Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
23
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 21:46link do post | comentar | ver comentários (4)
Ontem, já no comecinho da madrugada, terminei de assistir, via YouTube, o filme “Stalker”, dirigido Andrei Tarkovsky, filmado em 1979, a partir de roteiro escrito pelo próprio diretor, baseado no romance “Piquenique na Estrada”, dos irmãos Bóris e Arcádio Strugatsky, gênios da ficção científica soviética. Romance este que eu já havia comentado elogiosamente aqui, não faz muito tempo.

Desde que lera o romance e ouvira falar do filme, minha obsessão foi encontrar uma forma de assisti-lo. Ficção científica soviética é algo que me interessa muitíssimo (aliás, toda a cultura soviética me interessa demais). Tanto a escrita quanto a que for filmada, cantada ou declamada em versos. Gosto de ficção científica, e mais ainda da que se fazia por detrás da cortina de ferro. Acontece que filmes de arte não passam na televisão brasileira, essa autêntica máquina de fazer doido, o que não dizer, então, de um filme de arte soviético de 1979! Felizmente a produtora estatal soviética Mosfilm, que ainda existe, fez um favor à humanidade e está digitalizando e remasterizando todo o seu catálogo e colocando no YouTube. Eu já tivera a oportunidade de assistir um filme de terror soviético chamado “Viy”, de 1967 (futuramente falarei sobre ele) e a experiência da estética da Mosfilm me impressionara muito.

Eu não estava preparado, porém, para encontrar o que Tarkovsky entrega neste filme. Duvido que alguém esteja — e é difícil explicar exatamente que tipos de impactos o filme causa em quem leu o livro, sem estragar o prazer de quem se proponha a assistir o primeiro ou ler o segundo. Não quero estragar este prazer, por isso tentarei ser econômico em minhas descrições.

Começo falando da trilha sonora, que é uma atração à parte.  Eduard Artemiev compôs a música, tocada em sintetizadores e instrumentos étnicos, e também compôs os ruídos ambientes do filme.  Sim, todo o som do filme, exceto as vozes dos atores, foi “composto” e “tocado” por Artemiev em estranhos sintetizadores artesanais ou usando métodos primitivos mesmo, como tambores, metais, pedras e canos. E muita água. Não tem uma cena seca no filme inteiro. Todo mundo molhado, úmido ou mofado, o tempo todo. Na sequência de abertura ouve-se música, no resto do filme a “trilha” sonora, totalmente atonal e sem seguir nenhum ritmo musical específico, se dedica a acompanhar a ação, fazendo-se presente nos ruídos incidentais (nem uma pedra cai no chão com um som natural), na respiração dos personagens e em interferências sonoras distorcidas que lembram os momentos mais experimentais do Pink Floyd em “Ummagumma”. O fato de Artemiev também ter feito os ruídos (em vez de o sonoplasta capturá-los no ambiente, ou coisa assim) faz o filme ter uma atmosfera surreal, irreal. Um filme no qual os únicos sons naturais são as vozes dos atores é algo que soa “de outro mundo” — e esta foi exatamente a impressão que Tarkovsky quis causar: dentro da “Zona” os sons são surreais porque ali as leis naturais estão afetadas por algo que o homem não entende. É preciso falar, então, deste fenômeno.

No filme de Tarkovsky se fala muito menos da natureza da “Zona” do que no romance dos irmãos Strugatsky, que já não fala quase nada dela. Apenas um diálogo entre os protagonistas, no qual o “professor” explica ao “escritor” que a “Zona” é resultado de um fenômeno inexplicado, que originalmente se pensara ter sido a queda de um meteorito. Não tendo sido encontrado nenhum meteorito, e com as mortes de centenas de pessoas curiosas que a exploravam, o governo tentou destrui-la, mas não conseguiu, pois seus tanques e aviões não funcionaram bem, e foram abandonados por soldados apavorados. Desde então o governo cercou toda a “Zona” com arame farpado eletrificado e muros de cimento e a protegeu com uma patrulha de soldados com ordens de atirar para matar em todos que tentem entrar. Neste sentido, a “Zona” do filme se parece muito com Berlim Ocidental durante a Guerra Fria (um pensamento que não me ocorreu em momento algum durante a leitura do livro). Tarkovsky realmente tinha “cojones” se isso procede, e ainda os teria de qualquer forma, pois a semelhança, mesmo que involuntária, é evidente. Mesmo porque, no filme parece haver a sugestão de que a “Zona” é única.

No romance a “Zona” não é única: existem várias, todas elas alinhadas de maneira curiosa, no sentido da rotação da terra, segundo um padrão que é chamado de “Radiante de Pilman” (leia o livro e caia na gargalhada com a explicação desta expressão e com a história de sua descoberta). Além do mais, o seu caráter é bem menos ambíguo que o do filme: as “Zonas” são mesmo o produto de uma visitação alienígena (daí o título “Piquenique na Estrada”, que é outra ótima piada de humor ultra-negro que você entende lá pela vigésima página). Não existe qualquer sentido de que a “Zona” seja um lugar desejável para se entrar e quase ninguém quer ir lá: somente os “stalkers”, que são pessoas que adentram lá de forma semi profissional.

Muda também a motivação dos “stalkers”: no livro eles fazem por dinheiro, visto que em cada “Zona” podem ser encontrados objetos os mais diversos que alcançam alto preço porque são completamente inexplicáveis, como as garrafas que nunca enchem e as que nunca esvaziam (ambas chamadas de “ânforas”), entre outros. No filme eles levam pessoas desesperadas até o “Quarto”, um local dentro da “Zona” no qual os mais íntimos desejos de cada pessoa são realizados. O “Quarto” também existe no livro, mas não domina a ação da forma como ocorre no filme.

A ação do filme, aliás, é totalmente diferente do livro. A começar pelas visitas à “Zona”. No livro ocorrem duas: na primeira o “stalker” conduz o “professor” em uma busca por artefatos que serão estudados pelo Instituto Internacional para Pesquisas Extraterrestres (note que a afirmação de que as “Zonas” são o produto de uma visitação alienígena é explícita) e na segunda ele conduz o “escritor” (que é um personagem bem diferente) até o “Quarto”. A primeira visita ocorre quando o “stalker” ainda é jovem (aos 23 anos) e a segunda, quando ele já está envelhecido precocemente (aos 31 anos). O filme parece mesclar as duas visitas em uma só, transferindo o “professor” para a segunda e mudando o seu objetivo.

O tipo de ação também é diferente. O livro tem um ritmo de aventura, apesar da narrativa lenta — cheia de paradas para trocadilhos, piadas de humor negro sutilmente disfarçadas no subtexto ou meramente para descrições precisas dos arredores. O filme não tem nada disso. No livro há muitos personagens, ocorrem mortes trágicas, perseguições, prisões, brigas. No filme só vemos seis personagens e ação é toda concentrada em torno deles. Um filme fiel ao livro teria que ser cheio de efeitos especiais, para conseguir representar os inúmeros fenômenos e objetos existentes nas “Zonas”, como o “moedor de carne”, o “leito dos mosquitos” ou o “véu das fadas” (todos nomes que evocam a aparência, não a essência desses fenômenos). No filme nenhum destes fenômenos sensacionais ocorre: não há efeitos especiais quase, mas há sim, certos fenômenos claramente sobrenaturais, embora os personagens, às vezes, se recusem a admitir isso. Entre estes fenômenos está a voz sob a árvore, que amedronta o “escritor”, os morcegos na sala de sal e a brincadeira da filha do “stalker”. A grande diferença está no foco. O livro, apesar de ser feito com palavras, foca na evocação de imagens sensacionais, de outro mundo. O filme, apesar de feito com imagens, prefere evocar palavras. Os personagens do livro andam, pensam, agem, reagem. Os personagens do livro dialogam sobre seus dilemas existenciais, sobre a “Zona”, sobre suas expectativas, sobre seus medos.

Para alguém que busca um filme de ação, "Stalker" é uma decepção total. Mas para alguém que busca um filme realmente intrigante, que faça pensar e que mude seu modo de pensar, então não há filme melhor. As metáforas políticas e artísticas são constantes. Os personagens dialogam sobre temas universais. O diálogo entre o "professor" e o "escritor", à beira do "túnel seco" (uma ironia) é de um impacto profundo, especialmente se você também escreve.

Também é preciso mencionar a pequena "Macaca", a filha do Stalker. No livro ela é uma mutante de olhos negros (no sentido de "totalmente negros") e corpo coberto de pelos dourados, exceto pelas mãos, pés e rosto. Por isso, e também porque ela é extremamente ágil e muito lacônica, foi que a chamaram de "Macaca". No filme, paradoxalmente, ela é paralítica, tem olhos normais e não fala — embora ande o tempo todo coberta por véus, luvas e calçados, que só deixam de fora o seu rosto. Acho que a diferença entre as duas resume as diferenças entre o livro e o filme. O primeiro descreve muito, para trazer o leitor para dentro da história. Os personagens são explícitos, abertos. No filme, porém, que já tem o leitor no cenário e na história, os personagens se fecham, se protegem, revelam o mínimo. O livro procura convencer sobre a existência de coisas que não existem. O filme, partindo do pressuposto de que você acredita na existência de tudo, controla (ou melhor, sonega) as informações e ataca suas certezas, até que você comece a pensar uma coisa, e depois outra, e depois uma terceira. E quando termina, você não sabe se está realmente decepcionado ou se jamais esquecerá as imagens que viu e os diálogos que ouviu.  E se você acha que foi M. Night Shyamalan que inventou o final surpreendente, com "O Sexto Sentido", espere até ver a cena final de "Stalker", que contraria e decompõe boa parte do que foi dito pelos personagens e das conclusões que você foi tirando ao longo da narrativa!

Um último e macabro detalhe a respeito do filme é que ele foi todo rodado dentro das instalações abandonadas de uma indústria química estoniana, à beira do Mar Báltico. Uma região incrivelmente úmida, verdejante e bela. Ali, fábricas poluidoras e usinas nucleares em péssimo estado criavam uma paisagem de natureza semidestruída. Os lugares haviam sido abandonados porque eram imprestáveis para a vida humana — tal como a "Zona". Foi lá que Tarkovsky escolheu filmar. Entre rios cobertos de grossas capas de espuma marrom, pântanos pútridos, fumaças densas e chuvas ácidas. Uma "Zona" criada pelo desastre do homem, não pela interferência dos céus. E Tarkovsky submeteu seus atores, sem o uso de dublês, ao clima intratável  e à insalubridade do lugar, fazendo-os vadear por rios sujos, tatear por túneis por onde sabe Deus o que fora bombeado. Anos depois Tarkovsky, os três atores que interpretaram os personagens perambuladores pela "Zona" e vários técnicos de filmagem morreram de tumores os mais diversos. Posteriormente o governo russo divulgou documentos que evidenciavam que o lugar estava contaminado por plutônio de uma usina nuclar desativada e por produtos químicos altamente cancerígenos de uma fábrica de pesticidas que ainda estava em funcionamento parcial.

05
Set 12
publicado por José Geraldo, às 00:53link do post | comentar
Tolkien dizia ter um «prazer secreto», verdadeira motivação por trás da escrita do «Senhor dos Aneis»: inventar línguas. É um passatempo muito antigo, diversão de grandes QIs. Nos seus primórdios, ainda não elevado ao estado de arte, produziu línguas pensadas para serem veículos neutros de comunicação internacional, como o esperanto. Posteriormente, constatada a inviabilidade de tal projeto (pois todos detestam unanimemente o esperanto), os fazedores de línguas passaram a ousar, e surgiram coisas diferentes.

Um linguista chamado Benjamin Whorf teorizou que as línguas poderiam condicionar o pensamento. Ele estava errado de várias formas, mas muita gente tentou experimentar isso criando línguas destinadas a mudar o mundo. Línguas feministas, línguas belicistas, línguas com semântica complexa, com gramática assim ou assado. Em geras estas línguas têm muito pouca inovação em relação à imensa riqueza das línguas reais que o mundo produziu, mas elas revelam o grau de cultura e o tipo de personalidade que o indivíduo que as criou possuiu.

Este foi, aliás, o ponto de partida segundo o qual um semiólogo atestou que J. R. R. Tolkien era racista. Como se não bastasse os seus heróis élficos serem «fair haired» (um termo inglês ambíguo que associa cabelos claros a cabelos bons) e o líder das forças do Bem ser o Mago Branco, ainda havia a «Fala Negra» (o «esperanto» das forças de Mordor). A língua dos elfos se caracteriza por sua pureza, enquanto as línguas dos homens, seres decadentes e transitórios, se contaminam com influências as mais diversas. Tanto o Quenya quanto o Sindarim (as duas principais línguas dos elfos) se baseiam em idiomas europeus (finlandês/latim/lituano e galês/holandês, respectivamente), mas a língua das forças do mal se inspira em dialetos do Oriente Médio.

Não chego a concordar que Tolkien fosse ativamente racista, apenas que ele não estava isento do racismo latente em sua época (nascido na África do Sul e contemporâneo da eugenia, do nazismo e da Ku Klux Klan).  Prefiro pensar que a «pureza» a que ele se refere é um tipo de coerência interna que muitas línguas parecem não ter, notadamente o inglês, que é tão esquisito que há uma corrente da linguística que o classifica como um «dialeto crioulo» do francês medieval, com substrato anglo-saxão, que passou por um processo de intensa eruditização por influxo do latim e de reempréstimos de termos anglo-saxões esquecidos. Pena que Tolkien se enganou quanto ao finlandês: hoje se sabe que menos de 10% do vocabulário desta língua de família fino-úgrica é autóctene, os outros 90% foram emprestados do alemão, do russo, do lituano e do sueco.

Bastaram esses poucos parágrafos para lhe sugerir o quanto é rico e interessante o tema das línguas imaginárias (conlangs, ou «línguas construídas», em inglês). Eu mesmo já me aventurei com uma, que se chamaria «nódico» e seria parte do cenário de um romance meu de ficção científica. Nos próximos dias vou compartilhar com vocês um pouco das características desse projeto.

21
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 22:22link do post | comentar | ver comentários (2)

Júlio era um “programa humano”. Esse era o nome pelo qual os líderes do Magistério Supremo os chamavam. Pessoas cujos cérebros haviam recebido, ao longo de uma vida inteira, informações subliminares destinadas a prepará-las para o momento em que o Grande Mestre resolvesse usá-las. Todos sabiam que os programas humanos eram amplamente conduzidos na Terra inteira e muitos os odiavam, mas vivia-se um tempo em que até odiar o Magistério já se tornara algo cuidadosamente controlado, pelo Magistério.

Sempre tivera a impressão de que o programa que recebia sem perceber toda  vez que ia à Escola, especialmente nas vezes em que estava só na Biblioteca, era de um tipo diferente, mais importante. Diziam que ele era apenas um convencido, mas ele nunca se importara: durante anos esperara pelo momento do Chamado, que nunca parecia vir. Até o dia em que o Mestre Local o chamou, instruiu-o a limpar os sapatos corretamente e vestir uma roupa mais casual, e então lhe destinou à mais difícil de todas as missões: Encontrar e Destruir o Último Reduto dos rebeldes.

Ninguém sabia onde ficava o Último Reduto. Esta era uma informação mantida em absoluto segredo pelo Magistério, supondo-se, é claro, que o próprio Magistério saberia. Mas o Magistério, logicamente, sabia tudo. Ou talvez não. Por um momento a certeza de Júlio quanto à Verdade dos Ensinamentos vacilou, mas ele se livrou de tais hesitações, argumentou contra sua falta de objetividade e começou a tentar lembrar os detalhes da missão, a fim de reencontrar sua identidade. Ao mesmo tempo, tentava detectar onde estava, saber se tinha chegado ou não ao seu destino.

Saíra da Terra em uma nave Columba-III, subluminal, como todas que ainda se construía. Alguns diziam que no passado houvera naves capazes de viajar acima da velocidade da luz, provavelmente uma lenda plantada pelos rebeldes. Ou talvez os humanos  estivessem perdendo seus antigos conhecimentos. Novamente Júlio sentiu o calafrio da dúvida. “Isto não é possível: sob a condução do Magistério o Conhecimento se multiplica.” Era uma frase feita, programada em sua mente desde a mais tenra infância. Uma frase que lhe dava conforto.

Ao despertar se sentira saindo de um sono de séculos, mas não se lembrava quanto tempo dormira. Na sua mente não havia noite anterior, nem planos para depois de acordar, o que era muito estranho, mas se lembrava que seu nome era Júlio e tinha uma missão: Encontrar e destruir.

Superou a força das lembranças e tentou acostumar-se com a luz abundante. Olhou em torno, mas da cama em que estava deitado não conseguia ver quase nada. Eram paredes verde-pálidas, inodoras. A janela, estranhamente pesada e tosca, não parecia de plástico nem de alumínio. Algum material estranho, meio esponjoso e não totalmente rígido. Estava fechada, bloqueando toda a luz, exceto por furinhos na parte superior, pelos quais se filtrava uma réstia azulada. O quarto era mobiliado apenas pela cama e por uma espécie de roupeiro feito do mesmo material da janela, diferentemente da cama, que parecia ser de aço, embora não muito puro.

Tentou erguer-se e descobriu que estava amarrado pelos tornozelos e suas mãos estavam presas à cabeceira e modo que não pudessem alcançar os pés. Esta descoberta o fez ficar sobressaltado.  Positivamente não o reconheciam como um Aluno. Conseguira reencontrar sua identidade. Isto lhe fez sentir-se melhor. Era um Aluno, mas havia sido tornado em Mensageiro. Mensageiro da Morte. Tinham-no enviado em animação suspensa dentro de uma nave automática do tipo Columba-III, para encontrar e destruir o Último Reduto dos Rebeldes.

Então perguntou-se onde estava: Tinha chegado ao Último Reduto? Tinha retornado à Terra? Ou estava delirando em seu profundo sono criogênico, talvez por indução de um processo de eutanásia desencadeado pelos sistemas automáticos da nave? Ainda precisava de mais informações para decidir no que crer. Então lembrou-se que não podia estar morto, não de acordo com as Lições. Se estivesse, deveria estar no Céu dos Heróis, sendo recebido por Deus.

Ouviu vozes aproximando-se. Como furtivo mensageiro, recolheu-se em uma posição relaxada e fingiu dormir.

Eram dois: um homem e uma mulher. Entraram no quarto. Com os olhos fechados, não conseguia vê-los, restava-lhe ouvi-los e sentir seus cheiros.

O homem tinha um cheiro estranho, ardido, lembrava alguma das fragrâncias padronizadas, mas não exatamente. A mulher era quase inodora, a não ser pelo distante e ácido perfume de alguma coisa que ele nem sabia o que era. Ambos falavam em voz baixa, pausada, mas ele não conseguia entender uma só palavra do que diziam. As palavras vinham ao seu ouvido como uma algaravia qualquer, mas as entonações não deixavam dúvida de que havia um diálogo racional e contido.

Sentiu a algo frio em sua axila direita: estavam-lhe tomando a temperatura. Outra mão o apalpou no abdômen. Entre risos, a voz masculina comentou alguma coisa talvez relacionada às microscópicas reações de seu corpo ao toque daquelas mãos estranhas.

Uma mão feminina o tocou na barriga. Reuniu todas as suas forças para tentar se segurar, fingir ainda que estava a dormir para tentar captar informações. A mão feminina, atrevidamente, deslizou para debaixo do lençol, em direção aos Lugares Interditos. Então foi impossível manter-se quieto. Fingiu acordar.

Estava diante de duas pessoas de aparência saudável, mas não muito natural. A mulher era loura e corpulenta, com seios avantajados. O homem era um tanto atarracado, grisalho e de poucos cabelos. Júlio nunca vira ninguém calvo. Devia estar em alguma região bastante remota, onde o Magistério é menos atuante e as pessoas chafurdam na ignorância.

Lembrou-se de estar em sua nave, em missão. Finalmente sua mente confusa completou o raciocínio suficiente para dar-se conta de que não se lembrava do dia anterior, nem dos anos anteriores, nem das décadas anteriores. Não havia o que lembrar. Passara décadas, talvez séculos, dentro de uma nave subluminal Columba-III, em busca de algum lugar perdido no cosmos onde estivesse o Último Reduto dos Rebeldes. Que deveria encontrar e destruir, de alguma forma que somente o programa posto dentro de si saberia lhe indicar.

Os visitantes o deixaram só. Por algumas horas permaneceu desastrosamente só naquele quarto isento de estímulos. A cabeça lhe doía, as pernas se revoltavam querendo levantar, as costas pareciam passadas em uma lixa. E do lado de fora, aqueles doces mas irritantes pequenos ruídos semi-musicais que iam e vinham, martelando seus ouvidos.

O que mais lhe deixava confuso era a profundidade da amnésia que lhe sobreviera durante a viagem. O destino para o qual sua nave fora programada  era distante para uma vida humana, mas os sistemas de suporte eram suficientes para mantê-lo vivo e saudável por mais que o dobro do tempo da viagem. E deveria acordar suavemente algumas semanas antes do pouso, estar pronto para descer desperto e cumprir sua missão. Mas não conseguia mais lembrar qual exatamente a sua missão. Sim, chegar até o Último Reduto. Mas e depois? O que um homem só poderia fazer para destruir um planeta?

Algumas horas depois recebeu outras visitas. Várias visitas. O homenzinho calvo trouxe cinco outros consigo, inclusive duas mulheres macérrimas e autoritárias, que, no entanto, o olhavam de longe, quase com medo. Por quase vinte minutos conversaram entre si naquela língua diabólica, ao mesmo tempo tão foneticamente próxima, tão musical, mas tão diferente de tudo que ouvira. Algumas vezes as frases pareciam encadear-se, quase fazendo sentido, mas depois degringolavam em longos pântanos inflados de consoantes.

Tinha a certeza de que seu destino poderia ser decidido por aquelas pessoas. A percepção de que o assunto era sério lhe dava um desconforto profundo. Uma vontade de pegar sua arma portátil e acioná-la. Mesmo tendo sido desenvolvida apenas como um  método de suicídio ritualístico, ela poderia causar um bom estrago naquela gente, se disparada a uma curta distância. Mas não seria com um tiro de pistola que destruiria o Último Reduto, por isso se conteve.

Por fim, um dos visitantes determinou alguma coisa que os demais concordaram como apropriada. A consequência disso, minutos depois, foi removerem as amarras que o mantinham preso à cama. Ao se mexer, então, descobriu que estava vestido apenas com uma espécie de roupão de tecido fino, mas engomado a ponto de ficar duro. Seu primeiro impulso foi o de atacar aqueles homens e desfigurá-los a unha se fosse preciso. Mas sua racionalidade, mesmo sob o efeito de anos de condicionamento, lhe dizia que demonstrar imediata hostilidade seria inapropriado, pelo menos enquanto não soubesse onde estava ou, mais importante, onde estava a bomba. Se é que havia uma bomba capaz de matar um planeta.

Levantou-se e começou a tentar caminhar pelo quarto. Haviam sido tantos os anos, ou séculos, que seus músculos estavam presos, tentavam desobedecer à sua ordem de levar o corpo a algum lugar. Algo dizia que demoraria ainda muito tempo a conseguir sair daquele quarto. Algo lhe disse que tentar atacar aquelas pessoas teria sido inútil e teriam interpretado sua hostilidade como um simples esforço de convalescente para erguer-se da cama.

Mas conseguiu caminhar depois de alguns momentos penosos, momentos durante os quais se sentiu como Bambi aprendendo a andar. A lembrança do filme que vira tantas vezes lhe deu mais determinação. Por fim, certificando-se de que não estava demasiadamente nu, resolveu sair pela porta, ver o que havia lá fora.

Durante todo este tempo os seis visitantes apenas observaram. Com curiosidade, como se ele fosse apenas um animal inofensivo. Será que não imaginavam que ele era o Mensageiro da Morte enviado pelo Supremo Magistério?

Abriu a porta e tentou caminhar pelo corredor. Era longo, pavimentado de ladrilhos cinzentos e gastos. Estava vazio e conduzia a um pátio iluminado pela mesma luz azul que filtrava pelos furos na janela do quarto. Seguiu apoiando-se na parede onde fosse necessário. Os seis o seguiam. Ao chegar ao pátio percebeu que era um estranho hospital o lugar onde estava: além de praticamente vazio, terminava em um jardim quase irreal.

O jardim era coberto por uma vegetação uniforme, verde-azulada. A intervalos regulares havia bancos pintados de branco-azulado nos quais os pacientes tomavam sol. O sol!

Ao vê-lo, pôde ter a certeza de que não estava na Terra. Não poderia estar, de forma alguma. No céu havia um grande sol vermelho, de brilho fraco e tamanho angular maior que o da Lua. A pino estava outro, este fortíssimo, azulado. Um sistema duplo? Ou apenas uma estrela vermelha localizada nas proximidades de uma gigante azul? Rígel! Era essa a lendária destinação dos Últimos Rebeldes. Aquele planeta era o Último Reduto! Havia chegado ao destino!

Não conseguiu segurar a felicidade. Ajoelhou-se naquele estranho gramado macio e gritou a plenos pulmões: «O Mensageiro Chegou para os Últimos Hereges!» Mas ao se levantar sentiu a boca amarga e a alma vazia, como um papel de bala que alguém descartou. Não conseguia entender o que devia fazer.

Uma mulher, de aspecto envelhecido, mas ainda bonita, voltou-se em sua direção. Estava, como várias outras pessoas, sentada num dos banquinhos azulados. Ela o olhou fixamente, por um momento, depois soltou uma gargalhada. Que irreverência! Uma rebelde insolente zombando de um Mensageiro da Morte! Júlio anotou mentalmente que a estrangularia com suas próprias mãos, tão logo tivesse novamente força nas mãos, antes de detonar o explosivo e acabar com aquele patético planeta.

Mas a mulher não se impressionou. Levantou-se de onde estava e veio em sua direção. A dois passos dele ela se deteve e fez o sinal secreto! Ela era uma irmã! Uma Mensageira também!

— Há quanto tempo está aqui, irmã?

Entre os iniciados não há necessidade alguma de formalidades. Mas ela não reagiu da mesma forma que esperara:

— Creio que uns dois anos, irmão, mas não deveríamos nos saudar antes?

Júlio se sentiu confuso. «Saudar» não era algo lhe fora ensinado como importante. A menos que ela fosse uma Mestra, mas ela só poderia ser, naquele tempo e lugar, uma Mensageira, como ele.

Deu-se conta, então, do estranho sotaque daquela mulher. Parecia pertencer a uma outra época, décadas ou séculos antes.

— Está aqui há tanto tempo e ainda não destruíste o Último Reduto?

— Não. Por que eu o destruiria?

— Esta é nossa missão. Para isso fomos enviados.

Ela gargalhou de novo, mas desta vez Júlio percebeu que era uma risada tão amarga quanto a bílis que lhe chegava à boca e o fazia querer vomitar.  Um brilho rutilante apareceu em seus olhos. Então ela se aproximou dele, de uma forma que os Mensageiros são ensinados a não fazer, pôs-lhe a mão no ombro e aproximou seu rosto. De alguma forma esse gesto não lhe causou a repulsa que deveria. Então ela sussurrou:

— Estou aqui há tanto tempo que nem me lembro mais.

Um Mensageiro não deve ter sentimentos de compaixão ou pena. Mas Júlio teve, mais por pressentimento, mais por senso de pura profecia, do que por realmente ter alguma empatia com a pobre.

Depois de tentar infrutiferamente comunicar-se com alguns dos outros que vagavam pelo jardim, retornou ao banco onde encontrara a mensageira. Ela ainda estava lá, os olhos protegidos do brilho selvagem da estrela miravam uma planta que parecia crescer a olhos vistos, ou apenas se agitava ao vento. Vento, a primeira vez em anos. Quando ventara pela última vez em sua vida? Todas as coisas boas da vida acontecem quando está ventando, lhe dissera uma tia, quando ainda era menino, quando nem fora selecionado. Duvidara dela: não ventara no dia em que seguira para a Escola.

— Irmã, que lugar é esse onde estamos? O que vamos fazer?

— Irmão — ela disse — tente se acostumar com a ideia de que está morto.

— Eu não estou morto!

— De uma certa forma sim. Eu e você estamos, somos Mensageiros da Morte.

— Sim, o Mensageiro morre para o mundo e nasce para Deus no exato instante em que se dedica.

— Não, irmão. Somos Mensageiros da Morte não mais porque a trazemos, mas porque viemos do Reino da Morte.

Não compreendo, irmã. Isto é uma heresia.

Ela lhe apontou para cima:

— Este não é o sol, e esta noite não terá as estrelas que você conhece.

— Sei disso, irmã, esta é Rígel, a gigante azul.

— Não, irmão, não é. É uma estrela azul, jovem e forte, mas não aquela que nos disseram. Esta é a estrela que iluminará o futuro da humanidade.

Seria possível? Algo dentro de si ainda se recusava a crer.

— Continuo não entendendo, irmã.

— A Terra, querido irmão, a Terra já não existe mais. A única humanidade que resta é a que a Terra rejeitou, a que colonizou as estrelas. E cá estamos, relíquias de um planeta morto, mortos andando entre os vivos, portando lembranças de um mundo que eles não conheceram. Irmão, eles nem sequer sabem que nós os odiamos.

— Isto é ótimo. Significa que não suspeitam de nada. Vamos agir.

Júlio havia sido programado muito bem, mas suas tentativas de dar prosseguimento ao programa eram apenas um disfarce para a confusão e o pavor que começavam a ser formar em sua mente. Talvez a distância do Magistério, o tempo passado no bojo de uma nave-baleia, como um Jonas tecnológico, não por dias, mas por séculos ou milênios, ou talvez as drogas desconhecidas que os médicos daquele lugar que lha haviam dado. Alguma destas coisas estava minando a frieza que lhe fora ensinada: começou a tomar consciência de coisas que sempre soubera, mas que nunca realmente assimilara. Sua viagem era sem volta, seu destino era a morte. Matar e morrer, ou apenas morrer. Aqueles que o enviavam sequer teriam o prazer de ver destruída a civilização herege. Seu projeto não tinha nenhuma dedicação real, era apenas um ritual vazio. Viera destruir um planeta, munido de uma pistola. Nunca lhe disseram nada sobre viver depois, sobre encontrar alguém ou tentar aprender uma língua nova. Não tinha consigo sua arma nem os seus implantes de lavagem cerebral. Sentia-se desprotegido e alienado, obrigado a pensar por si. E com que dureza pensava, ajudado por implantes biônicos que o faziam ter mais memória, pensar mais rápido, entrar em loops confusos de processamento os quais somente chutes irracionais solucionavam.

— O que você está fazendo aqui?

— Tentando aprender a língua deles, para convencer-lhes de que não sou louca.

— O que fizeram com a bomba?

— Venha comigo, vou lhe mostrar.

O hospital tinha apenas uma cerquinha baixa, do mesmo material das janelas. Nada impedia que se entrasse ou saísse, como se naquele mundo entrar e sair fossem coisas somente feitas quando e onde permitido. Mas a Mensageira não o levou para fora, mas para um canto do pátio onde havia um depósito de pedaços retorcidos de metal. Entre eles alguns cascos de bombas.

— Desde que aprendi a falar um pouco a língua deles, irmão, eu consegui entender alguma coisa.

— Se já sabe falar a língua deles...

— Falta-me convencer-lhes de que não sou louca.

— Quer ouvir o que descobri?

Júlio não queria. Queria matar alguém, queria destruir um planeta. Queria cumprir a missão de sua vida. Queria chorar porque de repente se dava conta de que não tinha sua vida, não tivera. Mas uma avassaladora impotência o dominava, talvez efeito daquele maligno sol azul. De repente não ouvia mais nem a irmã, nem a grama crescendo, nem as pessoas passando, nem o próprio coração batendo. Um escuro o cercou e o deitou no chão. No conforto calmo do chão. Mas não era o chão seguro da velha Terra, mas pedra dura de um chão alienígena, onde nem podia morrer em paz.

***

De trás das grossas janelas de vidro da sala de gerência o Doutor Pankoff observa o novo paciente interagindo com os demais. Seus colegas o observam, com um ar de seriedade científica mesclado a uma forma adulterada de compaixão.

— Quantos esse mês, doutor?

— Este foi só o segundo. Mas no mês passado tivemos nove.

— Não é curioso que tantos tenham aparecido em tão pouco tempo?

— Se os cálculos de nossos Antepassados estiverem certos… — os demais o encararam com reprovação pela ousadia, mas ele continuou — é de se esperar que esta onda Mensageiros da Morte recrudesça dentro de alguns anos.

— Eu nunca entendi este cálculo.

—  Nem eu. Por isso o benefício da dúvida. Afinal, não sou astrofísico. O que sei é que esses centenas de Mensageiros da Morte estão começando a se tornar um problema social. No começo eles chegavam tão raramente que quando aparecia outro o primeiro já estava morto ou muito velho; eles envelhecem cedo, como vocês sabem. Agora nós temos duzentos e quarenta pobres diabos mentalmente imaturos e confusos que se acham Destruidores de Planetas andando pelo jardim usando pantufas de lã e jalecos de algodão. Nenhum deles utilizável em qualquer atividade econômica, mas ninguém sonharia em simplesmente matá-los.

— Não é isso que nós fazemos. De forma nenhuma o fazemos. São seres humanos, primitivos, mas humanos.

— Mais do que isso: eles são um reservatório genético importante, de uma época em que nosso genoma ainda não havia sofrido influência da química deste planeta e dos raios de Rígel. Logo estaremos migrando para um lugar mais seguro, porque esta menina aí — ele indicou a estrela com o queixo — deverá esterilizar uma ampla região do espaço dentro de uns poucos milhões de anos.

— Mas para esta finalidade que o senhor está pensando, Doutor Pankoff, as amostras de sangue e cabelos coletadas já resolvem o problema… — atalhou uma Doutora Lamar de nariz adunco e expressão de quem seguramente jamais tivera um orgasmo na vida.

— Não exatamente da melhor maneira – insinuou Pankoff.

O Doutor Jones observou que, de fato, o genoma sintetizado perdia parte de suas características. Suas melhores características — observou Pankoff. Os outros fizem um constrangido silêncio, entre a reprovação e a incredulidade.

Quando todos saíram, após o esfriamento do assunto, o calvo médico se sentou em sua poltrona giratória à beira da janela e contemplou os pacientes, segurando entre os dedos, escondidos dentro do profundo bolso do jaleco, uma estranha medalha de resina que atravessara anos luz de espaço.

No jardim a conversa da Irmã com o recém chegado terminava. Ela vinha para a ala central sozinha, enquanto o apatetado novato caminhava sem rumo pelo gramado. Pankoff retirou do bolso a medalhe e contemplou nela a empalidecida imagem tridimensional de Alice. Pobre Alice. É lamentável que os padrões genéticos dos terráqueos lhes permitam viver tão pouco…


10
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 12:29link do post | comentar | ver comentários (1)

Apareceu de repente um barui estrãe no motor do caminhão, chamano a atenção do Remundo, que cochilava no banco de carona pro Jailso dirigir. Tava de madrugadinha e era lua minguante, num dava para ver nada no escuro daquele fim de mundo.

— Jajá, para o caminhão.

Encostar ali era perigoso: ês tava no meio do nada, estradinha de terra. Canavial dum lado e dotro. Não tinha nenhuma luz de cidade apareceno no céu.

— O que foi, Mundim?

— Um barui no motor.

— Não escutei nada, ocê tá bêbo. 

—  Parece que tem um trem quarqué atrapaiano o motor a girar.

— Tem nada. Iss’ é besteira de caminhonero bêbo.

Mas o rai do barui tava lá. Remundo tamém escutô e ficô co os cabelo rupiado da nuca até a bunda. Porquê num era no motor coisa nenhuma, era arguma coisa no meio do canavial. Mas o motor tamém tava estrãe.

— Né não, Jajá. Me chama de Richarlyso se não tá aconteceno alguma coisa.

Descero então e pegaro as chave de fenda. Abriro a tampa do capô da F-150 e ficaro olhano com a lanterna, procurando um trem quarqué solto que fizesse o barui.

Então escutaro um ruído quase que não dava para ouvir, assim como os pezim duma galinha correno. A nuca do Jajá rupiô de novo e ele virô assustado como se alguém tivesse enfiado gelo na carça dele. Pela estrada afora, na luz do farol, ia umas pegada esquisita, que sumia na curva.

— Tá veno isso, Mundim?

— Olha, nem sei o que é, mas vam’ ‘bora daqui!

Montaro os dois, apertaro os cinto e ligaro o motor. Nos matagal em volta da estrada se oviu um bater de asa que parecia revoada de morcego saino do inferno.

— Jajá, acabei de pensar. As pegada vão para lá…

— Cõ efeito, Mundim, deixa de ser medroso.

Aceleraro com força. Poquim depois da virada da curva, um par de zói vermei apareceu no mei da estrada, encarano os farol.

— Ai Santa Mãe de Deus, um lobisome!

Jajá tentou frear, mas já tava muito em cima. O bicho foi na grade, fazendo um barui seco, como uma explosão de pedrera lá longe.

— Será que matamo o demõe?

— Vam’ descer e ver.

De fato mataro, só que não era nenhum demõe, mas uma pobrezinha duma capivara, gorda que só ela.

Os dois começaro a rir da bobiça enquanto examinav’ os resto da bichinha. Uma capivara, cês sabe, é mais ou meno um ratão cotó grande e cabeludo.

Enquanto ês tava lá rino de alívio, nem viro a sombra grande do disco voadô que subiu do meio do canavial, quietim, e sumiu céu acima, sem ês ver.


04
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 08:40link do post | comentar
A tristeza deste século que chegaserá de não haver mais horas mortase nem fantasmas nelas.Um mundo iluminado, limpo e organizado,sem espaço para transgressões.A melancolia será subterrânea e todos acuados,teremos de ter e de ostentar.Os seres tristes sorrirão tambéme se atracarão às lumináriasem busca de pé no remoinho.A agonia que haverá na nova eraserá o som do mundo ininterruptoacima da perspectiva do infinito,mais forte que o pulsar dos corações.Um mundo preenchido, pleno e certificadoonde a insatisfação será um problema secundáriodiante da impossibilidade evidentede ouvirem nossos gritos.Os seres tristes somente poderãosoltar-se numa alegria fingida e sem sentidoe dançar para não mostrarem o que são.A repressão que espera na esquina será a ausência de ouvidos.Será estar na praça do infinitolendo um romance de cavalaria.O mundo ritmado funcionará aindae todos seguirão o enterro de seus dias,como relógios, inconscientes das horas.A solidão nos Belos Tempos será somentedelinear um pensamento e descobrir depoisque a solidez de um momento é ilusão.Como a bolha de sabão que sobepara estourar contra a vidraça sem voar.Nós passamos e não deixamos traço,e não voamos, a não ser cá dentro.E parece haver além beleza e umidade,mas o breve instante que pensamosnão é bastante que o vento nos carregue:o homem é uma bolha de sabão que sonhae não há janela aberta e nem vento.

19
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 11:53link do post | comentar

Prólogo para um romance de ficção científica iniciado em 1999, que eu nunca procurei terminar porque descobri que J.G. Ballard já havia escrito uma história parecida demais.

As ruas são perigosas. Sair de casa envolve sempre riscos. Por isso procuramos fortalezas, compartimentos isolados para nossos sonhos estanques. Moro em um edifício preparado para isso. Nele moram comigo cerca de mil pessoas, mais ou menos, todas em apartamentos parecidos, de duas ou três peças. Moramos aqui há mais de quinze anos e mesmo depois aqui ainda estão os que não moram mais: em uma necrópole subterrânea geometricamente organizada. Moramos aqui e mal saímos. Trabalho e lazer podem ser achados aqui mesmo: escritórios, ginástica, locadora de filmes, parque aquático coberto, salão de jogos, restaurante, lanchonete, bar dançante, café, salão de beleza, parquinho infantil, lojas de conveniência. São vários os tipos de empregos que podemos ter, graças à internet, trabalhando na segurança de nossos cubículos pessoais. As antenas que nos conectam ao mundo ficam num último andar tão fortificado que é mais fácil chegar nele de helicóptero do que por elevador ou pela escada. Obviamente nem todos têm a sorte de trabalhar dentro de casa: os que se dedicam a atividades braçais precisam sair, outros saem porque já não confiamos que os de fora entrem trazendo-nos entregas de comida, remédios ou outras coisas. Faz quinze anos que este prédio existe, investi nele economias de duas vidas: a minha e a de minha mulher. Tenho quarenta e seis anos, nenhum filho, um emprego péssimo.

Sou guarda de segurança. Agora sou guarda de segurança. Escolhi este emprego, talvez na espera de que o risco de morrer me faça querer viver melhor. Melhor, não mais. Saio de casa diariamente, quando o sol já está descendo pelo horizonte como uma bolha de ar em uma janela manchada de sangue, do sangue de Joana, do sangue que espirrou de seu peito. Joana, meu mais precioso tesouro, guardado devidamente numa urna de prata, selada com cera, no fundo de uma gaveta, no fundo de meu coração. Sou guarda de segurança, desde que não consegui proteger Joana.

Digo que «saio», mas não exatamente assim. Um túnel me conduz do térreo a uma estação de metrô. Vários túneis, vindos de outros grandes prédios, que se erguem como uma floresta de árvores sem galhos no planalto. Edifícios para assalariados, como o meu, não são mais construídos a torto e a direito, mas apenas onde chega a linha subterrânea, cada vez mais difícil de expandir. A estação quase nunca está cheia, raramente está deserta. Sei que todos os que nela aparecem são controlados e escolhidos, observados e medidos. Mas quando ela está vazia eu tenho medo de olhar no rosto de quem esteja lá comigo. Tenho medo porque o mal pode ser tanto um mendigo quanto um vizinho. Mendigos tem olhares perdidos e mentes amargas. Vizinhos têm armas.

O trem sai da estação e passa por um pátio ferroviário imenso, onde se encontram trilhos que vêm de outros lugares, levando gente como eu, e gente diferente. Os trilhos eletrificados com milhares de volts impedem que os fantasmas que perambulam pelos pátios, sob a luz cancerígena do sol, tentem entrar. Os trens têm anteparos de metal, desenhados para erguer e atirar para o lado os obstáculos que podem ficar sobre os trilhos. Só raramente vejo algum, quase sempre tenho pena.

Mendigos, prostitutas e marginais se aglomeram por ali, agitando bugigangas, braços e armas na esperança de fregueses, clientes, vítimas. Meu trem não para nestas estações externas, suas janelas à prova de bala estão sempre cerradas. Mas há os outros trens, vindos dos bairros pobres, com janelas quebradas, com a obrigação de parar em cada estação. Eles fornecem a razão de ser destas pessoas que se derretem sob o sol.

A cidade hoje é muito diferente do que era no século em que nasci. As largas avenidas não existem mais. O trânsito não funciona mais. O louco que tentasse utilizar um veículo de superfície pelas ruas não chegaria longe: ou seria vítima de uma colisão, pois já não há sinais nem regras, ou será atacado por facínoras. Não há mais um mercado para carros roubados, mas o motorista pode ter uma moeda no bolso, para justificar a bala que o bandido atira, e o metal da máquina vale algo para a reciclagem. Nem se comente o que pode acontecer a tal incauto se esbarrar em um dos milhares de pedestres que vagueiam por todo lado sem seguir a mais simples regra de bom senso: estranhos frutos pendem, às vezes, das raras árvores, frutos que frequentemente dão também em postes. Mesmo sobrevivente a todos esses contratempos, o infeliz que tente brincar de motorista não chegará ao fim da viagem na posse de todos os seus bens, quiçá nem de suas roupas. Então, tragédia maior, sem seus trajes cidadãos, seus documentos, seu cartão, seu crachá… Como poderá provar que pode entrar nas zonas reservadas, retornar à própria casa?

Os únicos veículos que andam pelas ruas pertencem à própria gente que nela ainda vive. O tráfego é irracional e os acidentes acontecem o tempo todo. Discussões e dúvidas se resolvem a bala ou a faca. Veículos inutilizados são abandonados pelas calçadas, depenados até os ossos de metal ficarem sob o sol, depois serrados aos pedaços, como a carcaça de um animal grande atacado por formigas carnívoras.

No passado a polícia ainda vinha buscar os raros e ousados criminosos que rompiam os sistemas de segurança. Mas isto foi ficando cada vez mais difícil, a ponto de cada agente ter que vir debaixo de uma armadura. Mesmo em grupos e portando armamento pesado era frequente que voltassem carregando um cadáver. Essa dificuldade de abordar o habitat dos bandidos levou à solução natural: cercas melhores e a ordem de matar quem não esteja autorizado a estar onde esteja. A ordem é que o bandido não chegue e voltar, assim não é preciso ir buscar.

Eu me lembro vagamente, quando ainda era uma criança, de uma época em que as casas tinham portas para as ruas e era possível chegar em todos os lugares. As pessoas costumavam usar bicicletas móveis como transporte: eu mesmo tinha uma prometida para quando meu pai ganhasse um aumento. Mas o agravamento da situação levou o governo a isolar certas áreas das outras, criando fortalezas cada vez mais densas. Compartimentos cada vez mais estanques. A única área livre onde se pode ainda ter a sensação de andar pelas ruas é o centro. Ele foi cercado por um muro alto de pedra, envolto por um campo minado, com guaritas de segurança e luzes fortes. No centro ainda se pode andar por ruas, mas não em bicicletas móveis: há muita gente que precisa andar, muito transporte. Não há espaço para isso, seria estranho perder pedalando um tempo que poderia ser cortado ao meio ao pegar a esteira certa e o elevador direto. Ninguém por lá anda a esmo: todos têm uma direção e cada um conhece o seu caminho, o seu restaurante. Mesmo no centro é relativamente perigoso andar à toa.

Mas se você for rico o bastante, poderá alugar um carro elétrico, com uma carroçaria que imita os antigos sedãs de luxo, e fazer um passeio, romântico ou familiar, pelos parques e praças. Alguns ao lado do centro, outros um pouco mais longe, mas unidos a ele por estreitas passagens por onde se pode ter a antiga sensação de dirigir em uma rodovia sob o sol. No parque ainda se pode tomar sorvete, pedalar no lago um barquinho em forma de cisne, sentar à sombra de uma árvore e desfrutar de minutos relativos de silêncio. Anualmente faço isso. No silêncio entre as árvores escuto a voz de Joana, lembro de quando nos conhecemos num parque desses, numa época em que ainda era aberto.

Pouca gente vive no centro. Somente alguns saudosos do passado, que querem ter a sensação de um jardim privado, de uma varanda para a rua ou da contemplação do trânsito. Custa caro, o conforto é menor que em qualquer apartamento, mas os que ainda insistem dizem que vale a pena. Eu pagaria o aluguel de uma dessas casas antigas se pudesse, para ter meu próprio carro elétrico na garagem, um canteiro de rosas na frente e uma churrasqueira no fundo para passar domingos em família. Pagaria se tivesse uma família. Nenhum aluguel seria caro para isso.

Em vez disso eu vivo nas entranhas de um edifício sem alma. Para onde volto cada noite em busca do fantasma de Joana. Volto, deito-me na cama sem fechar a janela e tento sentir o frio, deixo a luz acesa para dissipar a treva. Não sei aonde pode estar Joana, certamente não em meus sonhos. Trabalho com estranhos, minha tarefa atirar nos que tentam entrar. Tenho vergonha deles, tenho vergonha disso. Guardo meu uniforme num armário no serviço para que ninguém veja o que sou. O monstro que sou. Não salvei Joana, mas mato os sonhos de outras pessoas.

Não sei quanto tempo ainda vou aguentar. A alegria é uma bolha de ar que já chegou no parapeito da janela. O sangue de Joana escorre lentamente, me lembrando que em breve eu vou também, e não haverá nenhum Paraíso para mim, monstro que sou. Arrasto minha carcaça pelo mundo, por entre corações vazios e olhares gelados. Solitário. Essas pessoas me olham como quadros nas paredes. Mas seus olhares me seguem, às vezes, fazendo-me sentir que estou nos corredores de uma mansão mal assombrada. Um coração sem resposta, um homem sem filho, sozinho com suas lembranças. Talvez essas pessoas me reconheçam. E nenhuma sequer me odeia.


11
Out 11
publicado por José Geraldo, às 22:28link do post | comentar

Há anos um parágrafo escrito por Howard Phillips Lovecraft não me sai da cabeça. Já o devo ter traduzido uma dezena de vezes, para postar em duas ou três dezenas de lugares. Aqui vai a décima primeira tradução, como introito deste artigo que, mais uma vez, me alijará de alguns amigos e leitores:

A coisa mais misericordiosa no mundo, creio, é a incapacidade da mente humana para interligar todos os seus conhecimentos. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio aos mares negros do infinito, e não fomos feitos para ir muito longe. As ciências, cada qual puxando em uma direção, até agora nos causaram pouco mal, mas um dia a montagem de todo o conhecimento desconexo abrirá tais terríveis visões da realidade, e de nossa precária posição nela, que enlouqueceremos com a revelação ou fugiremos da luz fatal, para a segurança e a paz de uma nova idade das trevas.

Lovecraft escreveu no entre-guerras, uma época em que o mundo estava muito pessimista — e com plena razão: treze anos após terem sido escritas estas palavras o mundo mergulhou na pior guerra de todos os tempos, uma que, em seus efeitos de longo prazo, praticamente destruiu a civilização ocidental. Por paradoxal que isso possa parecer, a orgia de massacres e destruição da Pior de Todas as Guerras deu ao mundo um otimismo tal como nunca se vira, e a humanidade embarcou num sonho de grandeza extraordinário: sonhamos em conquistar as estrelas, colonizar sistemas solares, ser mestres de galáxias. Lênin não dizia que o capitalismo, se pudesse, anexaria os planetas? Pois bem, a utopia do século XX sonhava exatamente com isso.

Mas as palavras de Lovecraft, mesmo esquecidas de quase todos, continuavam profeticamente denunciando a vaidade de nossos sonhos. E cada nova descoberta da ciência foi pondo uma pá de cal a mais na cova da utopia. Sonhamos, sim, com as estrelas, mas elas estão distantes de nossas mãos, somos crianças brincando numa poça, sonhando agarrar as estrelas que se refletem na água. Sonhamos com uma maravilhosa máquina prateada que nos eleve e nos leve além de nossos horizontes cinzentos, tal como na canção do Hawkwind:

Acabei de passear em uma Máquina Pratada / e ainda estou me sentindo tonto. / Você gostaria de também ver-se transportado / ao outro lado do céu? / Eu tenho uma Máquina Prateada / que voa diagonalmente no tempo. / É um aparelho eletrizante / vindo exatamente de meu signo do zodíaco. / Tenho uma Máquina Prateada / Tenho uma Máquina Prateada

Que tal canção tenha feito grande sucesso nos anos setenta não é nenhum espanto: era o auge do delírio espacial do homem.

Se todos nós pudéssemos ajuntar os cacos partidos do conhecimento humano, já teríamos visto a enormidade do desafio: a extensão do cosmos vai muito além do que o intelecto medíocre pode conceber, mas no jargão dos fãs de ficção científica fala-se em anos luz como se fossem «quilômetros espaciais». De certa forma, são, mas nós somos para tal quilômetro fantástico menos do que formigas na estrada. Estrelas comparáveis ao sol existem nas nossas proximidades, a meros anos luz. Elas parecem, no entanto, minúsculas e frias porque meros anos luz transformam o Sol em uma estrela a mais. A maioria das «estrelas» que vemos no céu são super gigantes, agrupamentos de estrelas ou até galáxias distantes. Como pudemos sonhar romper estas distâncias que transformam sóis em velas? Somente com ingenuidade, e ignorância.

Mas a orgia de tal sonho teve um fim: o mundo de hoje não consegue mais reunir tantos excedentes e obter verbas em escalas suficientes para desenvolver projetos semelhantes ao que levou o homem à Lua. Com a tecnologia que temos, a repetição do feito seria quase trivial: os computadores de bordo das naves Apollo não tinham a capacidade de uma calculadora científica de hoje. Ir à Lua seria fácil, mas ainda não temos nada de útil para fazer lá. Então o projeto espacial se torna obsoleto, desnecessário. As distâncias são muito grandes, o espaço é muito frio. Nós fomos lá fora, vimos os mares negros do infinito e estamos presos na praia. São vários os fatores que nos limitam: nossas almas, nossos corpos, nossa tecnologia, nossa finitude.

As leis da física estão contra nós: basta fazer uma conta simples, como a que fez Poul Anderson, em seu romance «Tau Zero». Mesmo sem a resistência oferecida pelo ar, mesmo ainda beneficiados pela inércia, no espaço nós precisamos de quantidades imensas de energia para empurrar nossas naves meteóricas. Cada aceleração adicional exige mais energia, uma dose de energia que cresce exponencialmente a cada acréscimo aritmético da velocidade. A energia necessária para acelerar da metade a dois terços da velocidade da luz é maior do que toda a energia necessária para chegar à primeira. E uma vez tendo chegado a 90% (algo que ninguém mais crê ser possível) qualquer aceleração adicional já exigiria uma quantidade praticamente infinita de energia. Mais do que isso, devido à relatividade do espaço-tempo, uma nave tal, supondo que seja possível a um objeto físico real acelerar a tanto, estaria de tal forma afetada pela velocidade que no espaço de uns poucos anos para seus tripulantes transcorreria um tempo maior que a atual idade do universo. Nossas almas ficariam para trás, ainda que nossos frágeis corpos resistissem a tudo isso.

E falando de frágeis corpos, não cessam de acumular dados sobre os efeitos negativos da permanência no espaço. Passada a fase romântica em que era interessante usar toneladas de explosivos para atirar fora da atmosfera frágeis bolhas de metal e vidro levando corajosos (ou loucos?) indivíduos que sonhavam com a posteridade, hoje não parece haver muito sentido em expor corpos humanos às condições da órbita: os ossos se fragilizam, os músculos definham, o labirinto se atrofia, o sangue fica estranho. Não faz um ano descobriu-se que os astronautas que permanecem no espaço mais do que alguns dias retornam com a visão afetada também. Quanto resistiria o frágil corpo humano em uma viagem realmente dura, de anos ou décadas pelo espaço vazio, rumo ao nada? Chegaríamos sem ossos, sem músculos, cegos, desequilibrados. Cegos e desequilibrados talvez já estejamos.

Existem tecnologias teóricas que poderiam vencer tais obstáculos. Fala-se em hiperespaço, buracos de minhoca, gravidade artificial. Fala-se de tais coisas tal como na idade média se falava em carruagens mágicas, feitiços do tempo, pedra filosofal, panaceia universal. Tal como naquela época, falamos destas coisas sem ter a mínima ideia de como poderiam ser obtidas. Sob certo aspecto, o romance medieval de cavalaria mencionando o bálsamo cura tudo e o fogo grego é uma obra de ficção científica tão legítima quanto uma moderna, que fale sobre viagens por buracos de minhoca, em naves maravilhosas, rumo a planetas desconhecidos. A vassoura mágica de uma feiticeira em seu sabá é tão científica quanto o disco voador do alienígena (bom ou mau) que aparece do nada, para punir ou pregar. Cada idade tem seus demônios e seus deuses, e como disse Clarke, tecnologia suficientemente mais avançada não se distingue de mágica.

Sim, meus amigos. Lovecraft tinha razão. Não fomos feitos para ir muito longe. Sonhamos apenas com isso, e nossos sonhos hoje não são mais com anjos que nos levem para ouvir a música das esferas, mas com inventos fantásticos que nos levem desse mundo cada vez mais vazio. Mas não adianta sair: este é, ainda, o único mundo que nós temos.


01
Out 11
publicado por José Geraldo, às 14:10link do post | comentar
Este texto continua a história iniciada em janeiro, aqui.

A reunião dos tripulantes durou preciosas horas, durante as quais Kenji permaneceu mais alerta às vaguidões do espaço — com seus perigos e desejos — do que aos sons contraditórios emitidos pelos aparelhos fonadores de tantos humanos confusos. Ouvir aquela algaravia não trazia-lhe nenhuma informação definida, diferentemente do vácuo, onde podia ver a dança dos planetas daquele sistema tão calmo, tão semelhante e ao mesmo tempo tão diferente em relação a um distante outro, que somente subsistia nos registros mais antigos de sua memória de autômato.

Enquanto seus sensores mais numerosos capturavam a dança dos astros, alguns percorriam, porém, os fios e dobras dos corredores construídos para as necessidades tão orgânicas dos seres vivos que funcionavam naquela nave. Notou então que, embora ele mesmo e alguns outros da manutenção estivessem livremente investigando, Andréa estava, com todos de sua classe, devidamente contida em um compartimento estanque. Mesmo toda a ferocidade da chave de segurança não lhe impediu de ter consciência disso. Estava presa.

Talvez os humanos não desejassem que os cibernéticos compartilhassem de decisões que certamente seriam tomadas. Todos eles, pensou Kenji, num esforço para subjugar a chave de segurança que tentava confundir seus processos, falham em perceber que alguns humanos já se tornaram meio autômatos, tanto quanto alguns autômatos já se aproximaram da humanidade. Com tanto tecido orgânico aplicado à máquina, com tanta parte mecânica implantada nos corpos.

A reunião terminou fatalmente. Tinha de terminar em algum momento. Elegeram um novo capitão. Embora a Tenente Xu tivesse tomado todas as iniciativas, havia alguma coisa a respeito dela que não inspirava confiança na maioria dos humanos presentes na nave, talvez a cor do cabelo ou o formato dos olhos ou o modo como articulava os fonemas. O novo capitão se chamava Brown e tinha os dentes amarelos e os olhos imersos em profundos círculos roxos. Era velho e triste, curvado pelo peso do dever durante as décadas em que se revezara no serviço desperto. Kenji sabia muito bem que era uma honra merecida. Brown tinha sacrificado a própria juventude, o próprio futuro reprodutivo e a possibilidade de colonizar o novo planeta — tudo isso pelo dever de vigiar a nave enquanto a maioria dormitava nos casulos. Mas apesar disso, estava antigo demais. Muitos achavam que Brown que ele não estava mais em condições de exercer o novo dever. Mesmo um autômato compreendia o conceito: sabia que entre os humanos não basta dar manutenção, pois algumas peças não são substituíveis. Mas Kenji também sabia que não tinha sido somente por uma questão de honra que a jovem Xu fora preterida. 

A Tenente Xu deixou a sala de reuniões e dirigiu-se a um dos cubículos reservados para habitação do oficialato desperto. Ali trancou-se, mas o autômato a pôde ver através dos monitores infravermelhos. Viu-a esmurrar a parede, ouviu as vibrações de sua voz durante vários minutos. Então ela tomou um banho, vestiu outro uniforme, limpo, do qual arrancou cuidadosamente sua insígnia, e dirigiu-se a algum lugar dentro da parte inferior da nave, na região onde trabalhavam os responsáveis pela manutenção.

Brown, enquanto isso, cercou-se de um grupo de influentes oficiais, recém-saídos de seus casulos de hibernação, e passou a deliberar o que fazer. Era preciso, inicialmente, que o propósito da missão não fosse perdido nunca de vista — mesmo porque não havia outro possível. Enquanto Kenji distraidamente calculava as órbitas dos astros, uma grave decisão foi finalmente tomada: iniciar a exploração do planeta e tentar manter os aspectos controversos disso ao alcance do menor número possível de pessoas. Era perfeitamente racional: hibernar de novo quantos fosse possível, assim economizar alimento. Menos pessoas despertas também significavam menos opiniões, menos discussões. E enquanto isso, quanto mais soubessem do planeta, melhor. Certas pessoas realmente não precisam saber de certas coisas. É perfeitamente racional.

Kenji sabia, e os humanos mais esclarecidos também, que não havia condições de segurança para simplesmente enviar uma nave de transporte. As nuvens que recobriam aquele planeta podiam ocultar mais perigos do que simplesmente radiação. Embora histórias de animais transformados em monstros pela radioatividade fossem tolices infantis, havia uma real possibilidade de vírus e bactérias não esterilizados na guerra nuclear. Estes minúsculos monstros seriam mais terríveis do que toupeiras carnívoras gigantes, ou que estranhas “colmeias” de baratas assassinas. Por tudo isso, ainda que a Chave de Segurança cortasse entre seus pensamentos como uma navalha, atrasando o processamento de suas conclusões, Kenji equacionou que deveriam enviar algum autômato, acompanhado de um dos cibernéticos. Era uma escolha natural: a parte orgânica deles reagiria ao meio ambiente tal como o corpo de um humano o faria, desta forma se poderia avaliar a possibilidade de sobrevivência no planeta cemitério que orbitavam.

Tenente Xu teria gostado de saber, se ainda estivesse pensando em decisões de comando, que Andréa se viu forçada a entrar no habitáculo do transporte, quase querendo oferecer resistência, como se fosse humana e tivesse livre arbítrio. Àquela altura a Chave de Segurança não conseguia mais subjugar, com suas ondas de dor artificial, a fervilhante computação que se processava em seus múltiplos circuitos, distribuídos pelos diversos gânglios de silício que conjugavam sua personalidade metálica, e Kenji compreendeu o sentido da ironia, de uma forma quase cruel.

Uma convocação eletrônica interrompeu seu escrutínio das órbitas: queriam-no no transporte também. A Chave de Segurança conseguiu confundi-lo novamente, e ele obedeceu, claudicante. Quando conseguiu acostumar-se ao nível 42, já estava próximo ao “bote” e qualquer reação teria despertado profunda apreensão nos humanos. De qualquer forma, ele não teria precisado da ação dos dispositivos de obediência: ele queria ir. Alguma coisa, que em nós poderia ser chamada de curiosidade, o impelia. E os robôs, inconscientes do significado da morte ou da dor, não a têm temperada por nenhum desses receios.

O transporte era não retornável. Os que haviam planejado a missão da “Epifania” não supunham que fosse jamais necessário “voltar”. Mesmo porque, Kenji sabia, não haveria para onde. O autômato aproximou-se dele, lentamente, analisando-o com atenção meticulosa. Sempre soubera da existência de tais botes, mas nunca se aproximara de nenhum: afinal, era um piloto, e não um reles faxineiro, para ficar perambulando por cada rego e desvão da imensa espaçonave. Tendo completado sua avaliação do bote, soube por onde entrar e como instalar-se em segurança. Conectou suas interfaces, sentiu o pulsar da fraca energia que a nave emprestava àquele precário transporte, fez o equivalente ao gesto humano de engolir em seco e entrou em modo de espera.

O transporte foi empurrado até uma das docas de saída. Enquanto as escotilhas eram preparadas, Kenji contemplou Andréa, que parecia desligada, tal como os humanos ocasionalmente ficam, mesmo quando fora de seus casulos. Algumas marcas na sua pele normalmente imaculada sugeriam algum acidente em que estivera recentemente envolvida. Mas os processos de cura eram rápidos e Chave de Segurança conseguia impedir que Kenji refletisse sobre quaisquer implicações.

A escotilha abriu e o transporte foi ejetado pelo espaço. Tão logo cruzou o limiar do casco, recebeu o jato potente do vento solar daquele astro ainda tão jovem. Os painéis coletaram essa energia e a armazenaram em suas baterias. Alguns motores quânticos foram acionados, em jorros breves, que corrigiam o curso e aproveitavam a inércia. E lá ia o transporte, num movimento quase inaparente, uma lentidão fantasmagórica sobre a densa camada de nuvens branco-acinzentadas. As interfaces pululavam com dados, mas a precariedade do processamento nativo impedia que eles chegassem até Kenji de uma forma coordenada. Em vez disso, as informações eram repassadas para seus poderosos cérebros, que as processavam rapidamente, ocupando totalmente sua atenção com tentativas de entender o que havia. Nesses momentos em que o êxtase da informação o levava a tal orgasmo eletrônico, ele não conseguiria ter noção de mais coisa alguma, mesmo uma que gritasse e esmurrasse no compartimento traseiro.

Romperam o teto de nuvens já com a fuselagem rubra do atrito de reentrada. Mas Kenji usou habilidosamente os motores para corrigir o curso e aliviar a queima. O transporte acionou várias vezes os retrofoguetes, manobrou pesadamente na escuridão do lado noturno do planeta, pairou paquidermicamente e, por fim, deixou-se pousar como um elefante sem asas em um platô qualquer, escolhido por Kenji a partir do processamento da floresta de dados confusos que pudera ler.

Os procedimentos de saída começaram, bem devagar. O rádio foi aberto, mas não houve nenhum sinal além da estática. Microfones exteriores só capturaram o uivo dos ventos. A cúpula de proteção do piloto destravou, deixando entrar o ar denso e frio do planeta. Para os autômatos puros, como Kenji, “frio” não era um dado significativo, a menos que interferisse no funcionamento dos sistemas. E duzentos e sessenta graus Kelvin não chegavam a tanto. Tratou de desconectar-se da quase inútil carcaça do transporte e, pela primeira vez em centenas de anos de existência, tocou com suas patas metálicas um “chão” que não era também feito de metal, experimentando uma gravidade que não era artificial e respirando uma atmosfera que não era sintética.

Andréa saiu de seu habitáculo tremendo curiosamente, envolta em tecidos pesados, que dificultavam os seus movimentos. Era realmente uma coisa frágil, pensou Kenji: com somente dois membros preênseis e tão pouca resistência ao ambiente. Mas os humanos sabiam bem porque precisavam de bonecas de carne como aquelas, e diante das circunstâncias da chegada, até que ela finalmente se revelava útil.

A atmosfera parecia opaca e anormalmente úmida, mas o isolamento dos mecanismos de Kenji era duplo e estava intacto. O autômato tateou receosamente por aquele ar leitoso e calmo, sentindo a excitação da novidade. A Chave de Segurança se transformara apenas nisso, no receio do novo, do diferente, do perigoso. Não se importava com Andréa, ela que ficasse no transporte se quisesse. Mas ele logo esfriaria e começaria a decompor-se, sem o auxílio precioso dos microrreparadores. Se havia alguma esperança para um ser tão estúpido, teria de ser ao lado da presença protetora dele, que já se sentia tão adaptado.

O transporte tinha pousado sobre uma espécie de platô não muito alto, coberto de neve muito rala e poeira muito fina. Estava ainda escuro, mas de um dos lados o céu se tingia de tons múltiplos de vermelho, roxo, violeta e amarelo. Um difuso globo tentava aparecer entre os braços agitados das nuvens. Aquele sol alienígena pareceria um comprimido efervescente no fundo de um copo de água — se Kenji jamais tivesse visto tal cena. Não havia vegetação à vista, somente raros galhos secos. Revistando os dados que tinha em registro, o autômato considerou que tal lugar havia sido justamente escolhido por ser deserto. Pousara deliberadamente em um lugar desabitado. Na possibilidade de ainda haver vida em tal planeta, a intenção fora de evitar qualquer interação prematura, qualquer contato antes de terem sido coletados conhecimentos suficientes.

Kenji vasculhava todas as baixas frequências de rádio. Povos primitivos as haviam utilizado desde muito cedo para transmitir dados. Tais frequencias teriam tido dificuldade para romper a camada de nuvens, vencer a ionosfera e chegar à “Epifania” em órbita. Teriam sido ignoradas, então. Mesmo estas, porém, mantinham o silêncio das sepulturas. Aquele planeta, se de fato possuía alguma forma de vida, estaria contemporaneamente limitado a formas pouco evoluídas tecnologicamente, ainda desconhecedoras do rádio, ou a formas tão evoluídas que haviam abandonado toda comunicação por esse meio — o que, obviamente, não fazia nenhum sentido.

Não que a atmosfera ajudasse, instável e cheia de radiação. Aquelas nuvens densas estavam pejadas de estática e tornavam faixas inteiras completamente inutilizáveis. Diante de tal quadro, se ainda existisse vida inteligente usando alta tecnologia, ela poderia comunicar-se por cabo. Não era essa, no entanto, a impressão que o autômato formava em seus circuitos: aquele planeta parecia mesmo estar, como temiam os humanos, esterilizado.


23
Set 11
publicado por José Geraldo, às 20:20link do post | comentar | ver comentários (1)

Denilson Ricci, responsável pelo Site Lovecraft está prestes a lançar ao mundo um dos mais ousados projetos editoriais independentes dos últimos tempos, talvez o mais ousado da década até agora. Movido apenas pelo trabalho de voluntários (tradução, revisão, ilustração, projeto gráfico, catalogação) e com a proposta de venda a um grupo fechado de compradores, ele pretende dar à luz um volume que deve, em breve, ser referência para autores brasileiros de ficção científica e horror: a primeira edição abrangente das obras de H. P. Lovecraft no Brasil.

O objetivo é ambicioso: reunir as obras mais significativas do mestre do horror cósmico, tanto em prosa quanto em verso, em um volume ilustrado e acompanhado de prefácio e de uma longa biografia do autor. Espera-se que o volume tenha mais de 400 páginas! Além disso, a edição será em formato grande, em papel de primeira qualidade, em vez das edições de bolso que normalmente são reservadas para os gêneros “menores” (como a ficção científica e o horror) pelas editoras tradicionais.

Esta edição foi possível porque toda a obra do autor encontra-se em domínio público no Brasil desde 2007, considerando que ele morreu em 1937. Mas de nada adiantaria a obra estar disponível se Denílson não conseguisse reunir, através da internet, uma variada equipe de pessoas de todas as partes do país, das mais diversas profissões e interesses. Tradutores, revisores, críticos, biógrafos, desenhistas, designers. Coordenando um grupo de dezenas de pessoas, separadas pelas distâncias físicas e culturais que a Internet, e apenas ela, permite vencer, o editor nos traz a esse momento glorioso, em que nasce, quase de um parto, um livro destinado a ser referência pelos anos que hão de vir.

Sinto profundo orgulho de ter colaborado nesse trabalho, com a tradução de nada menos que quatro contos do Mestre, dos quais três devem ser aproveitados nesse primeiro volume:*

  • A Busca de Iranon (The Quest of Iranon),
  • Um Sussurro na Escuridão (A Whisperer in Darkness),
  • O Habitante das Trevas (The Haunter of the Dark)
  • O Depoimento de Randolph Carter (The Statement of Randolph Carter)

Visite o Site Lovecraft para mais informações, e prepare alguns cobres para comprar, até janeiro ou fevereiro, a primeira edição de luxo e independente das obras de H. P. Lovecraft no Brasil.

Sugiro fazer já a sua reserva, pois a tiragem será restrita aos que encomendarem. Eu já encomendei OS MEUS.

*Sim, ouso dizer “primeiro volume” porque seria mais do que apropriado usar o conhecimento já adquirido e fazer um segundo volume. O autor tem obras em quantidade suficiente para alimentar várias repetições desse projeto. E eu ainda sonho, muito em traduzir para o português The Dream-Quest for Unknown Kadath.


26
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 20:36link do post | comentar

Eduardo Galeano — jornalista, cartunista e escritor uruguaio — publicou uma série de coisas que sonhava acontecessem no mundo após a virada do século. Considerando a natureza da prosa deste autor, o tipo de coisa que ele sonhava não é inesperado; mas para muitos soará estranho, pois há os que pensam que este autor se limitou às Veias Abertas da América Latina, obra que a esquerda toma como bíblia e a direita renega como se fosse um grimório satânico. Por causa do peso deste livro (que tinha a intenção de realmente pesar) o resto da obra onírica de Galeano às vezes passa despercebida, ao meu ver imerecidamente.

No texto em questão, publicado ainda quando este século era distante, o autor uruguaio tentou nos pintar um mundo onde os sinais estivessem trocados, e de uma forma estranha o texto nos deixa com a sensação de que uma inversão total de valores nos faria mais felizes. Da impossibilidade de tal feito ter lugar, surge-nos a dúvida filosófica: afinal, somos felizes como somos?

O texto original de Galeano pode ser conferido aqui. De minha parte, resolvi fazer um aparte ao que ele escreveu, e adicionar alguns itens, remover outros, reescrever alguns, resultando no seguinte:

No meu mundo ideal os automóveis seriam atropelados pelas pessoas e teriam de refugiar-se, temerosos, nas ruas afogadas por calçadas que cada vez se alargam mais. O ar seria poluído apenas pelo perfume das árvores e pelo cheiro das moças. As pessoas não seriam possuídas por seus bens, nem programadas por seus computadores, nem compradas pelos mercados nem observadas pela televisão. Que, aliás, seria tão importante nas casas quanto o ferro de passar ou a lavadora de roupas. As pessoas não trabalhariam para ganhar o seu sustento, mas para sustentar os seus sonhos. Não se prenderia nunca aos que recusassem servir às Forças Armadas, mas aos que sonhassem servir. Prostitutos seriam apenas os que sentissem prazer na promiscuidade. Seria incompreensível mencionar que certos conceitos seriam incompreensíveis para certos povos. Loucos seriam chamados aqueles que negassem aos outros o direito de viver suas loucuras. Nenhuma pessoa teria crédito por dizer-se representante de Deus, a ponto de dizer aos outros o que fazer e o que não fazer. As pessoas sentiriam saudades apenas de coisas e seres que conheceram, e não de animais e seres extintos pela ganância humana. A polícia serviria para proteger ao povo, e não para proteger o governo do povo. E todos viveríamos cada dia como se fosse simultaneamente o primeiro e último.


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