Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
14
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 21:45link do post | comentar | ver comentários (1)

Dei-me conta disso por causa de um desses movimentos literários altruístas e anticapitalistas que surgiram por aí. Acho que o nome é «Doe um Livro», ou coisa parecida. Eu estava esperando em uma fila de banco, ocasião em que o bom gosto fica seriamente comprometido e você pode se pegar lendo com interesse o verso de sua fatura de cartão de crédito ou uma brochura publicitária esquecida por um cliente que foi embora. Estava eu justamente desesperado em busca de letras para ler quando uma moça bonita, apesar do estranho piercing negro em seu nariz, que parecia um troço de catarro, me ofereceu um livro.

— Não, obrigado — recusei educadamente como minha mãe me ensinou a fazer da primeira vez para toda e qualquer oferta.

— Por favor — insistiu a garota com um sorriso de teclado de piano, ou melhor, de sanfona, porque o seu rosto não parava quieto em cima do pescoço.

— Mas… você está… me dando o seu livro…

— Oh, sim. Por favor, não estranhe.

Então ela me falou uns três ou quatro minutos sobre seu movimento de difusão da leitura, sobre a ideia de comprar o livro, ler e depois dar para alguém ler. Acho que era «Esqueça um Livro», ou algo assim, esqueci…

Recebi o livro, cuidadosa e femininamente encapado em plástico vermelho, com uma falta de jeito provinciana. Acho que jamais na minha vida um estranho me dera qualquer coisa além de motivos para desconfiança.

Mas enquanto o recebia notei o olhar fuzilante do segurança em nossa direção, verdadeiro agente da repressão ignara, pronto para confiscar a obra ou para dizer que tínhamos de consumi-la em leitódromos cuidadosamente controlados. Ele veio andando em nossa direção, deixando balançar na cintura o grosso cassetete preto, mais volumoso que os braços de cigarra da garota sorridente e irriquieta. Que se levantou apavorada, uma traficante surpresa pela visita da viatura. Ela se misturou entre os clientes, aproveitando-se de sua estatura de ninfa, e nunca mais a vi.

O guarda chegou perto demais, e me abordou com uma voz de tuba:

— Aquela garota estava incomodando o senhor?

— De forma alguma, ela só me deu iss…

Ainda estava com metade de «isso aqui» dentro da boca e ele já arrancara o livro de minha mão.

— Eu fico muito revoltado mesmo com esse tipo de coisa. É um absurdo completo!! A barbárie tá tomando conta do país, a imundície se alastra pelas ruas e qualquer cidadão de bem está exposto.

— Mas ela só…

O guarda arrancou a capa do livro com violência, usando seus dedos de elefante. Só então percebi do que ele me salvara, quase em lágrimas, agradeci-lhe efusivamente como se ele fosse um irmão que eu não vira por vinte anos:

— É mesmo vergonhoso que a gente não possa esperar em paz na fila do banco sem correr o risco dessa violência — eu lhe disse.

O mundo de Farenheit 451 seria terrível. Baixos espíritos literários são mais memorizáveis do que o Grande Sertão: Veredas, e para malus1 adicional a presença de um declamador de romance de auto-ajuda na sua vizinhança é mais agressiva do que a presença de um romance do Mago na estante, presente da namorada que acha lindo você ser escritor e pensou que lhe estava agradando muito com aquela obra cheia de verdades.2

1 Um «neolatinismo» inventado para ser o antônimo de «bonus».

2 O autor sugere que este conto seja lido de forma iterativa, retornando ao começo depois de ler o último parágrafo, e assim sucessivamente até o leitor ter a certeza de que realmente passou a odiar o autor.


14
Jan 12
publicado por José Geraldo, às 15:57link do post | comentar

Reconhecidamente autor de obras insuportáveis para quem efetivamente lê, em vez de comprar para enfeitar estante ou para ter «lições de vida», Paulo Coelho se tornou o pivô de uma curiosa briga na internet nas últimas semanas. Eu, como sempre, marido traído em matéria de notícias culturais, fiquei sabendo só agora. Em uma postagem no Twitter, o Mago chamou de insuportável o novo livro de Mário Sabino. Achei a atitude do mago bastante imoral, embora o livro criticado seja mesmo, provavelmente, difícil de suportar. Para que o leitor possa entender as razões de meu julgamento, vou fazer um apanhado da história.

Mário Sabino é um jornalista brasileiro. Como muitos jornalistas, tem uma plataforma gratuita para lançar-se como autor literário (mas provavelmente vociferou contra a derrubada da exigência de diploma para o exercício do jornalismo e não aceitaria que autores literários tentassem a mão no jornalismo). Mário Sabino, ao que parece, nunca se notabilizou como repórter, mas chegou a cargos de mando relevantes em publicações como IstoÉ e, até recentemente, Veja. É um cara de ultra-direita (se for sincero), ou totalmente prostituído para a direita (caso não seja). Não tenho problemas com sua ideologia: apenas discordo antipodamente dela (em qualquer das hipóteses). Não estou aqui para falar de sua postura profissional, e nem sequer de suas qualidades de autor, mas do entrevero Sabino/Coelho. Quem não quiser ler a minha versão, pode procurar no Google, que está bombando com o assunto, ou ler a resenha do Luiz Nassif, um jornalista que, a julgar pelo que escreve, deve ser uma ótima pessoa (não o conheço pessoalmente).

Na qualidade de editor-chefe da revista Veja, Mário Sabino sofreu vários tipos de críticas quanto à sua conduta profissional. Estas críticas não me interessam. O que me interessa é que este período de sua vida coincidiu com o início de sua carreira literária. Tal como eu, Sabino é um late bloomer, ou seja, só começou a publicar tardiamente. A diferença é que eu publico em editora pequena e tenho quase nula repercussão. Sabino, devido ao poder emanado de sua condição de manda-chuva editorial de uma das principais publicações do país, publicou pela Editora Record. Tal como muitas celebridades, vendeu muito, mais pelo nome conhecido e pela divulgação recíproca entre seus pares. Provavelmente teria vendido algumas dezenas de exemplares apenas, se em vez de editor-chefe da veja ele fosse editor-chefe da Folha de Cabrobó ou da Gazeta Leopoldinense. É preciso desconfiar do sucesso que é alimentado pelo poder.

Pelo que pude verificar, Sabino publicou quatro livros durante sua fase na Veja (não sei e não quero saber se publicou algum antes): dois romances e dois volumes de contos, a saber:

O Dia em que Matei Meu Pai
Romance, traduzido para italiano, espanhol (Argentina), francês, holandês, inglês (Austrália e Nova Zelândia), coreano e romeno. Republicado em Publicado em Portugal. Ou seja: deve ser um livro razoável, ou não teria atraído tanta atenção. Se bem que ficou notoriamente fora de países importantes do mundo literário, como Espanha, México, Rússia, Polônia e Alemanha, e certas traduções foram publicadas na periferia (em inglês, na Austrália e Nova Zelândia, em espanhol, na Argentina). De qualquer forma, eu estaria rindo de orelha a orelha se tivesse tido repercussão igual.
O Antinarciso
Coletânea de contos, vencedor do Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional.
A Boca da Verdade
Coletânea de contos. Ao contrário dos dois livros anteriores, nem foi traduzido no exterior e nem ganhou prêmio.
O Vício do Amor
Romance, publicado recentemente, e pivô da crise com Paulo Coelho.

Na época em que era editor-chefe da Veja, os livros de Sabino foram bastante elogiados na imprensa brasileira. Aliás, os elogios e a vendagem de tais obras foi alvo de uma controvérsia, com suspeita de manipulação da lista dos Mais Vendidos, além de certas relações inadequadas no mercado editorial.

Nada disso importa, porém, se considerarmos que, por medo ou indiferença, os livros de Sabino eram elogiados (ainda que esses elogios fossem ouvidos apenas pelo eco), foram vendidos e foram promovidos na grande imprensa. Paulo Coelho, por exemplo, jamais se manifestara sobre o caso. E tinha direito, visto que ser autor de obras insuportáveis não impede um crítico de detectar a insuportabilidade alheia. Como meu dentista certa vez disse: «mau hálito você só sente o dos outros». Falta de talento é uma espécie de «mau hálito», mas, em nome da higiene universal da arte, não devemos esperar que somente os de boca limpa tenham o direito de se incomodar com o hálito alheio.

Acontece que Mário Sabino foi demitido (ou demitiu-se) da Veja no final do ano, em circunstâncias ainda misteriosas. A ser verdade o que se especula por aí, sua saída, se por demissão, foi em condições tão desfavoráveis que dificilmente ele ainda terá um futuro no ramo. Espero que tenha uma boa poupança. E não demorou para que se manifestassem alguns que permaneceram em silêncio durante todo o tempo em que Sabino detinha o poder fulminatório da Veja em suas mãos. Veículos de imprensa, como o Valor Econômico (que é um jornal de economia, não de literatura) e a Folha de São Paulo não perderam tempo em atacar-lhe justamente no que um autor (bom ou mau) tem de mais sensível: a sua auto-estima de criador. Depois que o inimigo é derrotado, aparecem muitos heróis para ir no campo de batalha cuspir nos cadáveres, dizia um antigo ditado polonês (ou iídiche, não consegui descobrir). Além de perder subitamente seu poder de editor-chefe da maior revista deste país, Sabino ainda foi chamado de vários adjetivos.

E justamente Paulo Coelho, notório autor de livros insuportabilíssimos, tuitou que o último livro de Sabino seria insuportável. A julgar pelas resenhas, deve ser mesmo. Mas por que razão será que Paulo Coelho deixou para falar mal de Sabino apenas depois de ele ter perdido seu emprego na Veja?

Em tempo, se alguém quiser tuitar que meu livro é insuportável, favor deixar o link do blogue e da editora. E se tiver mais artigos interessantes, talvez eu ponha no blogroll.

P. S. — não se trata aqui de ficar implorando por atenção. A questão é que, para um autor, a divulgação de seu livro é sempre interessante, mesmo que seja uma divulgação negativa. A literatura é uma das únicas profissões na qual um renome, mesmo horrível, ajuda a vender. Além do mais, ao contrário de certos autores, eu já desencanei de minha obra, e vejo os comentários, mesmo os mais críticos, com distanciamento. Quem não consegue esse distanciamento (e parece que o Mário Sabino ainda não consegue) acaba desestimulando a crítica, ou fazendo com que ela se torne rancorosa.


13
Jan 09
publicado por José Geraldo, às 23:13link do post | comentar

Jonas é um verdadeira “figura”. Conheci-o há vários anos, na época em que eu era rico e tinha um carro novo. Fomos colegas de noitada por muito tempo até que o destino nos separou e nesse meio tempo vivemos muitos momentos divertidos dos quais eu me lembro com razoável saudade.

Entre as suas esquisitices estava sua fixação por cogumelos. Lembro-me que quando passávamos perto de algum lugar onde houvesse umidade e sombra ele cheirava o ar e dizia: “aqui nasce cogumelo do bom…”

Da primeira vez eu nem fiz nada além de rir, mas depois fiquei curioso e comecei a perguntar como ele sabia tanto de cogumelos. Ele então começou a a me confidenciar suas aventuras com “chás” e outras substâncias. E no meio de tantas aventuras ele acabou contando uma que jamais me esqueci devido às imagens marcantes que me traz à mente toda vez que a relembro.

Jonas havia sido um menino tímido e um pré-adolescente contido. Filho de mãe solteira casada com pastor evangélico, desde cedo era estimulado a comportar-se como devia, a ser um “bom menino” e evitar as inclinações más trazidas pelo “sangue ruim” do pai que nunca conhecera.

Mas quando os hormônios começaram a manifestar-se e a voz deixou de ser aquele falsete bonitinho de criança ele entrou numa longa fase de rebeldia da qual não tinha saído até quinta-feira passada. Foi mais ou menos nessa época que conheceu uma turma de amigos pouco recomendáveis, que o apresentou a sensações, tratados e experiências que um filhinho de pastor vivendo em cidade do interior normalmente não experimentaria.

Certa vez ele e os amigos pegaram a Brasília do pai de Jonas e foram para a roça tomar chá. Não, não era chazinho de menta e nem de camomila, era de cogumelo mesmo.

Foram até um sítio localizado a uns cinco quilômetros do perímetro urbano, um lugar bem bonito, cercado de morros cobertos de pastos verdejantes, cortado por um tranquilo regato. Do alto de um dos morros se descortinava uma paisagem linda e lá também havia uma pedra de formato curioso que eles chamaram de “Grande Sapão”, ao pé da qual acenderam uma fogueirinha.

Daí pegaram os benditos cogumelos (e até acharam outros no lugar) e prepararam o “xarope”. Pronta a beberagem, tomaram-na e ficaram olhando para a paisagem tentando ver fadinhas de açúcar. Dali a pouco começaram a acontecer aquelas coisas que só acontecem nessas viagens psicodélicas: montanhas saíam voando, vários sóis de cores diferentes perfumavam o céu, nuvens que escorriam gotejantes e empoçavam nas árvores, pedras pulsavam com olhos chamejantes de lírios, a grama sussurrava sensualmente enquanto crescia e trovejava macias palavras azedas…

De repente Jonas viu um “duende”, um serzinho de pele azul e gorrinho colorido na cabeça (não sei se era mesmo um duende ou um smurf, mas isto é detalhe). O trocinho olhava para ele e ria, dizendo bobagens em uma língua cheia de consoantes. Ofendido meu amigo se levantou, xingou a aparição e resolveu pisotear Papai Smurf, digo, o duende, mas logo notou que não adiantava pois ele reaparecia sempre em outro lugar. E lá se foi Jonas a pisotear de novo, depois de xingar de novo, e logo Papai Smurf aparecia em outro lugar ainda cacarejando consoantes concatenadas.

Imagino que deve ter sido uma cena muito linda de se ver aquele momento: um adolescente meio cabeludo, com olhos arregalados e “mucho loco” de “chá de caramelo” pisoteando duendezinhos azuis imaginários no alto de um morro, perto de uma pedra. Pelo menos deve ter sido engraçado até que Jonas tropeçou e rolou morro abaixo, bateu a cabeça e perdeu os sentidos.

Quando acordou Jesus Cristo o estava chamando e dizendo alguma coisa em húngaro. Jonas não entendia nada de húngaro e jamais vira Jesus Cristo antes — só o reconheceu por causa do boné azul, da camiseta fluorescente que faiscava com figuras de cobras e elefantes iridescentes que efervesciam num mar de olhares úmidos e mãos nervosas.

Olhou nos olhos de Jesus Cristo e lhe disse “Sacanagem, J.C., se eu soubesse que você vinha eu tinha feito a barba”. E tendo proferido tais sábias considerações sucumbiu definitivamente às alucinações cada vez mais complicadas que pousavam.

Sentiu-se flutuar acima do capim como Aladin sobre as areias do deserto em seu tapete mágico, só que em vez de sentado ia deitado de costas e por alguma razão suas costas esfregavam de vez em quando em algo duro.

Acordou duas horas depois e “Jesus Cristo” lhe dava café numa caneca de esmalte, um café tão forte que agarrava na língua e não queria descer pelo esôfago. Estava todo frio, como se lhe tivessem dado trinta banhos de água gelada — o que não estava tão longe da verdade, principalmente considerando que urinara nas calças e vomitara várias vezes num intervalo de menos de uma hora.

Ainda estava vendo coisas coloridas e sussurrantes nas esquinas das coisas e no rabo dos olhos. Mas já conseguia perceber que havia se arranhado todo nas costas e estava todo sujo e fedendo a vômito e a bosta de vaca.

Mesmo temendo a resposta, perguntou a um dos amigos o que ocorrera.

“De repente você começou a gritar desesperado em esperanto e a correr para lá e para cá pulando em cima de tudo quanto era bosta de boi que via pela frente, então escorregou numa que tava fresca e desceu rolando uns duzentos metros de morro abaixo até que bateu numa cerca na beira do córrego…”

Jonas lembrava-se vagamente de alguma coisa. Alguma voz idêntica à sua que gritava coisas como Vi stulta elfo, feku al vi! e Viaj fratrinoj estas malgrandajn!

Depois de recuperar-se Jonas jurou nunca mais tomar chá de cogumelo e abandonou para sempre seus estudos de esperanto. Só depois que ele me contou essa história entendi porque de vez em quando alguém lhe gritava na rua: stulta elfo!


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