Marina leva a xícara aos lábios e, ao vê-los refletidos no café negro, se despe da dureza que vestiu nos últimos meses. “Que falta me faz a Luísa” — confessa em voz alta, sabendo que não há ninguém perto para ouvir.
O último diário de Luísa jaz sobre a mesa do café, ainda lacrado. Justamente neste momento Marina está refletindo sobre o que ainda não leu, enquanto lembra o que viveram.
Um mês da morte de Luísa. A gente não se acostuma com isso, acho que nunca nos acostumamos. Para Marina foi um mês de desinteresse da vida, um mês de purgatório em que mecanicamente foi de casa ao trabalho e vice-versa.
No verso da capa está anotado um telefone, em letras grandes, gordas, escuras, difíceis de não ver.
“Ela queria que eu ligasse” — pensa Marina. “Mas eu não vou fazer isso de jeito nenhum.”
E sorve um gole de café.
O dia tinha sido intenso. Trabalhara como poucas vezes. Apenas a amiga cafeteira a entendia, e lhe fazia um café negríssimo em poucos instantes, para acordá-la para a noite. Hora de terminar o café, começar o banho, continuar a vida.
Ouviu o interfone justamente quando depositou a xícara na mesa. Uma sincronicidade dessas que a vida tem. Tentou ignorar, ele insistiu. Adiou o ritual diário de purificação e foi atender o aparelho ainda com a alma sofrida.
Ricardo.
— Luísa me pediu que a procurasse. Aqui é o Ricardo, lembra de mim?
Marina já tinha pensado que sim, mas também que gostaria de esquecer. Estava preparada, só que não.
— Sobe, Ricardo.
Abriu a porta quando escutou os passos no corredor. O impacto denunciava que ele ainda continuava com a moda estranha daquelas botas de salto, estilo vaqueiro de cinema. Era ridículo, mas às vezes não era.
— Boa noite, a Luísa me pediu que te procurasse.
Marina franziu o cenho.
— Quando? Tantas semanas…
— Antes, claro.
— Para que?
— Bem. Fomos as pessoas de quem ela mais gostou. Seu namorado, a melhor amiga.
“Ele não sabe de nada”.
— Acho que você está enganado. Estávamos rompidas desde meses. Discussão muito séria. Eu disse coisas feias, ela saiu daqui muito magoada comigo. Não creio que eu fosse mais sua “melhor amiga”.
— Não foi o que ela me disse. Na carta que mandou, disse que lhe amava muito e que entendia o modo como você se sentiu.
Os olhos dela brilharam.
— Uma carta? Ela escreveu?
— Sim.
— Posso ver?
— Não. Ela pediu que eu queimasse.
Marina engole em seco. Mas não deixa transparecer. Uma carta somente para os olhos dele, coisa de filme de espionagem. Somente a mentalidade infantil de Luísa pensaria nalgo assim.
— Acredito que nós temos coisas muito importantes a dizer um ao outrohellip; um dia. Ainda é cedo. Vamos deixar que o tempo pense, que Luísa ache descanso e que nós nos ponhamos as cabeças no lugar. Depois vamos ver o que há para dizer.
— Eu vim em busca de respostas. A carta só tinha perguntas.
— Isso, infelizmente, não posso dar. Todas as que tenho provavelmente são as que você já teve, ou as que você não quer.
Marina viu os olhos de Ricardo se aquecerem por um momento e se lembrou do esforço que devia custar ao pobre estar ali, falando-lhe naquele tom. Principalmente se suspeitava de algo. Ele não era um cara passivo e honesto, desses que sabem esperar a vez. Somente o choque da morte de Luísa o amansava o suficiente para esperar no umbral da porta, sem meter o pé e entrar à força. Mas, de algum jeito, Marina tinha dó dele não entrar.
— Olha, meu bem, vamos fazer o seguinte. Você volta para sua casa e nós deixamos alguns meses se passarem. Eu ainda não me sinto pronta para conversar a respeito da Luísa e posso ver perfeitamente que você também não está. De acordo?
Ele fez que sim em um gesto breve. Aliviado.
— Tudo bem. Mas quando?
— Te convido a vir tomar um chá aqui em casa dentro de três meses, ou nunca. Pode ser?
— Três meses ou nunca?
— Se dentro de três meses você não quiser mais conversar comigo sobre a Luísa, então terá sido melhor assim.
— Talvez tenha razão. Combinados.
“Ele topou” — Marina sorriu — “e ganhei tempo.”
Ricardo despediu-se educadamente, apesar de não ter sido sequer convidado a entrar, e desceu a rua sem olhar para trás.
Quando ele terminou de descer as escadas, ficou olhando brevemente para o branco da porta recém pintada. Para cobrir a tinta cor de rosa que Luísa sugerira. Estendeu o braço e arrancou com a unha um naco da pintura, revelando a cor antiga, dolorida ainda.
Tinha sido somente naquele dia, pela manhã, que tivera alguma aventura alheia à rotina. Antes do serviço passara no correio para abrir a caixa postal. Dentro do escaninho estava um envelope grande, contendo a pequena preciosidade. Do lado de fora havia a recomendação: entregar somente em 09 de março. Alguém servira de portador à última vontade dela.
“Que surpresas você reservou para o fim, minha amiguinha?”
Dentro do envelope havia uma caixa lacrada, contendo somente aquele caderno de capa dura, monocromática e escura. Um caderno grosso e grande e sério. Bem diferente dos antigos cadernos de escola, tão coloridos e cheios de fantasia. Uma capa verde-escura. Verde-morta.
Na capa, uma etiqueta adesiva onde se lia “de: 01/01/85 — a: ++/++/++”. As cruzes acrescentadas firmemente com outra caneta, meses depois.
Estava embrulhado em celofane e preso por um barbante. Tivera de romper o lacre cuidadosamente para preservar o papel. Tinha essa mania de tentar abrir embrulhos sem estragar o envoltório. Luísa sabia disso, usara um barbante porque fitas adesivas teriam estragado o frágil celofane.
Na primeira página nenhum título, só um desenho feito com esferográfica. A paisagem parece invernal, espectral, por causa da tinta azul clara de uma caneta velha. Um papel solto cai ao chão. Nele se lê:
“Frutos, dão-nos as árvores que vivem,
“Não a iludida mente, que só se orna
“Das flores lívidas
“Do íntimo abismo.”
Sem assinatura, mas é Fernando Pessoa. Marina sabe de onde o tiraram. Só não desconfia do motivo de estar ali. Nas costas do papel, um telefone.
“Ela queria que eu ligasse, e eu não liguei.”
O último diário de Luísa jaz sobre a mesa do café, ainda lacrado. Justamente neste momento Marina está refletindo sobre o que ainda não leu, enquanto lembra o que viveram.
Um mês da morte de Luísa. A gente não se acostuma com isso, acho que nunca nos acostumamos. Para Marina foi um mês de desinteresse da vida, um mês de purgatório em que mecanicamente foi de casa ao trabalho e vice-versa.
No verso da capa está anotado um telefone, em letras grandes, gordas, escuras, difíceis de não ver.
“Ela queria que eu ligasse” — pensa Marina. “Mas eu não vou fazer isso de jeito nenhum.”
E sorve um gole de café.
O dia tinha sido intenso. Trabalhara como poucas vezes. Apenas a amiga cafeteira a entendia, e lhe fazia um café negríssimo em poucos instantes, para acordá-la para a noite. Hora de terminar o café, começar o banho, continuar a vida.
Ouviu o interfone justamente quando depositou a xícara na mesa. Uma sincronicidade dessas que a vida tem. Tentou ignorar, ele insistiu. Adiou o ritual diário de purificação e foi atender o aparelho ainda com a alma sofrida.
Ricardo.
— Luísa me pediu que a procurasse. Aqui é o Ricardo, lembra de mim?
Marina já tinha pensado que sim, mas também que gostaria de esquecer. Estava preparada, só que não.
— Sobe, Ricardo.
Abriu a porta quando escutou os passos no corredor. O impacto denunciava que ele ainda continuava com a moda estranha daquelas botas de salto, estilo vaqueiro de cinema. Era ridículo, mas às vezes não era.
— Boa noite, a Luísa me pediu que te procurasse.
Marina franziu o cenho.
— Quando? Tantas semanas…
— Antes, claro.
— Para que?
— Bem. Fomos as pessoas de quem ela mais gostou. Seu namorado, a melhor amiga.
“Ele não sabe de nada”.
— Acho que você está enganado. Estávamos rompidas desde meses. Discussão muito séria. Eu disse coisas feias, ela saiu daqui muito magoada comigo. Não creio que eu fosse mais sua “melhor amiga”.
— Não foi o que ela me disse. Na carta que mandou, disse que lhe amava muito e que entendia o modo como você se sentiu.
Os olhos dela brilharam.
— Uma carta? Ela escreveu?
— Sim.
— Posso ver?
— Não. Ela pediu que eu queimasse.
Marina engole em seco. Mas não deixa transparecer. Uma carta somente para os olhos dele, coisa de filme de espionagem. Somente a mentalidade infantil de Luísa pensaria nalgo assim.
— Acredito que nós temos coisas muito importantes a dizer um ao outrohellip; um dia. Ainda é cedo. Vamos deixar que o tempo pense, que Luísa ache descanso e que nós nos ponhamos as cabeças no lugar. Depois vamos ver o que há para dizer.
— Eu vim em busca de respostas. A carta só tinha perguntas.
— Isso, infelizmente, não posso dar. Todas as que tenho provavelmente são as que você já teve, ou as que você não quer.
Marina viu os olhos de Ricardo se aquecerem por um momento e se lembrou do esforço que devia custar ao pobre estar ali, falando-lhe naquele tom. Principalmente se suspeitava de algo. Ele não era um cara passivo e honesto, desses que sabem esperar a vez. Somente o choque da morte de Luísa o amansava o suficiente para esperar no umbral da porta, sem meter o pé e entrar à força. Mas, de algum jeito, Marina tinha dó dele não entrar.
— Olha, meu bem, vamos fazer o seguinte. Você volta para sua casa e nós deixamos alguns meses se passarem. Eu ainda não me sinto pronta para conversar a respeito da Luísa e posso ver perfeitamente que você também não está. De acordo?
Ele fez que sim em um gesto breve. Aliviado.
— Tudo bem. Mas quando?
— Te convido a vir tomar um chá aqui em casa dentro de três meses, ou nunca. Pode ser?
— Três meses ou nunca?
— Se dentro de três meses você não quiser mais conversar comigo sobre a Luísa, então terá sido melhor assim.
— Talvez tenha razão. Combinados.
“Ele topou” — Marina sorriu — “e ganhei tempo.”
Ricardo despediu-se educadamente, apesar de não ter sido sequer convidado a entrar, e desceu a rua sem olhar para trás.
Quando ele terminou de descer as escadas, ficou olhando brevemente para o branco da porta recém pintada. Para cobrir a tinta cor de rosa que Luísa sugerira. Estendeu o braço e arrancou com a unha um naco da pintura, revelando a cor antiga, dolorida ainda.
Tinha sido somente naquele dia, pela manhã, que tivera alguma aventura alheia à rotina. Antes do serviço passara no correio para abrir a caixa postal. Dentro do escaninho estava um envelope grande, contendo a pequena preciosidade. Do lado de fora havia a recomendação: entregar somente em 09 de março. Alguém servira de portador à última vontade dela.
“Que surpresas você reservou para o fim, minha amiguinha?”
Dentro do envelope havia uma caixa lacrada, contendo somente aquele caderno de capa dura, monocromática e escura. Um caderno grosso e grande e sério. Bem diferente dos antigos cadernos de escola, tão coloridos e cheios de fantasia. Uma capa verde-escura. Verde-morta.
Na capa, uma etiqueta adesiva onde se lia “de: 01/01/85 — a: ++/++/++”. As cruzes acrescentadas firmemente com outra caneta, meses depois.
Estava embrulhado em celofane e preso por um barbante. Tivera de romper o lacre cuidadosamente para preservar o papel. Tinha essa mania de tentar abrir embrulhos sem estragar o envoltório. Luísa sabia disso, usara um barbante porque fitas adesivas teriam estragado o frágil celofane.
Na primeira página nenhum título, só um desenho feito com esferográfica. A paisagem parece invernal, espectral, por causa da tinta azul clara de uma caneta velha. Um papel solto cai ao chão. Nele se lê:
“Frutos, dão-nos as árvores que vivem,
“Não a iludida mente, que só se orna
“Das flores lívidas
“Do íntimo abismo.”
Sem assinatura, mas é Fernando Pessoa. Marina sabe de onde o tiraram. Só não desconfia do motivo de estar ali. Nas costas do papel, um telefone.
“Ela queria que eu ligasse, e eu não liguei.”
Leopoldina, 30 de abril de 2005
revisado em 10 de março de 2013
com a harmonização temporal
e inversão da primeira cena para o fim.
revisado em 10 de março de 2013
com a harmonização temporal
e inversão da primeira cena para o fim.