Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
22
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 20:59link do post | comentar
Quem come ostra e camarão
come qualquer coisa,
menos escorpião.

10
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 17:46link do post | comentar | ver comentários (1)
Não é preciso, absolutamente, discorrer sobre as virtudes de nosso sistema educacional. Mesmo porque, tal discurso não seria suficiente para preencher uma postagem. Suficiente para botar a Indonésia no chinelo e galgando um honroso 36º lugar mundial, graças ao fato de não haver dados sobre a maioria dos países, a nossa educação goza de um status de praga do Egito, apesar de, segundo nosso governo, estar «no caminho certo». Com alguma boa vontade, querendo crer que ele tem razão, eu diria que demos os primeiros passos, os primeiros dois passos, de uma jornada equivalente à conquista da Índia por Alexandre, com a esperança de que dará certo, ao contrário do famoso episódio histórico. Alexandre pelo menos sabia onde ficava a Índia, receio, porém, que as pessoas que gerem nosso sistema educacional tenham apenas uma vaga ideia.

É com certa vergonha que esclareço isso, mas dado o nível médio de analfabetização do público neste país (75% de pessoas sem suficiente domínio da leitura), é sempre bom alertar que, no parágrafo acima, a Índia é empregada uma vez como metáfora.

Tal como o índio ficava fascinado por espelhos e imaginava virtudes para o pequeno objeto luminoso que não compreendia, nós, como verdadeiros botocudos, continuamos querendo soluções mágicas para nossos problemas, e gostamos mais das que brilham do que das que funcionam. Damos mais valor a espelhos e contas do que a facas. E agora o Ministério da Educação descobriu outra fórmula mágica.

Nosso sistema educacional é tão absurdo que eu duvido que ele tenha chegado a este ponto por uma evolução natural das coisas. Ele só pode ser defeituoso de propósito, porque não faltaram, em nossa história, iniciativas grandes que poderiam nos ter feito avançar muito. A ditadura de Vargas criou o sistema público de ensino, excelente, mas não se deu prosseguimento com a implantação de escolas modelo pelo país. Se uma quantidade suficiente delas tivesse sido criada, a massa crítica de pessoas esclarecidas que sairiam delas teria tido um efeito a impulsionar por mais estruturas semelhantes. O MoBrAl dos militares, apesar dos ranços ideológicos, poderia ter erradicado o analfabetismo e dado ensino primário a quase toda a população. Às favas com as ideologias, muitos países do mundo só erradicaram o analfabetismo sob o tacão de ditas, duras ou brandas (Turquia de Atatürk, URSS, Alemanha de Bismarck, China de Mao, Vietnã comunista, Cuba castrista). Mesmo que os militares tivessem as piores intenções, se o MoBrAl cumprisse seu fim esse país seria outro, porque não há nada mais revolucionário do que alfabetizar um povo (leiam MacLuhan).

Então é evidente que todas as iniciativas educacionais no Brasil sempre foram sabotadas, especialmente quando pareciam «no caminho certo». Para cada passo à frente, um ou dois para os lados, ou para trás. E quando surgia alguma voz iluminada trazendo ideias originais (ó, o horror!) vinha a seguir uma onda de idolatria cega de modelos importados. Tivemos Paulo Freire pouco antes de importarmos o sistema americano de «high school» (devidamente tropicalizado com a remoção de suas virtudes, como o período integral, as aulas de artes, a educação física e o ônibus escolar amarelo).

Em uma coisa, porém, todos os idealizadores de nosso sistema educacional sempre tiveram em comum: é uma excelente ideia reformar. Nem bem você começa a se acostumar com a divisão do sistema educacional em primário, admissão, secundário e terciário vem uma reforma e cria o primeiro grau e o segundo. E quando já estavamos acostuados a contar oito séries e mais três surge o segundo grau técnico, com primeiro ano básico, fazendo o secundário ter quatro anos. Ao longo de todo esse tempo, enquanto os intelectuais se ocupavam fazendo reformas e tentando reconectar fios nas cabeças dos alunos, vicejou a indústria do cursinho, que ensinava aos egressos dessas escolas-laboratório o mínimo necessário para entrarem numa faculdade e se manterem lá.

A ideia de reformar faz sentido, se você quer proteger o próprio traseiro. Se nada está funcionando, vão procurar demitir primeiro quem «não está fazendo nada», então pareça ocupado andando de um lado para outro com uma planilha de dados na mão e dando marteladas a esmo, de vez em quando propondo demolir uma parede ou comprar um mesa nova. Essa faina dá a impressão de que você tem um projeto, um propósito. Mais que isso, dá a impressão de que você é útil para o funcinoamento da coisa, enquanto o faz-nada que só fica tentando entender o que não está funcionando é um câncer do sistema que precisa ser logo operado.

E dá-lhe reforma educacional. Foram cinco durante a República Velha, quatro durante a ditadura de Vargas, quinze anos de debates até se chegar à primeira Lei de Diretrizes e Bases (1961), três reformas durante o regime militar, e pelo menos duas (três ou quatro, dependendo de como você conte) desde a redemocratização. Quinze reformas educacionais em 123 anos de República. Uma média de uma reforma educacional a cada oito anos. Praticamente ninguém nesse país se formou sem «sofrer» uma reforma educacional. E eu nem mencionei as mudanças que não foram implementadas através de reformas constitucionais ou leis ordinárias. Se formos contar as mudanças efetivadas através de portarias do Ministério da Educação (e seus equivalentes passados) a gente chega ao absurdo número de 52 mudanças estruturais na nossa educação em 123 anos de República. E os nossos alunos tiram notas ruins porque são burros, não é mesmo? Aham…

Há momentos em que eu começo a pensar que não importa muito se estamos mesmo indo na direção certa. Eu gostaria que simplesmente fôssemos por tempo suficiente em alguma direção, qualquer direção, para termos como saber se é a direção certa. A impressão que tenho, ao estudar a história de nossa educação, é que ficamos rodopiando no mesmo lugar, babando para qualquer novidade surgida nos Estados Unidos, na Alemanha, na França, no Japão, na URSS ou na puta-que-o-pariu. E dá-lhe ensino técnico, método Kumon, construtivismo, escola nova, ginásios, vestibulares, interdisciplinaridade, behaviorismo etc. Queremos ser tudo, ter tudo. Queremos que a nossa educação empregue todas as teorias educacionais do mundo. O que equivale a querermos que nosso carro seja ao mesmo tempo pick-up, perua, carro de passeio, esportivo e compacto.

Quando é que vamos parar com essa mania de ficar mexendo na máquina? Quanto tempo até algum iluminado ter a ideia de que, talvez, quem sabe, possivelmente, o nosso sistema educacional, seja ele qual for, funcionaria se simplesmente os professores pudessem trabalhar em paz? Não precisa ficar reinventando a roda, mudando a distribuição de séries, criando nomenclaturas. Vamos simplesmente dar formação sólida aos mestres escola, pagar-lhes salários razoáveis, oferecer-lhes cursos de reciclagem periodicamente, dar segurança e estrutura às escolas. Depois que tivermos feito isso por uns dez ou vinte anos, no mínimo, e esgotado o potencial de crescimento orgânico de nosso sistema, tosco que seja, vamos pensar em aperfeiçoamentos metodológicos. Vamos primeiro consertar o motor e lanternar direito esse calhambeque, depois a gente compra bancos de couro, pneus radiais e, quem sabe, turbine a máquina.

03
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 13:17link do post | comentar
Ontem me dei conta da falta que faz visitar ocasionalmente uma livraria. Estive brevemente na Leitura “Megastore” em Juiz de Fora e pude compreender muito daquilo que tenho visto e lido na internet. Algumas conclusões foram animadoras, outras terríveis, a maioria apenas remete a uma neutra mudança de padrões, oscilações de modas que não mudam nada. Mudam-se as palavras, mudam-se os estilos, permanece uma falta de sentido que denuncia os tempos perigosos que vivemos.

A primeira coisa que notei foi a mudança de foco da literatura de auto ajuda. Ela já não predomina tanto nas prateleiras e parece mais focada em livros baseados em experiências reais. Um bom exemplo é a autobiografia de Nick Vujicić, da qual havia nada menos que uma pilha de exemplares. Esse tipo de auto ajuda que agora predomina parece explorar a culpa do indivíduo como um fator motivacional: olha só, esse cara tá todo fodido e ainda assim realiza mais coisas que você. O nome do site de Vujicić é sugestivo desse apelo: “From No Limbs to No Limits” (De Sem-Membros a Sem-Limites) e a sugestão é “você, com quatro membros, não é tão sensacional quanto o Nick”.

Há duas conclusões que eu tiro disso. A primeira é que Paulo Coelho é carta fora do baralho agora: o seu estilo de auto ajuda ficcional chupando antigos textos religiosos e lendas orientais não tem o mesmo apelo porque as pessoas estão procurando coisas reais, e não invenções de magos que fazem chover. Azar da Academia que o aceitou pensando em popularizar-se entre seus leitores. A página de Paulo está sendo virada e dentro de alguns anos ele voltará a ser lembrado apenas como o parceiro de Raul Seixas em algumas de suas melhores composições. Por sorte ele aproveitou seus quase vinte anos de berlinda para ganhar dinheiro a rodo e comprar imóveis em lugares nobres, como o interior da Suíça. Vai ter uma aposentadoria de rei, e morrerá se achando um gênio, enquanto eu vou continuar aqui desconhecido no interior de Minas Gerais, o que, na cabeça da maioria do povo, significa que ele é um “sucesso” e eu, um idiota. Argumentum ad crumenam, mas o povo não liga para falácias, o povo gosta de idolatrar o sucesso, seja qual for. A vida das “famosidades” instantâneas demonstra isso: “artista” no Brasil é quem aparece na TV.

A segunda conclusão é que a auto ajuda cada vez mais se afasta do que seria chamado de “literatura”. Isso é bom para a auto ajuda, porque a literatura está moribunda, e é bom também para a literatura, porque parte de sua doença esteve relacionada à sua contaminação pela auto ajuda. Separadas, veremos como evoluem.

O sintoma mais forte de que a literatura anda moribunda é o sensacionalismo baseado no tamanho. Hoje todo mundo quer escrever trilogias ou, no mínimo, tijolaços. Argumentum ad numerum, mas o povo não liga para falácias. Quanto mais grosso o livro, maior o desafio de escrevê-lo. Desafio é vencer limites físicos, não artísticos. A maioria dos leitores de hoje provavelmente acharia que uma obra breve, como  “O Apanhador no Campo de Centeio”,  é inferior a um peso de porta como “Herança”, último volume da tetralogia de Christopher Paolini. O fato de se poder contar toda a história da tetralogia em vinte ou trinta páginas não faz diferença: um livro de tantas páginas merece respeito, tanto quanto os músculos criados por anos de malhação. O esforço físico importa mais que o efeito. Vivemos uma era que idolatra a teimosia. Talvez por isso o karatê, a arte marcial que idealiza o golpe perfeito, tenha saído de moda, e hoje idolatremos aquela bosta do UFC, uma espécie de briga de rua com regras, tão cronometrada quanto a “luta livre” estilo “tele-catch”, só que com sangue, para “dar realismo”. O carateca “magrelo” é zombado hoje: o objetivo do treinamento é criar massa, tal como o objetivo da literatura é criar páginas.

Isso explica porque os jovens vivem obcecados com trilogias, tetralogias, pentalogias, hexalogias, heptalogias, enealogias, decalogias, fodasselogias. Eles não têm um estilo, mas um objetivo. A ideia é vencer um desafio, não produzir uma obra.

Eu mesmo acabei recaindo nisso ao dizer, zombeteiramente, quando do lançamento de meu romance de estreia: “não produzi mais uma apostila com ISBN para valer de título na Academia, produzi um livro que tem, pelo menos, a dignidade de parar em pé na estante.” Minha declaração maldosa tinha um alvo claro, se ele está me lendo deve estar me xingando, mas tinha uma falha: ao dizer isso eu estava legitimando essas obras que proliferam páginas como um câncer prolifera células. Se o meu livro para em pé na estante, tem gente querendo escrever livros sobre os quais a estante pare em pé. Andar com tais livros é chique, isso é que é livro de macho, mesmo que sua quantidade de páginas seja anabolizada por artifícios que não acrescentam conteúdo. A velha diferença entre crescer, inflar e inchar.

Outra coisa curiosa é que a ampla maioria das obras postas nas estantes de destaque, na entrada da loja, eram literatura de fantasia. Nem estou falando de ficção científica, porque essa exige estudo até para se entender. Estou falando de fantasia desbragadamente desconectada da realidade, ambientada em países fictícios para que o autor não precisa pesquisar sobre um real e o leitor não aprenda, por acidente, algo sobre um que exista. Houve uma época em que o exotismo estava na moda, e muito jovem autor brasileiro queria se chamar Johnny e escrevia histórias ambientadas nos Istêitis, mas o exotismo contém uma busca de conhecimento, da qual a literatura de fantasia está livre, graças a Deus. Se o país e a cultura são inventados a partir do nada, então vale de tudo, dane-se a lógica, foda-se a coerência histórica. Se tudo ficar complicado, aparece um deus ou anjo ou demônio ou dragão e conserta tudo. E sempre se pode ressuscitar o morto para mais um capítulo, ou dar um reboot na história inventando que o nó que a atava era um “sonho”. E vamos que vamos que duzentas páginas ainda está pouco. O bom da fantasia é que sempre se dá um jeito de se chegar aonde se quer, os limites da realidade não interferem.

Claro que a maioria desta fantasia é obra de autores estrangeiros, em sua maioria ianques. Não é um produto cultural, é um fast food que dá mais lucro por ser importado, vindo já de fora com a propaganda grátis das redes sociais e das séries veiculadas na TV por assinatura, onde a classe média se isola da “tosqueira” da TV aberta. Sinceramente, se eu fosse começar de novo a escrever, investiria mais no meu curso de inglês, batalharia um intercâmbio, inventaria um pseudônimo anglo-saxão (aliás, inventei: em certa época andei escrevendo “coisas” sob o nome fictício de Gerald Goldman) e fantasiaria alguma terra imaginária com personagens de nomes toscos baseados em latim macarrônico, pseudogrego ou pseudohebraico. Com um pouco de sorte eu me tornaria famoso, ou então tentaria a sorte dizendo que minha obra era Escritura Sagrada.

No fim de minha visita preferi comprar um pendrive. Saí e entrei num sebo, onde comprei a dez reais o quilo obras muito mais interessantes. O que me dá medo é que os sebos do futuro serão alimentados pelas obras adquiridas hoje. Essas obras abomináveis.

O título deste texto é uma alusão a este conto.

23
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 21:46link do post | comentar | ver comentários (4)
Ontem, já no comecinho da madrugada, terminei de assistir, via YouTube, o filme “Stalker”, dirigido Andrei Tarkovsky, filmado em 1979, a partir de roteiro escrito pelo próprio diretor, baseado no romance “Piquenique na Estrada”, dos irmãos Bóris e Arcádio Strugatsky, gênios da ficção científica soviética. Romance este que eu já havia comentado elogiosamente aqui, não faz muito tempo.

Desde que lera o romance e ouvira falar do filme, minha obsessão foi encontrar uma forma de assisti-lo. Ficção científica soviética é algo que me interessa muitíssimo (aliás, toda a cultura soviética me interessa demais). Tanto a escrita quanto a que for filmada, cantada ou declamada em versos. Gosto de ficção científica, e mais ainda da que se fazia por detrás da cortina de ferro. Acontece que filmes de arte não passam na televisão brasileira, essa autêntica máquina de fazer doido, o que não dizer, então, de um filme de arte soviético de 1979! Felizmente a produtora estatal soviética Mosfilm, que ainda existe, fez um favor à humanidade e está digitalizando e remasterizando todo o seu catálogo e colocando no YouTube. Eu já tivera a oportunidade de assistir um filme de terror soviético chamado “Viy”, de 1967 (futuramente falarei sobre ele) e a experiência da estética da Mosfilm me impressionara muito.

Eu não estava preparado, porém, para encontrar o que Tarkovsky entrega neste filme. Duvido que alguém esteja — e é difícil explicar exatamente que tipos de impactos o filme causa em quem leu o livro, sem estragar o prazer de quem se proponha a assistir o primeiro ou ler o segundo. Não quero estragar este prazer, por isso tentarei ser econômico em minhas descrições.

Começo falando da trilha sonora, que é uma atração à parte.  Eduard Artemiev compôs a música, tocada em sintetizadores e instrumentos étnicos, e também compôs os ruídos ambientes do filme.  Sim, todo o som do filme, exceto as vozes dos atores, foi “composto” e “tocado” por Artemiev em estranhos sintetizadores artesanais ou usando métodos primitivos mesmo, como tambores, metais, pedras e canos. E muita água. Não tem uma cena seca no filme inteiro. Todo mundo molhado, úmido ou mofado, o tempo todo. Na sequência de abertura ouve-se música, no resto do filme a “trilha” sonora, totalmente atonal e sem seguir nenhum ritmo musical específico, se dedica a acompanhar a ação, fazendo-se presente nos ruídos incidentais (nem uma pedra cai no chão com um som natural), na respiração dos personagens e em interferências sonoras distorcidas que lembram os momentos mais experimentais do Pink Floyd em “Ummagumma”. O fato de Artemiev também ter feito os ruídos (em vez de o sonoplasta capturá-los no ambiente, ou coisa assim) faz o filme ter uma atmosfera surreal, irreal. Um filme no qual os únicos sons naturais são as vozes dos atores é algo que soa “de outro mundo” — e esta foi exatamente a impressão que Tarkovsky quis causar: dentro da “Zona” os sons são surreais porque ali as leis naturais estão afetadas por algo que o homem não entende. É preciso falar, então, deste fenômeno.

No filme de Tarkovsky se fala muito menos da natureza da “Zona” do que no romance dos irmãos Strugatsky, que já não fala quase nada dela. Apenas um diálogo entre os protagonistas, no qual o “professor” explica ao “escritor” que a “Zona” é resultado de um fenômeno inexplicado, que originalmente se pensara ter sido a queda de um meteorito. Não tendo sido encontrado nenhum meteorito, e com as mortes de centenas de pessoas curiosas que a exploravam, o governo tentou destrui-la, mas não conseguiu, pois seus tanques e aviões não funcionaram bem, e foram abandonados por soldados apavorados. Desde então o governo cercou toda a “Zona” com arame farpado eletrificado e muros de cimento e a protegeu com uma patrulha de soldados com ordens de atirar para matar em todos que tentem entrar. Neste sentido, a “Zona” do filme se parece muito com Berlim Ocidental durante a Guerra Fria (um pensamento que não me ocorreu em momento algum durante a leitura do livro). Tarkovsky realmente tinha “cojones” se isso procede, e ainda os teria de qualquer forma, pois a semelhança, mesmo que involuntária, é evidente. Mesmo porque, no filme parece haver a sugestão de que a “Zona” é única.

No romance a “Zona” não é única: existem várias, todas elas alinhadas de maneira curiosa, no sentido da rotação da terra, segundo um padrão que é chamado de “Radiante de Pilman” (leia o livro e caia na gargalhada com a explicação desta expressão e com a história de sua descoberta). Além do mais, o seu caráter é bem menos ambíguo que o do filme: as “Zonas” são mesmo o produto de uma visitação alienígena (daí o título “Piquenique na Estrada”, que é outra ótima piada de humor ultra-negro que você entende lá pela vigésima página). Não existe qualquer sentido de que a “Zona” seja um lugar desejável para se entrar e quase ninguém quer ir lá: somente os “stalkers”, que são pessoas que adentram lá de forma semi profissional.

Muda também a motivação dos “stalkers”: no livro eles fazem por dinheiro, visto que em cada “Zona” podem ser encontrados objetos os mais diversos que alcançam alto preço porque são completamente inexplicáveis, como as garrafas que nunca enchem e as que nunca esvaziam (ambas chamadas de “ânforas”), entre outros. No filme eles levam pessoas desesperadas até o “Quarto”, um local dentro da “Zona” no qual os mais íntimos desejos de cada pessoa são realizados. O “Quarto” também existe no livro, mas não domina a ação da forma como ocorre no filme.

A ação do filme, aliás, é totalmente diferente do livro. A começar pelas visitas à “Zona”. No livro ocorrem duas: na primeira o “stalker” conduz o “professor” em uma busca por artefatos que serão estudados pelo Instituto Internacional para Pesquisas Extraterrestres (note que a afirmação de que as “Zonas” são o produto de uma visitação alienígena é explícita) e na segunda ele conduz o “escritor” (que é um personagem bem diferente) até o “Quarto”. A primeira visita ocorre quando o “stalker” ainda é jovem (aos 23 anos) e a segunda, quando ele já está envelhecido precocemente (aos 31 anos). O filme parece mesclar as duas visitas em uma só, transferindo o “professor” para a segunda e mudando o seu objetivo.

O tipo de ação também é diferente. O livro tem um ritmo de aventura, apesar da narrativa lenta — cheia de paradas para trocadilhos, piadas de humor negro sutilmente disfarçadas no subtexto ou meramente para descrições precisas dos arredores. O filme não tem nada disso. No livro há muitos personagens, ocorrem mortes trágicas, perseguições, prisões, brigas. No filme só vemos seis personagens e ação é toda concentrada em torno deles. Um filme fiel ao livro teria que ser cheio de efeitos especiais, para conseguir representar os inúmeros fenômenos e objetos existentes nas “Zonas”, como o “moedor de carne”, o “leito dos mosquitos” ou o “véu das fadas” (todos nomes que evocam a aparência, não a essência desses fenômenos). No filme nenhum destes fenômenos sensacionais ocorre: não há efeitos especiais quase, mas há sim, certos fenômenos claramente sobrenaturais, embora os personagens, às vezes, se recusem a admitir isso. Entre estes fenômenos está a voz sob a árvore, que amedronta o “escritor”, os morcegos na sala de sal e a brincadeira da filha do “stalker”. A grande diferença está no foco. O livro, apesar de ser feito com palavras, foca na evocação de imagens sensacionais, de outro mundo. O filme, apesar de feito com imagens, prefere evocar palavras. Os personagens do livro andam, pensam, agem, reagem. Os personagens do livro dialogam sobre seus dilemas existenciais, sobre a “Zona”, sobre suas expectativas, sobre seus medos.

Para alguém que busca um filme de ação, "Stalker" é uma decepção total. Mas para alguém que busca um filme realmente intrigante, que faça pensar e que mude seu modo de pensar, então não há filme melhor. As metáforas políticas e artísticas são constantes. Os personagens dialogam sobre temas universais. O diálogo entre o "professor" e o "escritor", à beira do "túnel seco" (uma ironia) é de um impacto profundo, especialmente se você também escreve.

Também é preciso mencionar a pequena "Macaca", a filha do Stalker. No livro ela é uma mutante de olhos negros (no sentido de "totalmente negros") e corpo coberto de pelos dourados, exceto pelas mãos, pés e rosto. Por isso, e também porque ela é extremamente ágil e muito lacônica, foi que a chamaram de "Macaca". No filme, paradoxalmente, ela é paralítica, tem olhos normais e não fala — embora ande o tempo todo coberta por véus, luvas e calçados, que só deixam de fora o seu rosto. Acho que a diferença entre as duas resume as diferenças entre o livro e o filme. O primeiro descreve muito, para trazer o leitor para dentro da história. Os personagens são explícitos, abertos. No filme, porém, que já tem o leitor no cenário e na história, os personagens se fecham, se protegem, revelam o mínimo. O livro procura convencer sobre a existência de coisas que não existem. O filme, partindo do pressuposto de que você acredita na existência de tudo, controla (ou melhor, sonega) as informações e ataca suas certezas, até que você comece a pensar uma coisa, e depois outra, e depois uma terceira. E quando termina, você não sabe se está realmente decepcionado ou se jamais esquecerá as imagens que viu e os diálogos que ouviu.  E se você acha que foi M. Night Shyamalan que inventou o final surpreendente, com "O Sexto Sentido", espere até ver a cena final de "Stalker", que contraria e decompõe boa parte do que foi dito pelos personagens e das conclusões que você foi tirando ao longo da narrativa!

Um último e macabro detalhe a respeito do filme é que ele foi todo rodado dentro das instalações abandonadas de uma indústria química estoniana, à beira do Mar Báltico. Uma região incrivelmente úmida, verdejante e bela. Ali, fábricas poluidoras e usinas nucleares em péssimo estado criavam uma paisagem de natureza semidestruída. Os lugares haviam sido abandonados porque eram imprestáveis para a vida humana — tal como a "Zona". Foi lá que Tarkovsky escolheu filmar. Entre rios cobertos de grossas capas de espuma marrom, pântanos pútridos, fumaças densas e chuvas ácidas. Uma "Zona" criada pelo desastre do homem, não pela interferência dos céus. E Tarkovsky submeteu seus atores, sem o uso de dublês, ao clima intratável  e à insalubridade do lugar, fazendo-os vadear por rios sujos, tatear por túneis por onde sabe Deus o que fora bombeado. Anos depois Tarkovsky, os três atores que interpretaram os personagens perambuladores pela "Zona" e vários técnicos de filmagem morreram de tumores os mais diversos. Posteriormente o governo russo divulgou documentos que evidenciavam que o lugar estava contaminado por plutônio de uma usina nuclar desativada e por produtos químicos altamente cancerígenos de uma fábrica de pesticidas que ainda estava em funcionamento parcial.

30
Set 12
publicado por José Geraldo, às 14:59link do post | comentar

Desde que em entendo por gente eu me incomodo com o barbarismo. Quando era criança e ainda não falava inglês, incomodava porque eu me sentia excluído da conversa, como se aquelas palavras estranhas inseridas aqui e ali fossem abracadabras que me empurravam para fora do grupo. Mais tarde, depois que me tornei fluente em meu primeiro idioma estrangeiro, percebi que a maior parte dos que empregavam tal recurso estava fazendo pose, só isso. Pronúncia errada, contexto errado. Realmente usavam aquelas palavras e expressões como se fossem abracadabras: pelo choque sonoro e não pelo sentido.

Esse emprego proposital do idioma estrangeiro como uma ferramenta de exclusão ficou mais evidente para mim quando, aos vinte e quatro anos de idade, calhei de reencontrar na noite uma menina que havia sido minha coleguinha no cursinho de inglês. Foi ela que me reconheceu e me chamou para conversar. Estava cursando medicina na UFJF e namorava um carinha de fora da cidade, não sei se de Juiz de Fora mesmo ou de algum lugar mais longe. Alguma coisa em mim, não sei se foi o meu sotaque caipira, que eu nunca perdi, apesar dos diplomas, ou as botinas baratas que estava calçando, alguma coisa afetou o julgamento do namoradinho dela em relação a mim. Depois que já havíamos trocado algumas palavras ele se voltou para ela, simulando que só estava sendo carinhoso, e lhe disse: “honey, please, leave this clown alone and let's dance.” Ou algo assim. Minha amiga ficou lívida, mas eu fingi não ter entendido e ainda permaneci conversando com eles por uns dois ou três minutos antes de despedir-me dizendo “nice to meet you again, Fay, now I must go 'cause it's about the time for my date with a girl at the gate.” Ou algo assim. Só me lembro que saí dizendo que tinha de ir porque estava na hora do encontro que marcara com uma garota na entrada. Não sei qual a cara que o sujeitinho fez porque, naquele momento, eu já estava praticamente de costas para a sua insignificância.

Ao longo da vida eu fui consolidando uma decisão de que não repetiria essa atitude babaca de esconder-me atrás de uma língua estrangeira para me sentir superior a outras pessoas. Fiquei ainda mais firme nesta determinação depois de ler Guimarães Rosa, e entender a beleza do português coloquial como veículo do pensamento. Por fim, decidi que minha determinação de não empregar termos estrangeiros se estenderia também às minhas leituras, e passei a rejeitar autores que fazem uso de tal recurso. Porque existe, mesmo, uma modinha de dar nomes em inglês para blogues, ou a textos avulsos, como se isso fosse uma grife. Em geral esses blogues não têm um conteúdo interessante, mas isso nem me importa: pois mesmo que tivessem eu não estaria interessado em lê-los. Um conteúdo interessante, quando vem contaminado com algo que positivamente não me interessa, é algo que eu só lerei se estiver filtrado. Não tenho tempo para ser esse filtro, não me pagam para isso. Então prefiro limar quem traz esta influência para a página inicial do meu blogue. Censura? Uma escolha não é uma censura contra o que não foi escolhido.

O que podem dizer com alguma razão é que estou sendo quixotesco. Mas minha cruzada de bolso contra o que não gosto não desrespeita nenhum direito alheio: estou apenas exercendo a minha salutar prerrogativa de tentar reformar o mundo. É verdade que o mundo não é muito receptivo a reformas, mas dou minhas marteladinhas de ouro, esperando que a lataria torta entre no jeito.


23
Set 12
publicado por José Geraldo, às 21:31link do post | comentar
Um poema satírico inspirado por uma postagem de minha amiga Ana Feijó da Cruz no Facebook.

Eu juro
Sou de um tempo passado,
em que cupcake se chamava bolinho,
blush se chamava ruge,
van era furgão
sale era liquidação.

Nunca me ocorreu
chamar meu amor de love,
nem referência de benchmark,
nem interessado em stakeholder,
nem artigo de paper
e nem discurso de keynote.

Hoje vivo perdido
comendo cigarrette em vez de enroladinho.
Nunca mais vi jogarem bola ao cesto
e nem futebol de salão.

Acho estranho quando chamam
stickers de adesivos e
entrega em domicílio de delivery.
Especialmente se houver alguma coisa free
nos cookies que compro no shopping.

24
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 08:12link do post | comentar

Será que somos tão sofisticados assim? A maioria dos autores celebrados por nossa crítica pratica um tipo de prosa quase ilegível, caracterizado pela exploração intensa, quase joyceana, tanto da sintaxe quanto da semântica, aliado a um ângulo narrativo sempre oblíquo e a uma sequência fragmentária. Os autores que praticam uma narrativa mais tradicional não são tão valorizados, não são considerados mais como geniais, mesmo que suas obras exalem competência, como se o seu estilo estivesse ultrapassado, mas o Finnegans Wake já passou de oitenta anos de idade, Ulysses já é quase centenário, o movimento concretista brasileiro já começou a enterrar os seus criadores, vitimados pela velhice. Alguma coisa me parece deslocada: soa-me como se houvesse dentro da academia uma facção afastada do mundo real e preocupada em escrever livros que ninguém lerá.

A quem interessa uma literatura tão difícil? Quem lê essas obras quebra-cabeça? Suspeito que são realmente poucos os leitores e suspeito mais: suspeito que sob a capa desta complexidade artificial muitas vezes reside uma superficialidade fútil, uma falta de boa história para contar, um conservadorismo estético e conceitual que já se petrificou.

Sempre fui um crítico do excesso de formalismo, até por razões ideológicas. Se ainda houvesse no mundo alguma coisa parecida com as escolas literárias do passado eu estaria tentando seguir uma escola oposta à que estou criticando. Mas o mundo de hoje é fragmentário e os diversos autores ficam sozinhos, dialogando contra o nada. Então quando você pensa diferente, fica fácil os que pensam igual o tacharem de imodesto ou até de termos menos elegantes: nesse mundo em que a comunicação se tornou tão fácil, pode ser uma atividade bem solitária a de autor.

Enquanto pululam autores interessados em reinventar e reinverter ideias de como esconder o que não querem dizer, o mercado segue dominado pela literatura estrangeira. Boa parte de nossos autores locais parece ter desistido de lutar pela alma do leitor comum, abandonaram-no ao massacre da cultura importada, talvez porque eles próprios tenham se abandonado a tal massacre. E não deixa de ser curioso que os escritores dos «países centrais» não tenham essa preocupação de numerar capítulos usando uma tábua Ouija, de desencavar paralelismos semânticos a cada parágrafo, de referenciar cinco deuses mitológicos Ashanti em cada página ou de narrar como em um sonho de Freud. O formalismo está fora de moda nas literaturas que imitamos. Nossa literatura tem uma vanguarda tão vanguarda que deixou para trás até mesmo as vanguardas mais avançadas. Avançou tanto que deixou todo mundo para trás e se perdeu na floresta.

Não faço parte desta vanguarda. Sou um construtor de personagens e de cenas. Não curto esse lance de palavras valise ou de emprego do quiasmo como recurso expressivo. Minha literatura é bem mais simples e por isso eu nem tentei sair na Granta. Mas não estou com isso tentando dizer que considero a ignorância um fator positivo. Não saber as coisas não é uma distinção. Arte «naïf» é um conceito que não faz sentido para mim: ou o artista tem uma formação ou não tem. Supor que seja possível algum tipo de inocência criativa é, em si, uma inocência. Minha formação certamente é incompleta e divergente porque não li os livros canônicos e, se os li, foi fora da ordem recomendada, fora do contexto recomendado. Como resultado, fiquei pensando diferente do que eu deveria estar pensando se tivesse seguido a programação determinada.

E na minha programação, consta que a literatura deva ter uma preocupação social, nacional e humana. Que isto vai acima da preocupação formal, que isto é mais importante do que mostrar que consegue empregar uma rara figura de linguagem extraída da antiga literatura oriental, mais importante do que demonstrar erudição sobre povos e culturas que não fazem parte de nossa realidade imediata e nem de nossa história. Com um pouco de ousadia e iconoclasmo, chego a dizer que existe em mim uma certa influência do realismo socialista, só me falta aperfeiçoar a ideia um pouco e tolerar que minha versão deste seja «tropicalizada» com algumas características dos autores que mais me influenciaram: Guimarães Rosa, Lima Barreto, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Ignacio de Loyola Brandão, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira — e mais alguns que eu sempre esqueço quando começo a fazer uma lista. E julgo curioso também que quando começo a fazer tais listas, embora eu tenha lido muito autor gringo, eu só consigo encontrar seis nomes entre eles que ressoaram nas cordas de meu coração, cinco gênios e outro nem tanto, mas gosto não se discute: Jorge Luis Borges, John Banville, Stephen King, D. H. Lawrence, Evgeni Evtushenko e Julio Cortázar.


10
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 12:29link do post | comentar | ver comentários (1)

Apareceu de repente um barui estrãe no motor do caminhão, chamano a atenção do Remundo, que cochilava no banco de carona pro Jailso dirigir. Tava de madrugadinha e era lua minguante, num dava para ver nada no escuro daquele fim de mundo.

— Jajá, para o caminhão.

Encostar ali era perigoso: ês tava no meio do nada, estradinha de terra. Canavial dum lado e dotro. Não tinha nenhuma luz de cidade apareceno no céu.

— O que foi, Mundim?

— Um barui no motor.

— Não escutei nada, ocê tá bêbo. 

—  Parece que tem um trem quarqué atrapaiano o motor a girar.

— Tem nada. Iss’ é besteira de caminhonero bêbo.

Mas o rai do barui tava lá. Remundo tamém escutô e ficô co os cabelo rupiado da nuca até a bunda. Porquê num era no motor coisa nenhuma, era arguma coisa no meio do canavial. Mas o motor tamém tava estrãe.

— Né não, Jajá. Me chama de Richarlyso se não tá aconteceno alguma coisa.

Descero então e pegaro as chave de fenda. Abriro a tampa do capô da F-150 e ficaro olhano com a lanterna, procurando um trem quarqué solto que fizesse o barui.

Então escutaro um ruído quase que não dava para ouvir, assim como os pezim duma galinha correno. A nuca do Jajá rupiô de novo e ele virô assustado como se alguém tivesse enfiado gelo na carça dele. Pela estrada afora, na luz do farol, ia umas pegada esquisita, que sumia na curva.

— Tá veno isso, Mundim?

— Olha, nem sei o que é, mas vam’ ‘bora daqui!

Montaro os dois, apertaro os cinto e ligaro o motor. Nos matagal em volta da estrada se oviu um bater de asa que parecia revoada de morcego saino do inferno.

— Jajá, acabei de pensar. As pegada vão para lá…

— Cõ efeito, Mundim, deixa de ser medroso.

Aceleraro com força. Poquim depois da virada da curva, um par de zói vermei apareceu no mei da estrada, encarano os farol.

— Ai Santa Mãe de Deus, um lobisome!

Jajá tentou frear, mas já tava muito em cima. O bicho foi na grade, fazendo um barui seco, como uma explosão de pedrera lá longe.

— Será que matamo o demõe?

— Vam’ descer e ver.

De fato mataro, só que não era nenhum demõe, mas uma pobrezinha duma capivara, gorda que só ela.

Os dois começaro a rir da bobiça enquanto examinav’ os resto da bichinha. Uma capivara, cês sabe, é mais ou meno um ratão cotó grande e cabeludo.

Enquanto ês tava lá rino de alívio, nem viro a sombra grande do disco voadô que subiu do meio do canavial, quietim, e sumiu céu acima, sem ês ver.


01
Mai 12
publicado por José Geraldo, às 10:39link do post | comentar | ver comentários (1)

O bloqueio criativo é um dos fantasmas que assombram os que se pretendem escritores. Amadores ou profissionais, todos já se viram algum dia cheios de vontade — ou de necessidade — de escrever e não podiam porque a coisa simplesmente «não fluía». Alguns culpam a falta da «inspiração», outros a falta de talento, outros a falta de assunto. O que é certo é que ninguém pode se gabar de «sentar para escrever» quando quer — não entre os que escrevem coisas que prestam para ler.

Como todo autor eu atravesso essas fases também, mas o que mais me dói não é atravessar dias ou semanas sem ter nenhuma ideia interessante para transformar em conto, crônica, romance ou poesia: é no meio desta seca ter uma ideia genial, porém irrealizável diante de minhas limitações. Foi o que me ocorreu ontem.

Vocês que acompanham o blogue devem ter percebido que 2012 tem sido um ano de relativa seca criativa para mim. Não apenas tenho postado pouco, mas não tenho postado nova ficção — e ficção era o carro-chefe desse blogue até fins de novembro passado. Numa fase dessas a gente fica sensível a qualquer coisa que se ouça, qualquer sonho que se sonhe, qualquer letra de canção. Em algum lugar pode estar enterrada uma ideia que, devidamente ordenhada, resultará em uma nova e interessante obra. Qual a decepção, então, de encontrar esta ideia e não estar a altura de desenvolvê-la?

Refiro-me ao meu sonho de ontem. Como andei conversando recentemente com o Gianpaolo Celli, que é um editor que tem feito coletâneas de fantasia «steampunk» (não considero o gênero como ficção científica nem se apontarem um revólver para a minha cabeça), acabei tendo uma ideia ligeiramente relacionada. Uma ideia ótima, diga-se de passagem — e muito adequada para a próxima coletânea que será publicada pelo Gian, mas… oh, merda! Uma ideia que está além de minha capacidade.

Sonhei com um Brasil atual descendente de um Brasil «steampunk», conservando dele ainda boa parte de sua tecnologia retrofuturista atrasada em relação aos grandes centros. Um país arcaico, governado por uma espécie de ditador caricato, habitado por uma população ignara, mergulhada em superstições e em mau gosto musical e artístico. Um país em que os monumentos públicos são de gesso pintado, as festas são regadas a caminhões de cachaça barata doada pelo governo e a elite vive em palácios isolados por muros e canhões, comunicando-se por cartas e telefones e viajando em dirigíveis pesados e lentos. O meu herói, um vendedor de salgadinhos, que vive amasiado com um poeta louco e uma mãe de santo baiana, sonha em fugir para a Rússia, por alguma razão, e constrói para si um aparelho esquisito, em forma de roda d'água, movido por uma motocicleta, com o qual acredita que atravessará o mar. Preso durante sua tentativa de fuga, por atrapalhar a diversão dos turistas gringos, é levado até uma fortaleza tosca, onde o torturam a tapas e xingamentos e onde aguarda ser executado ou não. Seus amantes entram na fortaleza durante a madrugada, subornam os guardas e ajudam-no a sair, mas acabam na caçamba de um caminhão que levava mercadorias importadas para uma depósito do palácio e subitamente se veem no meio da festa de eleição do novo monarca. Confundido com um príncipe europeu, o poeta louco é eleito e inicia um governo ainda mais louco, e meu sonho termina com galeras atômicas russas apontando no litoral para exigir que ele se retrate de algumas atitudes e pronunciamentos.

Eis um resumo das imagens e sons caóticos e supercoloridos que atravessaram a minha mente durante esta noite. Alguns detalhes eu tive de suprir porque o original estava confuso demais, mas creio que 80% do que aí está descreve o que realmente sonhei, embora, como sempre, o sonho tenha sido em sua maior parte esquecido.

Com um material desses na mão um autor dotado de bom humor e de razoável capacidade de síntese produziria uma obra genial, satirizando alguns aspectos de nossa cultura, aproveitando o mote do «steampunk» ou do «dieselpunk» e resultando em um livro certamente aprovado pelas editoras que publicam esses gêneros no Brasil. Existem, porém, dois problemas que me impedem de realizar isto.

O primeiro é que eu não quero entrar nesses gêneros «*punk» porque acredito que esse tipo de cruzamento entre fantasia e ficção científica acaba sendo trabalhoso demais, diante da minha formação e de minhas referências. O segundo é que eu não me sinto capacitado a dar a esta obra o tratamento de farsa que ela precisa ter, devidamente dosado com violência e promiscuidade. Sem essa mistura a obra não é crível. E retornando ao primeiro motivo: esta mistura não me interessa.

Porém, como sou um cara do tipo «gente boa», resolvi compartilhar o meu sonho com os meus leitores. Aqueles que desejarem pegar a ideia e desenvolver, sintam-se à vontade para isso. Apenas gostaria que tivessem o bom caráter de me recompensar com um agradecimento na edição e/ou um link em seu blogue. Claro, bom caráter não é todo mundo que tem e no Brasil é quase irreal exigir isso, mas vamos ver no que dá. Eu não vou fazer nada com a ideia mesmo, quem sabe não consigo ajudar outro que esteja com bloqueio criativo e ainda faço um novo amigo virtual?


14
Abr 12
publicado por José Geraldo, às 10:00link do post | comentar
Um artigo de polêmica cultural/política, não datado, mas provavelmente escrito entre 1998 e 2000, encontrado em um velho caderno que ia a caminho do lixo. Devido ao contexto em que foi escrito, este texto não se dirige ao público amplo que a internet alcança, mas a um público muito mais estrito e regional, alcançado pela imprensa escrita do interior. Lembro-me vagamente de tê-lo preparado para ser lido em um encontro de escritores que se estava tentando organizar na época.

O centro-sul do Brasil nos é apresentado como a região irradiadora do desenvolvimento econômico e cultural do país, mas quando olhamos de perto verificamos não ser bem assim. O impulso econômico que daqui se espraia é originário de fora e não se volta para a edificação da nacionalidade -- mas para a produção de excedentes que são absorvidos pelos mercados locais, arranjados de acordo com a estruturação do capitalismo internacional, que busca, por sua vez, esmagar as variedades regionais e políticas e impor a plana homogeneidade de uma aldeia global consumista, onde apenas sobrevive a arte como cadáveres das formas antigas de expressão.1 E a cultura genuína, que aqui havia, foi suplantada pelos maneirismos modernos e civilizados — que, de fato, nada são além de formas pasteurizadas das culturas de outros locais absorvidos antes pelo polvo capitalista.

Prova disso é o caráter exótico que é atribuído por nós, aqui da região mais globalizada do país, às sobrevivências de folclore das regiões menos amesquinhadas pela sedução da «modernidade» uniformizante. Estamos mais à vontade diante de fotos de antigas estátuas neoclássicas do que diante da obra do Mestre Vitlaino, entendemos melhor de porcelana chinesa do que de cerâmica marajoara, nos agrada mais a música da moda importada da Europa e da América do Norte do que as formas populares de canção.

Que foi feito de nossas festas? Alguém aqui ainda se lembra de ter ouvido uma moda de viola, uma toada, um calango ou um desafio?  Estas formas musicais pertencem à rica tradição de Minas Gerais, mas a maioria de nós jamais pegou uma viola, nunca viu uma sanfona de oito baixos, sequer ouviu falar de uma rabeca (eu mesmo me incluo nos dois primeiros grupos). Ninguém aqui saberia dizer o que é uma «torda», raríssimos terão tomado leite de onça em uma festa junina ou comido batata assada. Não faz parte da memória coletiva de nenhum de nós as melodias da Folia de Reis, da Festa do Divino ou de outras festas musicais de antigamente.

Todas estas coisas que citei fazem parte de um mundo antigo, pisado e esquecido desde que a Redentora resolveu se intrometer nos rumos do século XX e matar nossos projetos autônomos de futuro. A descaracterização da cultura popular, antes restrita aos centros de imigração e ao Rio de Janeiro sempre cosmopolita, se enveredaram pelo interior, deixando atrás de si uma terra arrasada, habitada por seguidores de novela e proprietários de radinhos de pilha sintonizados nas estações cariocas ou paulistas.

Houve um tempo em que as estradas do interior eram ocasionalmente pontuadas por cruzeiros de madeira. As pessoas sabiam o que comemorava cada um deles. Os antigos cemitérios de escravos ainda existiam, e havia quem plantasse flores neles, ou os cercasse para que o gado ali não pastasse.

Houve um tempo em que se podia organizar uma festa fincando doze bambus no chão e montando uma coberta com folhas de bananeira para proteger do sereno. Isso era uma «torda», e debaixo dela o baile acontecia desde que houvesse um sanfoneiro, um barril de pinga, uma bacia de pães recheados com molho de carne moída e um garrafão de vinho. Não precisava de polícia, nem de alvará. Nem de convite e nem de roupa nova.

Vocês podem estar surpresos com meu apego ao passado, achando que pareço um fantasma desses dias antigos, embora seja tão novo. Eu tive tempo de viver algumas destas coisas que estou mencionando, e pelo pouco que vi entendo que tenho motivos suficientes para a saudade. Então eu não venho com regras para nenhuma vanguarda, venho com a história da minha vida e os maus hábitos que os bons autores me ensinaram. Sonho repelir a colonização, pelo menos naquilo que ela mais me mata, e poder falar das coisas que sei e sinto.

Grito por uma arte nacionalista. Cessemos de copiar servis os cânones decadentes de uma Europa grisalha, que em breve será senil.2 Nesses países a morte das raízes pode nos parecer ter sido menos grave, porque o novo mundo que eles criaram ainda parece descender de suas antiguidades. É entre nós que o desenraizamento danifica mais, porque substitui o nosso por algo que é alheio. Somos ainda felizes por termos dentro de nossas fronteiras3 cinco identidades regionais tão fortes que nem mesmo o uso de uma língua única as nivela. Mas deixamos que prossiga a morte lenta dos dialetos e da saborosa prosódia popular. É um crime de lesa-pátria compactuar com essa emasculação de nossa cultura, antes que dê frutos universais.

Na infância, em verdade, porque uma cultura só amadurece no cultivo dos séculos. A nossa data de menos de três, e já está em decadência. O Brasil é um país onde muita coisa que ainda está em construção já está em ruína, como mencionou Gilberto Gil em famoso verso.4 As obras de nosso folclore estavam ainda em fase de elaboração quando foram surpreendidas pela agressão de um século uniformizado e colonial, que as desprezou como se fossem primitivas, que as insultou de «mestiças» numa época racista em que este termo era uma ofensa. Nossos nativistas do passado apenas refletiram sobre a grandiosidade do que estávamos pondo a perder para produzir, a partir da síntese dos elementos abandonados, os últimos brilhos da moribunda cultura de talhe ocidental.

O modernismo foi, sim, canto do cisne do Ocidente enquanto construção ideal, ideológica e política. Foi quando o racionalismo neoclássico perdeu a primazia: abriu-se caminho à liberdade, à expressividade, à anarquia. O resultado é mesmo decadência. Que se manifesta no questionamento do objeto, da obra, da arte. Nossa arte tão moderna não produz mais clássicos. Não procura admirar, mas apenas intrigar.  Estranhamos essas obras, nos surpreendemos com esses enigmas, mas dificilmente os tomaríamos como enfeite, como objeto de veneração, como símbolos de identidade. São obras que contemplamos à distância, às vezes até com asco.

Enquanto o Ocidente discute seu desmonte, nós vamos substituindo o que tínhamos de nosso pelas telhas quebradas e restos de estuque roubados da demolição deles. Não sei se tudo já foi feito: apenas suspeito que a casa que se faz com restos sempre se parecerá com restos.

Infelizmente vivemos sob o signo da mediocridade. A obra do medíocre procura, antes de tudo, justificar a si mesma. O objetivo do medíocre é o consenso: no consenso não há necessidade de criatividade, nem de maior capacidade. Os medíocres podem ser inimigos pessoais, mas concordam em suas obras. Ao contrário dos grandes gênios, que às vezes se insultavam por meio dos jornais falando das obras respectivas, mas frequentemente tomavam cafés cordiais quando se encontravam.

O medíocre acredita no fim da História, que tudo já foi dito e feito. Esta ideologia do fim do mundo interessa a quem suspeita que está morrendo. Depois de mim, que venha o dilúvio. «Morro com minha pátria», disse o ditador que, de fato, quase a levou a morte por um capricho seu. Morreu o ditador, a pátria sobreviveu. A duras penas, mas sobreviveu. O pós modernismo e seu consenso botam a mão na boca da África, da América, da Ásia, de Marte e de Plutão, de onde quer que se suspeite que alguém ainda pode ter uma ideia original: findou a História, morreram as estéticas, transfigurou-se a arte. Pendurem um urinol na parede do museu, amontoem cachorros mortos na Bienal, vendam borrões de tinta por milhões.

Sou, porém, um idealista. Acredito que dentro do adormecimento em que vive o resto do Brasil que ainda não foi castrado pela globalização pode ainda existir o anseio pela novidade. E dali pode nascer uma nova nacionalidade, uma nova arte.

Nacionalista esta, não por ódio ao alheio, mas por amor ao próprio. Não por repelir o diferente, mas por difundir dissensos criativos. Não por absolutamente pôr num pedestal nosso folclore, que muito tem de obscurantista e retrógrado, mas por oferecer-lhe espaço para que se transforme seu produto em artefato.

Esse folclore que ignoramos é uma fonte de indícios de futuro. Podemos inventar de nosso jeito, sonhar em nossa língua, contar a nossa história, cunhar nossa moeda. Independência é isso, é algo que quase ninguém conhece, porque quase ninguém tem.

Convido a todos vocês, descrentes da modernidade, ao lodaçal desafiante da oportunidade. Fora do asfalto estéril que só leva a lugares conhecidos. Entrem comigo nesse brejo perigoso, onde certamente alguém vai se afogar. Vamos fundar ali uma outra tribo, uma que não faça pajelança para gringo ver. Tragam seus tambores, alguém pelo amor de deus me arranje uma rabeca porque eu quero ouvir. Perdidos na insuportável solidão do concreto, vamos imitar pios de pássaros e ler versos em dialeto. Vamor fugir de volta para a região de nossa infância de onde a escola e a academia nos tiraram.

Prometo que não sei como será esse mundo novo que eu sonho ver erguido. Beleza é isso, o imprevisto, o impossível. Mesmo as ruínas do Ocidente serão mais bonitas do que o seu futuro. Procuro profetas para um novo mundo. Venho de Masada, do Langue d'Oc, da Etrúria, de Creta, da Irlanda e do Egito. Venho de Alcácer-Quibir, de Canudos, de Copá e Macchu-Picchu. Venho de lá e estou andando no rumo vago do sertão.

Busquemos essa direção, longe do mar corrupto e da montanha inculta. Gritemos a ambos os lados que o progresso é só um lusco-fusco  diante da longa idade da humanidade.

Existe um perigo, no entanto. A proposta que faço é tipicamente talhada para o gosto das elites políticas, e surgirá sempre a tentação fácil de render homenagens ao que já está. Mas a política não é compromissada com estes objetivos, somente com lucros e poder. Verdadeiros artistas não podem compactuar, devem agredir. Esquecer a perspectiva de salários gordos, soldo de mercenários. Sem ilusões: se a política se interessasse por cultura, nosso país estaria bem melhor do que está.

1 Este texto foi escrito bem antes que eu sequer tivesse acesso à internet, de forma que eu ainda não tinha a compreensão dos fenômenos culturais que ela acabaria por propiciar. No entanto, continuo acreditando que a frase é verdadeira, porque aquilo que a internet produziu de novo é apenas uma variação esvaziada de formas artísticas preexistentes, com o agravante de que a evolução das ferramentas eletrônicas tornou-se muito mais fácil o fazer artístico.

2 Para quem estudou História e não gastou o tempo fumando maconha no campus, já estava mais do que evidente em 1999 que a Europa tinha subido no telhado. O que ainda não está claro é se a queda a matará ou servirá de alerta para que reencontre o rumo.

3 Neste trecho eu me referia ao estado de Minas Gerais, que possui cinco falares variantes regionais: o mineiro propriamente dito, no centro do estado, o mineiro-baiano, no norte, o triangulino, o sulista (estes dois influenciados, mas não exatamente da mesma forma, pelos falares paulistas) e o mineiro-fluminense da Zona da Mata.

4 O famoso verso em questão está na canção «Haiti», e se refere a uma curta menção às «ruínas de uma escola em construção».


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