Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Dez 12
publicado por José Geraldo, às 00:23link do post | comentar | ver comentários (2)
O vazio da existência exige que vivamos coisas grandes, posto que não somos grandes. Cada geração padece da crença de que o mundo está decadente e deseja viver tempos interessantes. Isso talvez seja uma explicação para a vontade que tanta gente tem de ver acabar-se o mundo, ou então é só um pretexto para eu postar alguma coisa hoje e atrair algum tráfego…

Para ser sincero, não acredito que tanta gente acredite no fim do mundo, sequer de brincadeirinha. Com tanta coisa séria para se brincar, a sedução do apocalipse acaba merecendo a mesma explicação que a crença propriamente dita nele. Por que, com mil cometas chamejantes, as pessoas querem tanto que o mundo acabe?

Com algum sentimento metafísico poderia eu dizer que isso reflete a dor da morte. Como no antigo filme de zumbis que me apavorou algumas noites da adolescência: «Por que vocês comem cérebros?» — pergunta o protagonista. «Para aliviar a dor…» — responde a zumbi semidestroçada que jaz amarrada sobre uma mesa. «Que dor?» — insiste o estúpido herói, merecendo morrer cedo para aprender a ser idiota. «A dor da morte» — responde ela.

Queremos o fim do mundo porque queremos acabar com a dor, a dor de estarmos vivos. O fim do mundo é um suicídio sem culpa e sem vergonha póstuma. Ninguém falará mal ou bem de você se a sua morte ocorrer no fim do mundo, ou numa guerra. As pessoas que se voluntariam para ambas as coisas estão pensando em aproveitar uma oportunidade única, a de se matarem sem ninguém achar feio.

Isto também vale para quem só curte a brincadeira. Curte porque sabe que é mentira, mas curte porque é uma mentira que é uma utopia. Ah, como seria bonito ver os reptilianos nos matando a todos com suas bombas atômicas, esterilizando o planeta para depois plantarem seus fungos. A única coisa que separa os malucos por apocalipse dos que fazem piadas com o apocalipse é que os primeiros acham que vai acontecer, enquanto os segundos sabem que não, mas gostariam que.

E isto nos leva de volta aos zumbis. E ao inexplicável fascínio que exercem sobre jovens que adorariam ver o apocalipse zumbi acontecendo bem no seu bairro, na sua rua, na praça de alimentação do seu shopping favorito. À parte o fato de que tal coisa não vai acontecer, nada diferencia esta gente dos alegres voluntários que marcharam para as carnificinas da Primeira Guerra Mundial cantando hinos patrióticos e pensando: «ó, que coisa mais bela estar vivo para entrar numa guerra».

Só que guerra não é tão engraçado, guerra está fora de moda. Afinal, se acontecer uma teremos que enfrentar países que nos exportam refrigerantes, brinquedos ou vinhos. Melhor pensar numa guerra difusa, contra um inimigo onipresente. Zumbis ou alienígenas, tanto faz, de qualquer forma é um tipo de fim de mundo, com a vantagem de ser em câmera lenta, para dar tempo de filmar e pôr na internet. E claro, ninguém acredita nisso, tanto quanto os jovens europeus de 1914 não acreditavam que fosse acontecer uma guerra, mas desejam que ela estourasse ainda durante suas vidas, para poderem pegar seus fuzis e assinarem seus certificados de alistamento.

Formas diferentes de desejar morte, mas eu acho mais honesto quem corta os pulsos, porque assume o que quer em vez de esperar uma desculpa sobrenatural para dar um ponto final em sua dor.

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Out 12
publicado por José Geraldo, às 22:08link do post | comentar | ver comentários (6)
E para quem achava que repetição de erros de organização era algo que só acontecia com o ENEM, «coisa do governo» e, portanto, incompetente, eis que, pelo segundo ano consecutivo, lá temos sob questionamento de novo o maior prêmio literário do país, o Jabuti, conferido pela Câmara Brasileira do Livro.

Para quem não se lembra, a polêmica do ano passado se deveu ao romance de autoria de Chico Buarque ter sido escolhido «livro do ano» mesmo sem ter sido vencedor em sua categoria. Trocando em miúdos: uma obra que não conseguiu ser o melhor romance do ano foi vista como o melhor livro. Faz sentido na lógica psicodélica dos concursos literários que, como se sabe, são um tipo delicado e culturalmente desejável de empulhação. Empulhação consentida pelas partes, embora algumas vezes certas pessoas fiquem amargas.

A polêmica deste ano se deveu às notas conferidas por um dos três jurados na categoria romance. O ainda anônimo «Jurado C» deu respectivas notas zero e um e meio a duas obras que haviam tido notas médias anteriores maiores do que as do livro que veio a ser o vencedor. Trocando em miúdos: prevendo que o seu favorito (a quem deu 10) perderia, o «Jurado C» deu notas ridículas aos principais concorrentes, para forçar a vitória de seu candidato.

Não existem justificativas para a crítica dar notas abaixo de cinco a um romance que chega às finais de um prêmio nacional de literatura. É preciso uma dose muito grande de paulocoelhice para um romance merecer zero. Tanto assim que nem mesmo os romances do mago chegam a merecê-la, no geral. É de se imaginar que obras publicadas por editoras sérias (aham), escolhidas por critérios literários sérios (aham), submetidas a processos competentes de revisão, se chegarem a integrar a lista dos dez favoritos, merecem pelo menos um cinco. Cinco é a mediocridade absoluta. E mediocridade é o mínimo que se espera de um autor publicado «no esquema». Abaixo da mediocridade reina o desastre, a falta de continuidade, os solecismos, os desconhecimentos semânticos, a anfibologia, o plágio e toda uma gama de coisas que tornam a leitura do livro impossível a não ser pelos infelizes revisores que são obrigados a ler.

Portanto, as notas dadas pelo crítico são indefensáveis segundo qualquer parâmetro crítico que se queira adotar — e isso quer dizer que elas evidenciam a manipulação deliberada do resultado final. Que seria outro se outras tivessem sido as notas desse frustrado indivíduo que gargalha em sua cadeira, como um deus mitológico, depois de fulminar os pobres mortais.

As notas deste crítico, sozinhas, são um tapa na cara de todo escritor brasileiro. Elas revelam um estado de espírito que não pode ser isolado. Se este crítico fosse o único a se sentir um «deus das notas», capacitado a definir resultados de prêmios que influem nas vidas de pessoas, a sua atitude teria encontrado mais repúdio, o processo teria sido cancelado. Outra análise seria feita. Tudo para não entregar a um jovem autor, estreante no romance, um prêmio que lhe pesará mais na estante do que uma bola de ferro acorrentada ao calcanhar. Para todo o sempre o escritor Oscar Nakasato será o autor que só ganhou o jabuti porque um crítico deu zero a Ana Maria Machado.

No lugar de Oscar, eu compareceria a cerimônia, sabendo que ela seria filmada, subiria ao palco, receberia o troféu, mas em seguida o recusaria, destinando-o publicamente ao Jurado C que, ao demonstrar tamanha vontade de influenciar no resultado, revelou-se único «dono» do troféu, a ponto de decidir conscientemente a quem dá-lo. Desta forma, recusar o troféu seria restituí-lo ao dono. Seria uma saída digna. Pessoas dignas costumam recusar honrarias imerecidas ou polêmicas. Escroques não, porque eles vivem para obter honrarias, merecidas ou não. Kissinger aceitou um Prêmio Nobel da Paz por ter assinado a paz da Guerra do Vietnã, uma paz que poderia ter saído quatro anos antes se ele não tivesse ajudado a sabotar as negociações para favorecer a vitória dos Republicanos em 1968. Para ganhar uma eleição, o futuro Nobel da Paz fez mais 250 mil pessoas morrerem. Humor negro no Vietnã é dizer que Kissinger ganhou o Nobel da Paz.

Se o romancista paranaense fizer isso, certamente será declarado persona non grata nos meios editoriais brasileiros para todo o sempre, e amém. Mas se aceitar o troféu, a vida inteira vai ter alguém para implicar consigo dizendo: «aquele troféu você só ganhou porque um jurado maluco deu zero para a Ana Maria Machado, cara». Olhem o tamanho da injustiça que o júri do Jabuti impôs a esse cara. Ninguém merece ter que fazer uma escolha dessas: entre uma atitude digna que atrai catástrofes e uma atitude cautelosa que preserva uma polêmica (alguns dirão covarde, mas eu que sei o que pena um escritor não tenho coragem de usar esta palavra contra o Nakasato). Por isso eu vou entender se o cara aparecer com seu melhor terno, sentar onde «o moço» manda, esperar quieto a sua vez, aplaudindo a vez dos outros, subir no palco com desajeitamento natural ou simulado (pois novato tem que ser desajeitado), agradecer à família, à Deus, à pátria, ao público e levar o troféu para casa, caladinho. Nem todo mundo é maluco. Nem sei se eu seria. Mas que adorável seria o mundo se os malucos governassem.

Alguns dirão que o tempo passa, as polêmicas são esquecidas e o que importa são os títulos conquistados, e só os perdedores choram. É a lógica deprimente do sucesso a qualquer preço. A lógica de uma espécie de selva moral que nos empurra para o abismo e para o salve-se-quem-puder. Uma lógica que está na moda, mas a moda pode mudar as pessoas começarem a dar exemplos. Eu quero viver em um país onde as pessoas rejeitem vitórias obtidas de forma ilícita ou em decorrência de falhas do processo. Por isso eu preferia que o Chico Buarque tivesse recusado seu Jabuti no ano passado, considerando que ele, sendo quem é, precisa muito menos dele do que o Nakasato, que está começando agora. Mas Chico ficou com o prêmio, sem sequer um protesto, e se apequenou. Sorte dele é que os ídolos não precisam ser perfeitos.

26
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 15:24link do post | comentar
Notas para minha participação na mesa redonda sobre o tema “A embriaguez como inspiração artística ainda se justifica?”, ocorrida no dia 11 de novembro de 2011 no III Festival Literário de Cataguases. Esta postagem ocorre com tamanho atraso porque, em virtude de problemas que eu estava enfrentando com o meu computador, perdi duas vezes o texto revisado que já estava quase pronto para postar.

A Licença Poética basicamente significa que o autor tem a prerrogativa de escrever como queira, sobre o que desejar. Então o debate se o artista de hoje ainda pode tomar a embriaguez como inspiração me parece um pouco fora de lugar: é óbvio que ele pode. Talvez o que a gente deva discutir seja outra coisa: a relevância de uma abordagem assim autodestrutiva. Porque embriagar-se é uma forma suave de autodestruir-se. Nesse ponto eu tenho duas opiniões:

Primeira,quanto ao assunto: Não acho que escrever sobre drogas (lícitas ou não) seja tão relevante quanto muitas pessoas creem. Possui uma certa relevância, mas quando um artista se restringe a esse assunto, recai em uma fórmula que já está bastante estabelecida e já tem até mesmo uma tradição. Existe um gênero de «literatura drogada» tal como existe um gênero de histórias de vampiros ou de contos eróticos estilo revista masculina. Ou seja: é uma ilusão imaginar que uma abordagem autodestrutiva possua novidade ou seja uma maneira genuinamente «revoltada» para expressar desencanto com a sociedade e a cultura em que vivemos. Ao fezer isso o autor apenas adere a um gênero, tal como os autores de historinhas de vampiro, ou os magos com seus livros que ensinam a fazer chover. Acredito que o valor da obra não está na «atitude», mas na competência. Bons livros transcendem seus limites e autores realmente talentosos devem ser versáteis, capazes de abordar diversos temas com desenvoltura.

Segunda,quanto à abordagem: Não acho que embriagar-se (seja qual for a química envolvida) seja favorável à produção artística. Um artista bêbado dirige a sua «pena» (hoje de forma metafórica) tal e qual um motorista bêbado dirige o seu automóvel. Você não escreve melhor porque bebe, a verdade é que você certamente escreve pior. Mesmo que consiga escrever coisas interessantes enquanto bêbado, terá conseguido apesar da embriaguez, não por causa dela. Quando pensamos por tal lado, vemos que embriagar-se não é um imperativo da arte, mas algo que brota da personalidade do artista.1 É o artista que se embriga, não é a arte que lhe exige isso.

Tendo feito estas duas considerações iniciais, que praticamente resumem tudo que preciso dizer, passo a fazer alguns detalhamentos também interessantes, embora não acrescentem muito às teses dispostas acima. Não os faço para expandir, mas para reforçar. Mas eu gostaria de desviar ligeiramente o tema desta mesa-redonda. Ligeiramente apenas: o desvio logo voltará ao tema. Prometo.

A Embriaguez Enquanto Reação Alérgica à Cultura

Acredito que todos aqui saberão de algum nome técnico para esta «necessidade» de embriaguez. Nossa sociedade hoje tem um nome técnico e até, talvez, um comprimido, para cada estado de alma possível. Cada indivíduo porta pelo menos um diagnóstico. Cabe muito bem investigar não a droga, não a bebida, não a erva, mas a figura da pessoa que se relaciona com tais substâncias, como e porque. Não investigar pelo lado direto e quase pornográfico, mas pelo lado filosófico. Eu poderia citar aqui alguns autores famosos sobre isso, como Durkheim ou até Proust, mas não desejo tornar este artigo penoso de ler e nem acometê-lo da soberba que aprendi a desprezar nos outros. Limito-me a dizer que há muito tempo é consenso entre cabeças pensantes que o impulso que nos leva à autodestruição é, possivelmente, a única questão filosófica realmente interessante. Dizendo em curtas e brutas palavras: qual o sentido da vida, afinal?

Quando o autor se embriaga ele não está pensando na arte, mas em sua relação com a sociedade. A própria citação de Baudelaire, usada como chamamento para essa troca de ideias aqui é bem explícita: ele dizia embebedar-se para suportar «o horrível fardo do Tempo» que atinge o homem e lhe «quebra os ombros e o curva para o chão». Baudelaire confessa claramente que não é um ideal artístico que o motivava, mas uma espécie de mal-estar social. Não custa lembrar que o poeta foi contemporâneo de Schopenhauer e Nietzsche — e você precisa conhecer esses dois para entender melhor as tentações suicidas das grandes figuras da arte.

É nisso que eu pretendo começar o desvio. Existe um mito fortíssimo, bastante difundido entre nós, provavelmente presente em outros povos também, de que a cultura é uma forma de decadência em vez de progresso. As pessoas parecem pensar que a aquisição de conhecimentos debilita, em vez de fortalecer, desune em vez de unir. Assim, o «homem perfeito» teria de ser alguém «simples decoração», «pobre de espírito».

Este conceito é bem antigo, por isso o chamei de mito. Fazendo uma rápida digressão histórica, vamos lembrar que na mitologia grega havia a figura do profeta cego Tirésias, um visionário cego, vejam que interessante. Ou Cincinato, o rude fazendeiro que salvou a República Romana. Ou Maomé, supostamente analfabeto e autor do Alcorão, o «livro perfeito». Estes homens fortes e simples (sancta simplicitas, dizia um ditado latino) conseguiram impressionar e liderar porque não tinham as hesitações que somente a maturidade traz. A ignorância pode não ser uma bênção, mas ela permite atos de loucura, a que a posteridade chamará de heroísmo.

O contraponto a esse homem «forte» porque simples, sábio porque ignorante é justamente o homem frágil porque culto, louco por ter estudado demais. Quem estuda demais enlouquece, como nos diz a «sabedoria popular». A civilização árabe teria entrado em decadência porque assimilou demais as culturas «decadentes» do mundo helenístico. Li esse absurdo num livro de História. Provavelmente o autor pensou que os muçulmanos teriam dominado o mundo inteiro no século VIII se não tivessem estudado filosofia. Vai saber.

O homem que se torna maduro e culto sofre logo com a descoberta daquilo que já foi chamado de «mal estar da civilização». Como dizia Aristóteles: experimentar é sofrer. Ou, como disse H. P. Lovecraft:

A coisa mais misericordiosa do mundo, eu acho, é a incapacidade da mente humana para correlacionar todo o seu conteúdo. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio aos mares negros do infinito e não nos foi dado viajar para muito longe. As ciências, cada qual puxando em sua direção, até agora nos causaram pouco mais; mas algum dia a montagem do quebra-cabeças de conhecimentos espedaçados abrirá tão terríveis visões da realidade e de nossa horrível posição nela que enlouqueceremos com a revelação ou então fugiremos da mortífera luz para a paz e segurança de uma nova idade das trevas (tradução do autor)

Aquele que aprende, deixa um pouco de si à medida em que incorpora algo do outro, então o aprendizado produz uma incompletude do ego ao mesmo tempo em que o expande com elementos do outro. Esse processo talvez seja o que Marshall McLuhan chamou de «destribalização» e outros chamaram de «desenraizamento». Hoje, mais do que nunca, nós somos criaturas hidropônicas, isoladas da terra que nos deu origem.

Estudar Enlouquece, Aprenda Isso

O fenômeno descrito acima foi percebido muito cedo pela humanidade, que tratou de desenvolver em torno dele um complexo sistema de atenuamento. Ao longo de um processo milenar, surgiu a crença na sobrevivência da alma, surgiram as religiões e seus sistemas de controle, surgiram, cedo, as drogas. É uma vaidade louca tentar acabar com o tráfico de drogas: ele não existiria se as substâncias psicoativas não fossem úteis. Em todas as épocas existiram pessoas que precisavam da fuga, da anestesia, da aniquilação. Em todas as épocas existiram pessoas que precisavam do suicídio. A diferença é que hoje, neste mundo apinhado de gente, onde mal se pode urinar na hora em que a natureza chama, o suicídio deixou de ser um trato pessoal com o destino e passou a ser um fenômeno coletivo, posto que terá testemunhas, herdeiros, sofredores.

Nesse sentido a religião encontrou um terreno fértil para transformar-se em uma força social permanente. Dependendo da época e da cultura, a religião pode dar um sentido ao suicídio, reduzindo o sofrimento da família do falecido, ou pôr um freio no ato, ao dar um sentido à vida daqueles que não veem mais sentido algum. Para que estes processos funcionem é preciso que as pessoas aceitem o pacote da religião, e esta aceitação depende da suspensão da crítica, o mesmo fenômeno que permite ao leitor de uma obra fantástica aceitar, «em tese» e para fins meramente de diversão, a existência de duendes, elfos, dragões ou até deuses. Por isso as religiões e as filosofias têm uma relação conturbada. Em geral os filósofos só aceitam a religião quando eles próprios desenvolvem filosofias que legitimam a religião. A religião, por sua vez, discrimina entre os filósofos aqueles que são tachados de «niilistas» e os condena do alto de seus púlpitos.

O cristianismo, em especial, desconfia da sabedoria, e desconfia com força. Está no Novo Testamento que a sabedoria do homem é loucura para Deus, e vice-versa. Estudar é tornar-se louco aos olhos de Deus. Tornar-se sábio no mundo é afastar-se da salvação. Quem estuda se afasta das respostas prontas dadas pela religião, e no perigoso pântano do pensamento (oh, a horrível liberdade!) pode concluir por valores reprováveis perante a sociedade e seu cão de guarda, o sacerdote.

Sobre estudar demais e ficar doido, nossa cidade teve um personagem mítico,o já falecido professor Geraldo Barbosa, que muitos aqui devem ter conhecido. Não vou dizer que era louco, o que me importa nesse ponto é mais o que diziam dele, do que o que ele realmente era. Diziam que ele, de tanto estudar, teria ficado louco.

No meu tempo de criança havia conhecidos meus, pessoas adultas,inclusive de minha família, que me citavam o Geraldo Barbosa para me convencer que não estudasse «demais». Davam-me como exemplo primos e parentes, que ganhavam a vida já, sem terem grandes estudos,enquanto eu ainda não tinha profissão e nem «futuro» (essa arma abstrata com que os mais velhos atiram nos sonhos dos jovens). O dinheiro adquiriu tal importância entre nós que passou a definir, de forma exclusiva, o sucesso ou o fracasso. Houve uma época em que os homens ricos em dinheiro não tinham poder, mas sim os ricos em terras e em seguidores. Hoje em dia todos os bens somente têm valor enquanto possam traduzir-se em dinheiro — embora, curiosamente, o dinheiro em si seja uma abstração, tal como bem definiu o chefe Seattle, em sua carta ao presidente americano: somente depois que a última árvore for cortada, o último peixe for pescado e o último rio for envenenado o homem branco perceberá que não pode comer dinheiro.

Seria o professor Geraldo Barbosa louco? Machado de Assis, em sua espetacular noveleta O Alienista, já nos mostrou o quanto é tênue e arbitrária esta linha marcada entre a normalidade e o desvio. Mas supondo ainda que fosse mesmo «louco», mesmo que apenas em tese, seria ele louco por ter estudo em excesso?

A Política da Loucura

O povo inculto, de um modo geral, teme e odeia os seus líderes desde há milhares de anos. Desde a Suméria e o Egito, quando a escrita foi inventados, os homens que leem e escrevem são vistos como controladores de forças terríveis, MALÉFICAS. São forças maléficas porque a elite oprime o povo. Logo, as tecnologias da elite, entre elas a escrita e a leitura, são contrárias ao bem do povo. É significativo que ainda sobreviva em nosso meio um filão de filmes de terror focado em Livros Malditos.

Mas o povo precisa de auto-estima, não pode se aceitar como gado. Por isso desenvolve-se a ideia do «preço que a bruxaria cobra». Inicialmente isso era visto como literal: os que se dedicavam aos mistérios deste e de outro mundo eram pessoas distantes, isoladas, malcheirosas devido às experiências que conduziam em suas alcovas. Envelheciam cedo devido às privações de sono e de alimento,enxergavam mal devido a «forçar a vista» em seus livros, diante de velas e cadinhos. Hoje já não se faz alquimia, mas persiste a ideia de que o homem dedicado ao solitário prazer da cultura seria um ser infeliz, amaldiçoado. Salutar e bom é o vigoroso homem do povo, isento da corrupção do passado, cheio da verdade simples e direta que brota da terra.

A figura do artista maldito, degradado, bêbado, drogado etc. nada mais é do que uma variação do Professor Geraldo Barbosa, que estudou tanto que enlouqueceu. Estes artistas têm exposição intensa na mídia, desproporcional até, porque eles atendem a um modelo, a um arquétipo. Com já disse, as pessoas acreditam que a ignorância é «pura», que a sabedoria «corrompe». Então, as pessoas acreditam que o artista é mais natural, mais espontâneo, quando se exibe louco, entorpecido, decaído. Por ser uma pessoa mais «sensível» (seja lá o que for que o povo ache que «sensibilidade» é), o artista seria por natureza uma criatura frágil. Então fecha-se um círculo e pessoas interessadas em ser ou parecer artistas seguem esses modelos de comportamento frágil-drogado achando que se tornam mais artistas por causa disso. É aqui que a frase do Chesterton entra como uma luva. Ou seja, tem gente que acha que é o rabo que abana o cachorro. Há pessoas que acreditam que terão os acertos de uma outra pessoa se copiarem os seus erros.

Já vimos antes que o conhecimento expõe o homem ao confronto com forças que estão além de sua compreensão e que nem todos estão preparados para sair ilesos de tal combate. Voltamos, então, ao tema da embriaguez.

Para mim, tudo o que embota a mente, lícito ou ilícito no Código Penal, tem a mesma função: produzir ignorância artificial. Uma vez que as pessoas, de forma tão prevalente, apreciam a ignorância, o artista se atenua, entorpece, anestesia, a fim de produzir uma obra menos refinada, menos pensada, mais rude, visceral. Todo artista tem que ir aonde o povo está. O artista maldito é a confirmação, aos olhos do povo, que a sabedoria é perigosa, que o conhecimento corrompe. O homem sábio é ambicioso, tenta construir a Torre de Babel, termina confuso.

A concepção do artista como um ser autodestrutivo é uma maneira de desqualificar socialmente. O artista é mostrado como um doidão, não alguém que merece respeito. Isso me lembra um amigo virtual, que postou no Facebook um episódio de sua vida real: quando disse que era músico, lhe perguntaram em que ele trabalhava. Não se concebe que alguém possa ser «escritor», ou «músico», ou «artista». Aliás, na linguagem do povo, «artista» é ator da novela.

No Brasil nós temos um outro interessante paradigma disso. Na sociedade coronelista, que não superamos totalmente, o coronel, geralmente um homem de pouco ou nenhum estudo, contratava serviços especializados de gente diplomada: médico, contador, advogado, engenheiro, professor. Todos lhe eram submissos pela lógica do poder. Então ficava o estigma de que um diploma apenas habilitava o portador a ser subalterno do poder. Posição desejável por homens pobres, mas vista como degradante para os descendentes das famílias quatrocentonas.

Por isso, filhos das classes mais altas, mesmo quando se formavam, preferiam a política: o diploma era só perfumaria, só para não ficarem abaixo de seus subalternos. Exercer a profissão era algo indigno de alguém oriundo de uma família poderosa. Antônio Carlos Magalhães formou-se médico mas jamais clinicou. Quando alguém de origem socialmente alta realmente exercia sua profissão, isso era um sinal de incapacidade ou impossibilidade de manter e expandir o poder herdado. «Pai fazendeiro, filho doutor, neto pescador» — diz o ditado mineiro. Deixar o poder e dedicar-se a uma carreira é uma decadência.

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Não Sejamos Moralistas

Escritores se embriagam. Sim, eles são seres humanos e vivem tudo que os humanos vivem. Sendo humano, dedico-me à viver tudo que é da natureza humana, teria dito um devasso imperador romano. Mas os escritores ainda vivem algo mais, que lhes é peculiar: a experiência da escrita. Quando um estivador, um lixeiro ou um médico se torna alcoólatra, isso não cria um debate sobre estivadores, lixeiros ou médicos alcoólatras. Mas quando as pessoas pensam nos escritores que se drogam (nos artistas, tamem, de uma forma geral), elas logo fazem um «salto lógico» de supor que a embriaguez seria uma característica do ofício. Por isso, creio que talvez seja errado considerar a embriaguez tão definidora de características literárias para que nos dediquemos tanto a ela. O que já dedicamos me parece muito.

A relação disso com a minha digressão sobre o sábio louco e o ignorante vigoroso é que conviver com esse arquétipo é penoso. Há uma série de dificuldades adicionais que o escritor precisa vencer para dedicar-se à sua atividade. Estas dificuldades, por si, podem afastar o escritor do convívio de outras pessoas, porque escrever demanda, principalmente, tempo e silêncio. E parece ser uma característica quase universal das culturas contemporâneas a valorização do ruído, da experiência coletiva. Diante das teletelas reais vivemos nossos momentos de ódio e de amor sempre na companhia do outro, cidadãos de um admirável mundo novo que somos, obrigados a sorrir e a amar quase como por dever cívico.

Então,quando você junta a persistência do arquétipo de que cultura enlouquece, a necessidade de relativa solidão para poder produzir e mais os problemas (psicológicos ou sociais) de que ninguém está inteiramente livre, o que obtém? Se o escritor recair em algum vício você obterá uma série de obras dedicadas ao vício porque, em geral, o grande assunto do autor é a sua própria vida, que ele pode desnudar diretamente em uma autobiografia ou meramente transferir de forma sublimada para cenários de suposta fantasia. Será, porém, que estas obras indicam algum valor no vício?

Uma das características do viciado, do «adicto», como se diz hoje, é negar que seja viciado. Quem tem parente alcoólatra sabe muito bem como inventam desculpas, histórias, explicações. Imagine que desculpas, histórias e explicações não serão inventadas por um alcoólatra que tenha talento com as palavras? Sempre, claro, com o objetivo de glorificar o próprio vício.

Ainda mais porque o vício, sendo algo que pode acometer qualquer pessoa, acaba por servir de traço de união entre o estranho, o homem das letras supostamente elevado e incompreensível, e o normal, as pessoas que vivem vidas naturais, sem preocupações literárias. Papo de bêbado é sempre igual. Beber, então, pode ser uma forma de o escritor mostrar-se acessível, criar uma imagem que o grande público não rejeite. Ele tinha talento, mas tinha uma fraqueza. Ninguém suporta os perfeitinhos. Quer dizer que além de ser rico e talentoso ele também era abstêmio? Ah, alguma podridão ele deve ter!

Perigos Modernos

Existe um outro aspecto a se considerar sobre a embriaguez: hoje em dia ela deixou de ser um ato de contestação. Isso é parte do grande processo de banalização de tudo, fruto de nossa sociedade que produz tudo em escala industrial, inclusive sofrimento e estupidez.

Quando Baudelaire e seus amigos se reuniam nos clubes de comedores de ópio em Paris, eles o faziam como uma afronta à sociedade «certinha» de seu tempo. Eles se sentiam meio mortos naquele mundo de convenções e limites, queriam romper suas amarras e ver coisas novas. Não se sabia, ainda, o quanto as drogas eram ruins. Havia uma certa ingenuidade no mundo, naquela época. Não custa lembrar que até os anos vinte ainda se vendia pastilhas de cocaína e vinho com heroína.

As pessoas foram descobrindo aos poucos que certas substâncias eram perigosas, e reagiram histericamente quando isso caiu no domínio público. Proibiu-se um monte de coisa que não precisaria ter sido proibida, e muita coisa que tinha de ter sido continuou legal. Então a embriaguez voltou à moda. Nada mais contestador nos EUA da Lei Seca do que ser um pudim de cachaça.

O problema é que este aspecto «contestador» da embriaguez perdeu seu sentido. Hoje em dia está tudo normatizado e tolerado, inclusive a rebeldia em nível individual. Você pode se vestir como quiser, tatuar-se aonde quiser, espetar-se com o que quiser, maquiar-se como quiser, talvez até botar um parafuso na cabeça. Então quando você enche a cara, está apenas alimentando mais uma indústria, que é parte do sistema. A rebeldia, hoje em dia, é uma função necessária para a estabilidade do conjunto. A rebeldia idiota, ou seja, a rebeldia do indivíduo isolado. Porque a rebeldia coletiva merece gás de pimenta, cassetetada no lombo e ordens judiciais de reintegração de posse. Enquanto você estiver sozinho contra o Leviatã você tem a liberdade de dizer e fazer muita coisa, mas ao reunir-se diante dele o resultado é todos serem pisoteados.

Veja bem, não estou aqui sendo moralista. Cada um tem o direito de ser o que quiser. Não sou polícia do corpo e nem da alma alheia. O que me incomoda é existir a estética da arte como algo «sujo», do artista como necessariamente alguém que «peca». Não me incomoda porque seja contra isso, mas porque o estereótipo ocupa praticamente todo espaço. Parece que as pessoas acham que o artista é de alguma forma ilegítimo se ele não se tatuar, não brigar com a família,não cometer algum crime, não tiver uma vida antissocial, etc. Esse artista que não agride a sociedade é tachado de «conformista», «nerd», «workaholic» etc., quando não apenas ignorado.

Mas todas estas coisas que alguns artistas fazem não são a arte em si. São idiossincrasias do artista que, muitas vezes, afetam negativamente a arte, mas algumas podem afetar positivamente também. Quantos poetas malditos que se mataram cedo não poderiam ter vivido até uma maturidade muito mais significativa artisticamente? Quantos roqueiros mortos de overdose não poderiam ter feito música ainda melhor se não tivessem partido aos vinte e poucos? Para cada conto de Poe, para cada poema de Coleridge, deve haver uma infinidade de composições de Hendrix.

De fato, são poucos os escritores que bebem para escrever. São muitos os que bebem, claro, mas a ideia de que alguém enche a cara de cachaça e diz, «agora, então, eu estou pronto para escrever» é uma coisa irreal. Escrever exige concentração, coordenação motora, certo domínio dos sentidos. Uma quantidade moderada de álcool, ou qualquer entorpecente, pode não ser suficiente para impedir, mas dificulta. Uma dose maior simplesmente impede o ato criativo. Veja os famosos shows com músicos drogados, aqueles caras cantando com voz arrastada, errando notas na guitarra, tropeçando no palco. Algo parecido acontece com o escritor. Sua voz arrastada é a dificuldade para lembrar vocabulário, seus erros de notas são as omissões de palavras ou pontuação, seus tropeços são as perdas de sequencia lógica.

Minha experiência pessoal com a relação entre a escrita e a bebida foi sempre negativa. Embora eu até tenha escrito textos interessantes sobre a embriaguez, ou até em estado de embriaguez, a verdade é que embriagar-me me retira toda a vontade de escrever. A embriaguez induz à preguiça e abole o raciocínio lógico. Escrita de artista embriagado é como papo de bêbado. Tem quem goste, mas é perfeitamente explicável que tanta gente não goste.

Uma coisa diferente é escrever posteriormente sobre a experiência dita durante a embriaguez. Mas nesse caso a escrita não tem nenhum ingrediente diferente em relação à de alguém que não bebeu, a não ser o assunto, que o autor vai conhecer em primeira mão. Mas é um assunto tão importante assim?

Bebendo Para Ganhar o Nobel

Aí chegamos ao ponto crucial, que é o da anulação do indivíduo, o estágio superior da ignorância. Algumas pessoas, mais do que se anularem, mais do que se estupidificarem, querem cancelar-se definitivamente, querem matar-se. As razões que levam alguém a se matar são tão complexas que vários filósofos dedicaram livros inteiros a isso. Schopenhauer dizia que o suicídio era a única questão filosófica relevante e Durkheim escreveu um famoso ensaio sobre o tema. Hoje sabemos que o suicídio não é uma questão filosófica, mas um problema de saúde pública, que até pode ser tratado com comprimidos, na maioria dos casos.

Mas continua sendo um fenômeno real. E justamente um fenômeno que afeta muito mais as pessoas de certa cultura. Nietzsche dizia que um povo é somente uma maneira que a natureza tem para produzir grandes homens e livrar-se deles depois. Nossa cultura, que produz artistas, malditos ou não, ao mesmo tempo em que lhes dá origem, os devora.

E dos americanos ganhadores do Nobel de literatura somente um não foi alcoólatra ou drogado. Será isto um indicativo de que bebendo se escreve melhor, ou um sintoma da doença cultural do ocidente (e dos Estados Unidos especificamente) que faz as pessoas «sensíveis» tenderem à autodestruição?

1 E sempre precisamos ter muito cuidado com a personalidade do artista pois, como cruelmente disse G. K. Chesterton: temperamento artístico é coisa de amadores.


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Nov 11
publicado por José Geraldo, às 20:45link do post | comentar | ver comentários (1)

Tal como no ano passado, compareci ao Festival Literário de Cataguases. Este ano, além de tietar eu também tive a oportunidade de falar umas bobagens com um microfone na mão enquanto alguém filmava para pôr no sítio oficial. Ao meu lado estava Miklós Palluch, que também estreia no romance, como eu, mas — ao contrário deste mineiro interiorano — padece de muito mais cultura, experiência de vida e contatos.

Fiquei bastante feliz de ver que minha campanha de divulgação foi relativamente bem sucedida. Embora tenha atraído apenas aproximadamente 3,5% das pessoas que eu efetivamente contactei, ela me ajudou a ter uma marca estranha: minha noite do Festival teve mais público que a de sábado, que contou com gente de muito mais peso.

Mas comecemos falando do que aconteceu primeiro, que é sempre uma boa e lógica maneira de começar — ainda que, literariamente falando, seja o óbvio.

Miklós Palluch é cineasta, esta é a sua praia. Na literatura ele ainda é estreante, mas estreia com muito mais tarimba de mundo do que eu, e por uma editora que certamente tem mais nome, a Ediouro. Seu romance é mais ou menos do mesmo tamanho (em páginas que o meu), mas oh, quanta diferença em todo o resto.

Estilos quase diametralmente opostos, objetivos idem. Ainda não fui longe na leitura, mas o que ele escreve me parece algo tão realmente alheio, e fresco, que dá até prazer continuar lendo. O velho húngaro escreve com uma secura, com uma sinceridade e com uma clareza que espantam.

Quanto a mim, bem, vocês que me leem sabem que eu sou amante de elipses e metáforas, de jogos, torneios e ardis. Nem sempre consigo completar a cambalhota, às vezes os malabares me caem da mão, mas fico fazendo meu número com graça e ousadia. Miklós não busca isso, a praia dele é outra. Ou melhor, enquanto carioca (mesmo que adotivo) ele realmente sabe de praia. Eu sei de morros e de rios e de ventos e de lendas. Ele escreve claro como o sol do Rio, eu escrevo sombrio como as estradas estreitas e gretas e grotas dos lugarejos de Minas Gerais.

Ver-nos trocar ideias deve ter sido interessante. Ele, descontraído, senhor de si, alguém que parece tanto ter nascido com um microfone na mão que nem sequer o quis usar, preferiu brandi-lo, qual varinha de condão, para encantar os olhos da plateia. Eu, vestido “como um padre”, nas palavras de meu irmão, me sentia pressionado a ser interessante, algo que normalmente não sou. Eu tinha ido lá com medo de parecer didático ou soberbo. Miklós foi ambas as coisas, mas com uma simplicidade que deu inveja…

Falamos sobre um tema espinhoso, que o moderador — Enzo Menta — fez questão de ressaltar que tem até um lugar no Código Penal. Risos na plateia, senha para sermos descontraídos. Naquele momento me arrependi de minha calça social e de minha camisa impecavelmente abotoada. O que falamos não vou detalhar, porque amanhã ou depois, quando me recuperar do desânimo, eu vou postar minhas notas para o debate, acompanhadas de algumas observações inspiradas no que o Miklós disse.

Depois, enquanto autografávamos nossos livros para os presentes, ele veio até mim, fez questão de comprar Praia do Sossego e me pediu uma dedicatória. Imagino se ele sentiu algo em meu jeito ou minhas palavras que lhe sugeriu que devesse ler o que escrevo, ou se estava sendo apenas simpático, algo que, ao que me parece, ele não precisa querer ser. No dia seguinte nos reencontramos e trocamos mais umas palavras. Fiquei com a impressão de que ele é um sujeito que eu adoraria ter como vizinho. Ainda bem que o Rio de Janeiro é “logo ali”.1

O evento seguinte na sexta-feira foi uma mesa-redonda entre os poetas Chacal, Ondjaki e Marcelo Benini.2 O tema entre eles foi que comentassem sobre o aforisma de que “um poeta não se faz apenas com versos”. O conceito fora atribuído pela organização do FELICA ao próprio Chacal, indiretamente concedendo-lhe uma primazia sobre os demais. Primazia que ele, humildemente, tratou de dissolver sacando da sacola as suas notas. Nelas ele leu, para certa surpresa da plateia e do próprio moderador do debate, que a frase era de Torquato Neto e aparecera na obra de Chacal através de uma citação. Antigamente não havia hiperligação.

Benini foi o mais comedido dos três, certamente surpreso pela erudição demonstrada por Chacal. Para espanto de muita gente que o julga sem o conhecer (e acha que ele deve ser uma espécie de porra-louca vazio), o poeta carioca exibiu uma segurança, uma cultura, uma vivência e uma autoridade dignas de um acadêmico. Mostrando-se conhecedor de um amplo período da história literária brasileira, o poeta acabou dando o tom de quase metade do debate, e ainda achou um modo de se defender de uma estocada que eu sem querer lhe dera em meu debate (oh, ousadia).3 Mas quem realmente roubou a cena foi Ondjaki. Muito mais articulado do que Chacal, com sua fala rápida, com seu talento corporal e seu jeito de jovem rebelde, que tanto encantou uma aluna de Letras.4 Ondjaki, porém, preferiu usar sua presença cênica para equilibrar o debate, introduzindo mais temas e evitando que a erudição de Chacal monopolizasse as atenções. O próprio Chacal beneficiou-se disso, pois os temas variaram mais, permitindo que todos brilhassem. Particularmente brilhou o Benini, cujos versos breves e concentrados, de um livro escrito inteiramente sobre pássaros, ofereceu um grande frescor temático.

A noite de sexta terminou com todos bebendo e se divertindo no bar D'Ângelo, mas eu não pude ir, devido ao sono das crianças. Mesmo assim a noite foi rica, pela oportunidade de ouvir assuntos sobre os quais nunca se fala em uma cidade pequena e pelas amizades que fiz, ainda que algumas delas fiquem apenas na memória.

No sábado o auditório estava um pouco mais vazio do que na noite anterior, o que em parte se deveu a concorrência de vários outros eventos que estavam acontecendo na cidade simultaneamente. Fica a dica para a organização do Festival, que no próximo ano ele se realize antes, talvez em outubro ou setembro.

Mesmo assim era um público qualificado, do tipo que ouve com atenção, faz boas perguntas e sabe respeitar as personalidades e as biografias que lá estavam. Às vezes é melhor falar para trinta pessoas interessantes do que para centenas que não fazem diferença.

A primeira mesa-redonda da noite foi com Elias Fajardo e Ana Paula Maia. Representantes de duas gerações diferentes, os dois também possuem estilos antípodas. Elias é alguém que eu entendo melhor: cria do interior, dotado de uma prosa lírica, um falar cantado. Ana Paula é urbana, elétrica, mas antropologicamente interessada no distante, no desértico, no confuso tecido das relações humanas do Brasil profundo. Mas continua urbana, elétrica.

Seus estilos percorreram caminhos muito diferentes. Ele foi jornalista, poeta, pintor, viajante, escritor. Ela foi baterista de uma banda punk, foi criança travessa, foi jovem rebelde. Ele sempre gostou de ler, mas esteve um tempão afastado da escrita. Ela nunca gostou, mas um belo dia, quase que a contragosto, foi mordida pelo mosquito da literatura. Conseguiram fazer com que eu ficasse curioso para ler os seus livros, ambos conseguiram. O do Elias foi mais fácil: ele estava lá à venda. Eu tive foi de ser rápido, porque ele não ficou muito tempo depois que terminou de falar. Alguns minutos de distração e ele teria ido embora sem que eu lhe pedisse o autógrafo. O da Ana Paula eu vou ter que adquirir por outros meios, sem seu autógrafo.

A noite terminou com um debate menos parelho quanto ao tema. Bartolomeu Campos de Queirós e Sabrina Abreu são muito mais diferentes do que quaisquer dos outros debatedores haviam sido. Eu e Miklós somos praticamente de planetas diferentes, mas estamos unidos por opiniões e conceitos políticos que se tocam, embora nossas literaturas não se entendam muito. Os poetas da noite anterior haviam podido dar-se ao luxo de serem diferentes porque poeta é mesmo um bicho estranho, o conjunto deles é um maravilhoso rebanho de gatos e eles se aceitam e se somam quando se atritam com suas opiniões diferentes. Ana Paula e Elias, embora vindos de mundos quase incomunicáveis, aproximam-se pelo universo em que ambientam suas histórias e, acima de tudo, pela erudição que um mostrou ter em relação ao universo do outro.

Nada disso pareceu funcionar muito bem em relação a Bartolomeu e Sabrina. Talvez porque eles fossem, mesmo diferentes demais. Bartolomeu é um idealista, um timoneiro da utopia. Sabrina é uma jornalista. Ele tem um estilo de profeta, ela de analista. Ele fala de um mundo que, sendo idoso, não verá. Ela fala de um mundo que viu de forma diferente daquela que a maioria enxerga. Ele tenta abraçar a filosofia, ela tenta enquadrar um canto da realidade que lhe interessa.

Obviamente fiquei fascinado pelo jeito quase papal com que Bartolomeu expôs, com notável firmeza lógica, as suas opiniões e suas proposições. Porém, identifiquei-me muito mais com Sabrina. Talvez porque ela, ao contrário dele, está mais próxima de mim (embora ele seja mineiro do interior e ela, da capital). Eu sou, como ela, um blogueiro, alguém antenado no presente (embora, ao contrário dela, tenha medo). Além do mais, Sabrina conseguiu falar muito mais de si e de seu livro do que Bartolomeu.  Saí do debate sabendo os nomes de dois livros dela, de suas ideias, de seu estilo, de sua abordagem. Mas consegui não saber o que Bartolomeu escreveu na vida, embora ele obviamente seja uma sumidade em seja lá o que for que faça.

A noite de sábado valeu também pela oportunidade de reencontrar alguns amigos de Cataguases com quem vinha tendo pouca chance de conversar. O William, por exemplo, agora que virou prefeito anda com a agenda cheia pacas. O mesmo posso dizer do Ivan, que se tornou secretário. Mas continuam sendo boas pessoas, velhos amigos de faculdade, gente que viveu ao meu lado uma época de que tenho saudades.5

Voltei do FELICA 2011 me sentindo feliz e realizado por ter vendido dez livros. É uma sensação estranha, e gratificante, receber dinheiro em troca das coisas que escrevo. A gente passa a vida inteira ouvindo amigos e parentes dizendo que o que fazemos não tem nenhum valor, e de repente aparecem pessoas pagando trinta e cinco reais. Senti-me bem com isso, especialmente porque ninguém comprou o livro “para ajudar”, mas para conhecer.6

Peço desculpas às demais atrações do FELICA que eu não comentei aqui. Infelizmente eu não pude estar presente todos os dias (que péssimo jornalista sou! — ainda bem que não sou!). Mesmo assim, cumpro o prazeroso dever de compartilhar minhas impressões, inclusive para convidar a você, que lá não esteve, a participar no próximo ano. Cataguases é uma estranha cidade de sessenta mil habitantes que, por uma anomalia da natureza, goza do privilégio de ter uma história de movimentos literários (notaram o “s”?) e eventos culturais. Que precisam ser mais prestigiados. Cataguases é impressionante.

1 Reza uma lenda que nós mineiros somos incapazes de conceber como distante algo que não esteja além do Oceano ou da Cordilheira. Isso é apenas uma lenda, obviamente, pelo menos aqui na Zona da Mata. Se duvida, sugiro que venha fazer-nos uma visita para conhecer o povo de cá. Não é difícil achar, tanto Cataguases, a do FELICA, como Leopoldina, onde vivo, ficam pertinho de Juiz de Fora, uns 100 km a nordeste, mais ou menos.

2 Perdão, poeta, por ter grafado seu nome com “ll” na dedicatória. Eu, que tanto me incomodo quando me chamam de “Gouveia”, deveria ter tido um pouco mais de cuidado.

3 Como vocês lerão ainda durante a semana, um dos “pontos altos” (ou terá sido baixo?) de minha intervenção foi o momento em que eu disse que não devemos valorizar o paradigma da droga ou da embriaguez como ferramenta de aquisição de conhecimento ou de inspiração pelo autor pois todo viciado tende não apenas a negar o próprio vício, mas também a encontrar justificativas não-hedonistas para o uso da substância. Acredito que a estocada a que me refiro foi no momento em que eu disse que, se todo bêbado inventa desculpas e explicações para o próprio vício, quão fascinantes e maravilhosas não devem ser as desculpas e explicações inventadas por um bêbado que possui o talento com as palavras. Em suma, tachei as produções literárias “aditivadas” de “papo de bêbado” sofistica. Oh, ousadia, que somente a ignorância permite!

4 De fato, encantou-a tanto que, nas três vezes em que tentou dizer o quanto gostava de obras suas, citou textos de outros autores “africanos”, o que acabou fazendo com que o poeta, no seu único momento de  aridez verbal, criticasse a postura arrogante com que as pessoas veem a África de fora, sem distinguir as culturas dos diversos países, com suas particularidades.

5 Quando voltava da faculdade, com a matrícula orgulhosamente na mão, encontrei um antigo professor do segundo grau, a quem contei do meu feito de ter passado em primeiro lugar no Vestibular. Ele, do alto da sabedoria que a vida dá e depois toma, sentenciou-me algo que jamais esqueci: “Isso não é importante, Geraldo. Importante é que na faculdade você viverá os dias mais felizes de sua vida. Você não terá saudades de um número na lista, mas dos amigos e amores que vai viver nesses quatro anos. Viva-os bem.” Obviamente, quando se tem vinte anos, a gente acha que sabe tudo. Não segui o conselho, mas ainda tenho saudades daqueles tempos, e daqueles amigos e amores.

6 se alguém quiser “me ajudar”, deve fazer o favor de não comprar o livro. Eu não tenho muitos, apenas algumas dezenas, e preciso que eles cheguem exclusivamente às mãos de quem esteja interessado em lê-lo. Obrigado.


24
Out 11
publicado por José Geraldo, às 23:13link do post | comentar

Entre 10 e 12 de novembro acontecerá o III Festival Literário de Cataguases (FELICA). Pela segunda vez estarei lá. Ano passado fui apenas assistir, mas esse ano estarei do lado de cima do palco, em uma mesa redonda literária. Aproveitarei a oportunidade para divulgar (e autografar) o meu romance “Praia do Sossego”, que assim ganhará seu merecido evento de lançamento — que eu não havia podido fazer antes devido a limitaçõe$ resultantes de alguns imprevistos.

Em breve começarei a enviar a todos os meus conhecidos os meus convitinhos virtuais para o evento, sem falar em convites de papel, em tamanho cartão de visita, que vou entregar pessoalmente a todos os meus amigos, colegas, parentes e conhecidos. Como tenho certeza de que será um evento interessante, convidarei sem remorsos todo mundo que possa. Eventos culturais como esse devem ser valorizados com a presença de quem gosta de arte. Detalhe que não vou convidar só para a minha noite, mas para o evento de uma forma geral.

Participar de um festival literário como o FELICA será muito gratificante devido ao nível das pessoas envolvidas. Esse ano, por exemplo, teremos quinze autores participando (contando comigo), entre eles alguns nomes famosos para quem acompanha a cena literária: Chacal, Elisa Lucinda, Ondjaki, Sabrina Abreu, Ana Paula Maia, Roseana Murray, Bartolomeu Campos de Queirós, Miklós Palluch, Otávio Júnior, Elias Fajardo, Marcelo Benini, Maria Vargas e Luciano Sheikk (quem está sem link é porque não tem blog nem site).

Outro motivo para me sentir gratificado é o tema da mesa redonda de que participarei, que será sobre a imagem do artista maldito, drogado, embriagado, inebriado, etc. É um tema bastante amplo, que tem apelo popular e dá muito pano para manga, como se diz no coloquial...


10
Set 10
publicado por José Geraldo, às 23:47link do post | comentar

De volta em casa, de minha segunda noite no FELICA (Festival Literário de Cataguases). Sinto-me como alguém que achou um cantil no deserto, depois de ter estado longamente trocando tiros com os índios. Que bom ouvir e falar sobre coisas não imediatas, não rasteiras, com pessoas que não são nem uma coisa e nem outra. Eu que não sou de me comover por qualquer coisa mais fiquei até emocionado de trocar palavras com caras como Alexei Bueno e Nicolas Behr, especialmente com o Alexei cuja obra e cuja acidez verbal eu já conhecia e admirava de outros episódios.

Uma das merdas de se viver aqui no interior é você não ter isso quase nunca: mesmo as pessoas das chamadas «altas classes» da sociedade raramente terão gostos por esses assuntos e você não terá nunca a oportunidade de discutir certas coisas sem ser tachado de maluco. Enquanto isso, muita gente pousa e posa…


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