que a sabedoria é perigosa, que o conhecimento corrompe. O homem sábio é ambicioso, tenta construir a Torre de Babel, termina confuso.

A concepção do artista como um ser autodestrutivo é uma maneira de desqualificar socialmente. O artista é mostrado como um doidão, não alguém que merece respeito. Isso me lembra um amigo virtual, que postou no Facebook um episódio de sua vida real: quando disse que era músico, lhe perguntaram em que ele trabalhava. Não se concebe que alguém possa ser «escritor», ou «músico», ou «artista». Aliás, na linguagem do povo, «artista» é ator da novela.

No Brasil nós temos um outro interessante paradigma disso. Na sociedade coronelista, que não superamos totalmente, o coronel, geralmente um homem de pouco ou nenhum estudo, contratava serviços especializados de gente diplomada: médico, contador, advogado, engenheiro, professor. Todos lhe eram submissos pela lógica do poder. Então ficava o estigma de que um diploma apenas habilitava o portador a ser subalterno do poder. Posição desejável por homens pobres, mas vista como degradante para os descendentes das famílias quatrocentonas.

Por isso, filhos das classes mais altas, mesmo quando se formavam, preferiam a política: o diploma era só perfumaria, só para não ficarem abaixo de seus subalternos. Exercer a profissão era algo indigno de alguém oriundo de uma família poderosa. Antônio Carlos Magalhães formou-se médico mas jamais clinicou. Quando alguém de origem socialmente alta realmente exercia sua profissão, isso era um sinal de incapacidade ou impossibilidade de manter e expandir o poder herdado. «Pai fazendeiro, filho doutor, neto pescador» — diz o ditado mineiro. Deixar o poder e dedicar-se a uma carreira é uma decadência.

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Não Sejamos Moralistas

Escritores se embriagam. Sim, eles são seres humanos e vivem tudo que os humanos vivem. Sendo humano, dedico-me à viver tudo que é da natureza humana, teria dito um devasso imperador romano. Mas os escritores ainda vivem algo mais, que lhes é peculiar: a experiência da escrita. Quando um estivador, um lixeiro ou um médico se torna alcoólatra, isso não cria um debate sobre estivadores, lixeiros ou médicos alcoólatras. Mas quando as pessoas pensam nos escritores que se drogam (nos artistas, tamem, de uma forma geral), elas logo fazem um «salto lógico» de supor que a embriaguez seria uma característica do ofício. Por isso, creio que talvez seja errado considerar a embriaguez tão definidora de características literárias para que nos dediquemos tanto a ela. O que já dedicamos me parece muito.

A relação disso com a minha digressão sobre o sábio louco e o ignorante vigoroso é que conviver com esse arquétipo é penoso. Há uma série de dificuldades adicionais que o escritor precisa vencer para dedicar-se à sua atividade. Estas dificuldades, por si, podem afastar o escritor do convívio de outras pessoas, porque escrever demanda, principalmente, tempo e silêncio. E parece ser uma característica quase universal das culturas contemporâneas a valorização do ruído, da experiência coletiva. Diante das teletelas reais vivemos nossos momentos de ódio e de amor sempre na companhia do outro, cidadãos de um admirável mundo novo que somos, obrigados a sorrir e a amar quase como por dever cívico.

Então,quando você junta a persistência do arquétipo de que cultura enlouquece, a necessidade de relativa solidão para poder produzir e mais os problemas (psicológicos ou sociais) de que ninguém está inteiramente livre, o que obtém? Se o escritor recair em algum vício você obterá uma série de obras dedicadas ao vício porque, em geral, o grande assunto do autor é a sua própria vida, que ele pode desnudar diretamente em uma autobiografia ou meramente transferir de forma sublimada para cenários de suposta fantasia. Será, porém, que estas obras indicam algum valor no vício?

Uma das características do viciado, do «adicto», como se diz hoje, é negar que seja viciado. Quem tem parente alcoólatra sabe muito bem como inventam desculpas, histórias, explicações. Imagine que desculpas, histórias e explicações não serão inventadas por um alcoólatra que tenha talento com as palavras? Sempre, claro, com o objetivo de glorificar o próprio vício.

Ainda mais porque o vício, sendo algo que pode acometer qualquer pessoa, acaba por servir de traço de união entre o estranho, o homem das letras supostamente elevado e incompreensível, e o normal, as pessoas que vivem vidas naturais, sem preocupações literárias. Papo de bêbado é sempre igual. Beber, então, pode ser uma forma de o escritor mostrar-se acessível, criar uma imagem que o grande público não rejeite. Ele tinha talento, mas tinha uma fraqueza. Ninguém suporta os perfeitinhos. Quer dizer que além de ser rico e talentoso ele também era abstêmio? Ah, alguma podridão ele deve ter!

Perigos Modernos

Existe um outro aspecto a se considerar sobre a embriaguez: hoje em dia ela deixou de ser um ato de contestação. Isso é parte do grande processo de banalização de tudo, fruto de nossa sociedade que produz tudo em escala industrial, inclusive sofrimento e estupidez.

Quando Baudelaire e seus amigos se reuniam nos clubes de comedores de ópio em Paris, eles o faziam como uma afronta à sociedade «certinha» de seu tempo. Eles se sentiam meio mortos naquele mundo de convenções e limites, queriam romper suas amarras e ver coisas novas. Não se sabia, ainda, o quanto as drogas eram ruins. Havia uma certa ingenuidade no mundo, naquela época. Não custa lembrar que até os anos vinte ainda se vendia pastilhas de cocaína e vinho com heroína.

As pessoas foram descobrindo aos poucos que certas substâncias eram perigosas, e reagiram histericamente quando isso caiu no domínio público. Proibiu-se um monte de coisa que não precisaria ter sido proibida, e muita coisa que tinha de ter sido continuou legal. Então a embriaguez voltou à moda. Nada mais contestador nos EUA da Lei Seca do que ser um pudim de cachaça.

O problema é que este aspecto «contestador» da embriaguez perdeu seu sentido. Hoje em dia está tudo normatizado e tolerado, inclusive a rebeldia em nível individual. Você pode se vestir como quiser, tatuar-se aonde quiser, espetar-se com o que quiser, maquiar-se como quiser, talvez até botar um parafuso na cabeça. Então quando você enche a cara, está apenas alimentando mais uma indústria, que é parte do sistema. A rebeldia, hoje em dia, é uma função necessária para a estabilidade do conjunto. A rebeldia idiota, ou seja, a rebeldia do indivíduo isolado. Porque a rebeldia coletiva merece gás de pimenta, cassetetada no lombo e ordens judiciais de reintegração de posse. Enquanto você estiver sozinho contra o Leviatã você tem a liberdade de dizer e fazer muita coisa, mas ao reunir-se diante dele o resultado é todos serem pisoteados.

Veja bem, não estou aqui sendo moralista. Cada um tem o direito de ser o que quiser. Não sou polícia do corpo e nem da alma alheia. O que me incomoda é existir a estética da arte como algo «sujo», do artista como necessariamente alguém que «peca». Não me incomoda porque seja contra isso, mas porque o estereótipo ocupa praticamente todo espaço. Parece que as pessoas acham que o artista é de alguma forma ilegítimo se ele não se tatuar, não brigar com a família,não cometer algum crime, não tiver uma vida antissocial, etc. Esse artista que não agride a sociedade é tachado de «conformista», «nerd», «workaholic» etc., quando não apenas ignorado.

Mas todas estas coisas que alguns artistas fazem não são a arte em si. São idiossincrasias do artista que, muitas vezes, afetam negativamente a arte, mas algumas podem afetar positivamente também. Quantos poetas malditos que se mataram cedo não poderiam ter vivido até uma maturidade muito mais significativa artisticamente? Quantos roqueiros mortos de overdose não poderiam ter feito música ainda melhor se não tivessem partido aos vinte e poucos? Para cada conto de Poe, para cada poema de Coleridge, deve haver uma infinidade de composições de Hendrix.

De fato, são poucos os escritores que bebem para escrever. São muitos os que bebem, claro, mas a ideia de que alguém enche a cara de cachaça e diz, «agora, então, eu estou pronto para escrever» é uma coisa irreal. Escrever exige concentração, coordenação motora, certo domínio dos sentidos. Uma quantidade moderada de álcool, ou qualquer entorpecente, pode não ser suficiente para impedir, mas dificulta. Uma dose maior simplesmente impede o ato criativo. Veja os famosos shows com músicos drogados, aqueles caras cantando com voz arrastada, errando notas na guitarra, tropeçando no palco. Algo parecido acontece com o escritor. Sua voz arrastada é a dificuldade para lembrar vocabulário, seus erros de notas são as omissões de palavras ou pontuação, seus tropeços são as perdas de sequencia lógica.

Minha experiência pessoal com a relação entre a escrita e a bebida foi sempre negativa. Embora eu até tenha escrito textos interessantes sobre a embriaguez, ou até em estado de embriaguez, a verdade é que embriagar-me me retira toda a vontade de escrever. A embriaguez induz à preguiça e abole o raciocínio lógico. Escrita de artista embriagado é como papo de bêbado. Tem quem goste, mas é perfeitamente explicável que tanta gente não goste.

Uma coisa diferente é escrever posteriormente sobre a experiência dita durante a embriaguez. Mas nesse caso a escrita não tem nenhum ingrediente diferente em relação à de alguém que não bebeu, a não ser o assunto, que o autor vai conhecer em primeira mão. Mas é um assunto tão importante assim?

Bebendo Para Ganhar o Nobel

Aí chegamos ao ponto crucial, que é o da anulação do indivíduo, o estágio superior da ignorância. Algumas pessoas, mais do que se anularem, mais do que se estupidificarem, querem cancelar-se definitivamente, querem matar-se. As razões que levam alguém a se matar são tão complexas que vários filósofos dedicaram livros inteiros a isso. Schopenhauer dizia que o suicídio era a única questão filosófica relevante e Durkheim escreveu um famoso ensaio sobre o tema. Hoje sabemos que o suicídio não é uma questão filosófica, mas um problema de saúde pública, que até pode ser tratado com comprimidos, na maioria dos casos.

Mas continua sendo um fenômeno real. E justamente um fenômeno que afeta muito mais as pessoas de certa cultura. Nietzsche dizia que um povo é somente uma maneira que a natureza tem para produzir grandes homens e livrar-se deles depois. Nossa cultura, que produz artistas, malditos ou não, ao mesmo tempo em que lhes dá origem, os devora.

E dos americanos ganhadores do Nobel de literatura somente um não foi alcoólatra ou drogado. Será isto um indicativo de que bebendo se escreve melhor, ou um sintoma da doença cultural do ocidente (e dos Estados Unidos especificamente) que faz as pessoas «sensíveis» tenderem à autodestruição?

1 E sempre precisamos ter muito cuidado com a personalidade do artista pois, como cruelmente disse G. K. Chesterton: temperamento artístico é coisa de amadores.


13
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 20:45link do post | comentar | ver comentários (1)

Tal como no ano passado, compareci ao Festival Literário de Cataguases. Este ano, além de tietar eu também tive a oportunidade de falar umas bobagens com um microfone na mão enquanto alguém filmava para pôr no sítio oficial. Ao meu lado estava Miklós Palluch, que também estreia no romance, como eu, mas — ao contrário deste mineiro interiorano — padece de muito mais cultura, experiência de vida e contatos.

Fiquei bastante feliz de ver que minha campanha de divulgação foi relativamente bem sucedida. Embora tenha atraído apenas aproximadamente 3,5% das pessoas que eu efetivamente contactei, ela me ajudou a ter uma marca estranha: minha noite do Festival teve mais público que a de sábado, que contou com gente de muito mais peso.

Mas comecemos falando do que aconteceu primeiro, que é sempre uma boa e lógica maneira de começar — ainda que, literariamente falando, seja o óbvio.

Miklós Palluch é cineasta, esta é a sua praia. Na literatura ele ainda é estreante, mas estreia com muito mais tarimba de mundo do que eu, e por uma editora que certamente tem mais nome, a Ediouro. Seu romance é mais ou menos do mesmo tamanho (em páginas que o meu), mas oh, quanta diferença em todo o resto.

Estilos quase diametralmente opostos, objetivos idem. Ainda não fui longe na leitura, mas o que ele escreve me parece algo tão realmente alheio, e fresco, que dá até prazer continuar lendo. O velho húngaro escreve com uma secura, com uma sinceridade e com uma clareza que espantam.

Quanto a mim, bem, vocês que me leem sabem que eu sou amante de elipses e metáforas, de jogos, torneios e ardis. Nem sempre consigo completar a cambalhota, às vezes os malabares me caem da mão, mas fico fazendo meu número com graça e ousadia. Miklós não busca isso, a praia dele é outra. Ou melhor, enquanto carioca (mesmo que adotivo) ele realmente sabe de praia. Eu sei de morros e de rios e de ventos e de lendas. Ele escreve claro como o sol do Rio, eu escrevo sombrio como as estradas estreitas e gretas e grotas dos lugarejos de Minas Gerais.

Ver-nos trocar ideias deve ter sido interessante. Ele, descontraído, senhor de si, alguém que parece tanto ter nascido com um microfone na mão que nem sequer o quis usar, preferiu brandi-lo, qual varinha de condão, para encantar os olhos da plateia. Eu, vestido “como um padre”, nas palavras de meu irmão, me sentia pressionado a ser interessante, algo que normalmente não sou. Eu tinha ido lá com medo de parecer didático ou soberbo. Miklós foi ambas as coisas, mas com uma simplicidade que deu inveja…

Falamos sobre um tema espinhoso, que o moderador — Enzo Menta — fez questão de ressaltar que tem até um lugar no Código Penal. Risos na plateia, senha para sermos descontraídos. Naquele momento me arrependi de minha calça social e de minha camisa impecavelmente abotoada. O que falamos não vou detalhar, porque amanhã ou depois, quando me recuperar do desânimo, eu vou postar minhas notas para o debate, acompanhadas de algumas observações inspiradas no que o Miklós disse.

Depois, enquanto autografávamos nossos livros para os presentes, ele veio até mim, fez questão de comprar Praia do Sossego e me pediu uma dedicatória. Imagino se ele sentiu algo em meu jeito ou minhas palavras que lhe sugeriu que devesse ler o que escrevo, ou se estava sendo apenas simpático, algo que, ao que me parece, ele não precisa querer ser. No dia seguinte nos reencontramos e trocamos mais umas palavras. Fiquei com a impressão de que ele é um sujeito que eu adoraria ter como vizinho. Ainda bem que o Rio de Janeiro é “logo ali”.1

O evento seguinte na sexta-feira foi uma mesa-redonda entre os poetas Chacal, Ondjaki e Marcelo Benini.2 O tema entre eles foi que comentassem sobre o aforisma de que “um poeta não se faz apenas com versos”. O conceito fora atribuído pela organização do FELICA ao próprio Chacal, indiretamente concedendo-lhe uma primazia sobre os demais. Primazia que ele, humildemente, tratou de dissolver sacando da sacola as suas notas. Nelas ele leu, para certa surpresa da plateia e do próprio moderador do debate, que a frase era de Torquato Neto e aparecera na obra de Chacal através de uma citação. Antigamente não havia hiperligação.

Benini foi o mais comedido dos três, certamente surpreso pela erudição demonstrada por Chacal. Para espanto de muita gente que o julga sem o conhecer (e acha que ele deve ser uma espécie de porra-louca vazio), o poeta carioca exibiu uma segurança, uma cultura, uma vivência e uma autoridade dignas de um acadêmico. Mostrando-se conhecedor de um amplo período da história literária brasileira, o poeta acabou dando o tom de quase metade do debate, e ainda achou um modo de se defender de uma estocada que eu sem querer lhe dera em meu debate (oh, ousadia).3 Mas quem realmente roubou a cena foi Ondjaki. Muito mais articulado do que Chacal, com sua fala rápida, com seu talento corporal e seu jeito de jovem rebelde, que tanto encantou uma aluna de Letras.4 Ondjaki, porém, preferiu usar sua presença cênica para equilibrar o debate, introduzindo mais temas e evitando que a erudição de Chacal monopolizasse as atenções. O próprio Chacal beneficiou-se disso, pois os temas variaram mais, permitindo que todos brilhassem. Particularmente brilhou o Benini, cujos versos breves e concentrados, de um livro escrito inteiramente sobre pássaros, ofereceu um grande frescor temático.

A noite de sexta terminou com todos bebendo e se divertindo no bar D'Ângelo, mas eu não pude ir, devido ao sono das crianças. Mesmo assim a noite foi rica, pela oportunidade de ouvir assuntos sobre os quais nunca se fala em uma cidade pequena e pelas amizades que fiz, ainda que algumas delas fiquem apenas na memória.

No sábado o auditório estava um pouco mais vazio do que na noite anterior, o que em parte se deveu a concorrência de vários outros eventos que estavam acontecendo na cidade simultaneamente. Fica a dica para a organização do Festival, que no próximo ano ele se realize antes, talvez em outubro ou setembro.

Mesmo assim era um público qualificado, do tipo que ouve com atenção, faz boas perguntas e sabe respeitar as personalidades e as biografias que lá estavam. Às vezes é melhor falar para trinta pessoas interessantes do que para centenas que não fazem diferença.

A primeira mesa-redonda da noite foi com Elias Fajardo e Ana Paula Maia. Representantes de duas gerações diferentes, os dois também possuem estilos antípodas. Elias é alguém que eu entendo melhor: cria do interior, dotado de uma prosa lírica, um falar cantado. Ana Paula é urbana, elétrica, mas antropologicamente interessada no distante, no desértico, no confuso tecido das relações humanas do Brasil profundo. Mas continua urbana, elétrica.

Seus estilos percorreram caminhos muito diferentes. Ele foi jornalista, poeta, pintor, viajante, escritor. Ela foi baterista de uma banda punk, foi criança travessa, foi jovem rebelde. Ele sempre gostou de ler, mas esteve um tempão afastado da escrita. Ela nunca gostou, mas um belo dia, quase que a contragosto, foi mordida pelo mosquito da literatura. Conseguiram fazer com que eu ficasse curioso para ler os seus livros, ambos conseguiram. O do Elias foi mais fácil: ele estava lá à venda. Eu tive foi de ser rápido, porque ele não ficou muito tempo depois que terminou de falar. Alguns minutos de distração e ele teria ido embora sem que eu lhe pedisse o autógrafo. O da Ana Paula eu vou ter que adquirir por outros meios, sem seu autógrafo.

A noite terminou com um debate menos parelho quanto ao tema. Bartolomeu Campos de Queirós e Sabrina Abreu são muito mais diferentes do que quaisquer dos outros debatedores haviam sido. Eu e Miklós somos praticamente de planetas diferentes, mas estamos unidos por opiniões e conceitos políticos que se tocam, embora nossas literaturas não se entendam muito. Os poetas da noite anterior haviam podido dar-se ao luxo de serem diferentes porque poeta é mesmo um bicho estranho, o conjunto deles é um maravilhoso rebanho de gatos e eles se aceitam e se somam quando se atritam com suas opiniões diferentes. Ana Paula e Elias, embora vindos de mundos quase incomunicáveis, aproximam-se pelo universo em que ambientam suas histórias e, acima de tudo, pela erudição que um mostrou ter em relação ao universo do outro.

Nada disso pareceu funcionar muito bem em relação a Bartolomeu e Sabrina. Talvez porque eles fossem, mesmo diferentes demais. Bartolomeu é um idealista, um timoneiro da utopia. Sabrina é uma jornalista. Ele tem um estilo de profeta, ela de analista. Ele fala de um mundo que, sendo idoso, não verá. Ela fala de um mundo que viu de forma diferente daquela que a maioria enxerga. Ele tenta abraçar a filosofia, ela tenta enquadrar um canto da realidade que lhe interessa.

Obviamente fiquei fascinado pelo jeito quase papal com que Bartolomeu expôs, com notável firmeza lógica, as suas opiniões e suas proposições. Porém, identifiquei-me muito mais com Sabrina. Talvez porque ela, ao contrário dele, está mais próxima de mim (embora ele seja mineiro do interior e ela, da capital). Eu sou, como ela, um blogueiro, alguém antenado no presente (embora, ao contrário dela, tenha medo). Além do mais, Sabrina conseguiu falar muito mais de si e de seu livro do que Bartolomeu.  Saí do debate sabendo os nomes de dois livros dela, de suas ideias, de seu estilo, de sua abordagem. Mas consegui não saber o que Bartolomeu escreveu na vida, embora ele obviamente seja uma sumidade em seja lá o que for que faça.

A noite de sábado valeu também pela oportunidade de reencontrar alguns amigos de Cataguases com quem vinha tendo pouca chance de conversar. O William, por exemplo, agora que virou prefeito anda com a agenda cheia pacas. O mesmo posso dizer do Ivan, que se tornou secretário. Mas continuam sendo boas pessoas, velhos amigos de faculdade, gente que viveu ao meu lado uma época de que tenho saudades.5

Voltei do FELICA 2011 me sentindo feliz e realizado por ter vendido dez livros. É uma sensação estranha, e gratificante, receber dinheiro em troca das coisas que escrevo. A gente passa a vida inteira ouvindo amigos e parentes dizendo que o que fazemos não tem nenhum valor, e de repente aparecem pessoas pagando trinta e cinco reais. Senti-me bem com isso, especialmente porque ninguém comprou o livro “para ajudar”, mas para conhecer.6

Peço desculpas às demais atrações do FELICA que eu não comentei aqui. Infelizmente eu não pude estar presente todos os dias (que péssimo jornalista sou! — ainda bem que não sou!). Mesmo assim, cumpro o prazeroso dever de compartilhar minhas impressões, inclusive para convidar a você, que lá não esteve, a participar no próximo ano. Cataguases é uma estranha cidade de sessenta mil habitantes que, por uma anomalia da natureza, goza do privilégio de ter uma história de movimentos literários (notaram o “s”?) e eventos culturais. Que precisam ser mais prestigiados. Cataguases é impressionante.

1 Reza uma lenda que nós mineiros somos incapazes de conceber como distante algo que não esteja além do Oceano ou da Cordilheira. Isso é apenas uma lenda, obviamente, pelo menos aqui na Zona da Mata. Se duvida, sugiro que venha fazer-nos uma visita para conhecer o povo de cá. Não é difícil achar, tanto Cataguases, a do FELICA, como Leopoldina, onde vivo, ficam pertinho de Juiz de Fora, uns 100 km a nordeste, mais ou menos.

2 Perdão, poeta, por ter grafado seu nome com “ll” na dedicatória. Eu, que tanto me incomodo quando me chamam de “Gouveia”, deveria ter tido um pouco mais de cuidado.

3 Como vocês lerão ainda durante a semana, um dos “pontos altos” (ou terá sido baixo?) de minha intervenção foi o momento em que eu disse que não devemos valorizar o paradigma da droga ou da embriaguez como ferramenta de aquisição de conhecimento ou de inspiração pelo autor pois todo viciado tende não apenas a negar o próprio vício, mas também a encontrar justificativas não-hedonistas para o uso da substância. Acredito que a estocada a que me refiro foi no momento em que eu disse que, se todo bêbado inventa desculpas e explicações para o próprio vício, quão fascinantes e maravilhosas não devem ser as desculpas e explicações inventadas por um bêbado que possui o talento com as palavras. Em suma, tachei as produções literárias “aditivadas” de “papo de bêbado” sofistica. Oh, ousadia, que somente a ignorância permite!

4 De fato, encantou-a tanto que, nas três vezes em que tentou dizer o quanto gostava de obras suas, citou textos de outros autores “africanos”, o que acabou fazendo com que o poeta, no seu único momento de  aridez verbal, criticasse a postura arrogante com que as pessoas veem a África de fora, sem distinguir as culturas dos diversos países, com suas particularidades.

5 Quando voltava da faculdade, com a matrícula orgulhosamente na mão, encontrei um antigo professor do segundo grau, a quem contei do meu feito de ter passado em primeiro lugar no Vestibular. Ele, do alto da sabedoria que a vida dá e depois toma, sentenciou-me algo que jamais esqueci: “Isso não é importante, Geraldo. Importante é que na faculdade você viverá os dias mais felizes de sua vida. Você não terá saudades de um número na lista, mas dos amigos e amores que vai viver nesses quatro anos. Viva-os bem.” Obviamente, quando se tem vinte anos, a gente acha que sabe tudo. Não segui o conselho, mas ainda tenho saudades daqueles tempos, e daqueles amigos e amores.

6 se alguém quiser “me ajudar”, deve fazer o favor de não comprar o livro. Eu não tenho muitos, apenas algumas dezenas, e preciso que eles cheguem exclusivamente às mãos de quem esteja interessado em lê-lo. Obrigado.


24
Out 11
publicado por José Geraldo, às 23:13link do post | comentar

Entre 10 e 12 de novembro acontecerá o III Festival Literário de Cataguases (FELICA). Pela segunda vez estarei lá. Ano passado fui apenas assistir, mas esse ano estarei do lado de cima do palco, em uma mesa redonda literária. Aproveitarei a oportunidade para divulgar (e autografar) o meu romance “Praia do Sossego”, que assim ganhará seu merecido evento de lançamento — que eu não havia podido fazer antes devido a limitaçõe$ resultantes de alguns imprevistos.

Em breve começarei a enviar a todos os meus conhecidos os meus convitinhos virtuais para o evento, sem falar em convites de papel, em tamanho cartão de visita, que vou entregar pessoalmente a todos os meus amigos, colegas, parentes e conhecidos. Como tenho certeza de que será um evento interessante, convidarei sem remorsos todo mundo que possa. Eventos culturais como esse devem ser valorizados com a presença de quem gosta de arte. Detalhe que não vou convidar só para a minha noite, mas para o evento de uma forma geral.

Participar de um festival literário como o FELICA será muito gratificante devido ao nível das pessoas envolvidas. Esse ano, por exemplo, teremos quinze autores participando (contando comigo), entre eles alguns nomes famosos para quem acompanha a cena literária: Chacal, Elisa Lucinda, Ondjaki, Sabrina Abreu, Ana Paula Maia, Roseana Murray, Bartolomeu Campos de Queirós, Miklós Palluch, Otávio Júnior, Elias Fajardo, Marcelo Benini, Maria Vargas e Luciano Sheikk (quem está sem link é porque não tem blog nem site).

Outro motivo para me sentir gratificado é o tema da mesa redonda de que participarei, que será sobre a imagem do artista maldito, drogado, embriagado, inebriado, etc. É um tema bastante amplo, que tem apelo popular e dá muito pano para manga, como se diz no coloquial...


17
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 18:00link do post | comentar

Ontem meu amigo Ronaldo Brito Roque, uma dessas inexplicáveis criaturas de Cataguases, brindou aos seus seletos leitores com um texto que realmente é destes que me dá vontade de ter escrito. Tenho isso, às vezes: leio alguma coisa e penso comigo que eu precisava ter sido o autor daquilo. O texto em questão é um delicioso conto sobre um restaurante que só serve três pratos; intitulados “o melhor”, “o médio” e “o pior”; e as reações dos fregueses a tal estranho cardápio.

Nas mãos de um reles autor de auto-ajuda isto provavelmente redundaria num texto de estilo parecido ao das “correntes de e-mail” que pululam na Internet, com uma moral bem tosca e óbvia ao final, para nos fazer ter algum tipo pasteurizado de “iluminação”. Mas Ronaldo Brito Roque não é um autor de tal naipe, mas um ironista hábil, que reduz a pó qualquer intenção moralista, e o texto termina mais fazendo troça do que ensinando.

Existem, claro, algumas falhas no texto. Especialmente o final, que poderia ter sido o melhor,* mas foi apenas o médio. Mas a habilidade do autor em evitar a pieguice faz com que o andamento geral da história recaia na sátira, e não na parábola filosófico-religiosa-self-service que agrada às massas.

Não vou falar muito mais sobre o texto, vou deixar que vocês o saboreiem com cuidado, e que se perguntem quantas vezes na vida não se contentaram em pôr umas alcaparras por cima de algo medíocre, torcendo para o cliente não saber reconhecer o melhor que você pode fazer.

*Pergunta-me o autor deste texto: “mas, afinal, de que forma você teria escrito o final?” É uma pergunta justa, tanto quanto é difícil de responder. É sempre muito mais fácil detectar algo “errado” do que sugerir o melhor conserto. Séculos antes da invenção do remédio a medicina já tinha o diagnóstico. Acredito que eu teria feito um final mais cético, no qual o cozinheiro não desse nenhuma lição de moral do tipo auto-confiança, valorização de si próprio, etc. Faltou ao cozinheiro um pouco mais de desprezo pelos fregueses. Não que uma dose extra de desprezo tornasse o texto mais crível. Literatura não tem que ser crível. Tem, aliás, que ser incrível. Coisas críveis eu leio nos jornais. Refiro-me apenas que tal atitude tornaria o todo mais harmônico. Pelo menos em minha modesta opinião.


19
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 19:59link do post | comentar

Estávamos conversando despreocupadamente entre uma cerveja e outra quando o meu amigo me olhou, pensativamente, e disse, com a gravidade de quem profere um aforisma de Nietzsche: 

— Acredito que você precisa começar a pensar em escrever a sua autobiografia.

A frase, assim dita, me pegou de surpresa. Nunca pensara em tal possibilidade, muito embora, na imaginação das pessoas da família e da maioria dos amigos, todas as histórias que escrevo são autobiográficas — o que prova que sou mesmo louco.

— Não posso, Flávio. A minha vida é desinteressante, não aconteceu tanta coisa assim, que mereça ser contada num livro.

— Acho que você está enganado. Para começo de conversa, nenhuma vida é totalmente desinteressante: tudo que você precisa é “dar um trato” nas partes mais confusas, cortar as partes chatas, estender os episódios picantes.

— Mas se eu fizer isso, vou estar falsificando a minha própria biografia.

— O que, convenhamos, é tão errado quanto roubar num jogo de paciência. Um crime sem vítimas, amigo falsário.

— Tenho as minhas dúvidas se é mesmo assim. Existe muita gente viva que me conhece, que pode me desmascarar. Sem falar que muita gente pode ficar ofendida por faltar na minha biografia.

— Ambos os problemas são bem fáceis de resolver. Você resolve os dois simplesmente apresentando a obra como se fosse um romance, de forma que somente quem leia tenha ideia de que se trata de um texto autobiográfico. Considerando o nível geral de leitura das pessoas desta cidade e redondezas, garanto que vai demorar duas décadas para que as pessoas percebam que estão faltando no seu texto porque, provavelmente, as pessoas que vão ler o livro dificilmente serão as mesmas que nele aparecem, ou deveriam aparecer. Mas, fora de toda dúvida, a melhor maneira de resolver este problema é deixar para publicar a sua autobiografia quando normalmente as autobiografias são publicadas, depois que você já estiver de caixão encomendado.

— Vou então escrevê-la agora para quê, meu amigo?

— Para quê, ora bolas! Pense, camarada, pense! O tempo haverá de passar, e você vai ao longo da vida esquecendo os detalhes de tudo que viveu. Na pior das hipóteses, você precisa começar a escrever para guardar registro, cara. O pior dos escritores, na pior das hipóteses, tem a obrigação de, pelo menos, ser um cronista de seu tempo. Se você não registrar o mundo em que viveu, você não terá cumprido sua principal missão.

Não acredito que tenha alguma “missão” específica nesse mundo (ou não acreditava), mas aquelas palavras me atingiram em um ponto sensível. Muito depois de terminar a conversa, pagar a conta e voltar para casa eu vim pensando. O pior dos escritores, na pior das hipóteses, tem a obrigação de, pelo menos, ser um cronista de seu tempo. É, parece que chegou a hora de começar a escrever o primeiro volume da minha autobiografia. Pode ser menos interessante do que eu pensava, mas sempre posso “siliconar” acrescentando um dragão ou dois, ou uma sociedade secreta, ou uma aparição de fantasma.


21
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 00:45link do post | comentar

Há neste blog uma postagem datada de 19/04/2011. Não haveria nada de extraordinário nisso se neste horário eu não estivesse internado no Hospital de Catagauses para realizar em caráter de emergência um procedimento de extração de cálculo renal por ureterotripsia. Portanto, aquela postagem não foi feita por mim naquele momento. A história dela é curiosa.

Hoje, ao chegar do Hospital, sentei diante do computador para me distrair das dores (sinceramente eu não desejo o que me aconteceu nem ao meu inimigo mais ferrenho) eu li esta postagem no Bule Voador, postada sob o título Advocati Fidei (acho que o latim certo seria advocatvs fidei, mas isso não é importante). A coincidência me chamou a atenção porque justamente minha mãe andou me “admoestando” por meu ateísmo, entre outras coisas dizendo que estas coisas ruins me estão acontecendo porque eu não creio no bondoso deus cristão (este ser de infinita bondade que coloca dolorosos cálculos renais nas pessoas que não creem nele, pois “se não for pelo amor, haverá de ser pela dor”). E justamente ao voltar dolorido do Hospital eu dou com a coincidência da postagem da tradução de uma música pró-religião em um site cético-ateu. Se eu fosse supersticioso, veria nessa coincidência um “sinal” e me arrependeria de minha impiedade (portanto, caras do “Bule Voador”, parem com essas postagens aí porque está parecendo que vocês estão anunciando as ofertas da concorrência).

Achei a música bonita (a beleza da arte sempre está acima e além de ideologias, em minha opinião) e me diverti fazendo uma outra versão (a que está no site, embora semanticamente correta, não está suficientemente “poética” ao meu gosto). Como eu já tinha uma postagem feita no dia 20/04/2011, optei por preencher a data do dia anterior com uma postagem que seria adequada ao “estado de espírito” de alguém que estivesse por internar-se para uma complicada operação. Não venham pensar, por causa disso, que eu estou “traindo o movimento ateu” (Dado Dollabela copyrights), apenas que tenho suficiente largueza de “espírito” para apreciar a arte que não joga no meu time, tal como tenho para conviver com pessoas que optam por estilos de vida diferentes dos meus. Não creio, porém, que um site evangélico topasse divulgar versões de qualquer das canções a seguir (mas o desafio fica feito):


“Orgasmatron”, Motörhead (1983)

“Free Will”, Rush (1979)

“Time”, Pink Floyd (1973)

Um pós-escrito interessante. Este texto também não foi escrito em 21/04/2011. Como eu já tinha postado alguma coisa ontem, resolvi usar o recurso de agendamento de postagens para mover este texto para o dia seguinte (“hoje”). Com isso ainda ganho tempo para postar algo mais legal dia 22 (“amanhã”).


16
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 22:20link do post | comentar | ver comentários (2)

Quanto você pagou pelo seu dia de hoje? Nada? Tem certeza? Provavelmente você está enganado, tanto quanto eu estive durante décadas perdidas de minha vida. Cada dia que você vive está pago, e muito bem pago, com uma moeda cujo valor subjetivo é maior que o do dólar e o do iene: a liberdade.

É com liberdade que você paga por lhe terem deixado vivo mais um dia. Com ela você comprou, indiretamente, o pão e o café que o prepararam para outra jornada. Esta, por sua vez, nada mais é do que a privação diária porque passa o homem, obrigado a coisas que não entende e que não lhe fazem sentido. Em vez de estar criando seus filhos, realizando seus sonhos, fazendo amor ou deitado à toa. Durante mais da metade das horas de cada dia, exatamente as horas melhores, aquelas em que você está mais alerta e se sente melhor. Justamente nelas não há mais liberdade, a não ser relativamente.

Em troca de você abandonar a sua liberdade, vão lhe pagando por ela valores variáveis. Nunca lhe pagam o que você quer: é sempre menos ou mais. Quanto mais lhe pagam, em relação ao que você espera, mais lhe tiram. Pagar sempre um valor diferente é uma forma de impedir que você perceba o valor exato desta condição. Se lhe pagam pouco, é porque você provavalmente lhe dá muito valor e é preciso que você passe a crer que ela vale menos. Se lhe pagam muito, é porque lhe deixam apenas o mínimo necessário para que você ainda respire hoje (mas nunca se sabe o dia de amanhã). Fazem isso aproveitando-se de que você acha que ela vale pouco. Se você avaliar com precisão, verá que, no fundo, a sua liberdade vale tanto quanto a do lixeiro que você despreza. Muda apenas quanto pagam.

Há muitas maneiras de tomar a liberdade de alguém, e a mais cruel de todas é a tomada preventiva da liberdade que ainda não pode ser gozada. Em palavras mais piegas: é tomar do homem a liberdade que ele ainda pode vir a ter no futuro. Isso se faz de várias maneiras. Pode ser, por exemplo, pelo acúmulo de responsabilidades (essas notas promissórias que pagamos com liberdade); ou pode ser de forma agressiva, deteriorando o seu corpo para que você não possa chegar a gozar da liberdade futura. O primeiro método é o preferido da sociedade, pois permite dar uma finalidade à liberdade que você não vai aproveitar. O segundo, que a inutiliza, é apenas uma maneira de assegurar que a liberdade seja restrita. Fazem isso quando não há uma demanda suficiente por liberdade, mas há muita oferta. É mais ou menos como fazem os produtores de leite quando não conseguem vender: jogam fora, mesmo com tanta gente passando fome. A economia exige isso: não haveria meios de levar esse leite a quem precisa. Quem pagaria o frete?

A vida vai passando e o seu estoque de liberdade vai minguando. E quanto menos liberdade você tem, menos lhe pagam por ela. Esse é o paradoxo econômico desta moeda, razão pela qual os economistas riem dela. A liberdade é uma commodity que só tem valor quando é farta. Aqueles que tem muita conseguem vender a um preço alto. Aqueles que pouca têm, esta escassa ainda têm de entregar a preço vil, isso quando não lhes é tomada de graça.

Mas um dia percebem que sua liberdade já acabou, nesse dia não existe mais utilidade no homem. Ninguém respeita ao indivíduo que já não é livre, ninguém o ama, ninguém o admira. Todos, no máximo, fingem isso. Neste momento o homem está pronto para aposentar-se. Não sendo já livre, não poderá desfilar pelas ruas com a indecência de seu livre-arbítrio arregaçada no rosto como um sorriso. Toda a admiração da sociedade pelo homem que finalmente se aposenta é idêntica à que ela tem pelo homem que finalmente cumpre uma longa pena. Alguns podem estar festejando lá fora dos portões, mas não creia que será possível reiniciar os esboços abandonados na infância.

Quando você se aposenta lhe dizem que você finalmente terá tempo para seus projetos. Possivelmente terá tempo, mas dificilmente terá ainda projetos. A privação da liberdade é uma condição que induz ao costume: nos tornamos tão afeitos a viver sem aproveitá-la que quando finalmente já não nos obrigam a deixá-la, não sabemos para onder ir.

Nos idos dos anos cinquenta ou sessenta, antes que eu nacesse, havia em minha cidadezinha natal um burrico que puxava a carroça de leite pelas ruas da cidade. Toda manhã o leiteiro o laçava no pasto, botava-lhe arreios e ia à Cooperativa comprar leite em garrafas. Depois saía pela cidade entregando aos fregueses habituais. Quando o burrico ficou velho seu dono, compadecido, como nossa sociedade, deixou o animal em um pasto em um bairro afastado, para que ali descansasse. O pobre bicho não aproveitou sua liberdade tão tardia: toda manhã, em vez de pastar o capim tenro e nadar no riacho, ele cruzava a cidade e parava à porta da Cooperativa, puxando uma imaginária carroça. Depois saía a esmo pela cidade, entregando oníricas garrafas de leite. E assim foi por algum tempo, até morrer, magro de tão pouco pastar. Pois o burrico livre comia menos do que antes, quando seu dono lhe dava capim à boca durante a viagem.

Se este fosse um texto de auto-ajuda eu terminaria dizendo que nossa liberdade é tão pouca e tão pouco nos deixam aproveitá-la, que é preciso, que é imperativo, que é sensato que a empreguemos toda, ao máximo, já, ontem! Ou então que a usemos “com sabedoria” (qualquer coisa feita “com sabedoria”, segundo as pregações dos sábios, precisa ser muito chata—a ponto de quase ser inútil).

Mas este não é um texto de auto-ajuda, eu não estou aqui para ensinar nada a ninguém, eu sou apenas aquele ruído que lhe acorda no meio da noite, parecendo um móvel que caiu ou algo que se quebrou na cozinha. Eu sou esse ruído que lhe faz pensar que há um ladrão em casa, e você treme sem saber se deve ir ver o que é ou se deve fingir dormir e deixar que o ladrão o roube, por medo de um tiro. A verdade é como um tiro, ou como um prato que se quebra na madrugada destruindo o seu sono inocente. Eu escrevi este texto porque eu já não durmo e quero que minha insônia se espalhe: é preciso urgentemente produzirmos liberdade, ou ela deve acabar—e nesse dia nenhum de nós terá valor algum. Pois não valemos nada se não somos livres nem felizes.


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