Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
30
Jun 12
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar | ver comentários (4)

Não me refiro à educação escolar, essa que sucessivos governos parecem querer dificultar, mas à educação cidadã e humana, que cabe às famílias e a cada um de nós. Esta é a que faz mais falta, porque se trata da que não precisa de grandes investimentos, nem de grandes construções. Não dispende energia, não move terras e céus, não cria dívidas e nem polui. Não custa livros, não consome dinheiro, não requer transporte. Mas apesar de ser tão barata em termos econômicos, é caríssima em termos de cuidado e de carinho — e cuidado e carinho parecem ser justamente os insumos que mais estão em falta no mundo do tchu e do tcha, do tchan e do Telò. Tem muita gente por aí que sabe fazer o lelelê, mas nada mais.

Tudo isso me vem à mente depois de ter ido assistir à festinha junina da escola da minha filha mais velha.

O evento até que foi bem organizado: tinha seguranças, som profissional, cantina produzindo os salgados fresquinhos, o guichê de fichinhas tinha troco, os banheiros eram bons e as crianças estavam muito bem ensaiadinhas. Vergonha foram os pais.

Apesar de ser evidente a falta de espaço do recinto, logo no começo se verificou que um canto da quadra, mais próximo da entrada, ficou atolado de gente, enquanto o canto oposto ficava vazio. Todo mundo querendo pegar o «melhor lugar» se amontoava junto à passagem, impedindo a entrada e saída dos outros, de modo que não apenas era difícil aos recém chegados verem seus filhos dançando a quadrilha, mas era também difícil para quem já estava conseguir enxergar alguma coisa através do mar de cabeças e braços erguidos com câmeras desesperadas para tirar uma foto qualquer.

Sucessivos pedidos da direção através do microfone foram em vão: ninguém se movia e a muvuca aumentava. Começou a haver acotovelamentos, alguém xingou palavrões altos (em um ambiente escolar, numa festinha de crianças, por Júpiter!). Somente quando a diretora ameaçou pedir aos seguranças que abrissem caminho foi que alguns «educados» concordaram em desobstruir a entrada e passar para os fundos da quadra.

A luta seguinte foi para retirar de dentro da própria quadra os pais desesperados por fotos dos filhos dançando. Tanta gente tinha entrado lá com câmera na mão e merda na cabeça que não havia espaço para as crianças dançarem. Novamente foram necessários apelos repetidos da direção da escola e os pais só se tocaram de lá quando novamente se ameaçou chamar os seguranças.

Liberada a quadra, a direção da escola, desistiu de tentar organizar o resto, pois já havia dito algumas coisas bem pouco elogiosas na tentativa de convencer os pais a abrirem espaço — como, por exemplo, sugerir que eles precisavam dar exemplo para seus filhos ou que a escola era um ambiente de respeito e não um lugar para se dizer palavras chulas e cometer agressões. O resultado foi um verdadeiro caos em torno da quadra, com gente se empurrando e se embicando como dava. Há um antigo axioma da ciência da organização que diz que para todo corredor estreito existe um imbecil disposto a empilhar coisas lá, ou obstruí-lo ele mesmo. Havia muitos destes no local, que, em vez de procurarem um lugar amplo para manter sua conversa ou paquera, ficavam parados no corredor, ainda por cima fazendo cara feia para quem vinha tentando passar. E cada turma que concluía seu turno na quadrilha gerava um tropel de crianças e pais que se espremiam pelas passagens apertadas com o desespero de quem está prestes a cagar nas calças. Essa era a hora em que os imbecis do corredor se sentiam pisoteados ou acotovelados e xingavam ou reclamavam da falta de educação alheia.

Nos lugares amplos a situação não era muito melhor. Onde não houvesse luz direta havia casais dando amassos. Caramba! Em um ambiente escolar? Por que esses animais vão se esfregar pelos corredores de uma escola primária? Não dá para satisfazer o cio em outro lugar, ou esperar para depois da festinha junina das crianças?

Para completar o drama, a escolha das músicas foi de uma lástima terrível. Para uma festa de crianças dançando quadrilha resolveram tocar estas porcarias breganejas que só falam de beber cachaça, fazer lelelê, querer tchu e tcha e coisas piores. E a gente que dizia que a Xuxa era uma influência perniciosa para os «baixinhos» por causa de seus shortinhos. Que valores está transmitindo uma escola que toca numa festa infantil uma música que diz:

Ela chega no baile faz a galera delirar Mascando chiclete doidinha pra namorar De saia curtinha só pra provocarE deixa a macharada delirando sem párarEla dança mexe mexe eu não vou aguentar.Eu vou beber cachaçaEu vou tomar méEu vou encher a cara por causa dessa mulher.

Muito educativa esta escolha, para acompanhar a quadrilha das crianças do segundo ano, todas na faixa dos sete ou oito anos de idade. Elas vão crescer sabendo que a «macharada» delira sem parar quando uma mulher chega de sainha curta no baile, «doidinha para namorar», e que para isso a referida «macharada» vai tomar cachaça.

Eu poderia escrever vinte páginas de lamentos sobre as coisas que pensei e senti, mas chega que me dá nojo. Alguns vão dizer que minha reclamação é «puritana» e que «é isso que as crianças encontram na sociedade em que vivem», mas a escola não é «a sociedade», ela precisa ser, e deveria ao menos pretender ser, um microcosmo de excelência, um lugar melhor do que a sociedade, onde se ensina aos pequenos um mundo ideal, que sonhamos que exista para eles, já que não existiu para nós. Não é lugar de endossar o mé que a «macharada» toma por causa de mulheres doidas de sainha curta, mas de ensinar justamente estas crianças a perceberem a brutalidade, a grossura e a estupidez que são necessárias para que uma pessoa conviva com essa música sem revoltar-se.

Enquanto nossa escola toca nas festinhas juninas infantis uma trilha sonora que não tocava nem em puteiro até há bem poucos anos, as verdadeiras tradições juninas são esquecidas: as crianças dançaram em estilo country.


01
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 23:28link do post | comentar

Aonde quer que vá, tudo sempre igual: pessoas agindo comicamente e ele, aliviado por não ser bobo como elas, sentindo por dentro a nódoa de inveja pela felicidade irresponsável que podem ostentar enquanto ele arrasta a solidão, apenas ocasional e temporariamente minorada por relacionamentos passageiros.

Impossível, por exemplo, brincar o carnaval. Basta um bloco de sujos para sentir até vontade de rir daquelas fantasias e caretas estúpidas que fazem. O “Bloco das Piranhas” não lhe faz apenas vontade de rir: dá-lhe horror ver aqueles marmanjos vestidos e maquiados como fêmeas e dizendo indecências. Um amigo dizia-lhe uma vez que “em nossa cidade só se veste de mulher no Carnaval quem é bicha mesmo”. Uma das grandes vergonhas de sua vida é justamente ter saído fantasiado de Batman quando criança.

Beber álcool é algo que evita rigorosamente, por medo de ostentar no rosto os risos imbecis que os bêbados deixam escapar. Lhe enjoa pensar em sair pelas ruas como o famoso bêbado municipal, patrimônio do submundo local. A decadência personificada.

Quando à noite na rua, fica sentado no banquinho do bar, bebendo tônica com gelo e limão — sem perceber nisso nada de ridículo — e tentando paquerar alguma abstêmia, não-fumante e discreta que aparecesse por lá. Como nunca aparece, acabava com alguma alcoólatra, fumante e piranha, só por um corpinho bonito e o prazer mais proibido…

Aí, outro calvário. Nada épico, é claro: apenas a pequena e autêntica tragédia pessoal dessas pessoas sem grandeza e seu leve desespero que as faz sofrerem ridiculamente. Ao lado de seu amor, passa por situações que o expõem a todos os ridículos que antes pretendia evitar até às últimas conseqüências.

Se antes achava ridículo casais beijando-se em público com ardor de endoscopia, tem de aceitar, não sem um pequeno prazer, esta parte do script, exigida pelo ritual humano de acasalamento. Achava mortalmente estúpido uma mulher usar roupa de menos, mesmo no inverno? Agora se vê quieto ao lado de uma que as usa tão minúsculas que parecem trajes de banho ou retalhos de costura.

Um belo dia, depois de sucessivas tragédias o fim do amor sempre anunciado é real. E lá está ele de volta ao bar com a mesma cara e o mesmo ar de toalha-de-mesa. Sozinho com a água tônica e refletindo sobre as peças que a vida prega.

Depois de algumas semanas se desintoxica da vida e retorna à sua inerme abstinência de álcool e de sexo. Então volta a ser de novo a figura estranha que assombra nossas noites. Às vezes acontece-lhe ver o tal Beto Tomás, o “bêbado municipal”, a coisa mais parecida com um junkie que se pode encontrar no interior. Como sempre sujo e bem humorado em sua desgraça risível e inútil.

Pergunta “como vai?” a todos os rostos conhecidos que encontra e responde, se alguém lhe devolve um “e você?”: “entrado em ânus”. Nisso dá sua gargalhada e todos que estão em torno, por um momento, se esquecem da desgraça, da doença e da deformidade e riem dele.


21
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 10:59link do post | comentar

Nada é tão difícil na vida quanto superar fases. Tomar decisões é algo muito fácil, enfrentar as consequências é algo mais complicadinho. No momento em que você decide tomar uma atitude você se sente um super herói, capaz de ir até o fim com todas as suas decisões e determinações. Infelizmente o super herói não é o Superman, mas o Ultraman. Explico: nossas decisões não são invulneráveis e imaculadas, motivo de admiração para todos que nos veem e conhecem. Em vez disso, elas são precárias e frágeis, tomá-las já implica em uma confissão que faz com que as pessoas nos olhem torto. O pobre Ultraman não conseguia lutar contra os monstros por mais do que alguns minutos e precisava ir embora. Na vida de hoje a impressão que eu tenho é que eu estou sempre indo embora, sempre suportando alguns minutos e depois voando para o meu planeta distante. Como é difícil persistir!

Hoje admito que tenho um problema: estou viciado em internet. Não, não sou hipócrita de dizer que esse é um vício terrível que me destruirá porque eu não sou desses alarmistas. O «vício» a que me refiro é algo como um hábito que se arraigou e do qual é difícil ficar livre. Não é difícil por causa de uma noia incontrolável, mas porque vivemos em um mundo que nos exige interagir eletronicamente.

Então eu vivo, como muita gente, o dilema de saber que o uso da internet está me modificando, mas ao mesmo tempo reconhecer que eu não tenho a opção de me abster dela definitivamente. Eu não gosto das mudanças que estão acontecendo, tanto quanto não gosto de envelhecer. Melancólico isso.

O que me resta é controlar o acesso daquilo que me faz mais mal. Desde sábado estou vivendo sem Orkut. Resta-me ainda um perfil fake para usar, vinculado a uma única comunidade, mas ele também será apagado até o final do mês. O meu perfil original não será apagado, mas isso apenas porque eu ainda posso querer um dia voltar e copiar algum texto meu que deixei naquele saite de relacionamentos. Essencialmente posso dizer que vivo sem Orkut, que estou vivendo sem Orkut.

E que bela vida é! Estou trabalhando de novo no romance que eu comecei a escrever faz quatro anos! Quem sabe até o termine antes de morrer senil! Hoje consegui fazer uma longa caminhada, cumprimentei mais de vinte conhecidos. Agora depois do almoço vou andar de novo, apesar do calor. Vou visitar algumas lojas, comprar uma bicicleta, marcar consulta no dentista. Coisas que só fazia pela internet ou por telefone eu vou fazer pessoalmente. Talvez consiga até visitar alguns amigos nestas férias. Estou devendo uma visita ao Nando Pinto, lá em Astolfo Dutra, faz quase dez anos. Eu tenho um amigo que mora a menos de um quilômetro de mim e eu não o visito faz um ano!

Mas apesar disso, resta a síndrome de abstinência, este monstro de olhos vermelhos e cabeça inchada que persegue os que tentam se livrar de suas pequenas escravidões. Estou aqui imaginando como desenvolver a trama do romance e não consigo ficar nem dez minutos sem pensar em verificar o que terão respondido nos tópicos que criei nas últimas comunidades de que participei. Mas estou resistindo.


09
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 16:57link do post | comentar | ver comentários (1)

Tudo começou inocentemente. Comecei a pensar quando frequentava certas festas, de vez em quando, como uma maneira de me enturmar. Inevitavelmente, porém, um pensamento levava a outro e não demorou que eu me tornasse mais do que um pensador social.

Comecei a pensar sozinho — “para relaxar”, conforme acreditava, mas eu sabia que isso não era verdade. Pensar se tornava cada vez mais importante para mim, até que eu comecei a pensar o tempo todo.

Eu comecei a pensar enquanto trabalhava. Eu sabia que pensar e trabalhar não são compatíveis, mas não conseguia parar.

Comecei a evitar os meus amigos que não pensavam, para que pudesse ler Kafka ou Thoureau no intervalo do almoço. Eu voltava para o serviço tonto e confuso, perguntando-me o que exatamente significava o meu trabalho e o que estava fazendo no mundo.

As coisas tampouco estavam bem em casa. Certa noite eu desliguei a televisão e perguntei à minha esposa o sentido da vida. Ela teve que passar aquela noite na casa da mãe, de tão amedrontada que ficou.

Logo adquiri a reputação de um pensador compulsivo. Um dia meu patrão me chamou ao escritório e disse-me: “Cara, eu gosto de você e me dói dizer isso, mas seus pensamentos se tornaram um problema real. Se você não parar de pensar aqui no emprego, você terá que encontrar outro emprego.” Isto me deu muito em que pensar. Eu voltei para casa cedo depois de minha conversa com o patrão.

— Querida — disse ao chegar em casa — andei pensando que…

— Eu sei que você anda pensando — ela disse. Pensando demais para que alguém possa suportar viver com você. Quero divórcio!

— Mas, querida, não pode ser tão grave assim!

— É muito grave — ela disse, tremendo o lábio inferior. Você pensa tanto quanto professores, e professores não ganham quase nada. Então, se você continuar pensando, acabaremos sem dinheiro.

— Este é um silogismo falacioso — eu lhe disse, impaciente, e ela começou a chorar. Foi demais para mim. Meti o pé na porta e saí dizendo que ia para a biblioteca.

Fui até a biblioteca sentindo uma vontade enorme de ler Nietzsche, ouvindo a Cultura FM no rádio. Eu acelerei até o estacionamento e corri até as portas de vidro… mas elas não se abriram. A biblioteca estava fechada.

Até hoje eu acredito que um Poder Superior estava cuidando de mim naquela noite. Ao cair de joelhos no chão diante do vidro insensível, implorando por Zaratustra, um cartaz me chamou a atenção: “Amigo, pensar demais está arruinando a sua vida?” — ele perguntava. Você provavelmente conhece esta frase: ela é encontrada nos cartazes padronizados dos Pensadores Anônimos.

E ela é a razão pela qual estou aqui hoje: eu sou um pensador em recuperação. Nunca perco um encontro dos P.A. e sempre compareço para assistir programas deseducacionais. Na semana passada foi “Big Brother”. Depois nós compartilhamos experiências sobre como evitamos pensar desde o encontro anterior.

Eu ainda tenho o meu emprego, as coisas melhoraram muito em casa. A vida parece… mais fácil. De alguma forma o mundo me parece menos complicado desde que eu parei de pensar.

Autor Anônimo. Traduzido do site “Agent Orange

29
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 22:06link do post | comentar

Eu sou dos que não sentiram nunca pelo Sérgio nenhuma afeição especial. Na verdade eu pouco menos que o desprezava desde que o conheci. Mal lhe dava motivos para chamar-me de amigo. Mas ele me chamava assim, talvez por falta de verdadeiros.

Era seu jeito auto-suficiente o que mais me indignava. Não era dado a intimidades, raramente sabia dizer palavras simpáticas e parecia que tinha prazer em desdenhar de tudo.

Mas aos poucos foi-se consolidando entre nós um certo tipo de amizade que a convivência adensa. Na faculdade não havia como evitarmos um ao outro: a mesma sala, os mesmos vinte e poucos colegas. Isso pôde nos fazer achar que éramos semelhantes.

Só que o tempo passou e muita coisa saiu dos eixos. Ele largou o curso no meio sabe Deus porque e foi correr atrás de seus sonhos, enquanto eu me tornava professor. Alguns anos depois nos reencontramos: eu ia para a escola onde dava doze aulas semanais no curso noturno e ele vinha pela rua com uma caixa de ferramentas.

Breves palavras e nos informamos de nossas situações. Ele agora trabalhava como eletricista em ocasionais biscates. E trabalhava também em uma loja de material elétrico. Tinha também umas casas que recebera de herança e cuja renda era o que realmente mais lhe sustentava. Em resumo: não morria de fome, mas não havia ido nem à metade da distância que sonhara ir. Triste fim de um sonhador: viver de aluguéis e de um subemprego.

Nessas condições um temperamento inquieto acaba resvalando para o álcool. E Sérgio sempre tivera predileção por aditivos. Enquanto eu achava que estava tudo bem, naquela tarde ele fora despedido por chegar mais uma vez embriagado.

Fiquei realmente preocupado por Sérgio no dia em que me contaram essa história, semanas depois. Pensei nos muitos anos em que não nos víramos. Às vezes uma pessoa se perde pela ausência dos amigos.

Senti uma ponta de remorso por não ter nunca lhe dado a atenção que talvez esperasse de alguém. E nisso resolvi procurá-lo para lhe dar, talvez, algum apoio. Mesmo temendo que ele apenas achasse que mais um ia tripudiar de sua desgraça. Reservei para isso uma de minhas manhãs de Domingo. Assim não atrapalhava o andamento normal de meus negócios.

Desci do ônibus já com a sensação do dever cumprido e o encontrei sentado à mesa em um bar ao pé do morro.

— Olá, Sérgio.

Pelo seu hálito e por sua voz eu podia jurar que ainda não tomara o café-da-manhã, mas havia uma catinga de álcool em seu bafo e ele tinha um copo de cerveja na mão.

— Olá, quem é?

E virou-se para dizer algumas palavras que ele imaginava serem ofensivas a uns velhinhos que jogavam sinuca no fundo. O problema é que, bêbado, ele xingava em calabrês, língua de seus pai, daí resultando que ninguém se ofendia porque ninguém o conseguia compreender.

— Não lembra de mim, da faculdade?

Ele me fixou uns olhos aturdidos:

— Ah, Gato-Preto! Quanto tempo, hem?

Por um momento eu me lembrei porque eu o havia detestado tanto a princípio. O maldito apelido…

— Então eu venho te fazer uma visita e você não está em casa, seu safado. Ouvi dizerem que você mora mais aqui nesse boteco que lá em cima!

Ele revirou os olhos, cambaleando, e disse:

— Acho que eu não estou me sentindo bem!

E desabou de qualquer jeito na calçada. Todo mundo perto se manteve imóvel, exceto por alguns sorrisos e algumas provocações. Tive então de tomar a iniciativa de ajudá-lo.

Em má hora, pois a conta não estava paga e os trocados que ele levava no bolso não eram suficientes para isso. Para evitar mais problemas, usei seus seis reais e cinquenta centavos e ajudei a levar aquele corpo magro e precocemente enrugado pela ladeira acima até a casinha em que vivia.

Ao chegarmos eu o estendi em sua cama desarrumada, tapei o nariz para evitar o cheiro do banheiro recentemente usado e não tão recentemente limpo e saí enfastiado dali.

Bela visita! Linda perda de tempo numa manhã de domingo ver um sujeito esticado como um submarino em sua cama roncando e babando!

Dei uma rápida olhada nos cômodos, todos pouco e mal mobiliados, poeira se acumulando pelos cantos e um cheiro entranhado nas paredes. “É, parece mesmo que o Sérgio está na pior. Melhor que eu visite de vez em quando para dar uma força ou as coisas podem piorar ainda mais.”

Na sala havia uma pequena escrivaninha com uma máquina de escrever e um maço de papel-ofício, uma estante velha com muitos e desordenados livros e uma televisão a cores que parecia nem funcionar mais de tão antiga.

A lixeira estava quase cheia de folhas amassadas que excitaram a minha curiosidade. Desamassei uma ao acaso e nela encontrei esboços de poemas bem melhores que as minhas tímidas tentativas. Verificando com mais atenção o conteúdo daquela e das outras lixeiras da casa encontrei mais dezenas de páginas com muita coisa a meu ver bastante boa que estava a caminho do depósito de lixo municipal. “Que desperdício de talento! Esse cara escreve tudo isso e joga fora!"

Aí passou pela minha mente o malvado pensamento de me apropriar daquilo que nada lhe custara e que tão facilmente descartava. Com algum esforço eu poderia introduzir modificações bastantes para atestar minha autoria sem pôr a perder inteiramente o pulso vibrante ali contido.

Olhei para um lado e para o outro e não havia ninguém fiscalizando minhas intenções. Então entesourei minha coleta em um insuspeito envelope pardo que havia numa prateleira e me preparei para sair, deixando Sérgio entregue à ressaca.

Mas então eu percebi que havia sido vigiado. A janela da sala se abria quase rente ao limite da posse e dava para o quintal vizinho, onde estava uma mulher que me fitava. Era e teria os seus vinte e sete, vinte e oito anos. Seus cabelos eram escuros, compridos, lisos, brilhantes, pesados. E caíam sobre seus ombros, densos e impenetráveis.

Seus olhos eram muito negros e muito vivos e me penetravam acusadoramente. Ela sorriu quando a olhei fazendo aparecerem numerosos dentes muito brancos e grandes e se aproximou da janela com um passo tão resoluto que parecia estar vindo me matar e perguntou-me sem nenhuma timidez:

— Aconteceu alguma coisa com o Sérgio?

— Ele resolveu beber até cair.

— De novo! Coitado! Ele tem estado tão estranho.

— Ele faz isso sempre?

— Desde que se mudou para cá, deve fazer um ano mais ou menos. De onde o conhece?

— Da faculdade.

— Pobre coitado. O que será que o leva a viver assim?

— Desde que o conheço ele tem um certo gosto pela bebida. Mas beber até se arrastar pelo chão é coisa nova.

— Mas é uma pena. Um homem de tanto talento não devia se deixar cair tanto.

Sorri por dentro ao perceber na voz da mulher uma ponta de atração por Sérgio. O ano de vizinhança não fora bastante para que percebesse as nítidas tendências homossexualidade que havia nele. Um incerto sentimento de pena passou por minha mente diante desta constatação e não pude deixar de pensar que era meu dever desiludi-la, mas diretamente.

— Sérgio é o tipo que não tem amigos nem amores.

— Eu percebi, ele é muito mais arredio que o normal…

— Ele sempre foi grosso mesmo. Me surpreende até que ele tenha deixado que você ficasse sabendo o seu nome.

A essa altura, passada já a impressão de que ela vira alguma coisa digna de atenção em minha conduta altamente suspeita, convencido de que ela nem mesmo se lembraria depois de ter me visto sair com um envelope pardo na mão, pedi-lhe licença, fechei a janela e saí. Chamei-a à porta da rua e ela veio, andando com uma elegância de sambista. Os volumosos seios tripudiavam de minha timidez, mas não consegui pensar em nada para dizer de imediato, não antes de ela já haver dito que sentia muito ver Sérgio naquele estado e que seria bom para ele que os amigos aparecessem com mais frequência. Fui sincero ao dizer que realmente pretendia voltar para vê-lo. Mas acrescentei que, embora Sérgio fosse um bom escritor, pelo menos aos meus olhos não era um bom sujeito.

— Não tenha tanta pena dele. Foi a sua própria mão que cavou esta situação em que está. Ele não é flor que se cheire. Sempre mal-educado, mal-agradecido e enrustido em si mesmo. Nenhuma amizade duradoura, nenhum relacionamento amoroso, nada aguenta. Ele parece que tem sempre uma vontade enorme de aparecer e de humilhar os outros.

O brilho foi se apagando de seus olhos enquanto eu falava. Eu previa que o efeito de minhas palavras seria negativo, mas também sabia que não valia a pena passar por herói. As mulheres não amam aos heróis, apenas aceitam ser salvas por eles para poderem voltar a amar homens comuns ou vilões.

— Ele não está tão sem amigos como você diz — havia uma amargura e uma bem nítida recriminação em seu tom de voz — ele tem a mim. Se lhe é tão custoso vir ajudar um semelhante, deixe que eu faço isso!

— Escute o que estou dizendo. Se lhe estender a ele vai bater nela, se lhe der as costas ele aproveitar a chance de enfiar o punhal.

E tomando discretamente o “meu” envelope, despedi-me e saí levando um tesouro.

Originalmente escrito em abril de 2003. Publicado em 24/06/2007.


22
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 13:29link do post | comentar

Teobaldo tentava esquecer. Poderia ser na próxima golada de cachaça, ou na quinquagésima; tinha medo que não fosse nunca. Por via das dúvidas, entornava para dentro da goela a décima oitava enquanto ouvia Sílvio Luiz esculachando algum centro avante que perdia um gol: “Pelo amor dos meus filhinhos, esse até a minha sogra fazia!” As imagens vacilavam com a interferência da geladeira, o som vacilava com a interferência da gritaria, sua mente vacilava com a interferência de uma arma fria que levava no bolso. Ninguém a vira, ninguém morrera, ninguém morria. Sua vida estava atada ao nada, era uma poça estancada, de alma e de hálitos. Estava sozinho, humilhado e não matava ninguém, nem a si mesmo.

O teto do boteco começava a caçoar de sua determinação de derrotar a memória. Girava em gargarejos súbitos que empurravam suas costas para trás e o seu queixo para a frente. Como um malabarista Teobaldo tentava mergulhar no negrume da noite etílica, mas as lâmpadas teimavam em machucar nos seus olhos a certeza do dia. Então ouvi, como se fosse uma buzina de trem no meio da cerração, a voz gosmenta de alguém.

— Para com isso, homem. Cachaça não dá abraço para curar chifre de coitado.

Teobaldo braguejou prandindo os praços belo ar, guerendo sogar um gicante gualguer, mas gaiu de guatro no gongreto ácido e levou uma balda de áqua vrea na vuza e tesmaiou.

Acordou com o rebimbalhar dos sinos de uma ressaca assassina, a sede de um crucificado lá pela tarde do segundo dia. Estava encostado na parede de fora do boteco e fedia a muito mijo. Um anjo o contemplava, com olhos esperançosos como são os dos mensageiros de Deus. E lhe falou:

— Teobaldo, homem. Levante-se dessa calçada imunda e vá para casa. Tome um banho e tome dignidade. Fazer esse papel não combina com você.

Teobaldo começou a chorar como criança e teve vergonha de ouvir aquilo. Teve vergonha também porque o anjo tinha nojo de seu cheiro enjoativo de enxofre e fósforo — o cheiro de um demônio, ou melhor, cheiro de alguém que dormiu na calçada e urinou na calça. Talvez pior, cheiro de alguém que sofreu a troça de jovens impiedosos.

Nem mesmo a mão ousou erguer. Apoiou-se na parede sentindo-se inferior a tudo, até mesmo à cadela de tetas graúdas e caídas que trotava pelo concreto levando a solidão de muitas maternidades e as cicatrizes de muita fome. Quando conseguiu se erguer, nem teve coragem de passar as mãos no rosto. Teve nojo das próprias mãos. Teve nojo do seu próprio corpo, e tinha uma sede de camelo. Mas não pediu água, não pediu apoio. Última dignidade que lhe restava: ficar sozinho, ir para casa com as próprias pernas. “Chega de anjos”.

Mas o anjo o seguia, lento e calado, como devem ser esses pestes. Não serviam nem para ajudar, e Teobaldo caía muitas vezes — e nem tinha trocados no bolso para um bendito copo de água mineral que aliviaria o inferno. Ver as pessoas bebendo nos bares era como ver o pobre Lázaro no paraíso, tão longe e tão perto. Ao contrário do rico, morreria sem pedir. O desespero é uma coisa para a vida póstuma.

Nem sabia se tinha a chave de casa. Ou uma casa ainda. Andava a esmo, talvez estivesse seguindo para um cemitério ou simplesmente acompanhando a cadela, coitada, que só fazia ser o que era por obra de Deus.

Achou-se em frente a um portão. O anjo acenou que sim. Mesmo Teobaldo gritando “suma da minha vida, eu não preciso de nenhum anjo da guarda”; a criatura permaneceu próxima, apenas cerrou o cenho e maquinou nas mãos um gesto agitado e rude que rompeu a santidade insincera que manipulava.

O sol estava melhor, a sede também — ele é que estava a ponto de morrer ou matar por uma simples garrafa de água com gás. E tinha um revólver, a bala era mais cara, mas não salvava sua vida. Apesar disso, covardemente, preferiu entrar em casa; descobrindo que a porta andava aberta, ou fora aberta miraculosamente — maldito sol matinal.

Foi direto para o banheiro. Beberia água no chuveiro. Para a sede, qualquer água serve. Só pensamos em detalhes quando não é questão de morte. Abriu a torneira fria mesmo, precisava acordar, matar alguém, mesmo de terno. Sorveu daquele líquido clorado, deixou aquele frescor banhar suas orelhas, molhar o seu cabelo, acordar o seu sexo. Perdeu a conta do tempo, felizmente ele não tinha futuro para se preocupar. Felizmente as crianças estavam na escola.

Só descobriu que estava vestido ainda quando foi se ensaboar. Ouviu o teto rir, lembrando ainda a noite. Quanto álcool bebera, puta merda! Era álcool ainda ou ficara no cérebro alguma sequela? Despir-se molhado é uma desgraça.

Pode ter sido meia hora ou oitenta minutos, poderia ter sido o dia. Mas quando saiu do banheiro não estava mais fedido a mijo, próprio nem alheio, tinha feito a barba, esfregado bicarbonato nos dentes até estragar a escova e raspado meio quilo de saburra da língua entorpecida. Penteara o cabelo para trás, como fazia na adolescência, imitando ídolos de um século partido. Saíra restituído em alguma dignidade, mas quem tem passado não tem isso: todo mundo já foi besta um dia, e só sofre mais quem foi besta ontem, porque todo mundo ainda lembra. Malditos os que têm memória longa, sempre se acha um bosta desses quando você está feliz. O melhor amigo é o cachorro que se esquece até dos chutes que você lhe dá.

Margarida estava sentada à mesa da cozinha. Tinha um prato de sopa de fubá com alho diante de si — e um saudável copo de água gasosa, cuja presença por si indicava que a mesa era posta para Teobaldo. “Meu Deus, sou uma minhoca, um mosquito, uma lombriga...” Ali estava Margarida, na cabeceira da mesa, silenciosa com seus olhos enigmáticos, poços pretos profundos impermeáveis à pesquisa de um desesperado como ele. E Margarida olhava para o jornal do dia, que o carteiro trouxera outra vez. “Devia cancelar essa merda”.

Sentou-se na cadeira ao lado. Pegou a colher como se fosse um revólver. Levou sopa à boca como se estivesse enfiando uma bala no lobo temporal. Infelizmente a arma fria no bolso da calça era só o telefone móvel. E o único crime que com ele cometia era ainda ter o telefone de Maria. As orelhas lhe queimavam.

Enquanto sorvia a sopa, em um silêncio cadavérico, via Margarida folheando o jornal, interessada. O ruído das folhas sendo viradas soava na cozinha como os remos de Caronte no Estige. Quando virou a última folha, antes de Teobaldo virar a última colherada, finalmente lhe deu na cara, com aqueles olhos que pareciam redemoinhos de raiva, ou uvas inflamadas.

— Não dormi essa noite pensando em você, seu bosta!

Teobaldo continuou quieto. Queria que ela o xingasse de cada palavra, que ela pisasse em seus ovos usando um tamanco de madeira, que ela pegasse seu coração entre os dedos e espremesse até o músculo virar sangue também. Queria que ela fosse uma assassina, uma mula-sem-cabeça, uma messalina.

Mas não, aquela inútil o olhava com uma expressão amante no rosto, pronta para resignar-se, esperando as explicações, quaisquer que servissem, querendo resgatá-lo, regá-lo com suas lágrimas e recuperá-lo. Ele queria morrer, mas não queria isso, não merecia isso, não queria isso, não merecia isso, repetia isso, estava perdendo de novo o controle. Bebeu o resto da água de um gole só, sofreu com isso, continuou quieto.

— E você não me fala o que está havendo? O que acha que sou, Teobaldo? Acha que sou seu anjo da guarda? Como quer que o ajude se não sei nem o que há com você? Eu o amo, quero ajudar, mas você é uma esfinge. Você é… um alcoólatra? Que depressão o jogou nessa fossa? Você não era assim antes, você nem bebia, você tonteou de beber martíni na primeira vez que saímos, falando coisas engraçadas. Eu gostava tanto de você daquele jeito simples, mas gosto de você de qualquer jeito, quero poder ajudar você de algum jeito…

As palavras saíam, meio sem sentido, repetitivas, na lenta imprecisão do destempero controlado. Maria lhe vinha à cabeça: aquela sim, jamais se rastejava por um homem como Margarida lhe fazia. Mas Maria tinha ido embora e ele nem sabia onde jazia. Era Margarida que ali estava, amando-o, implorando apenas que ele permitisse. Mas Teobaldo era um crápula, tinha que ser. Margarida não o merecia, ela precisava odiá-lo enquanto ainda era tempo, precisava deixá-lo, destruí-lo, esquecê-lo, casar-se com um que não fosse verme, lento, poça, lama.

“Chega de anjos” — berrava a sua mente. Mas a boca boboca babava, balbuciava. Repetia-se em colisões de consoantes, ou talvez em gaguejar garatujado de alguém que não rascunha as frases que diz. Ficava lá em silêncio, possesso, doloroso, querendo Maria e tendo Margarida. Maria, a amada. Margarida a amante. Não, amante de Maria, marido de Margarida. Por amor, por dinheiro. Abandonado, uma fuga para o estrangeiro. Ele ali, jogado no subúrbio, joguete de uma mulher como ele, não de uma exótica princesa. O vazio que ficara na saída de Maria era uma treva que quase o recobria, que destruía seu casamento e anestesiava sua vida. Bebia. Não porque o álcool o chamasse, mas porque morria, ou melhor, porque era o que queria. Não buscava torpor, mas o choque, ou um escroque que o cobrisse de pancada durante a anestesia.

Quando finalmente sentiu o efeito do alho nos pulmões, o calor do mingau se espalhando pelos intestinos vazios, recobrou os sentidos. Pela terceira vez em dois anos. Estava vazio, mas não estava mais embriagado, só doía.

— Eu não mereço isso que você fez comigo, Margarida — foi o que disse.

— P-perdão — foi a estranha, tímida, resposta.

— Estou dizendo que eu não sou digno de você!

— Ah…

Por um momento ele não percebeu. Mas depois teve uma sensação de estar olhando para aqueles exercícios de xadrez que apareciam no jornal. O silêncio naquela cozinha continuava cavernoso, só um pouco mais denso. Ouvia-se o jornal estalar sozinho, com o peso do ar que o apertava na mesa. E os olhos de Margarida, mesmo tão negros quanto antes, mesmo ainda parecendo poços de piche, enigmas esféricos, jabuticabas, todas essas coisas poéticas e precárias que se usa para dar dignidade à simplicidade de um corpo de carne, precário e decadente, que abriga esses sonhos nossos, única coisa diferente, motivo solitário de existirem versos, indústrias, guerras, todas essas coisas grandes e bonitas que duram para depois.

— Que diabo está falando, Margarida?

— Que diabo está falando, Teobaldo?

Teobaldo levantou da mesa bem devagar. Movendo cada músculo tão leve que parecia um beija-flor dançando para uma margarida. Dirigiu-se ao quintal dos fundos, deitou na espreguiçadeira e ficou olhando as hortaliças que cultivava nas horas vagas, o pequeno gazebo de madeira, todo belo de ornamentos, que encomendara ao primo Anastácio, que tinha sumido ganhando a vida na Europa com seus entalhes em madeira. Por que diabos gringo gosta tanto de coisas entalhadas em madeira?

Carros passavam pela rua, escondidos pelo muro de quatro metros, monstruosidade de concreto financiada pelo FGTS para consolidar o lar contra os vizinhos. Margarida não saiu com ele. Ficou lavando a louça e o faqueiro na pia da cozinha. De vez em quando caía uma faca ou uma colher, coisas que acontecem. Por azar quebrou-se um dos pratos de louça também — justo aquele em que tomara a sopa — mas era um dos baratos.

O domingo foi escorrendo pelo céu acima, esquentando a laje de cimento que forrava o caramanchão mal arrumado onde fora o churrasco do casamento de Anastácio com Danila, meses antes. Meses antes de partir-se Maria.

Por fim, quando deu fome, quando o sol chegou até a espreguiçadeira, levantou-se dela suado e salvo. A culpa se partira também. Maria que se fodesse, a vida era mesmo uma merda, melhor limpar do que deixar que fugisse ao controle. Chegou na cozinha e ainda achou Margarida, coitada, esfregando pratos e talheres. Pelo tempo que passara devia ser a décima vez que esfregava a esponja em cada garfo.

— Margarida, tenho pensando num monte de coisas, sabe. E tomei uma decisão muito importante hoje.

— O q…? — ela nem conseguia terminar a pergunta.

Teobaldo imaginou o que aconteceria. Filmou cada cena do futuro não acontecido. Margarida que abdicara de uma carreira para poder criar os dois filhos, vivendo de pensão que ele nem sempre poderia pagar em dia. A casa, herança tão afortunada de uma tia, vendida para pagar as custas do desquite, cada um vivendo em seu apartamento. Pensou na barba grisalha que tinha de manter raspada, nos vincos que atrapalhavam a sorrir, nas varizes que rasgariam mapas rodoviários em suas pernas. Futuros dias de pais e mães condensando culpas e acusações de coisas meio acontecidas. Tudo isso parecia pesadelo. Maria tinha ido embora. Tinha ido tarde, ela que fodesse, a piranha, com todos os frescos estrangeiros que encontrasse, que não voltasse nunca depois de usada e jogada fora, que achasse um que a fodesse bastante para ela não querer mais sair daqueles lugares frios aonde Teobaldo jamais iria. “Chega de anjos”.

— Eu entro para os Alcoólicos Anônimos amanhã.

Margarida desprendeu um suspiro imenso e o abraçou com força, manchando de espuma de detergente o pijama que ele ainda vestia. “Chega de anjos” — pensou Teobaldo. Deixou-a terminando de guardar a louça e foi assistir alguma coisa na televisão. Algum jogo idiota de campeonato estrangeiro (talvez Maria estivesse na arquibancada ao lado de algum afortunado gringo, careca e impotente, exibida como troféu, impunemente). Enquanto olhava a tela, resvalava com o olhar a foto da família, parecendo torta. A semente do diabo, plantada por um curto diálogo, ribombava em sua mente apenas com uma determinação quase demente: “Bentinho era imbecil”.

E nessa repetição a saudade de Maria morria e crescia com força a crença indiscutível, de que merecia e queria Margarida.


02
Mar 10
publicado por José Geraldo, às 07:35link do post | comentar

Todo mundo deve ter o direito de viver anestesiado da dor de viver, se quiser. Talvez o que falte é mostrar para essa gente que anestesia não cura e que expansão de uma mente vazia apenas aumenta o vácuo que deveria ter sido preenchido com… uma vida.

É um tremendo desperdício ocupar com drogas (lícitas ou ilícitas) espaços produtivos, vidas produtivas. Mas também é um tremendo desperdício ocupar com sexo, com amor, com passeios no parque levando o filho pela mão. Muitas são as coisas inúteis que são absolutamente necessárias, mas todos concordamos que elas precisam ser controladas. Não sei de ninguém que teve câncer por causa de poesia, de nenhuma carreira arruinada por amor paterno. Mas sei de vidas destruídas por apenas terem sido amortecidas por diversos tipos de “atenuantes”: álcool, LSD, maconha, chocolate, ambição.

Há inúmeras formas de se destruir uma vida, e para muitos a destruição está lá, mesmo que estejam produzindo peças e batendo seus cartões de ponto. Tem muito cadáver produtivo nessa sociedade mecânica.

Por isso eu simplesmente não sei o que dizer. Há momentos em que é necessário destruir a aldeia para salvá-la. Louco esse Vietnã da vida que vivemos.


18
Jan 09
publicado por José Geraldo, às 21:24link do post | comentar

Certa vez em um filme sobre mortos vivos algo filosófico o mocinho ressuscitava sua namorada morta e logo ela começava a ter comportamento anômalo, tal como comer carne crua e fazer escarificações na pele. Quando ele lhe perguntou porque as fazia (as incisões) ela respondeu: "para sentir-me viva".

Acredito que certas pessoas têm uma dificuldade para experimentar o mundo sensorial, por isso elas precisam de extremos para conseguir satisfazer-se. Precisam que a cerveja esteja "estupidamente" gelada. Precisam correr com o carro a 160 km/h dentro da cidade. Precisam de comer uma pimenta "da braba". Precisam ser promíscuas ("já beijei um, já beijei dois, já beijei três"). Precisam de música no último volume com 20 mil watts de potência.

Precisam, enfim, de sensações extremas porque estão "meio mortas", ou melhor, amortecidas. Para superar a dormência de seus sentidos em mundo que as bombardeia de informação até torná-las incapazes de enxergar, ouvir, tatear, provar, cheirar sutilezas.

São semi-cadáveres? Ou são apenas pessoas que se sentem desesperadamente perdidas num mundo que não as nota e que, por isso, precisam de fazer coisas extremas? Há para ambos os gostos. Há até os que fazem essas coisas precisamente para não serem notados.

Tatuam-se dos pés à cabeça e se cobrem de piercings porque querem ser notadas, mas também, ocasionalmente, porque tatuar-se e perfurar-se é um tipo de rito de passagem no qual "se sentem vivas" e que lhes abre a participação em uma "tribo" (conceito antigo, revivido em nossa sociedade fragmentada).


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