Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
18
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 11:00link do post | comentar
Semana de Carnaval animada e acabo de tomar conhecimento da mais nova travessura do blogue LitFanBR, que costuma esculachar o mercado literário brasileiro, especialmente o voltado para a chamada «Literatura Fantástica» — esse termo genérico para toda obra que inclua coisas que não existem, sejam elas sobrenaturais ou não. Alguém, com o pseudônimo de Super Choque (imediatamente me veio à cabeça a imagem de um nerd negão com óculos de fundo de garrafa e uma fascinação por uniformes) publicou lá um texto que me evocou quatro opiniões que se parecem bastante com as minhas.

À parte o que é opinião exclusiva do anônimo autor, o texto me fez chegar a quatro conclusões com as quais ele talvez concordasse.
  1. A literatura brasileira precisa de mais profissionais.
  2. Autores e editores amadores se desgraçam mutuamente.
  3. É preciso respeitar mais os autores amadores.
  4. Essa situação se deve ao tamanho pequeno de nosso mercado e à colonização cultural, que restringe ainda mais o público leitor.

A Literatura Brasileira Precisa de Mais Profissionais

Venhamos e convenhamos, não existe nenhum glamour em ser amador. Embora eu já tenha dito, em outra ocasião,  que via o amadorismo como uma espécie de liberdade (citando até Clarice Lispector), de fato eu acho que me enganei. O Super Choque disse algo realmente chocante e que me fez reavaliar meus conceitos:
[…] no Brasil são muito raros os autores profissionais, aqueles que não precisam de outra profissão para seu sustento, que podem dedicar-se integralmente a escrever, que podem respirar literatura em cada hora de seu dia. O amadorismo […] cobra um preço grande na qualidade das obras e na capacidade do autor para atingir seus objetivos propostos, inclusive pela dificuldade de dedicar-se à divulgação.
Pensando desta forma, o amadorismo não liberta, mas limita. O amador, ao precisar de outra profissão para o seu sustento, acaba tendo restrito o tempo que pode dedicar-se à literatura. Isto significa que ele não pode aproveitar livremente o fluxo da inspiração e nem destinar suas melhores energias à sua formação e desenvolvimento como autor. De certa forma, podemos dizer que o amador dificilmente conseguirá produzir uma obra de grande fôlego e, se ocasionalmente uma obra amadora possui qualidade, não é sem propósito supor que teria uma qualidade ainda maior se o autor tivesse podido pesquisar mais e poli-la melhor.

Um autor amador, preso ao seu emprego, não tem agenda livre para viajar a eventos de divulgação, para receber repórteres porventura interessados em entrevistá-lo e nem para buscar contatos. Fica como um avestruz, de cabeça enterrada na metafórica areia de sua rotina laboral, enquanto o mundo lá fora muda e cresce.

Por essa razão eu acredito que faz sentido o desejo expresso pelo Super Choque de que a nossa literatura tivesse mais profissionais. Uma literatura com mais profissionais é uma literatura que coloca objetivos estéticos e formais um pouco mais altos, desestimulando aventureiros toscos com suas fanfics irrelevantes. Profissionais não apenas se dedicam a escrever as próprias obras, mas também a ler e comentar as obras dos outros, o que cria um ambiente favorável à crítica (e justamente uma das reclamações babilônicas de nossos literatos é que a crítica literária não existe).

Ora, bolas, não existe porque faltam autores profissionais que a pratiquem e que a exijam. Não existe porque, sem autores profissionais para impulsioná-la, imperam as resenhas encomendadas pelos que se interessam em promover as obras. Propaganda apenas. E propaganda não enxerga os defeitos. Em um ambiente sem crítica profissional, porque não há nomes profissionais de peso na academia e de reputação na mídia que possam ousar romper o círculo de palmas compradas, toda e qualquer tentativa de apontar defeitos será recebida com pedras e tochas. Todos querem ser louvados, e qualquer coisa inferior a uma canonização é insatisfatória para quem precisa recuperar seu «investimento» na publicação.

Não quero, com isso, menosprezar os amadores (como eu mesmo). Não se trata de negar o valor do amador, mas de dizer que, se houvesse mais profissionais, até mesmo a vida do amador seria melhor. Um ambiente cheio de profissionais, e favorável à crítica isenta, geraria oportunidades melhores de desenvolvimento para o amador, lhe imporia desafios mais difíceis (e também mais gratificantes) e deixaria afastados os apedeutas que colocam vírgula entre o sujeito e o predicado mas querem publicar trilogias inspiradas nas lendas célticas sem nunca terem ido sequer a Seropédica.

Pode ser ingenuidade minha, mas quem quer aprender algo novo a cada dia precisa de um mundo com mais professores e profissionais.

Autores e Editores Amadores se Desgraçam Mutuamente

Quando um país se caracteriza tanto, como o nosso, pelo amadorismo, quando ele se generaliza e se cristaliza de tal forma, começa a produzir paradigmas em todas as demais partes do sistema. Estamos aqui falando de literatura, por isso deixemos outras áreas de fora e nos limitemos à outra parte deste sistema: o mercado editorial: Temos muitos editores que são tão amadores quanto os autores, ou ainda mais.
[…] deveria ser parte do ofício do editor oferecer assessoria ao autor. Começando pelo reconhecimento do potencial das obras que tivessem potencial, diferenciando-as das obras meramente derivativas, tolas, egocêntricas ou irrelevantes. Continuando por uma revisão competente, encontrando as contradições e os erros e sugerindo seus consertos. Terminando por fazer um livro bacana e entregá-lo ao autor conforme contratado. E depois de terminar, a assessoria deveria continuar, oferecendo feedback sobre a recepção da obra no mercado, informando ao autor eventuais menções na mídia, etc.

A verdade é que ficou meio fácil fazer uma editora. Há cinquenta anos você precisaria comprar uma máquina de composição tipográfica caríssima, utilizar os equipamentos de uma gráfica para verificar as provas, fazer dezenas de testes com os fotolitos se quisesse botar uma reles ilustração. Ficava caro, muito caro. Então era natural que os envolvidos no mercado editorial fossem pessoas muito preparadas. Era preciso planejar bem, saber onde gastar. Aventureiros faliam em poucos anos.

E havia todo esse trabalho descrito acima pelo Super Choque, porque cada publicação era um investimento, cada autor era uma fonte de recursos. O dinheiro vinha da venda das obras ao grande público, o que significava que era preciso promover o autor.

Daí veio a revolução informática e o desktop publishing. Hoje em dia praticamente qualquer um consegue formatar um livro, gerar uma prova em PDF de alta resolução, corrigir todos os erros antes de gastar uma única folha de papel e encomendar os exemplares de uma gráfica eletrônica, que usa máquinas a laser de alta resolução, capazes de imprimir corretamente até mesmo fotografias. Ficou tão mais barato que aumentou a tolerância ao erro. Pequenas tiragens, que antes eram inviáveis, se tornaram factíveis. Então o apelo comercial de uma obra deixou de ser tão relevante e, se um autor conseguir vender duzentos exemplares para sua família e amigos então ele já está «no mercado», então proliferam editoras para atender a esse nicho.

Publicar um livro virou algo bem fácil e comum porque o autor é o próprio mercado. Entendeu? Vou explicar. A editora não precisa vender o autor, ele que se venda. Agente literário para que se o babaca, digo, o autor, pagará antecipadamente pelos exemplares? Assessoria para quê, se, depois de entregue o livro, fodam-se os erros tipográficos, que o cheque já compensou?

Esse sistema amador de edição, voltado para o autor amador e sem noção, é uma desgraça para ambos — principalmente para o autor. Para o editor eu suponho que o efeito negativo seja a possibilidade de que futuramente se mate a galinha dos ovos de ouro (desvalorizando o livro, em breve ele não será tão lucrativo). Mas o editor amador ou picareta vai fechar seu «selo editorial» e abrir um açougue, porque tudo é só negócio. A pica fica para o editor sério, em um mercado destroçado, e para o autor sério, com cara de idiota em um mundo onde todo mundo publicou sua tetralogia sobre Nárnia.

Os Amadores Precisam Ser Tratados com Respeito

O que ninguém parece enfatizar é que o autor amador não é só um bolso a ser ordenhado, ele é o futuro da literatura. Não se conhece nenhum autor profissional que se tenha «amadorizado» (pelo menos não em países onde existe uma massa crítica de profissionais), mas todo profissional é um amador que se profissionalizou. A profissionalização ocorre quando alguém, que escrevia por esporte ou por terapia, passa a poder sobreviver do que escreve.  Não se trata apenas de uma mudança de profissão e de status social, mas também de modo de pensar e de sentir a literatura.

Então, quando você maltrata o amador você está chutando aquele que poderia se tornar futuramente um profissional. Em países onde impera o amadorismo, esse chute costuma ser dado por inveja, por receio de que aquele «insolente» cresça e adquira poder para influenciar. Numa literatura saudável (e a nossa não está), o amador é tratado com profissionalismo para que aprenda a ser profissional ou, mesmo continuando amador por opção, aprenda a conviver com cobrança de nível profissional.

«Respeitar o Amador» não quer dizer ordenhar o seu ego. Não quer dizer amamentá-lo com elogios para que ele não chore. Respeitar quer dizer tratar como adulto. O profissionalismo é a idade adulta do escritor. Tratar o amador com profissionalismo é respeitá-lo. Dar-lhe carinho, afeto e um ombro amigo para chorar é infantilizá-lo.
Não tenho culpa se a qualificação de profissionalismo para uma editora foi rebaixada desde os anos 60, a qualidade da nossa literatura atual deve significar que eu não tenho razão, não é mesmo?

A literatura é como o pão. Para que a massa cresça é preciso batermos nela. Bons livros podem se tornar ótimos livros formos rigorosos com seus erros. Bons autores podem ser tornar ótimos autores se forem confrontados com suas deficiências. Isso é respeito.

Precisamos xingar mais os nossos autores para que eles criem casca grossa contra críticas invejosas. Precisamos chamá-los mais de ignorantes, apedeutas, semianalfas e rasos; para que eles aprendam que cultura se faz com cultura, e não imitando a primeira porcaria que leram. Precisamos chamá-los mais de idiotas, para que reflitam sobre o absurdo de seus argumentos furados e seus personagens sem noção. Precisamos fazer com que tenham medo de publicar precocemente suas obras, para que se dediquem mais a escrevê-las bem, aparar suas arestas, polir suas asperezas. Precisamos conscientizar as pessoas de que não se faz poesia rabiscando chorumelas depois de levar um pé na bunda da namoradinha. Nossos poetas adolescentes são umas crianças bobas, se comparados com Rimbaud, Manuel Bandeira, Arnaut Daniel e Pushkin. Não merecem ser xingados por isso, mas sim porque se recusam a ler a poesia do passado e querem ser respeitados pelas trovas de pé quebrado que escrevem (e quem escreve uma trova de pé quebrado merece quase ter quebrado o próprio pé). Precisamos que os nossos autores saibam que escrever é algo grande, é algo que pode levá-los longe. E os que não quiserem ir até lá, que se contentem com as sobras e sombras, e não atrapalhem a conversa dos adultos na sala.

Tratar os amadores com respeito significa dar-lhes um propósito, em vez de permitir que chafurdem no sentimentalismo barato, na literatura alienada de fácil consumo e no egocentrismo.

Precisamos Combater a Colonização Cultural

Esses problemas todos que foram postos acima resultam da colonização cultural a que somos submetidos — e os nossos autores têm parte da culpa por isso. Não digo que têm a culpa toda, sequer a maior parte da culpa, mas parte da culpa. Gastamos tempo demais imitando a cultura pop norte americana e deixamos morrer muitas tradições e lendas que não só são importantes para a nossa identidade, mas poderiam ser igualmente interessantes como elementos renovadores da ficção de terror que nós servilmente imitamos. Temos nossas próprias lendas, mas nos maravilhamos com as lendas célticas que já estão mais manjadas que batata doce em fogueira de São João (se bem que esta é outra tradição que se perdeu).

Quando falo em colonização cultural eu me refiro ao problema que ela impõe: a restrição de mercado. Com tanto livro estrangeiro sendo republicado aqui (em traduções cada vez piores, pois a demanda é tanta que não dá tempo de traduzir direito) e com tanto autor nacional se fingindo de ianque, o espaço que sobra para quem realmente tenta fazer literatura brasileira fica pequeno. Um mercado pequeno limita  a profissionalização. Sem profissionalização a literatura nacional não tem voz na mídia. Combine isso com o egoísmo de nossos «profissionais», que costumam usar os prêmios literários para trocarem condecorações entre si, em vez de destiná-los para estimular os novos autores, e você tem um cenário no qual o amador, além de ser continuamente desrespeitado pelo amadorismo de muitos editores e do próprio mercado, ainda vê uma cerca eletrificada entre sua realidade e a ribalta na qual os nomes consagrados detêm todos os trunfos para colherem reciprocamente os lauréis literários.

Parece natural que o jovem autor procure imitar os estrangeiros, não só porque foi programado desde criança com os «enlatados dos USA, de nove às seis» mas porque tem a ilusão de que a única forma de escapar do beco sem saída da literatura nacional é conseguir agradar a um editor estrangeiro, e publicar lá, lá longe do alcance da Academia Brasileira de Letras, de Chico Buarque e seus Jabutis, dos professores da USP e suas descobertas de obscuros poetas baianos do século XIX, dos diversos teólogos (sic) literários e suas teogonias.
Se temos um mercado que lambe o saco de tudo que é estrangeiro, um establishment literário que estabelece capitanias hereditárias e troca honras entre si, é natural que o amador ambicione passar por cima de tudo isso e, se conseguir o Santo Graal de ficar famoso lá fora primeiro, mostrar o dedo para tudo isso e dizer toda a sua frustração em palavrões. Paulo Coelho fez mais ou menos isso. A literatura brasileira teve de engoli-lo inteiro, com casca e tudo, e está engasgada até hoje.

02
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 16:35link do post | comentar | ver comentários (1)
Semanas depois de protagonizar o terceiro escândalo sucessivo relacionado ao Prêmio Jabuti, o “Jurado C”, o crítico paulista Rodrigo Gurgel, finalmente deu a sua versão dos acontecimentos. Foi justo a imprensa dar-lhe voz, depois das semanas que passou sendo malhado como judas em Sábado de Aleluia. O crítico teve sua oportunidade de dar suas opiniões, justificando-se ou não. Muita coisa ficou esclarecida, mas em outros casos a emenda foi maior estrago que o pé quebrado do soneto. Com a autoridade de ser a nulidade literária que sou, atrevo-me a comentar o que ele disse, mais uma vez me esmerando em meu trabalho de queimar todas as possíveis pontes que me fizessem cruzar o Rubicão literário.

A entrevista de Gurgel começou, como não poderia deixar de ser, com a justifica de seu voto. Continuo dizendo que a justificativa não convence, considerando que nenhum trabalho literário sério merece zero, porém, se não é convincente em relação à necessidade das notas zero, ou próximas de zero, Gurgel pelo menos explica seus critérios para alinhar os romances de acordo com a sua preferência:
Quando eu abri o papel, a primeira coisa que me chamou a atenção [na lista de finalistas] foi o livro do Wilson Bueno ["Mano, a Noite Está Velha", ed. Planeta], que eu havia colocado em último lugar, apesar de ter dado uma nota de oito e pouco. Se um livro que você colocou em último lugar está em primeiro na lista, a primeira reação é dupla: você pensa em reler alguma coisa do livro, para ver se o julgamento continua de pé.
Gurgel poderia ter continuado a pôr o livro em último lugar, sendo coerente com o que votara na primeira fase. Porém, mais do que classificar os livros de acordo com a sua preferência, o que é, na minha humílima e ignorante opinião, o papel de um jurado, o jurado resolveu ir além e confessa ter explorado deliberadamente as regras do concurso de forma a decidir o resultado segundo os seus critérios.

Ocorre que existe uma falha do processo de escolha do Prêmio Jabuti: ao permitir que os jurados, na segunda fase, tenham acesso à ordem de classificação obtida pelos finalistas, segundo a nota obtida na fase anterior, o sistema de escolha acaba induzindo os jurados a avaliar, na segunda fase, de uma forma subjetiva, atribuindo notas segundo sua “estratégia” para influir na classificação, em vez de imparcialmente atribuir conceitos conforme sua opinião a respeito de cada livro. Neste sentido, Gurgel se assume como o “malandro” que explora as falhas do sistema para seus próprios objetivos. No caso, objetivos que significam usar o seu voto para, isoladamente, determinar o resultado final. Não sou eu que estou dizendo, foi ele quem disse:
Essa mudança das notas deveria ter sido pensada. Quem estabeleceu a nova regra não fez as contas. Não pensou: “bom, quais são as situações que podem ocorrer?” Ou então acreditou que todos os jurados votariam sem compromisso.
A falha da organização do prêmio Jabuti foi, segundo o jurado, acreditar na imparcialidade dos jurados, acreditar que os jurados votariam sem compromisso. Esta também é a falha dos que não eletrificam as cercas de suas casas, dos que não põem trancas nos seus carros, dos que contam segredos para amigos, das namoradas que se deixam filmar por seus namorados. É, enfim, a velha fraqueza humana de confiar na confiabilidade do próximo. Em um mundo ideal ninguém precisaria se preocupar, porque as pessoas agiriam sempre com ética. Mas Gurgel não se prende a esses limites: “se me pedem para julgar e me dão os critérios, eu uso os critérios.”

O “jurado Carminha”, como chegou a ser apelidado nas redes sociais, estranha que escritores tenham estranhado as notas estranhas que ele atribuiu (sic):
O que, aliás, é o que mais me chama a atenção nas críticas que recebi. E as mais violentas foram de escritores. Eu acho interessante. Em nenhum momento passa pela cabeça deles que eles poderiam ser um dos livros escolhidos por um jurado que luta pelos livros de que gosta. Um jurado que não teme se comprometer.
Como Gurgel não é escritor, sua capacidade imaginativa é relativamente limitada. Se escritor fosse, saberia que por nossas cabeças certamente passou este cenário, de sermos beneficiados por um jurado como ele. Bem, eu já disse qual seria a minha gratidão a uma escolha segundo tal critério. Mas a questão é que a maioria de nós imagina, com nossa fértil criatividade, uma possibilidade muito mais interessante para o uso da “Estratégia Gurgel” (que entrará para a história com a mesma notoriedade da “Lei de Gérson”).

Imaginemos, apenas hipoteticamente, que a “editora fulana”, usando de argumentos exclusivamente artísticos e éticos (claro), “convença” algum jurado a induzir a escolha do livro “sicrano” do escritor “beltrano”. Neste caso, claro, em vez de usar seus poderes para justiçar os fracos e oprimidos da literatura, o hipotético jurado estaria apenas fazendo o jogo bruto das grandes casas literárias e seus “nomes de peso”. É por causa disso que os escritores estranharam o que houve, é por causa disso que eu repudiaria um prêmio assim escolhido, mesmo que fosse eu o escolhido, e é por isso que tenho a firme opinião de que concursos literários não avaliam o mérito das obras, mas apenas revelam os movimentos tectônicos da luta pelo poder no sistema editorial. Briga de cachorro grande, onde um vira latas provinciano como eu dificilmente entra, a menos que concorde em fantasiar-se de palhaço, segundo o estereótipo que se impõe das capitais.

A questão, seca e simples, é que, a partir do momento em que se detecta a existência de uma falha no sistema, e de alguém que a utilizou com sucesso para obter o que queria, não há como fechar a Caixa de Pandora. Ou a regra muda, ou ano que vem todos os jurados votarão com estratégia, mesmo aqueles que não pensam que a sua opinião deva prevalecer acima das demais. A falha não está na permissão de se usar qualquer nota, de zero a dez, mas, sim, em revelar aos jurados os livros escolhidos na primeira fase segundo uma ordem de classificação, que revela a tendência de voto do júri como um todo.

Mas Gurgel, como todo ser humano, não é totalmente uma coisa só. Se se revela limitado no aspecto ético, ele parece ter algumas opiniões sobre o sistema literário brasileiro que acabam sendo parecidas com as minhas. O meu medo é que elas também estejam erradas, e eu as vá elogiar aqui somente porque os preconceitos dele conferem com os meus.

A primeira destas opiniões ele expressa ao comentar, com desdém, a reação dos escritores às suas notas: “Os nossos escritores não estão acostumados a serem julgados. O nosso sistema literário está doente.”

Esta é uma afirmação que parte de um senso comum difícil de negar. Isto, claro, se vê a todo momento, até nos blogues. O autor brasileiro é “estrelinha”, sim. Desde o iniciante amador que escreveu um pastiche pobre de Crepúsculo até um medalhão acadêmico. O primeiro confunde crítica à obra com um desmerecimento de sua dignidade pessoal, argumenta com as suas limitações e o seu esforço para que lhe sejam perdoadas as falhas e a falta de imaginação. O segundo reage com prepotência, move seus “pauzinhos”, anota no seu caderninho, dá seus telefonemas e eventualmente até desce do Olimpo, tonitroante, para reduzir o ousado crítico “ao seu lugar”. Faz isso porque não se sente seguro de seu lugar. Alguns de nossos grandes luminares sabem muito bem que sua glória é postiça, que seu mérito é mais curto que seus casacos e, na hora do “vamos ver”, deixa suas quadradas bundas de fora. Sabem que estão sentados, mas não assentados, na imortalidade. Ou melhor, saberiam, se seu talento lhes permitisse compreender a diferença que faz uma letra “a”.

Sim, o escritor está desacostumado a ser julgado. Talvez até seja necessário que, ocasionalmente, alguém lhe dê um zero. Mas a escolha do Prêmio Jabuti não foi exatamente o melhor lugar nem circunstância para dar essa lição de moral nos medalhões. Porque por mais moral que a lição fosse, perdeu-a pela manipulação aética do resultado, com o pretexto diáfano de que os critérios permitiam. Nem tudo que é legal é justo.

Existem três parágrafos na entrevista de Gurgel que estão de tal forma coincidentes com as minhas opiniões que eu, que comecei este artigo criticando com dureza o jurado, já estou, neste ponto, querendo dar-lhe as mãos e convidar para um chope. Cito-os nos pedaços que mais me interessam:
Essas pessoas [que] têm a hegemonia ideológica nos cadernos culturais, nas poucas publicações literárias que nós temos, nas editoras de livros. Quando eles escrevem uma crítica, as preocupações deles são, primeiro, a questão formal, linguística. Há um exagero de preocupação em relação a isso.

Se você não inovar em termos linguísticos, se você não tentar recriar o Finnegan's Wake o livro já não é bom, ou é um livro tímido, que revela insegurança. O que nós poderíamos chamar de narradores tradicionais já são repudiados por princípio. […]

Em termos de crítica literária, a preocupação desses críticos, na verdade, não é primeiro com relação à forma: é exclusivamente com relação à forma. Porque eles partem do princípio de que a obra é autossuficiente. A obra não tem que dialogar com a realidade. A literatura não tem que dialogar com o mundo. Tem que dialogar com ela própria.
Eu acho muito bom que um crítico literário cutuque esse tumor, que eu, com minha ridícula atiradeira de raquítico Davi, já havia cutucado em 1997, aos 24 anos, na ingênua revista literária que fiz em Cataguases. Qualquer dias desses obterei acesso ao único exemplar restante dela, e republicarei aqui o meu ensaio “Literatura e Consciência”. Que contém parágrafos quase iguais a esses. O que eu não tinha, nem tenho hoje, é o conhecimento teórico suficiente para detectar a origem desse fenômeno:
O [crítico literário] Antonio Candido fala que o nosso sistema literário, no início, era assim: as pessoas que produziam eram as pessoas que consumiam. Esse é o nosso grande problema, nós não temos leitores. O escritor escreve para agradar o crítico, pra agradar o professor de teoria literária e para agradar os seus amigos.
Então ele precisa ser politicamente correto, precisa fazer experimentos linguísticos, esconder o narrador, abusar da metalinguagem. Precisa fazer do texto dele um resuminho daquilo que a vanguarda fez nos últimos anos, para agradar as pessoas. Se você não tem uma crítica que está disposta a agradar o público, numa linguagem que ele compreenda por que aquele livro é bom ou não é, você não forma leitores.
Eu já sabia que este tipo de literatura que frequenta os cadernos culturais tem um caráter esotérico, já sabia que não são formados leitores a partir de romances da chamada “alta literatura”. Sabia também que existe um lugar para esta literatura excelsa. O que eu disse na época, e repito hoje, é que essa forma de literatura não pode ser a única, porque ela não é porta, ela é esfinge. As pessoas não se atraem por esfinges. Alunos em fase de alfabetização não querem palavras cruzadas. Tanto quanto alunos de primeiro ano do conservatório não querem tentar tocar Tom Jobim ou Yngwie Malmsteem.

Ocorre que nosso país possui uma ideologia dominante que aspira ao pensamento único. Ao partido único, ao estilo único. Se você discorda de mim, então você está errado, você é um imbecil ignorante, você tem de ser suprimido. Não sabemos conviver com a diferença. Não temos um histórico de filósofos adversários que, depois de se xingarem pelos jornais, se encontravam à tarde nos cafés para jogar dominó e rir das polêmicas criadas em torno de si. Nossa tradição é de autores criticados xingarem os críticos, de críticos questionados fulminarem os autores, de autores experimentais criticarem os narradores “primários”, dos narradores primários pretenderem derrubar do Olimpo os acadêmicos. Nossa sociedade tem um espírito de rinha, não de disputa. Nossa ideologia é o MMA, que vença o melhor, o vencedor é quem ficar de pé. Não concebemos um tipo de vitória no qual o adversário permaneça digno.

Com isso não convivemos com a diferença, por isso nossa democracia é frágil, por isso nossa imprensa tende ao golpismo, por isso nossas instituições se corrompem, por isso nossos partidos almejam perpetuar-se a qualquer custo.

Por isso nossos críticos, incapazes de conceber que outros críticos possam dar valor àquilo que eles escolheram desprezar, se prestam a “usar os critérios” para determinar o resultado, tal como um político que se alinha com forças ocultas para dar um golpe de estado e impedir a vitória iminente de um adversário no pleito seguinte. Por isso Gurgel continua errado, mesmo dizendo coisas com que concordo. As coisas certas, quando convivem com um mal evidente, tornam-se instrumentos a serviço desse mal.

Portanto, quando Gurgel diz coisas que são obviamente verdadeiras, o que ele está fazendo é criar uma cortina de fumaça sobre o ato aético que perpetrou, abusando de sua condição de jurado.

Mas então chegamos ao fim da entrevista, e aí compreende-se finalmente, porque Gurgel cometeu o ato que cometeu. Ele se revela aluno de Olavo de Carvalho, o que é uma coisa inconfessável para uma pessoa de cultura. As peripécias de Olavão são inúmeras, desde provar que Newton estava errado em sua física até negar a validade da Teoria da Relatividade de Einstein (sendo que o dito filósofo não é nem físico e nem sequer possui um grau acadêmico de exatas). Some-se a isso o horror mórbido à mudança, sua rejeição à novidade, sua agressividade contra as utopias de esquerda e sua crítica paranoica ao “esquerdismo” e  temos provas suficientes de que ele não pode ser levado a sério por uma pessoa de cultura mediana. Olavão pertence ao seleto clube das pessoas que nunca erraram (pelo menos nunca o vi retratar-se de uma opinião ou expressar qualquer ideia sua de maneira menos enfática do que uma certeza absoluta). Não erra porque se coloca como verdadeiro Oráculo, veículo da verdade divina. “A hegemonia da esquerda foi lentamente construída”, diz Gurgel. Olavo traz a verdade súbita, o golpe da verdade, o golpe.

Golpe que o jurado C desfere contra seus desafetos literários, contra o “sistema” que rejeita. Olavo e Gurgel, cada um em seu papel, Dom Quixote e Sancho Pança, lutando contra os moinhos de vento do mal, para salvar o mundo, ou pelo menos a literatura, da unanimidade burra do esquerdismo.

E então me lembro que, no texto introdutório da entrevista, Gurgel revelara ao repórter seu novo projeto: Atualmente, desenvolve um projeto ambicioso: reler todo o cânon da literatura brasileira e submetê-lo a seu crivo em textos publicados no jornal “Rascunho”. O primeiro fruto, o volume de ensaios “Muita Retórica, Pouca Literatura - de Alencar a Graça Aranha” (Vide Editorial), foi publicado em agosto. 

23
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 21:46link do post | comentar | ver comentários (4)
Ontem, já no comecinho da madrugada, terminei de assistir, via YouTube, o filme “Stalker”, dirigido Andrei Tarkovsky, filmado em 1979, a partir de roteiro escrito pelo próprio diretor, baseado no romance “Piquenique na Estrada”, dos irmãos Bóris e Arcádio Strugatsky, gênios da ficção científica soviética. Romance este que eu já havia comentado elogiosamente aqui, não faz muito tempo.

Desde que lera o romance e ouvira falar do filme, minha obsessão foi encontrar uma forma de assisti-lo. Ficção científica soviética é algo que me interessa muitíssimo (aliás, toda a cultura soviética me interessa demais). Tanto a escrita quanto a que for filmada, cantada ou declamada em versos. Gosto de ficção científica, e mais ainda da que se fazia por detrás da cortina de ferro. Acontece que filmes de arte não passam na televisão brasileira, essa autêntica máquina de fazer doido, o que não dizer, então, de um filme de arte soviético de 1979! Felizmente a produtora estatal soviética Mosfilm, que ainda existe, fez um favor à humanidade e está digitalizando e remasterizando todo o seu catálogo e colocando no YouTube. Eu já tivera a oportunidade de assistir um filme de terror soviético chamado “Viy”, de 1967 (futuramente falarei sobre ele) e a experiência da estética da Mosfilm me impressionara muito.

Eu não estava preparado, porém, para encontrar o que Tarkovsky entrega neste filme. Duvido que alguém esteja — e é difícil explicar exatamente que tipos de impactos o filme causa em quem leu o livro, sem estragar o prazer de quem se proponha a assistir o primeiro ou ler o segundo. Não quero estragar este prazer, por isso tentarei ser econômico em minhas descrições.

Começo falando da trilha sonora, que é uma atração à parte.  Eduard Artemiev compôs a música, tocada em sintetizadores e instrumentos étnicos, e também compôs os ruídos ambientes do filme.  Sim, todo o som do filme, exceto as vozes dos atores, foi “composto” e “tocado” por Artemiev em estranhos sintetizadores artesanais ou usando métodos primitivos mesmo, como tambores, metais, pedras e canos. E muita água. Não tem uma cena seca no filme inteiro. Todo mundo molhado, úmido ou mofado, o tempo todo. Na sequência de abertura ouve-se música, no resto do filme a “trilha” sonora, totalmente atonal e sem seguir nenhum ritmo musical específico, se dedica a acompanhar a ação, fazendo-se presente nos ruídos incidentais (nem uma pedra cai no chão com um som natural), na respiração dos personagens e em interferências sonoras distorcidas que lembram os momentos mais experimentais do Pink Floyd em “Ummagumma”. O fato de Artemiev também ter feito os ruídos (em vez de o sonoplasta capturá-los no ambiente, ou coisa assim) faz o filme ter uma atmosfera surreal, irreal. Um filme no qual os únicos sons naturais são as vozes dos atores é algo que soa “de outro mundo” — e esta foi exatamente a impressão que Tarkovsky quis causar: dentro da “Zona” os sons são surreais porque ali as leis naturais estão afetadas por algo que o homem não entende. É preciso falar, então, deste fenômeno.

No filme de Tarkovsky se fala muito menos da natureza da “Zona” do que no romance dos irmãos Strugatsky, que já não fala quase nada dela. Apenas um diálogo entre os protagonistas, no qual o “professor” explica ao “escritor” que a “Zona” é resultado de um fenômeno inexplicado, que originalmente se pensara ter sido a queda de um meteorito. Não tendo sido encontrado nenhum meteorito, e com as mortes de centenas de pessoas curiosas que a exploravam, o governo tentou destrui-la, mas não conseguiu, pois seus tanques e aviões não funcionaram bem, e foram abandonados por soldados apavorados. Desde então o governo cercou toda a “Zona” com arame farpado eletrificado e muros de cimento e a protegeu com uma patrulha de soldados com ordens de atirar para matar em todos que tentem entrar. Neste sentido, a “Zona” do filme se parece muito com Berlim Ocidental durante a Guerra Fria (um pensamento que não me ocorreu em momento algum durante a leitura do livro). Tarkovsky realmente tinha “cojones” se isso procede, e ainda os teria de qualquer forma, pois a semelhança, mesmo que involuntária, é evidente. Mesmo porque, no filme parece haver a sugestão de que a “Zona” é única.

No romance a “Zona” não é única: existem várias, todas elas alinhadas de maneira curiosa, no sentido da rotação da terra, segundo um padrão que é chamado de “Radiante de Pilman” (leia o livro e caia na gargalhada com a explicação desta expressão e com a história de sua descoberta). Além do mais, o seu caráter é bem menos ambíguo que o do filme: as “Zonas” são mesmo o produto de uma visitação alienígena (daí o título “Piquenique na Estrada”, que é outra ótima piada de humor ultra-negro que você entende lá pela vigésima página). Não existe qualquer sentido de que a “Zona” seja um lugar desejável para se entrar e quase ninguém quer ir lá: somente os “stalkers”, que são pessoas que adentram lá de forma semi profissional.

Muda também a motivação dos “stalkers”: no livro eles fazem por dinheiro, visto que em cada “Zona” podem ser encontrados objetos os mais diversos que alcançam alto preço porque são completamente inexplicáveis, como as garrafas que nunca enchem e as que nunca esvaziam (ambas chamadas de “ânforas”), entre outros. No filme eles levam pessoas desesperadas até o “Quarto”, um local dentro da “Zona” no qual os mais íntimos desejos de cada pessoa são realizados. O “Quarto” também existe no livro, mas não domina a ação da forma como ocorre no filme.

A ação do filme, aliás, é totalmente diferente do livro. A começar pelas visitas à “Zona”. No livro ocorrem duas: na primeira o “stalker” conduz o “professor” em uma busca por artefatos que serão estudados pelo Instituto Internacional para Pesquisas Extraterrestres (note que a afirmação de que as “Zonas” são o produto de uma visitação alienígena é explícita) e na segunda ele conduz o “escritor” (que é um personagem bem diferente) até o “Quarto”. A primeira visita ocorre quando o “stalker” ainda é jovem (aos 23 anos) e a segunda, quando ele já está envelhecido precocemente (aos 31 anos). O filme parece mesclar as duas visitas em uma só, transferindo o “professor” para a segunda e mudando o seu objetivo.

O tipo de ação também é diferente. O livro tem um ritmo de aventura, apesar da narrativa lenta — cheia de paradas para trocadilhos, piadas de humor negro sutilmente disfarçadas no subtexto ou meramente para descrições precisas dos arredores. O filme não tem nada disso. No livro há muitos personagens, ocorrem mortes trágicas, perseguições, prisões, brigas. No filme só vemos seis personagens e ação é toda concentrada em torno deles. Um filme fiel ao livro teria que ser cheio de efeitos especiais, para conseguir representar os inúmeros fenômenos e objetos existentes nas “Zonas”, como o “moedor de carne”, o “leito dos mosquitos” ou o “véu das fadas” (todos nomes que evocam a aparência, não a essência desses fenômenos). No filme nenhum destes fenômenos sensacionais ocorre: não há efeitos especiais quase, mas há sim, certos fenômenos claramente sobrenaturais, embora os personagens, às vezes, se recusem a admitir isso. Entre estes fenômenos está a voz sob a árvore, que amedronta o “escritor”, os morcegos na sala de sal e a brincadeira da filha do “stalker”. A grande diferença está no foco. O livro, apesar de ser feito com palavras, foca na evocação de imagens sensacionais, de outro mundo. O filme, apesar de feito com imagens, prefere evocar palavras. Os personagens do livro andam, pensam, agem, reagem. Os personagens do livro dialogam sobre seus dilemas existenciais, sobre a “Zona”, sobre suas expectativas, sobre seus medos.

Para alguém que busca um filme de ação, "Stalker" é uma decepção total. Mas para alguém que busca um filme realmente intrigante, que faça pensar e que mude seu modo de pensar, então não há filme melhor. As metáforas políticas e artísticas são constantes. Os personagens dialogam sobre temas universais. O diálogo entre o "professor" e o "escritor", à beira do "túnel seco" (uma ironia) é de um impacto profundo, especialmente se você também escreve.

Também é preciso mencionar a pequena "Macaca", a filha do Stalker. No livro ela é uma mutante de olhos negros (no sentido de "totalmente negros") e corpo coberto de pelos dourados, exceto pelas mãos, pés e rosto. Por isso, e também porque ela é extremamente ágil e muito lacônica, foi que a chamaram de "Macaca". No filme, paradoxalmente, ela é paralítica, tem olhos normais e não fala — embora ande o tempo todo coberta por véus, luvas e calçados, que só deixam de fora o seu rosto. Acho que a diferença entre as duas resume as diferenças entre o livro e o filme. O primeiro descreve muito, para trazer o leitor para dentro da história. Os personagens são explícitos, abertos. No filme, porém, que já tem o leitor no cenário e na história, os personagens se fecham, se protegem, revelam o mínimo. O livro procura convencer sobre a existência de coisas que não existem. O filme, partindo do pressuposto de que você acredita na existência de tudo, controla (ou melhor, sonega) as informações e ataca suas certezas, até que você comece a pensar uma coisa, e depois outra, e depois uma terceira. E quando termina, você não sabe se está realmente decepcionado ou se jamais esquecerá as imagens que viu e os diálogos que ouviu.  E se você acha que foi M. Night Shyamalan que inventou o final surpreendente, com "O Sexto Sentido", espere até ver a cena final de "Stalker", que contraria e decompõe boa parte do que foi dito pelos personagens e das conclusões que você foi tirando ao longo da narrativa!

Um último e macabro detalhe a respeito do filme é que ele foi todo rodado dentro das instalações abandonadas de uma indústria química estoniana, à beira do Mar Báltico. Uma região incrivelmente úmida, verdejante e bela. Ali, fábricas poluidoras e usinas nucleares em péssimo estado criavam uma paisagem de natureza semidestruída. Os lugares haviam sido abandonados porque eram imprestáveis para a vida humana — tal como a "Zona". Foi lá que Tarkovsky escolheu filmar. Entre rios cobertos de grossas capas de espuma marrom, pântanos pútridos, fumaças densas e chuvas ácidas. Uma "Zona" criada pelo desastre do homem, não pela interferência dos céus. E Tarkovsky submeteu seus atores, sem o uso de dublês, ao clima intratável  e à insalubridade do lugar, fazendo-os vadear por rios sujos, tatear por túneis por onde sabe Deus o que fora bombeado. Anos depois Tarkovsky, os três atores que interpretaram os personagens perambuladores pela "Zona" e vários técnicos de filmagem morreram de tumores os mais diversos. Posteriormente o governo russo divulgou documentos que evidenciavam que o lugar estava contaminado por plutônio de uma usina nuclar desativada e por produtos químicos altamente cancerígenos de uma fábrica de pesticidas que ainda estava em funcionamento parcial.

27
Out 12
publicado por José Geraldo, às 22:08link do post | comentar | ver comentários (6)
E para quem achava que repetição de erros de organização era algo que só acontecia com o ENEM, «coisa do governo» e, portanto, incompetente, eis que, pelo segundo ano consecutivo, lá temos sob questionamento de novo o maior prêmio literário do país, o Jabuti, conferido pela Câmara Brasileira do Livro.

Para quem não se lembra, a polêmica do ano passado se deveu ao romance de autoria de Chico Buarque ter sido escolhido «livro do ano» mesmo sem ter sido vencedor em sua categoria. Trocando em miúdos: uma obra que não conseguiu ser o melhor romance do ano foi vista como o melhor livro. Faz sentido na lógica psicodélica dos concursos literários que, como se sabe, são um tipo delicado e culturalmente desejável de empulhação. Empulhação consentida pelas partes, embora algumas vezes certas pessoas fiquem amargas.

A polêmica deste ano se deveu às notas conferidas por um dos três jurados na categoria romance. O ainda anônimo «Jurado C» deu respectivas notas zero e um e meio a duas obras que haviam tido notas médias anteriores maiores do que as do livro que veio a ser o vencedor. Trocando em miúdos: prevendo que o seu favorito (a quem deu 10) perderia, o «Jurado C» deu notas ridículas aos principais concorrentes, para forçar a vitória de seu candidato.

Não existem justificativas para a crítica dar notas abaixo de cinco a um romance que chega às finais de um prêmio nacional de literatura. É preciso uma dose muito grande de paulocoelhice para um romance merecer zero. Tanto assim que nem mesmo os romances do mago chegam a merecê-la, no geral. É de se imaginar que obras publicadas por editoras sérias (aham), escolhidas por critérios literários sérios (aham), submetidas a processos competentes de revisão, se chegarem a integrar a lista dos dez favoritos, merecem pelo menos um cinco. Cinco é a mediocridade absoluta. E mediocridade é o mínimo que se espera de um autor publicado «no esquema». Abaixo da mediocridade reina o desastre, a falta de continuidade, os solecismos, os desconhecimentos semânticos, a anfibologia, o plágio e toda uma gama de coisas que tornam a leitura do livro impossível a não ser pelos infelizes revisores que são obrigados a ler.

Portanto, as notas dadas pelo crítico são indefensáveis segundo qualquer parâmetro crítico que se queira adotar — e isso quer dizer que elas evidenciam a manipulação deliberada do resultado final. Que seria outro se outras tivessem sido as notas desse frustrado indivíduo que gargalha em sua cadeira, como um deus mitológico, depois de fulminar os pobres mortais.

As notas deste crítico, sozinhas, são um tapa na cara de todo escritor brasileiro. Elas revelam um estado de espírito que não pode ser isolado. Se este crítico fosse o único a se sentir um «deus das notas», capacitado a definir resultados de prêmios que influem nas vidas de pessoas, a sua atitude teria encontrado mais repúdio, o processo teria sido cancelado. Outra análise seria feita. Tudo para não entregar a um jovem autor, estreante no romance, um prêmio que lhe pesará mais na estante do que uma bola de ferro acorrentada ao calcanhar. Para todo o sempre o escritor Oscar Nakasato será o autor que só ganhou o jabuti porque um crítico deu zero a Ana Maria Machado.

No lugar de Oscar, eu compareceria a cerimônia, sabendo que ela seria filmada, subiria ao palco, receberia o troféu, mas em seguida o recusaria, destinando-o publicamente ao Jurado C que, ao demonstrar tamanha vontade de influenciar no resultado, revelou-se único «dono» do troféu, a ponto de decidir conscientemente a quem dá-lo. Desta forma, recusar o troféu seria restituí-lo ao dono. Seria uma saída digna. Pessoas dignas costumam recusar honrarias imerecidas ou polêmicas. Escroques não, porque eles vivem para obter honrarias, merecidas ou não. Kissinger aceitou um Prêmio Nobel da Paz por ter assinado a paz da Guerra do Vietnã, uma paz que poderia ter saído quatro anos antes se ele não tivesse ajudado a sabotar as negociações para favorecer a vitória dos Republicanos em 1968. Para ganhar uma eleição, o futuro Nobel da Paz fez mais 250 mil pessoas morrerem. Humor negro no Vietnã é dizer que Kissinger ganhou o Nobel da Paz.

Se o romancista paranaense fizer isso, certamente será declarado persona non grata nos meios editoriais brasileiros para todo o sempre, e amém. Mas se aceitar o troféu, a vida inteira vai ter alguém para implicar consigo dizendo: «aquele troféu você só ganhou porque um jurado maluco deu zero para a Ana Maria Machado, cara». Olhem o tamanho da injustiça que o júri do Jabuti impôs a esse cara. Ninguém merece ter que fazer uma escolha dessas: entre uma atitude digna que atrai catástrofes e uma atitude cautelosa que preserva uma polêmica (alguns dirão covarde, mas eu que sei o que pena um escritor não tenho coragem de usar esta palavra contra o Nakasato). Por isso eu vou entender se o cara aparecer com seu melhor terno, sentar onde «o moço» manda, esperar quieto a sua vez, aplaudindo a vez dos outros, subir no palco com desajeitamento natural ou simulado (pois novato tem que ser desajeitado), agradecer à família, à Deus, à pátria, ao público e levar o troféu para casa, caladinho. Nem todo mundo é maluco. Nem sei se eu seria. Mas que adorável seria o mundo se os malucos governassem.

Alguns dirão que o tempo passa, as polêmicas são esquecidas e o que importa são os títulos conquistados, e só os perdedores choram. É a lógica deprimente do sucesso a qualquer preço. A lógica de uma espécie de selva moral que nos empurra para o abismo e para o salve-se-quem-puder. Uma lógica que está na moda, mas a moda pode mudar as pessoas começarem a dar exemplos. Eu quero viver em um país onde as pessoas rejeitem vitórias obtidas de forma ilícita ou em decorrência de falhas do processo. Por isso eu preferia que o Chico Buarque tivesse recusado seu Jabuti no ano passado, considerando que ele, sendo quem é, precisa muito menos dele do que o Nakasato, que está começando agora. Mas Chico ficou com o prêmio, sem sequer um protesto, e se apequenou. Sorte dele é que os ídolos não precisam ser perfeitos.

02
Out 12
publicado por José Geraldo, às 00:14link do post | comentar | ver comentários (1)

Às vezes a palavra que dizemos corta inadvertidamente quem está perto. É como brandir uma espada longa1 em círculo sem saber que alguém chegou pelas nossas costas. Culpa da espada? Do espadachim? Da vítima? Ou mero acaso.

Anteontem ofendi seriamente um amigo facebookiano por causa de minha postagem aqui.

Postei pensando num hábito irritante de dois ou três debatedores em um grupo político onde participo, sujeitos pedantes que gostam de pontuar suas frases com barbarismos léxicos achando que assim se mostram descolados. Essa fato me puxou o fio de muitas memórias, desde os tempos de Orkut, quando me cansei de ver garotos de 16 anos que tinham ido à Disneylândia achando que tinham cabedal para escrever um romance ambientando nos States.

Este amigo facebookiano me escreveu pedindo meu voto em uma espécie de concurso que está sendo promovido pelo Clube de Autores.

Mal sabia que o amigo facebookiano justamente me pedira para opinar num caso desses. Ele é o autor amador de um romance que começa por um título em inglês, que está ambientado em algum lugar dos Estados Unidos e tem uma história chupada diretamente dos filmes de terror americanos. Eu ainda não opinara, afinal o pedido era recente e eu tinha motivos razoáveis para supor que teria bastante tempo para analisar o livro e decidir se merecia ou não o meu voto. O fato de eu passar os fins de semana longe de meu computador pessoal era motivo suficiente para eu esperar pela semana.

Porque eu jamais daria meu voto sem ler a obra. A função de um concurso não é votar por amizade e nem pela beleza da capa: se esse era o tipo de voto buscado, buscou com a pessoa errada.

Então, inocente do conteúdo da obra que eu deveria avaliar, postei o que postei e segui com a vida. Hoje ao abrir o facebook me deparei com um irônico «agradecimento» do meu amigo e senti cheiro de coisa errada. Cliquei na ligação para o voto e detectei na hora de que se tratava.

Imagino que o meu amigo tenha razão para estar ofendido. Receber uma crítica é sempre ruim, porque de certa forma é como se alguém nos contasse que não somos geniais. E todo mundo se acha especial, genial. Mesmo uma crítica enviesada como essa, que só o atingiu na base do efeito colateral e da carapuça espontaneamente vestida.

Ao meu amigo só posso dizer que se acostume, e que aproveite. Viver para a arte é assim. Você se esforça e depois vem um idiota e diz que o seu trabalho é uma porcaria. Às vezes você passa a vida inteira sendo desvalorizado por idiotas e vira gênio depois que morre. Mas em muitos casos os idiotas têm razão e as pessoas ficam pensando porque você insistiu tanto, como o motorista da piada do barbeiro na contramão da Via Dutra.2

No fim das contas é muito difícil quem escreve, compõe ou faz qualquer coisa artística conseguir ter uma visão clara e definida da qualidade do que escreve. Em geral esta visão só se consegue com o tempo. Com cabelos brancos que nos embaçam os olhos e nos fazem enxergar o valor real do que fazíamos aos vinte anos. Para sorte da literatura nós só adquirimos a sabedoria tarde demais, e temos tempo de ser ousados antes, para o bem e para o mal — mais frequentemente para o mal, mas os fracassos se perdem no esquecimento, então não há nenhum grande prejuízo, a não ser para quem se ilude.

Muito Nero morre tangendo sua lira, sem nunca entender porque as plateias não aplaudiam. Em alguns casos eram platéias estúpidas, mas esse é um julgamento feito pela posteridade, então o melhor que o artista faz é não se matar por causa disso, nem perder suas amizades.

Diz um ditado piegas que «com as pedras que me atiraram fiz o meu castelo». Você não precisa fazer um castelo, mas se ficar jogando de volta não ganhará nada. Infelizmente esse tipo metafórico de pedras não serve para fazer castelos, o que é uma grande pena, mas serve para construir metafóricos muros mentais dentro dos quais o grande artista se isola com as pessoas que gostam do que ele faz.

Não sei se isso é errado, sei que não gosto. Queria que mais gente viesse me insultar aqui, enfiar o dedo nas feridas, gritar os meus defeitos.

As poucas coisas que aprendi na vida incluem uma constatação: se fazemos uma escolha certa desde o início é por mera sorte. Em geral deixamos de cair nos buracos porque alguém grita. Mas alguns têm a perseverança de ignorar a gritaria e seguir. Alguns são gênios, mas a maioria só fica teimando em coisas que ninguém quer, e que não sabe fazer direito.

Quem sou eu para julgar qual é o caso, mas reservo-me o direito de gostar do que escolho gostar. Quem vem me pedir que goste de outra coisa deve estar atento: não se pede a um atleticano que torça pelo Cruzeiro «só para ajudar».

1 O nome em português da longsword conhecida dos jogadores de RPG, Skyrim e outros jogos de guerra. O nome inglês evoca apenas o fato de ser comprida, em português se evoca o fato de ela ser tão grande e pesada que normalmente era usada apenas por cavaleiros (daí «montante», a espada que se usa montado a cavalo). Guerreiros excepcionalmente grandes e fortes costumavam lutar usando montantes a pé para intimidar seus inimigos com sua força, mas isso era só uma exibição gratuita de ignorância, sem muito efeito bélico.

2 A piada do motorista barbeiro na Via Dutra. Um motorista seguia pela Via Dutra, enquanto ouvia o rádio e xingava os outros motoristas por suas barbeiragens. O rádio deu a notícia: «Atenção motoristas que trafegam pela Via Dutra no sentido São Paulo/Rio, há um maluco dirigindo pela contramão na altura de Resende.» O motorista ouviu isso e comentou consigo mesmo: «Nossa, eles não sabem de nada! Um só!!!? Ahahah!»


11
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 19:39link do post | comentar | ver comentários (3)
Esta semana, enquanto discutia a opinião de Paul Rabbit sobre James Joyce, acabei, sei lá como, psicografando Clarice Lispector. Se eu fosse espírita, esse seria um dos momentos em que eu me orgulharia de minha mediunidade. Com a vantagem de que o texto que escrevi expressa, praticamente sem ressalvas o pen­samento da autora — muito diferente das psicografias da moda, que em geral tem tanto a ver com a obra do autor espiritual quanto o proverbial ânus com as calças. Refiro-me a esta declaração de Clarice, numa de suas últimas entrevistas (agra­decimento a Victor de Toledo Stuani por me repassar o link e a transcrição):
"Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade."
Clarice estava se referindo ao papel que todos esperam que o profissional exerça, não só em relação ao nicho literário em que foi inserido ao longo do tempo, mas também em relação às opiniões e imagem que precisa manter em relação ao sistema. As mesmas ideias de Clarice eu expressei assim:

Equal é exatamente a diferença entre um escritor amador e um profissa? Pode parecer pouca, mas pare e pense, pense muito bem. Um autor amador como eu é um franco atirador. Eu escrevo o que quero, como quero. Publico no blog por­que quero, procuro editora na medida do possível e vou levando. Não preciso da litera­tura para nada além de satisfação pessoal (o que inclui o sonho de alguém algum dia notar que sou um gênio incompreendido e assinar comigo um con­trato de milhões de dólares e me dar um título honoris causa da Sorbonne).

Por isso eu posso ousar. Se ficar ruim, é porque é um trabalho amador. Se ficar bom, tapinhas nas costas e nem um centavo de reconhecimento. Posso também cri­ticar quem quiser, o quanto quiser (e bobo é quem se achar atingido por estas crí­ti­cas a nível pessoal), sabendo que minhas críticas «valem quanto pesam», ou seja, serão julgadas pela sua propriedade e não pelo meu currículo inexistente.

Não é a mesma coisa para um profissional. Ao se dedicar a literatura como meio de vida, como fonte permanente da grana que compra seu feijão (ou seu caviar, depen­dendo de quanto venda) o autor profissional passa a depender de vendas regu­lares. Isso inclui definir seu estilo, encontrar seu nicho, cativar seu público, etc. Não espere que um autor de FC, por exemplo, dê uma veneta de escrever poesia erótica, ou que um autor regionalista se meta a fazer FC hard. Eles até podem querer isto, mas o mercado não quer, o público leitor preconceituoso não quer. Poucos leitores de Stephen King leriam contos românticos de sua autoria. Pou­cos fãs de FC levariam a sério uma space opera de autoria de Rachel de Queiroz.

O mesmo se aplica às críticas: quando um autor famoso e profissional fala sobre lite­ratura as pessoas imaginam um mestre falando ex cathedra. Esse peso extra que as pessoas dão às opiniões dos profissionais faz com que elas não valham ape­nas o quanto pesam, valem o peso da vendagem, dos contratos, da publi­cidade, dos diplomas (mesmo honoris causa). Uma estupidez dita por um acadê­mico é estudada na imprensa. Uma crítica muito apropriada feita por um amador como eu será sempre entendida como uma ousadia inadequada. «Quem é você, seu bosta, para falar mal do livro do fulano?»

Isso significa que o autor que deseja ser profissional precisa começar a censurar-se. Precisa começar a enquadrar-se. «Erotismo demais para uma obra juve­nil», «ficção científica ambientada no interior de Minas Gerais é uma coisa ridícula», «ninguém está interessado em sua autobiografia». E o que já conse­guiu precisa policiar-se: «não fale mal de fulano, porque ele é um editor impor­tante», «faça algumas críticas elogiosas a sicrano e aumente suas chances de ir para a Academia»,«não diga uma coisa dessas, que isso pode ofender os res­pon­sáveis pelo sistema educacional».

Paul Lapine tem, entre suas raras qualidades, a liberdade de atacar o sistema. Porque o sistema foi lamber suas botas para dar um sopro de vida a uma Aca­demia caquética, cada vez menos relevante culturalmente e inflada de autores de nulo valor (como José Sarney (devidamente posto em seu lugar por Millôr Fer­nandes), Ivo Pitanguy (enquanto literato é um ótimo médico), Merval Pereira, Marco Maciel, Nélson Pereira dos Santos (apesar de ser um bom cineasta) e Eva­risto de Morais Filho. A verdade é que, por mais que eu deteste o trabalho de Pavel Krolik, ele é mais importante para a literatura do que todos esses juntos, e com um nariz de vantagem. Isso lhe dá a ousadia de falar mal de um dos santos do cânone ocidental, traduzido ao português por ninguém menos que Antônio Houaiss.

Minha opinião sobre Joyce, idêntica à de Paul Kaninchen, jaz amparada no sagrado direito de dizer bobagens que assiste aos amadores. Nós somos livres para não gostar do que não gostamos, não temos a obrigação de elogiar o que nos enfastia. Não somos maridos da grande literatura para suportá-la a todo custo.

Continuo, porém, mantendo a minha opinião sobre Ulysses, e não é um crítico britânico especialista em Joyce que vai me intimidar. Certamente há pessoas que gostam de Ulysses, tanto quanto há quem goste de vela quente e chicotada nas costas. De gustibus non eramus disputandum.

Há, porém, uma diferença fenomenal entre a opinião do Paolo Coniglio e a minha: eu desgosto de Joyce enquanto leitor, pois esse não é o tipo de literatura que me comprazo em ler (mas reconheço que Ulysses possui boas ideias, mistu­radas com outras horríveis e outras medíocres). Já o Pablo Conejo desgosta dele com a «otoridade» de um acadêmico, e um acadêmico precisa entender que nem todas as obras foram feitas para serem lidas pelo grande público, nem todo autor é assunto para se conversar na padaria. Se alguém me desancar pela minha opinião eu aguento o tranco sozinho e me refugio, acuado, na desculpa de que sou só um leitor, que também amadoristicamente escreve e palpita, mas o desancamento do Paul Konijn pelo crítico inglês salpica na Academia que o elegeu porque sugere que o mago é um simplório, um tosco, alguém que se iguala ao leitor de tabloides. Para vender ao leitor de tabloides, diga-se de pas­sa­gem. Um mercenário.

Na qualidade de não acadêmico e de amador, eu ainda tenho tempo de dizer boba­gens e não tenho assessoria que me impeça. O mesmo não se pode dizer de Paul Lapine, o prestidigitador. Que está começando a enfrentar, lá fora, o mesmo nível de rejeição nos meios literários de que já desfrutava por aqui. A ABL ainda se arrependerá de tê-lo eleito, mas não antes de arrepender-se de ter eleito o Merval.

URUBUSERVAÇÕES: Não é curioso que a ABL eleja com tanta facilidade polí­ti­cos e personalidades de direita, mesmo com nulo valor literário (além dos cita­dos, a Academia também já agraciou um general da Junta, o Aurélio Lira Tava­res, mas ignorou solenemente o Carlos Drummond de Andrade, que, afinal, era comunista).

Utilizei pseudônimos poliglotas para o autor em questão por duas razões. Pri­meiro porque ele é mais reconhecido por vender no mundo inteiro do que pelo valor de suas obras. Segundo que ele disse as bobagens que disse para se pro­mo­ver, obviamente, e eu não quero ajudar a encher a sua bola, nem mesmo se isso encher a minha também. Na qualidade de amador, reservo-me o direito disso.

24
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 08:12link do post | comentar

Será que somos tão sofisticados assim? A maioria dos autores celebrados por nossa crítica pratica um tipo de prosa quase ilegível, caracterizado pela exploração intensa, quase joyceana, tanto da sintaxe quanto da semântica, aliado a um ângulo narrativo sempre oblíquo e a uma sequência fragmentária. Os autores que praticam uma narrativa mais tradicional não são tão valorizados, não são considerados mais como geniais, mesmo que suas obras exalem competência, como se o seu estilo estivesse ultrapassado, mas o Finnegans Wake já passou de oitenta anos de idade, Ulysses já é quase centenário, o movimento concretista brasileiro já começou a enterrar os seus criadores, vitimados pela velhice. Alguma coisa me parece deslocada: soa-me como se houvesse dentro da academia uma facção afastada do mundo real e preocupada em escrever livros que ninguém lerá.

A quem interessa uma literatura tão difícil? Quem lê essas obras quebra-cabeça? Suspeito que são realmente poucos os leitores e suspeito mais: suspeito que sob a capa desta complexidade artificial muitas vezes reside uma superficialidade fútil, uma falta de boa história para contar, um conservadorismo estético e conceitual que já se petrificou.

Sempre fui um crítico do excesso de formalismo, até por razões ideológicas. Se ainda houvesse no mundo alguma coisa parecida com as escolas literárias do passado eu estaria tentando seguir uma escola oposta à que estou criticando. Mas o mundo de hoje é fragmentário e os diversos autores ficam sozinhos, dialogando contra o nada. Então quando você pensa diferente, fica fácil os que pensam igual o tacharem de imodesto ou até de termos menos elegantes: nesse mundo em que a comunicação se tornou tão fácil, pode ser uma atividade bem solitária a de autor.

Enquanto pululam autores interessados em reinventar e reinverter ideias de como esconder o que não querem dizer, o mercado segue dominado pela literatura estrangeira. Boa parte de nossos autores locais parece ter desistido de lutar pela alma do leitor comum, abandonaram-no ao massacre da cultura importada, talvez porque eles próprios tenham se abandonado a tal massacre. E não deixa de ser curioso que os escritores dos «países centrais» não tenham essa preocupação de numerar capítulos usando uma tábua Ouija, de desencavar paralelismos semânticos a cada parágrafo, de referenciar cinco deuses mitológicos Ashanti em cada página ou de narrar como em um sonho de Freud. O formalismo está fora de moda nas literaturas que imitamos. Nossa literatura tem uma vanguarda tão vanguarda que deixou para trás até mesmo as vanguardas mais avançadas. Avançou tanto que deixou todo mundo para trás e se perdeu na floresta.

Não faço parte desta vanguarda. Sou um construtor de personagens e de cenas. Não curto esse lance de palavras valise ou de emprego do quiasmo como recurso expressivo. Minha literatura é bem mais simples e por isso eu nem tentei sair na Granta. Mas não estou com isso tentando dizer que considero a ignorância um fator positivo. Não saber as coisas não é uma distinção. Arte «naïf» é um conceito que não faz sentido para mim: ou o artista tem uma formação ou não tem. Supor que seja possível algum tipo de inocência criativa é, em si, uma inocência. Minha formação certamente é incompleta e divergente porque não li os livros canônicos e, se os li, foi fora da ordem recomendada, fora do contexto recomendado. Como resultado, fiquei pensando diferente do que eu deveria estar pensando se tivesse seguido a programação determinada.

E na minha programação, consta que a literatura deva ter uma preocupação social, nacional e humana. Que isto vai acima da preocupação formal, que isto é mais importante do que mostrar que consegue empregar uma rara figura de linguagem extraída da antiga literatura oriental, mais importante do que demonstrar erudição sobre povos e culturas que não fazem parte de nossa realidade imediata e nem de nossa história. Com um pouco de ousadia e iconoclasmo, chego a dizer que existe em mim uma certa influência do realismo socialista, só me falta aperfeiçoar a ideia um pouco e tolerar que minha versão deste seja «tropicalizada» com algumas características dos autores que mais me influenciaram: Guimarães Rosa, Lima Barreto, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Ignacio de Loyola Brandão, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira — e mais alguns que eu sempre esqueço quando começo a fazer uma lista. E julgo curioso também que quando começo a fazer tais listas, embora eu tenha lido muito autor gringo, eu só consigo encontrar seis nomes entre eles que ressoaram nas cordas de meu coração, cinco gênios e outro nem tanto, mas gosto não se discute: Jorge Luis Borges, John Banville, Stephen King, D. H. Lawrence, Evgeni Evtushenko e Julio Cortázar.


20
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 12:34link do post | comentar | ver comentários (1)

Esta semana tive o prazer de ler o mais novo conto deste jovem autor. Como de todas as outras vezes, me restou o queixo caído e uma profunda inveja. Inveja positiva, não essa inveja que tenta apagar o sol alheio que incomoda sua treva pessoal. Tive deixar-lhe um comentário, que aqui reproduzo.

Felipe, eu não preciso repetir o que penso de sua obra. Você sabe muito bem que, em certos momentos, eu quase tenho vontade de lhe pedir um autógrafo. Este conto foi um desses momentos.

Um autor se torna grande quando consegue escrever uma grande obra sem ter uma "grande" história. Um autor pequeno vai procurar escrever, no mínimo, sobre o fim da civilização ou a destruição até de um universo. Seus personagens precisarão ser fisicamente gigantes para esconderem a pequenez de sua alma.

Mas o grande autor não precisa de histórias 'grandes' e nem de 'grandes' histórias, ele engrandece as histórias que escolhe contar, mais ou menos como o músico habilidoso que pega um tema popular e o transformar em uma sinfonia. Não pense encontrar nada parecido com as Rapsódias Húngaras de Liszt no folclore da Hungria, nem que os caipiras toquem rabeca e viola como em uma bachiana de Villa-Lobos.

Esse seu texto é absolutamente um exemplo da razão pela qual eu acho que você é, ou ainda será, um grande autor. Não existe absolutamente NADA nele além de seu talento. Ninguém morre, ninguém nasce, nenhuma civilização desaparece, nenhum vampiro se transforma em lobisomem ou coisa parecida. Está o leitor apenas diante dos meandros de sua alma sofisticada e das histórias absolutamente banais, porém universais, que você capta no dia a dia.

Essa sua característica tem algo de Machado de Assis. Sua ficção evoca fortemente o melhor da obra machadiana no aspecto do romanceamento do nada ou do quase-nada. Se você não prestar muita atenção à leitura de Dom Casmurro poderá achar que é apenas a biografia de um resmungão que nada viveu. O mesmo se passa com esse seu conto, entre tantos outros: somente quem lê com talento (é preciso um certo talento para ler) perceberá as minuciosas mudanças e tragédias que ocorrem no fundo da alma dos dois personagens.

A incompreensão de seu protagonista também me evoca o Mersault, d'O Estrangeiro, que matou um desconhecido porque "o sol estava quente". Este estranhamento do homem em relação à própria vida, e à alheia. Todos os seus personagens são absolutamente trágicos, mas não precisam matar e nem matar-se para isso: o modo como vivem é a própria tragédia.

Parabéns por este conto, e confesso que já estou começando inconscientemente a me tornar seu imitador.


29
Jan 12
publicado por José Geraldo, às 11:50link do post | comentar | ver comentários (1)

Há algumas semanas descobri que o meu amigo Flávio Sousa, pela primeira vez em anos, resolveu abrir um blog e divulgar seus escritos. Para alguém que é vocalista de grupo musical seria natural fazer poesia, mas ele é ficcionista — e dos bons. Pena que seja tão tímido para mostrar suas histórias, e pena ainda maior que escreva tão bissextamente. A descoberta me excitou com a possibilidade de avaliar como anda evoluindo a escrita do meu amigo, por isso lhe mandei um e-mail perguntando-lhe se ele aceitaria que eu fizesse um comentário sobre seu novo conto.

Flávio de Sousa é um jovem (já nem tanto, mas sempre mais do que eu) músico e escritor mineiro. Mineiro de Cataguases, como poderia enfatizar Washington Magalhães1. Conheço-o pessoalmente desde há tanto tempo que nem me lembro direito quando, mas ainda me lembro da circunstância: ele era um rapazola magro, espinhudo e usava óculos. Líamos na Biblioteca Municipal de Cataguases e estudávamos na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Ele ficou sabendo que eu estava organizando uma revista literária e me procurou com textos. De lá para cá continuamos amigos, embora raramente nos vejamos. Flávio é uma dessas pessoas das quais você não precisa de nenhum motivo para gostar, você simplesmente começa a conversar e percebe que o papo flui, que as ideias são interessantes e por isso, naturalmente, você acaba entornando várias cervejas para regar a história, sem ver o tempo passar. Faço questão de dizer isso porque jamais um de nós salvou a vida do outro ou lhe fez qualquer favor: nossa amizade existe porque simplesmente os santos combinam. Amizade de verdade é assim.

Atualmente Flávio é vocalista de um grupo de heavy metal chamado Spectrum. Como eu gosto do gênero, ele imaginou que eu gostaria de conhecer o seu trabalho. Por isso, tão logo o grupo gravou seu primeiro CD, em 2010, ele fez questão me presentear com um exemplar. Na época eu me senti constrangido com o presente porque me lembrava do desastre que fora o meu comentário sobre um conto dele, anos antes (mais sobre isso a seguir). O CD me queimou nas mãos quando o peguei porque, obviamente, Flávio queria minha opinião. Porque, obviamente, a minha opinião tinha que ser sincera, pois eu não acho honesto com um amigo mentir para agradar. E eu tinha receio de que minha crítica pudesse chateá-lo, como o episódio do conto chateara.

Essas dúvidas, porém, se dissiparam quando ouvi a música. Apesar da produção não ser a melhor possível (a voz dele ficou em alguns momentos pisoteada pelo peso das guitarras), o som é bastante limpo e claro para que se possa avaliar a qualidade das composições. Pena que são só quinze minutos de música. Não foi um sacrifício ouvir o CD, muito pelo contrário. Até o ripei e coloquei na minha coleção de música digital. Apesar de não ter gostado muito da primeira faixa («Cuidado com o Diabo») por achar a letra pueril demais e por ser justamente aquela em que a voz do Flávio ficou pior, as outras três são interessantíssimas, especialmente «O Irolevo», que é algo totalmente inesperado para uma banda de heavy metal, gênero cujos praticantes valorizam mais a mitologia nórdica, celta ou greco-romana. Trata-se de um rock pesado baseado no folclore brasileiro! É uma canção que se destaca das outras três, pela melodia mais elaborada, pelo vocal mais entregue. Deixo para a perspicácia do leitor descobrir o que significa o título.

Pois bem, na época eu não tive dúvidas em dizer ao meu amigo que o disco tinha ficado bom. Em outros tempos, talvez a banda tivesse até potencial para chegar ao sucesso. Mas hoje… se ao menos eles fossem mulheres e tivessem bundas bonitas! Como fazer sucesso fazendo música sem falar de sexo, beber até cair, chifre de namorada ou «pegação»? O resulto é esse que está aí: no ano de 2011 somente uma entre as 50 canções mais tocadas foi do gênero rock'n'roll. Respeito muito o talento dos caras do Spectrum, mas é uma pena que o mundo de hoje não respeite.

Como já disse antes, houve uma vez em que comentei um texto do Flávio, na melhor das intenções, e acabei «pegando pesado» demais. Nem eu nem ele tínhamos a maturidade que temos hoje para lidar com estas coisas, mas ele, pelo menos, já tinha a maturidade de não deixar uma coisa dessas ficar no caminho da amizade.

O texto em questão era um conto sobre uma visita a uma casa abandonada. A casa era real, um prédio histórico localizado no centro de Cataguases, Minas Gerais, recentemente demolido em nome da especulação imobiliária, quando deveria ter sido restaurado pelo seu valor histórico.2. Lembro-me vagamente, não retive nenhuma linha do texto propriamente dito. Apenas me recordo que era a história de dois jovens que, para pagar uma aposta, passavam a noite na casa, que tinha a fama de mal-assombrada, aproveitando o tempo para explorar o lugar, tecer comentários sobre o tipo de gente que fora responsável por aquela construção e nela vivera etc., enquanto evitavam chamar a atenção dos vizinhos ou da polícia, que os prenderia sob suspeita de atos obscenos ou consumo de drogas.

Minha reação diante do texto foi de espanto. Gostei muito do modo como o Flávio organizou a história. Impressionou-me particularmente sua descrição do interior da casa e o modo como conseguiu fazer com que fosse interessante a narrativa de dez horas sem nenhum acontecimento fora das imaginações dos personagens. Foi narrando esta impressão que eu comecei a responder, via e-mail, o pedido de comentário que o meu amigo fizera. Porém, para ser honesto, era preciso também apontar as falhas do texto. Para um autor que escreve a intervalos irregulares, o Flávio obviamente escreve bem, bem demais. Mas a falta de treino cobra o seu preço na forma de tergiversações excessivas, que às vezes cansam, parágrafos inteiros que ficam supérfluos, erros de pontuação ou de ortografia etc. Talvez o meu rigor em enumerar as falhas tenha assustado o meu amigo, que ficou anos sem me mostrar qualquer coisa que tivesse escrito. Temo até que ele tenha ficado anos sem escrever.

No dia seguinte Flávio me respondeu, simpaticamente como sempre, acrescentando a parte final do conto, que ainda estava inédita (foi publicada no decorrer da semana que está acabando). Copiei então as partes que já estavam no blog, acrescentei a parte final, montando o texto todo em uma sequência, como prefiro ler, e dediquei cerca de quarenta minutos a lê-lo e entendê-lo.

«Furo no Futuro» é uma história difícil de classificar. Certamente não é um conto realista, mas não é exatamente nem fantasia e nem ficção científica. Prefiro dizer apenas que é uma história fantástica (use os sentidos que quiser para a palavra) sobre um caso de dopplegänger (não foi na Wikipedia que eu aprendi essa palavra, mas você a encontra muito bem explicada lá).

Como toda boa história fantástica, a explicação não é óbvia. Precisei ler duas vezes para achar que entendi. Talvez uma terceira leitura me traga uma terceira opinião. Diferentemente do primeiro texto do Flávio que eu li, neste acontece muita coisa, e em um ritmo tão frenético que é até difícil assimilar. Os cortes narrativos, com mudança de tempo/espaço/narrador (ainda que uma boa parte da ação ocorra em flashback), levam o leitor em ziguezague, como as imagens de um clipe.

Narrativamente falando, Flávio continua seguro. Talento ele tem, isso fica óbvio dentro de poucos parágrafos. Infelizmente, porém, o texto não me parece uma obra acabada. A impressão de provisório se instala a cada cena, culminando em três pontos-chave da história.

No diálogo entre a personagem Cláudia e sua tia (aqui chamada «Drica», sem qualquer explicação para um tratamento tão incomumente informal entre tia e sobrinha) as falas são introduzidas pelo que parecem ser marcações de teatro ou indicações de um rascunho. No diálogo entre o personagem Tales e o delegado, além da repetição do problema das introduções de diálogo, ainda temos a construção apressada da cena, que falha em produzir o necessário clima de suspense. A cena final, por sua vez, embora seja bem sucedida em explicar a natureza do fado que sobreveio ao quieto Tales, falha no efeito de embasbacamento que deveria provocar no leitor. Ou eu estou sendo muito rigoroso nesse ponto, possivelmente.

Gostaria de ressaltar que a questão das marcações de teatro pode não ser um problema, se o texto no geral assumisse uma ousadia narrativa e tentasse se organizar de uma forma diferente da narrativa tradicional. Só coloquei as marcações como um problema porque estão em desacordo com a estrutura geral do texto.

É sempre difícil, para mim, comentar a obra de outro escritor amador como eu, porque sempre me vejo tentado a observar de que maneira diferente eu mesmo teria organizado a história. Não é diferente neste caso: eu certamente teria disposto as cenas em uma ordem muito diferente. Não necessariamente melhor, mas diferente. A cena de Cláudia na ponte poderia abrir o texto de forma mais eficaz, em minha opinião, do que as tergiversações sobre o medo. O diálogo entre ela e sua tia, bastante reduzido ao essencial, seria dividido em duas partes, uma logo ante da cena de sangue e outra ao final. O problema com a minha ideia é que ela tornaria desnecessário o aspecto fantástico — e isto, talvez, matasse o próprio sentido da história, a motivação que levou Flávio a escrevê-la. Acontece que somos pessoas diferentes, com valores diferentes, com objetivos diferentes. Naturalmente produzimos obras diferentes e eu não posso julgar a obra dele pela semelhança com a minha. Na cabeça de Flávio, o verso de Raul Seixas tem uma importância tão grande que ele o usa como epígrafe (aliás, o motivo de eu ter pensado em usar a cena da ponte como abertura do texto se deve ao fato de a citação do Raul aparecer antes dela). Na minha cabeça o conflito pessoal de Tales seria mais importante e Cláudia, apenas um instrumento do narrador para evitar a onisciência. Se eu reescrevesse o conto ele seria diferente, não necessariamente pior ou melhor, apenas diferente — e não teria aquilo que o torna especial para o Flávio.

Por essa razão, em vez de fazer recomendações sobre a estrutura narrativa propriamente dita (no máximo aludo às escolhas que eu teria feito, deixando claro que o faço sem nenhuma pretensão), prefiro avaliar o impacto do texto sobre o leitor. Acredito que a finalidade de uma obra literária não é a perfeição absoluta, «parnasiana», mas esse efeito que produz sobre o leitor e o muda, de alguma forma. Quando um texto sucede em fazer com que o leitor pense — o que é cada vez mais difícil hoje, por culpa do leitor, não do texto — é preciso reconhecer o seu valor. Eu pensei muito lendo «Furo no Futuro», mas percebi que poderia ter pensado mais, que poderia ter ficado mais «encucado» com as coisas que li (ou que não li, por estarem nas entrelinhas).

Por isso minha única recomendação ao autor é que madure mais o seu texto, que pratique mais. O talento está lá, em estado bruto e pulsante. Falta a segurança. Se a escrita de Flávio fosse uma bicicleta ele a pedalaria com ziguezagues ocasionais, perdendo um pouco de embalo nas subidas e freando com excessivo cuidado nas curvas. Mas um pouco mais de prática lhe permitirá andar quase o tempo todo em linha reta, ter força nas pernas para aguentar as subidas e coragem para entrar inclinado nas curvas, sem ter de frear. Eu gostaria muito que ele se dedicasse a esse treino, especialmente por causa de textos como o mini-conto «Reencontro», que saiu na revista «Verbo» e que ele não publicou ainda no blogue. Naquele texto, muito mais do que neste, a força da escrita de Flávio rasga e grita seu espaço na cena. Mas estou sendo justo ao cobrar isso de um cara que já demonstrou um talento excepcional em outra arte?

1 Em recente conversa, regada a generosas doses de vodca com gelo, o escritor cataguasense Washington Magalhães, mostrando-me na capa de sua revista, Tic-Tac, as reproduções das capas de mais de uma centena de obras literárias escritas por autores nascidos na cidade, comentou que em quase todas elas os autores, ou seus prefaciadores, fizeram questão de usar a expressão mineiro de Cataguases. Para Magalhães, esta insistência indica duas coisas: primeiro, um entendimento de que os mineiros de Cataguases não são exatamente como os outros mineiros, precisando ser deles diferenciados e segundo, uma espécie de «grife» literária que o município adquiriu desde os longínquos tempos da Revista Verde. Para mim a expressão não tem nada demais e é apenas uma maneira convencional de se aludir à origem do autor, comum em qualquer biografia. Como sempre acontece nesse tipo de discussão, não se chegou a um acordo, mas bebeu-se bastante.

2 Cataguases é uma cidade curiosa, onde primeiro demolem e destroem tudo quanto há de bonito ou digno de nota, depois querem atrair turistas para ver seu «patrimônio histórico». Em minha curta vida tive a dor de acompanhar impotente a destruição de pelo menos quatro prédios belíssimos que havia no centro da cidade, todos substituídos por construções totalmente desprovidas de estética, planejadas por um arquiteto sem imaginação e executadas em nome da grana bruta e absurda, que terraplena a beleza para abrir caminho no mundo.


11
Set 11
publicado por José Geraldo, às 21:17link do post | comentar | ver comentários (5)

O sucesso não é algo que cai do céu, não é algo imponderável, não é um privilégio para escolhidos. Existe uma fórmula para chegar até ele e obter o que você deseja só depende de você. Para isso você precisa seguir os passos de quem já chegou lá, de preferência os de quem está chegando lá atualmente. Aprenda a ser bom, seguindo os melhores.

Este texto não pretende ser infalível, mas contém dicas seguras para você que não vê a hora de ter seu livro nas prateleiras das grandes livrarias e sua história adaptada para o cinema ou, modestamente, em uma mini série da Globo. O Prêmio Jabuti e um convite para a FLIP podem estar ao seu alcance, basta querer.

A dica mais importante é a que já está escrita um pouco acima: junte-se aos bons para ser um deles. Como se diz popularmente: quem se mistura aos porcos, come lavagem. Você não quer lavagem, você quer caviar de esturjão do Mar Cáspio acompanhado por Romanée Conti.

Quando você vai construir uma casa, podendo escolher, você não vai fazê-la no brejo, nem na beira do rio, nem em um barranco pedregoso e nem no meio do nada. Sua obra literária é a sua “casa” no mundo das letras, construa-a no melhor terreno que puder. E o melhor “terreno” é aquele que fica nos melhores bairros, vizinho dos bons nomes. A seguir temos uma lista de excelentes temas para o seu trabalho. Muita gente está ganhando dinheiro nesses “ramos”, então você não tem como errar.

Vampiros
Por razões óbvias
Lobisomens
Você provavelmente os incluirá se tiver escolhido o item anterior, mas eles também podem funcionar muito bem sozinhos, ou acompanhados de outros personagens
Uma garota solitária que convive com garotos bonitos
Idealmente essa garota terá passado por alguma circunstância triste, que a obrigou a viver em um lugar onde há tantos garotos bonitos
O cara mais bonito da escola se apaixona pela garota esquisita e/ou impopular
Possivelmente ela pertence a uma minoria étnica, tem algum tipo de relação com magia, é uma espiã alienígena ou então possui algum tipo de raro defeito físico ou dote
Um homem e uma mulher que se odeiam mas são forçados a permanecer juntos por um certo tempo e acabam se apaixonando
O motivo de ficarem juntos pode ser uma aposta, um naufrágio, uma catástrofe natural, uma invasão alienígena ou, idealmente, um feitiço
O clássico conto de fadas da princesa
No qual o príncipe se apaixona por uma garota plebeia inteligente, bonita, simpática, cheia de personalidade mas “comum” demais para os padrões da família real
Encontros amorosos em hospitais, necrotérios, cemitérios, igrejas, castelos abandonados, necrópoles arruinadas ou lugares assombrados
Afinal, nada é mais romântico do que a proximidade com doença, morte, sujeira, germes e… fantasmas, bruxas, duendes, lobisomens!
O amor do aluno pela professora, ou da aluna pelo professor (ou vice-versa)
Apenas tenha o cuidado de evitar uma diferença de idade maior que dez anos (isso seria bléargh!) e ambos têm de ser bonitos (afinal, professores são quase todos jovens e bonitos)
O amor por um fantasma
Além de todas as vantagens da história romântica tradicional, esta ainda tem um plus: devido à impossibilidade de contato físico entre os pombinhos, a história será considerada “segura para todas as idades”
A paixão da vítima pelo sequestrador
Isso não é uma condição psicológica e nem uma estratégia de sobrevivência, é amor do mais puro e verdadeiro
A paixão súbita entre dois amigos
Essas coisas acontecem o tempo todo, então ninguém vai achar estranho. Mas para dar mais realismo à história os dois têm que ser bonitos, bem resolvidos e sem preconceitos. Um deles ser famoso ajuda a tornar a história mais quente.
Super poderes
Nada mais interessante do que ler sobre pessoas comuns que ganham super poderes e resolvem todos os problemas do mundo. Isso inclui garotos sofridos que descobrem que são especiais em um universo paralelo ou garotas sofridas que descobrem ter o poder de matar ou destruir com as suas palavras
Cartas de amor
Pessoas apaixonadas escrevem cartas o tempo todo (e guardam cópias para futura publicação)
Fan fiction
Não são só os fãs da sua série de mangá favorita que vão se interessa em ler os “episódios perdidos” que você criou: todo mundo vai querer ler
Casamentos arranjados
Mas cuidado: no decorrer da história os noivos devem apaixonar-se de verdade e enfrentar uma série de inimigos que vão tentar separá-los. Um desses inimigos será o homem por quem a mocinha pensava estar apaixonada antes de casar-se. O noivo em hipótese alguma forçará a noiva a consumar o casamento, mas será paciente e atencioso até cativá-la
Escrever textos de auto ajuda ensinando os outros a fazer coisas
Porque o mundo está cheio de pessoas que gostam de seguir o que os outros fazem ou mandam fazer

Caso a sua obra não se baseie em nenhuma destas histórias você precisará se acostumar com a ideia de que será pouco lido e receberá poucos comentários. Também ganhará pouco com os cliques no AdSense e dificilmente receberá uma carta de uma grande editora estrangeira se oferecendo para traduzir e publicar sua heptalogia mediante um adiantamento de quinhentos mil dólares pelos direitos do livro um e mais 250 mil a cada novo livro completado.


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