Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
16
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 23:27link do post | comentar | ver comentários (3)
Uma amiga postou hoje «numa rede social» (estilo Rede Globo de mencionar não mencionando) que estava com vontade de largar tudo e sumir. Minha primeira reação ao ler o seu comentário foi um pensamento singelo: por que pensamos sempre que, antes de fugir, temos de largar tudo. O que é esse «tudo» e o que representa esse «largar»? Fugir para onde?

Alguém já disse que a Aldeia Global significa que não haverá asilo para ninguém em lugar algum. A frase foi dita num contexto político, mas não é preciso ser um dissidente para se sentir desalojado neste mundo: aonde poderemos ir e achar a paz? Fugiremos para que parte do planeta? Por que não podemos levar «tudo» para lá?

Talvez seja porque exatamente «tudo» seja o que nos faz ter vontade de fugir. Temos «tudo», e isso significa uma falta imensa, um buraco indefinido, que em alguns tem a forma de Deus, em outros tem a forma de qualquer coisa que elejam como séria. Temos tanta coisa. Talvez sonhemos com uma época mais feliz, em que poderíamos carregar «tudo» em uma mochila e sair perambulando pelo mundo. Uma época em que éramos bosquímanos nos planaltos da África Austral, verdadeira felicidade.

Como eu poderia fugir amanhã pela manhã, se isso fosse necessário? Poderia eu desaparecer deixando para trás todos esses móveis, esse computador, minha coleção de discos de rock, minha pequena biblioteca, minha impressora laser, minha geladeira frost-free, minha televisão com tela de plasma de 36 polegadas? Poderia eu carregar meu aparelho de telefone celular, meu cartão de crédito, meus remédios controlados, meu fio dental mentolado e o papel higiênico macio? Quanto de minha vida cabe no meu carro? Poderia eu fugir num carro? Como pagar pela sua gasolina depois de alguns quilômetros?

Largar tudo e fugir, a suprema utopia. O único lugar aonde ainda podemos ir sem levar «tudo» é o túmulo, pois da vida só o «nada» se leva. Enquanto isso vivemos ancorados em nossos portos inseguros, amarrados a armários, fogões, fornos de micro ondas, baixelas de aço inox, e todos esses confortos.

Ontem à tarde, ao voltar de Leopoldina, topei com dois andarilhos pela estrada. Sujos, magros, despenteados, mas vestidos com alinho. Ele com um terno amarrotado e ela com uma roupa de estilo indistinguível. Caminhavam lentamente, com a pouca pressa de quem sabe que vai chegar, fatalmente. Iam trocando palavras e gestos de afeto. Observei-os pelo retrovisor até eles sumirem na curva: ali estavam dois que poderiam fugir largando tudo. Talvez até já tivessem largado. Até mesmo suas vidas. Vagam pelas estradas como fantasmas sem destino. Possuem o nada.

Não os invejei, porém. Gosto das minhas âncoras, de todos os certificados que coleciono em pastas bonitas. Gosto desta varanda. Não quero largar tudo e fugir, mesmo sentido o peso de todas estas coisas tolhendo as minhas pernas aos poucos, mesmo que tudo me afogue devagar, num mar de compromissos e contradições. Talvez a minha amiga, como eu, saiba que não é possível mesmo largar tudo, não sem largar a vida. Estamos condenados ao tudo.

05
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 10:24link do post | comentar
Este texto é um trecho avulso do romance «Amores Mortos», que está em fase final de revisão. A história se passa entre 1984 e 2000 e neste trecho em especial está situada em 1994, pouco após o Plano Real. Oswaldo (variadamente referido pelos diversos personagens do livro como Vado, Vadico, Vadinho ou Valdo) é um sujeito que migra de emprego em emprego, por diversas cidades da Zona da Mata Mineira, geralmente trabalhando como representante comercial, vendedor de seguros ou funções assemelhadas. A história acompanha, de forma não linear, a sua vida amorosa, que incluiu mulheres de várias cores, idades e tem­pe­ra­mentos, e a sua busca pela paz interior, através de duas ou três religiões dife­rentes, inclusive atuando como pastor de uma pequena igreja em certa época e tendo um «papo sério» com Jesus no momento mais tenso de sua vida.
Ele parou o carro à sombra de uma árvore, como um espião faria, e abaixou até a metade o vidro. Passou os dedos pelos cabelos uma última vez, para ver se não havia nenhum desleixo excessivo, e olhou pela greta em direção à casa número 156. Tirou do bolso o pedaço de papel onde anotara o endereço e conferiu se não havia distraidamente invertido os números em sua lembrança e respirou fundo. A casa devia ser aquela.

A certeza acelerou o coração, fez amargar a boca, causou aquele aperto por den­tro que acontece nos momentos de grandes escolhas. Ainda poderia simples­mente ligar o carro e ir embora, depois ligar de volta dizendo que… sei lá, qual­quer coisa. Porém, se o fizesse, levaria meses ou anos ou vidas martirizando-se pela falta de ousadia. Decidiu que levaria a coisa toda até o fim.
Tudo começara semanas antes, quando começara a conversar por telefone com Mar­lene, que trabalhava no escritório de alguma das muitas lojas a que vendia. Gos­tara da voz, quisera conhecer o rosto, encontrara-o dentro de um envelope, dese­jara o corpo, deixara o emprego, mas levara o número e chegava então à casa onde ela o esperava. Marlene, auxiliar de escritório em alguma loja pequena, de uma cidade razoavelmente grande para oferecer anonimato, bastante perto para possibilitar aquela aventura.

Lamentou que os telefones celulares ainda fosssem tão caros, ou poderia ter um no porta-luvas para discretamente chamar-lhe e perguntar alguma coisa antes de descer. Ouvir a voz dela o ajudaria a ter mais coragem, ajudaria a borrar um pouco a imagem de Cândida de sua memória.

Por fim desceu, mesmo sem coragem e com as pernas bambas. Atravessou a rua depressa, com as costas queimando como se milhares de olhares mapeassem cada passo. Tocou a campainha e refugiou-se na sombra da soleira esperando que nem todas as pessoas daquele bairro, daquela cidade, do estado, do país, do mundo, do universo, tivessem visto, tivessem notado, tivessem anotado sua presença.

Ouviu passos, pés arrastados no chão. Calcanhar de chinelo batendo. Passos de velha, ou passos também tremendo. A porta se abriu e lá estava ela, a mesma Marlene da foto, ou quase ela. Os cabelos eram mais curtos, o rosto mais estreito, um cheiro que a mulher fotografada não tinha. Marlene sorriu-lhe dentes bonitos, sempre o grande medo que tinha nos primeiros encontros. E começou a destrancar os múltiplos cadeados que protegiam a entrada.

— Tanta tranca — perguntou-lhe — é seguro deixar meu carro na rua aqui nesse bairro?

— Provavelmente — ela disse com uma voz que mal lembrava a do telefone — eu é que sou meio desconfiada.

Aberto o portão, pisou pela primeira vez a casa dela. Piso frio, paredes manchadas pelo uso, um cheiro suave de lavanda, os móveis simples, sofá coberto por uma capa de tecido liso.

— Aceita um copo de água?

— Obrigado, claro, é… foi uma viagem longa.

Ela lhe indicou que se sentasse no sofá, o que ele fez com cuidado, escorregando como se aquele assento o rejeitasse. Ela veio com o copo de água e sentou-se ao seu lado, sorrindo sem jeito às vezes. Tomou a iniciativa de pegar suas mãos, estavam frias, eram magras, eram duras, terminando em unhas pintadas de vermelho escuro, que combinava tão bem com o tom moreno da pele.

— Você veio mesmo.

— Duvidava que eu viesse?

— Claro. Por que você viria?

Fez-lhe uma carícia no rosto macio, apesar de macilento.

— Porque lhe disse que queria vir, é suficiente.

Ela sorriu outra vez, olhando obliquamente para algum canto da sala que ficava em outro universo:

— É suficiente.

E deixou-se escorregar até mais perto dele, até suas coxas se encostarem, separadas pelo brim das calças. Oswaldo se sentia com dezessete anos, como sem­pre se sentia quando surpreso na vida. E a vida vivia a surprender-lhe.

Olhou de novo para o rosto de Marlene: era bonita, mas a sua expressão sofrida o desarmava.

Então ouviu uma terceira voz na casa. Arrepiou-se, fez menção de se levantar. Ela o segurou pela mão e surrou-lhe ao ouvido:

— Calma, é só a minha prima que veio pegar uns discos emprestados. Ela já está indo embora.

Oswaldo não se sentiu seguro com esse consolo, mas não tinha a chave da porta. Sentia-se um coelho pego numa armadilha. Da sala não podia ir a nenhum lugar, nenhum esconderijo a não ser suas mãos. Ouvia os passos da prima que vinha de dentro da casa com passos parecidos com os de Marlene e pensava se não poderia, talvez, desaparecer como um vampiro na fumaça. Não pôde. Ela veio, deu boa noite e dirigiu-se à cozinha, seguida de Marlene, saindo pela outra porta, que foi trancada depois.

— Pronto, querido — disse ainda a meia voz — agora estamos sós.

E sentou-se ao seu lado, oferecendo a segurança que tinha fugido dele ao ouvir a voz da prima. Beijou-o com lábios firmes, olhos fechados e a alma faminta. Oswaldo, então, relaxou e abraçou. Não dirigira quase cem quilômetros desde Juiz de Fora para acovardar-se facilmente. Qualquer coisa que tivesse de dar errado, já daria sem que pudesse evitar.

— Espero que sua prima seja péssima fisionomista — comentou, cedendo pela última vez à covardia.

— Você se preocupa demais, ninguém o conhece aqui na cidade, como você mesmo me disse. Sua mulher nunca vai saber.

Beijou-a por sua vez. Apertou-a num abraço que revelou quão pouca carne havia sobre seus ossos. Então ela o chamou:

— Vem.

Levantou-se do sofá e a seguiu pela casa, rumo ao quarto. Pelo caminho conhe­ceu onde habitava a voz doce que conhecera pelo telefone: um pequeno quarto com beliche, certamente o das crianças, um banheiro pequeno onde ele mal cabe­ria, um quarto abarrotado de roupas e espalhadas pelo chão, contendo uma máquina de costura, um quarto maior, de janela única, com um roupeiro imenso, uma cama que parecia feita para alguém muito maior que Marlene, tão miu­dinha.

— Quer tirar a camisa para não amarrotar?

— Não precisa.

Tão logo ele o disse, Marlene tirou as mãos de seu colarinho e as levou à própria cin­tura, tratando de abaixar as calças rapidamente, revelando-se para ele sem ceri­mônia. Oswaldo se sentiu ridiculamente tímido e foi tratando de desabotoar a camisa, o que só terminou de fezer quando ela já havia pendurado toda a roupa no cabide junto à porta, e ainda não acabara de despir-se e ela já estava toda nua, de pé com seus cento e sessenta centímetros de ousadia. Quando final­mente se desvencilhou das meias, última cobertura de sua carne, abriu-lhe os braços, envergonhado, como um frango exposto no balcão do supermercado.

— Espero que você não se decepcione — comentou, pensando nas próprias per­nas finas, na barriguinha de cerveja que começava a crescer e no tamanho do próprio pênis, que ela poderia julgar insuficiente, considerando toda a fami­li­a­ridade que parecia ter com essas coisas.

— Nem um pouco — ela respondeu, lançando-se contra seu corpo.

O contato com uma carne estranha o fez estremecer. Mas não dirigira por quase cem quilômetros para falhar tão cedo. Abraçou-a quase como se ela fosse uma criança, apesar de seus trinta anos, e a pôs de pé sobre a cama, a uma altura que per­mitia que suas cabeças estivessem no mesmo nível.

— Então, vamos com calma, que ainda é cedo esta noite.

— Mas é tarde na vida — ela respondeu, filósofa.

26
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 20:36link do post | comentar

Eduardo Galeano — jornalista, cartunista e escritor uruguaio — publicou uma série de coisas que sonhava acontecessem no mundo após a virada do século. Considerando a natureza da prosa deste autor, o tipo de coisa que ele sonhava não é inesperado; mas para muitos soará estranho, pois há os que pensam que este autor se limitou às Veias Abertas da América Latina, obra que a esquerda toma como bíblia e a direita renega como se fosse um grimório satânico. Por causa do peso deste livro (que tinha a intenção de realmente pesar) o resto da obra onírica de Galeano às vezes passa despercebida, ao meu ver imerecidamente.

No texto em questão, publicado ainda quando este século era distante, o autor uruguaio tentou nos pintar um mundo onde os sinais estivessem trocados, e de uma forma estranha o texto nos deixa com a sensação de que uma inversão total de valores nos faria mais felizes. Da impossibilidade de tal feito ter lugar, surge-nos a dúvida filosófica: afinal, somos felizes como somos?

O texto original de Galeano pode ser conferido aqui. De minha parte, resolvi fazer um aparte ao que ele escreveu, e adicionar alguns itens, remover outros, reescrever alguns, resultando no seguinte:

No meu mundo ideal os automóveis seriam atropelados pelas pessoas e teriam de refugiar-se, temerosos, nas ruas afogadas por calçadas que cada vez se alargam mais. O ar seria poluído apenas pelo perfume das árvores e pelo cheiro das moças. As pessoas não seriam possuídas por seus bens, nem programadas por seus computadores, nem compradas pelos mercados nem observadas pela televisão. Que, aliás, seria tão importante nas casas quanto o ferro de passar ou a lavadora de roupas. As pessoas não trabalhariam para ganhar o seu sustento, mas para sustentar os seus sonhos. Não se prenderia nunca aos que recusassem servir às Forças Armadas, mas aos que sonhassem servir. Prostitutos seriam apenas os que sentissem prazer na promiscuidade. Seria incompreensível mencionar que certos conceitos seriam incompreensíveis para certos povos. Loucos seriam chamados aqueles que negassem aos outros o direito de viver suas loucuras. Nenhuma pessoa teria crédito por dizer-se representante de Deus, a ponto de dizer aos outros o que fazer e o que não fazer. As pessoas sentiriam saudades apenas de coisas e seres que conheceram, e não de animais e seres extintos pela ganância humana. A polícia serviria para proteger ao povo, e não para proteger o governo do povo. E todos viveríamos cada dia como se fosse simultaneamente o primeiro e último.


01
Set 10
publicado por José Geraldo, às 20:34link do post | comentar
Uma lua aveludada acarinha minha solidãoe amortece mais o som cavado e longínquoda sinceridade em meu coraçãoe respiramos em silêncio a luz de anêmona,desta luz-feitiço que reveste a noitede um pensamento iníquo.Você trouxe uma taça de licor quando entroue dominou-me pensamentos, palavras, atos e omissões.A noite depois se dobrou sobre nóse vento bateu as janelase derrubou o livro pelo chão.Corujas piaram na escuridão,o vago e incriado exterior,contamos os minutos no relógioouvindo os curiangos no terreiro e mugidos de vacas.Passou a hora incrível, passou a luminosa idadeMas estamos aqui neste exercício de humanidadetentando que o frio do orvalho não nos dome,tentando crer não ser verdade que habitamosneste imenso pasto onde vagam vacas loucas.

Escrito em algum momento entre 2002 e 2003, este foi sempre um dos poemas que eu mantive em todos os meus blogs e sites. Acredito que muita gente já o deve ter baixado, em várias de suas versões.


17
Ago 10
publicado por José Geraldo, às 07:59link do post | comentar

Augusta estava deitada quieta, nua, olhando para o teto, com o suor do corpo ainda evaporando após o amor, aquela sensação fresca, aquela preguiça, aquele formigamento…

— Venha morar comigo.

Assim, de repente, foi que Humberto pôs no ar a frase, solta e súbita. Mesmo a princípio se sentindo agredida, ela reagiu com moderação.

— Não é assim, Humberto. Não faz ainda nem cinco meses que a gente se conheceu.

— Por que não? Cinco meses me bastaram para querer você. Não devemos nada a ninguém. Tenho minha casa, minha vida. Você tem a sua vida, falta sua casa. Venha dividir a minha!

— Mas o que meus pais vão pensar? Minha família é daquelas que ainda espera que algum dia eu me case na igreja, com véu, grinalda e flor de laranjeira.

— Augusta, você não nasceu ontem! Você já sabe que o príncipe encantado não vai chegar em seu cavalo branco. Nem eu e nem você temos mais tempo para cumprir longos rituais. Seus pais já devem ter percebido há muito tempo que as coisas não vão ser do jeito que eles sempre sonharam. Está na hora de largar a barra da saia da mãe e correr atrás de seus sonhos.

— Seria mais fácil se a gente primeiro noivasse e depois se casasse.

— Você está realmente pensando que é uma boa ideia gastar milhares de reais em uma festa para pessoas que não nos amam ou até nos desprezam, fazer toda aquela pompa simplesmente porque queremos ver se podemos ser felizes juntos? E por que precisamos esperar meses fingindo que somos namorados?

— Não consigo aceitar com naturalidade a ideia de sair de minha casa e ir para a sua, assim simplesmente.

— Pois eu acho o contrário. Por que é que em tudo na vida temos de ter uma festa de inauguração? Não seria mais certo simplesmente fazer o que queremos?

Augusta riu sem nada dizer e se levantou da cama para ir tomar um banho quente, eram três e tanto da manhã, hora de ir embora. Humberto a acompanhou ao banheiro, também nu. Augusta espirrou-lhe água, reclamou que a droga do chuveiro não estava esquentando direito e que aquele sabonete tinha um cheirinho filho da mãe de ruim.

— Não se preocupe que amanhã o cheiro saiu. O tempo apaga tudo, até mesmo cheiro de sabonete de motel…

Augusta espirrou-lhe água outra vez enquanto se lavava e veio espiar, de brincadeira, enquanto Humberto urinava e retirava os restos de sêmen com o chuveirinho.

Um olhou para a cara do outro no intervalo de um suspiro e o relógio em algum canto do quarto soou a hora de voltarem para as respectivas casas.

No momento em que o carro cruzava o portão do motel em direção ao asfalto, começando o não tão longo caminho de volta, Humberto voltou ao assunto:

— Você não disse se aceita ou não.

— Por mim eu aceitava, não estou esperando um príncipe encantado que chegue num cavalo branco e me despose numa linda cerimônia para cinco mil convidados. Meu conto de fadas pode, de repente pode ser o do príncipe-sapo…

Humberto fingiu ofender-se. Sabia que não era nenhum deus grego, mas era evidente que ela não estava querendo dizer que fosse tão feio. E mesmo que estivesse, ele se sentia meio culpado pela rudeza com que introduzira o assunto e estava disposto a aceitar certos desaforos para compensar:

— Estou lendo uma pontinha de reprovação no que você disse. Falei alguma besteira grande hoje?

— Nada que a manhã não cure.

E o tempo passou. Como se ele nada tivesse dito. Continuaram se encontrando, continuaram bebendo, contando histórias e terminando as noites de sexta e sábado variando de motel.

Um belo dia o celular tocou na hora do almoço. Do outro lado alguém tentava aparentar descontração.

— Olá amor, como está?

— Melhor agora. E você, ‘tá legal?

— Mais ou menos. Preciso de um favorzão seu.

— Quem eu tenho que matar?

Humberto ouviu uma risadinha presa, ou talvez um soluço. No momento era difícil distinguir.

— Posso te esperar na saída do trabalho hoje? Precisamos ter uma conversa.

— Tudo bem, saio às cinco.

Despediram-se e Humberto tomou o caminho do trabalho pensando consigo: “Mulheres! Por que ela não deixou, então, para ligar às quinze para as cinco? Vai me fazer passar a tarde inteira pensando o que, diabos, pode ser?”

E às cinco horas Augusta lhe contou que havia tido uma discussão em casa. Não é fácil uma mulher ter trinta anos e uma vida sexual ativa ainda vivendo com pais conservadores e irmãos adolescentes, especialmente sem ter emprego fixo. Um bom salário moraliza muitas atitudes de outro maneira indesculpáveis, mesmo em famílias católicas bicentenárias.

Mas como lhe faltava essa bênção do destino, Augusta acabou ficando sem defesas quando os irmãos resolveram lhe atingir com adjetivos mal-educados. Tentou o apoio dos pais e sentiu aquele gelo que caracteriza muito bem o desprezo. Por isso decidira jogar tudo para o alto e tentar na loteria do amor o sucesso que as muitas escolhas erradas lhe haviam negado em oportunidades de independência e profissão.

Humberto leu em seus olhos uma mágoa, e um sentimento de desencanto que ela não estava nem tentando reprimir.

— Como você está? — perguntou numa tentativa desajeitada de simpatia.

— Não muito bem. Minha vida virou de cabeça para baixo de uma hora para outra. Aquilo tudo perdeu um pouco do sentido. Tudo em que eu acreditava mais por querer sonhar do que por realmente crer…

Ele concordou num movimento de olhos, guardou um silêncio oportuno, disse-lhe palavras amáveis e depois aproveitou para adicionar um comentário que ela já provavelmente já previa ou — ou tentava provocar:

— O convite está de pé. Venha morar comigo.

Começou a longa e lacônica negociação. De um lado Humberto argumentando as vantagens de trazê-la para dividir seu lar. De outro Augusta resistindo, ele não sabia se por sinceridade ou se apenas para salvar restos de aparências. Não quis arriscar o clima impondo um ultimato. Deixou que as negociações seguissem no ritmo proposto por ela até que, finalmente, ela disse que voltaria em casa para fazer as malas.

Humberto disse neutramente:

— Posso buscá-la quando?

E Augusta o abraçou com a sinceridade de um náufrago que se agarra ao mastro da jangada no meio da tempestade.

Naquela mesma tarde ventosa Humberto estacionou a velha picape vermelha à porta da casa dos pais de Augusta e a ajudou a retirar as bolsas e mochilas que continham os poucos bens e direitos que acumulara.

Ao fim de tudo, ela fechou a porta, pôs a chave sob o capacho, sorriu e entrou na picape sem olhar para trás. E foi aí que Humberto, puxando a gola da camisa e limpando a poeira dos sapatos no estribo para assumir seu lugar à direção, percebeu o peso que jogava sobre os ombros: “Eu não posso simplesmente mandar essa mulher embora um dia!”

A picape deslizou pela rua abaixo, silenciosa como um lagarto, e ganhou a larga avenida de onde já não havia mais como voltar.

Augusta não trouxe muito, não o suficiente para abarrotar o enorme e mal-cuidado apartamento em que Humberto vivia sozinho e que tinha ainda muito espaço sem uso, quartos meio vazios e paredes sem nenhum adorno a não ser manchas e mofo. Estabeleceu-se lá e começou a impor sua ordem feminina, sua presença limpa e perfumada naquele lugar tão carente de cuidados cujo dono passava dez horas por dia fora.

E assim, a ex-vendedora, ex-costureira e ex-tecelã vestiu seu papel de dona-de-casa e começou a engordar e a preparar-se para a maternidade. Cumprira o ciclo da mulher cataguasense de antigamente. Fora adolescente viçosa e enfeitara balcão de loja. Fora jovem fogosa e saudável e produzira nas fábricas seu ganho. Passada a plenitude do vigor, no momento logo antes de murchar-se a flor, deixara a População Economicamente Ativa para ser uma mulher à procura de marido, que no fim das contas achou tarde mas ainda teve sorte, apesar de nunca ter vestido o branco de seus sonhos.

Então um belo dia Humberto abriu os olhos e se surpreendeu com a calmaria instalada na manhã. Deitado ainda em sua cama, às sete horas e vinte e cinco minutos da sexta-feira, procurou as familiares manchas de umidade do teto e as conhecidas teias de aranhas que se acumulavam nos cantos e sentiu no ar um cheiro distante de lavanda. Seu corpo nu ainda estava estendido no colchão escandalosamente macio e sentia o calor penetrante das cobertas de lã.

De repente — surpresa! — eis que havia outro corpo ao lado do seu sobre aquela mesma cama! Frações de segundo depois reconectou os fios da memória e se repôs no controle de suas emoções. Ainda não havia se acostumado a não dormir mais sozinho.

Ao seu lado Augusta ainda estava imersa nos seus sonhos, relaxada e indefesa. Humberto sorriu de pensar que na semana anterior sonhava intensamente algo como aquilo. Todos os instantes vividos a dois desde o dia memorável em que a conhecera surgiram de volta à lembrança desbotados como se fossem fotografias do século XIX e de repente as certezas ficaram também nubladas como uma imagem em tons de sépia.

O desajeito do primeiro encontro, depois daquela troca de olhares. Humberto andara a esmo pelas ruas da cidade por muitos anos e muitas vezes encontra companhias temporárias de variadas durações. Naquela noite a seguira até o bar onde começou timidamente a primeira de muitas boas noites de conversa e sexo instintivo.

Então, por um momento, teve dentro de si o calor do desejo que o levara a formalizar, num instante de loucura, o convite fatal que mudara suas vidas. A febre do verão na alma, o cio do corpo cansado, a ânsia angustiada por paz e domingos tranquilos.

Enquanto contempla o rosto álgido e abrupto da mulher que escolheu para si, Humberto se pergunta quem é ela. Que sabe ele dessa vida que veio habitar junto da sua? Debaixo deste rosto não há muitas pistas — e ele às vezes acha melhor assim; ou descobriria verdades incômodas e saberia de coisas que só fariam sofrer.

Nessas horas em que a razão não tem respostas, as cavidades obscuras da alma regurgitam férteis em numerosas alternativas. Por um momento breve e árido a sombra do arrependimento agride suas emoções com dúvidas e medos.

Mas a curva dos trinta anos traz consigo preocupações capazes de vencer as precauções comuns. Não confiar no desconhecido se torna perigoso depois que os horizontes seguros já manifestaram sua completa e decepcionante esterilidade.

Ter receios de ser abandonado deixa de fazer sentido depois que a vida se revelou um abandono e sentimos uma vontade imensa de confiar. Não ter amor nem filhos para aliviar a solidão da meia-idade e ficar mofando em casa ao lado dos progenitores é algo que definitivamente não soava como uma promessa de felicidade para o futuro e tampouco é doce olhar para as paredes nuas de um apartamento cavernoso onde a voz de um solitário parece o grito de um alpinista nas montanhas.

Homens ou mulheres, todos estamos propensos a derrapagens abalroamentos quando sentimos pulsar o desejo de ir rápido e além. Quando aceitamos e até desejamos fazer o que não faríamos ainda aos vinte e seis. O ser humano confia porque a confiança tem sentido para quem ama, porque amar é uma espécie de espírito que nos traduz em credulidade e paciência.

Augusta lhe faz bem. Cozinha e mantém em bom estado o apartamento que antes parecia um chiqueiro. Humberto já não precisa comer no restaurante barato do centro da cidade e aos poucos está descobrindo o prazer de fazer compras e organizar um belo almoço de domingo para depois ir passear no parque. Dentro de algumas semanas os choques iniciais terão sido superados e a família de Augusta talvez queira aparecer para o almoço. Principalmente porque já aceitaram que o casamento, que ocorrerá dentro de três meses, será apenas civil, mas será suficiente para que a sua filha seja esposa e não amásia.

Augusta lhe dá amor sem culpa e sem preço, aceita sua atenção cansada quando chega do trabalho, já pela noitinha, magoado e triste. Vivem um amor sem pressa e vazio de aventura.

Ela se sente melhor, apesar das manchas de umidade do teto. Há mais espaço para distribuir suas coisas, as que já tem e as que vai começando a comprar. Tem com quem conversar de noite na cama enquanto o sono não vem. Como sai menos, usa menos roupas novas e sobra mais dinheiro para comprar melhores, e também para outros luxos antes menos frequentes.

Para Humberto o apartamento parece ter ganhado vida. Já não existe mais aquela opressão dos cômodos vazios e das paredes nuas ao voltar para casa no final da tarde, já não há o aterrorizante fogão frio nas manhãs de domingo.

Quando chega e toma seu banho quente para ver o Jornal Nacional, Augusta vem sentar ao seu lado, terna e morna. Ela parece gostar de tê-lo. Deixa-se levar por seu carinho paciente, habilita-se a discutir as notícias do dia e juntos têm uma opinião formada sobre os melhores programas humorísticos. Compartilham o gosto pela música de antigamente e colecionam discos e livros fora de moda.

Augusta parece haver se conformado ainda mais rapidamente que ele. Quando saiu de casa, diante da reprovação dos pais e da inveja das irmãs, sabia que não devia almejar a muito. Estava saindo de uma vida desértica que conduzia a lugar nenhum, levando consigo algumas bolsas e a roupa do corpo.

A única exigência, o respeito de não ser posta na rua de uma hora para outra sem tempo de buscar um rumo. Mas sabe que será melhor depois de uns anos, especialmente se vierem filhos. Não se engana querendo enxergar além de cada dia, embora às vezes se surpreenda numa ternura quase boba, numa vontade desesperada de que seja para sempre.

Ser acordada com beijos, adormecer ao seu lado a cada noite. Tudo se reveste de símbolo. São manias que se transformam em maneiras de tentar agrilhoar o presente na eternidade. Passar as tardes de sábado juntos ouvindo música deitados nus na cama e fitando o teto é um modo de se rebelar contra o tempo e o destino — na pior das hipóteses faz o domingo ser melhor.

Se Augusta se perguntará em algum momento pela tal felicidade, palavra cruel que às vezes nos leva a desistir do que faz bem para ir em busca do indefinível impossível, isso é algo que nem importa agora. Humberto faz questão de evitar a qualquer custo esta e outras das palavras que tiram o sono. À medida em que o tempo passa, toma consciência do abismo entre sua vida e a dela, essa estranha que aportou em seu futuro. É inútil ter ciúmes de alguém assim. Que a vida seja um fato consumado e a felicidade, um estado provisório.

Então as divagações terminam. Ela acorda um pouco assustada, com olhos de preguiça perguntando por que. Sem que palavras ditas sejam, os dois se levantam, se banham, se vestem.

À mesa para o café, Humberto a observa com uma ternura entediada e estende a mão para brincar com seus cabelos. O cachorro do vizinho late invisível, a tênue neblina matinal se dissipa rapidamente e já se pode ver a torre de televisão no horizonte. Sempre é assim. Augusta aceita o carinho e depois o vê partir sentindo dentro um conforto impreciso e inseguro. Sabia que ele voltará pela tarde com o mesmo jeito doce e previsível — e por um momento se pergunta onde foi que deixou-se perder da estrada reta que leva aonde todos vão. Ou se finalmente a encontrou.

Reduzida a ser feliz, afastou essas ideias perigosas lavando as vasilhas do café e preparando-se para sair também.

março de 2003


12
Mai 07
publicado por José Geraldo, às 07:16link do post | comentar | ver comentários (1)

Hoje saí para passear com minha filha e descobri que, apesar do prazer da paternidade, o que eu quero mesmo é minha “Torre de Marfim”. Um lugar bem alto, distante e isolado, em que eu pudesse estar a salvo dos ruídos do mundo e ouvir apenas música boa. Um lugar aonde não chegasse mala-direta, Padre Marcelo Rossi, Mr. Catra, missionários, o cheiro do Ribeirão Feijão-Cru, notícias de balas perdidas…

Como todo poeta eu amo às nuvens, aos lugares sagrados, às coisa antigas. Existem até alguns que fingem amar o oposto disso — mas nesses eu não confio. E como todo poeta eu abomino a bovinice, o comportamento de rebanho, a conformidade do sistema, a arte pela colheita da grana.

Acima de tudo eu odeio o ruído, odeio especialmente essa abominação chamada tele-mensagem. Já avisei a todos que me conhecem que se me mandarem tele-mensagem eu fujo. Se me puserem ao microfone eu mando todo mundo tomar no cu. E se eu descubro quem foi o infeliz, já era: se foi minha mulher, me divorcio. Se minha filha, sem mesada por pelo menos 730 dias. Se for amigo, era.

Se eu pudesse viver em minha torre de marfim eu seria dedicado à quietude. Seria capaz de votar certos dias ao silêncio absoluto.

Na minha torre de marfim eu passaria deliciosas horas de solidão, ouvindo esse silêncio mórbido e eterno que o mundo de hoje expulsou. Se ainda não estiverem extintos e nem engaiolados, os passarinhos virão pousar à minha janela e cantar no meu amanhecer. Mas se estiverem todos mortos eu poderei pelo menos gozar do silêncio — e nesse silêncio poderei ouvir meus pensamentos melhor.

Minha torre não será um condomínio. Creio que no inferno existem vizinhos, mas no céu cada alma bendita terá uma sesmaria ao redor de sua cabana.

Do alto de minha Torre eu certamente verei no horizonte as luzes de muitas cidadezinhas ou a nebulosa de uma metrópole. Para isso é que porei películas escuras nas vidraças. Quero minhas noites negras. Mesmo que as luzes da modernidade me roubem as estrelas eu ainda quero, pelo menos, o prazer de poder dormir na escuridão.

Entre as inúmeras coisas que abolirei de minha vida quando me mudar para a Torre eu enumero três que certamente não deixarei de deixar… O telefone, a televisão e o celular. Não quero telefone, mas quero computador com internet. Não quero televisão, mas quero meu DVD-player. Usarei minha conexão de banda-larga para piratear todos os filmes que quiser ver, todos os discos que quiser ouvir. Enquanto isso não quero ter de atender o telefone, não quero ter de assistir a essas coisas horrendas que a televisão insiste em nos mostrar. Eu não sou essas coisas e não sou essa música ruidosa que assombra a cidade.

Talvez você me ache louco, ou tenha pena de mim porque na minha Torre de Marfim não haverá amor. Talvez eu tenha razão, talvez tenha você. Essa Torre agora é só um sonho porque nela não caberiam todas as pessoas que eu teria de levar — e cada pessoa teria outras a quem levar. Assim, a minha solidão se tornaria um condomínio e a primeira coisa que toda essa gente faria seria organizar um churrasco regado a cerveja e pagode.


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