Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
02
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 16:35link do post | comentar | ver comentários (1)
Semanas depois de protagonizar o terceiro escândalo sucessivo relacionado ao Prêmio Jabuti, o “Jurado C”, o crítico paulista Rodrigo Gurgel, finalmente deu a sua versão dos acontecimentos. Foi justo a imprensa dar-lhe voz, depois das semanas que passou sendo malhado como judas em Sábado de Aleluia. O crítico teve sua oportunidade de dar suas opiniões, justificando-se ou não. Muita coisa ficou esclarecida, mas em outros casos a emenda foi maior estrago que o pé quebrado do soneto. Com a autoridade de ser a nulidade literária que sou, atrevo-me a comentar o que ele disse, mais uma vez me esmerando em meu trabalho de queimar todas as possíveis pontes que me fizessem cruzar o Rubicão literário.

A entrevista de Gurgel começou, como não poderia deixar de ser, com a justifica de seu voto. Continuo dizendo que a justificativa não convence, considerando que nenhum trabalho literário sério merece zero, porém, se não é convincente em relação à necessidade das notas zero, ou próximas de zero, Gurgel pelo menos explica seus critérios para alinhar os romances de acordo com a sua preferência:
Quando eu abri o papel, a primeira coisa que me chamou a atenção [na lista de finalistas] foi o livro do Wilson Bueno ["Mano, a Noite Está Velha", ed. Planeta], que eu havia colocado em último lugar, apesar de ter dado uma nota de oito e pouco. Se um livro que você colocou em último lugar está em primeiro na lista, a primeira reação é dupla: você pensa em reler alguma coisa do livro, para ver se o julgamento continua de pé.
Gurgel poderia ter continuado a pôr o livro em último lugar, sendo coerente com o que votara na primeira fase. Porém, mais do que classificar os livros de acordo com a sua preferência, o que é, na minha humílima e ignorante opinião, o papel de um jurado, o jurado resolveu ir além e confessa ter explorado deliberadamente as regras do concurso de forma a decidir o resultado segundo os seus critérios.

Ocorre que existe uma falha do processo de escolha do Prêmio Jabuti: ao permitir que os jurados, na segunda fase, tenham acesso à ordem de classificação obtida pelos finalistas, segundo a nota obtida na fase anterior, o sistema de escolha acaba induzindo os jurados a avaliar, na segunda fase, de uma forma subjetiva, atribuindo notas segundo sua “estratégia” para influir na classificação, em vez de imparcialmente atribuir conceitos conforme sua opinião a respeito de cada livro. Neste sentido, Gurgel se assume como o “malandro” que explora as falhas do sistema para seus próprios objetivos. No caso, objetivos que significam usar o seu voto para, isoladamente, determinar o resultado final. Não sou eu que estou dizendo, foi ele quem disse:
Essa mudança das notas deveria ter sido pensada. Quem estabeleceu a nova regra não fez as contas. Não pensou: “bom, quais são as situações que podem ocorrer?” Ou então acreditou que todos os jurados votariam sem compromisso.
A falha da organização do prêmio Jabuti foi, segundo o jurado, acreditar na imparcialidade dos jurados, acreditar que os jurados votariam sem compromisso. Esta também é a falha dos que não eletrificam as cercas de suas casas, dos que não põem trancas nos seus carros, dos que contam segredos para amigos, das namoradas que se deixam filmar por seus namorados. É, enfim, a velha fraqueza humana de confiar na confiabilidade do próximo. Em um mundo ideal ninguém precisaria se preocupar, porque as pessoas agiriam sempre com ética. Mas Gurgel não se prende a esses limites: “se me pedem para julgar e me dão os critérios, eu uso os critérios.”

O “jurado Carminha”, como chegou a ser apelidado nas redes sociais, estranha que escritores tenham estranhado as notas estranhas que ele atribuiu (sic):
O que, aliás, é o que mais me chama a atenção nas críticas que recebi. E as mais violentas foram de escritores. Eu acho interessante. Em nenhum momento passa pela cabeça deles que eles poderiam ser um dos livros escolhidos por um jurado que luta pelos livros de que gosta. Um jurado que não teme se comprometer.
Como Gurgel não é escritor, sua capacidade imaginativa é relativamente limitada. Se escritor fosse, saberia que por nossas cabeças certamente passou este cenário, de sermos beneficiados por um jurado como ele. Bem, eu já disse qual seria a minha gratidão a uma escolha segundo tal critério. Mas a questão é que a maioria de nós imagina, com nossa fértil criatividade, uma possibilidade muito mais interessante para o uso da “Estratégia Gurgel” (que entrará para a história com a mesma notoriedade da “Lei de Gérson”).

Imaginemos, apenas hipoteticamente, que a “editora fulana”, usando de argumentos exclusivamente artísticos e éticos (claro), “convença” algum jurado a induzir a escolha do livro “sicrano” do escritor “beltrano”. Neste caso, claro, em vez de usar seus poderes para justiçar os fracos e oprimidos da literatura, o hipotético jurado estaria apenas fazendo o jogo bruto das grandes casas literárias e seus “nomes de peso”. É por causa disso que os escritores estranharam o que houve, é por causa disso que eu repudiaria um prêmio assim escolhido, mesmo que fosse eu o escolhido, e é por isso que tenho a firme opinião de que concursos literários não avaliam o mérito das obras, mas apenas revelam os movimentos tectônicos da luta pelo poder no sistema editorial. Briga de cachorro grande, onde um vira latas provinciano como eu dificilmente entra, a menos que concorde em fantasiar-se de palhaço, segundo o estereótipo que se impõe das capitais.

A questão, seca e simples, é que, a partir do momento em que se detecta a existência de uma falha no sistema, e de alguém que a utilizou com sucesso para obter o que queria, não há como fechar a Caixa de Pandora. Ou a regra muda, ou ano que vem todos os jurados votarão com estratégia, mesmo aqueles que não pensam que a sua opinião deva prevalecer acima das demais. A falha não está na permissão de se usar qualquer nota, de zero a dez, mas, sim, em revelar aos jurados os livros escolhidos na primeira fase segundo uma ordem de classificação, que revela a tendência de voto do júri como um todo.

Mas Gurgel, como todo ser humano, não é totalmente uma coisa só. Se se revela limitado no aspecto ético, ele parece ter algumas opiniões sobre o sistema literário brasileiro que acabam sendo parecidas com as minhas. O meu medo é que elas também estejam erradas, e eu as vá elogiar aqui somente porque os preconceitos dele conferem com os meus.

A primeira destas opiniões ele expressa ao comentar, com desdém, a reação dos escritores às suas notas: “Os nossos escritores não estão acostumados a serem julgados. O nosso sistema literário está doente.”

Esta é uma afirmação que parte de um senso comum difícil de negar. Isto, claro, se vê a todo momento, até nos blogues. O autor brasileiro é “estrelinha”, sim. Desde o iniciante amador que escreveu um pastiche pobre de Crepúsculo até um medalhão acadêmico. O primeiro confunde crítica à obra com um desmerecimento de sua dignidade pessoal, argumenta com as suas limitações e o seu esforço para que lhe sejam perdoadas as falhas e a falta de imaginação. O segundo reage com prepotência, move seus “pauzinhos”, anota no seu caderninho, dá seus telefonemas e eventualmente até desce do Olimpo, tonitroante, para reduzir o ousado crítico “ao seu lugar”. Faz isso porque não se sente seguro de seu lugar. Alguns de nossos grandes luminares sabem muito bem que sua glória é postiça, que seu mérito é mais curto que seus casacos e, na hora do “vamos ver”, deixa suas quadradas bundas de fora. Sabem que estão sentados, mas não assentados, na imortalidade. Ou melhor, saberiam, se seu talento lhes permitisse compreender a diferença que faz uma letra “a”.

Sim, o escritor está desacostumado a ser julgado. Talvez até seja necessário que, ocasionalmente, alguém lhe dê um zero. Mas a escolha do Prêmio Jabuti não foi exatamente o melhor lugar nem circunstância para dar essa lição de moral nos medalhões. Porque por mais moral que a lição fosse, perdeu-a pela manipulação aética do resultado, com o pretexto diáfano de que os critérios permitiam. Nem tudo que é legal é justo.

Existem três parágrafos na entrevista de Gurgel que estão de tal forma coincidentes com as minhas opiniões que eu, que comecei este artigo criticando com dureza o jurado, já estou, neste ponto, querendo dar-lhe as mãos e convidar para um chope. Cito-os nos pedaços que mais me interessam:
Essas pessoas [que] têm a hegemonia ideológica nos cadernos culturais, nas poucas publicações literárias que nós temos, nas editoras de livros. Quando eles escrevem uma crítica, as preocupações deles são, primeiro, a questão formal, linguística. Há um exagero de preocupação em relação a isso.

Se você não inovar em termos linguísticos, se você não tentar recriar o Finnegan's Wake o livro já não é bom, ou é um livro tímido, que revela insegurança. O que nós poderíamos chamar de narradores tradicionais já são repudiados por princípio. […]

Em termos de crítica literária, a preocupação desses críticos, na verdade, não é primeiro com relação à forma: é exclusivamente com relação à forma. Porque eles partem do princípio de que a obra é autossuficiente. A obra não tem que dialogar com a realidade. A literatura não tem que dialogar com o mundo. Tem que dialogar com ela própria.
Eu acho muito bom que um crítico literário cutuque esse tumor, que eu, com minha ridícula atiradeira de raquítico Davi, já havia cutucado em 1997, aos 24 anos, na ingênua revista literária que fiz em Cataguases. Qualquer dias desses obterei acesso ao único exemplar restante dela, e republicarei aqui o meu ensaio “Literatura e Consciência”. Que contém parágrafos quase iguais a esses. O que eu não tinha, nem tenho hoje, é o conhecimento teórico suficiente para detectar a origem desse fenômeno:
O [crítico literário] Antonio Candido fala que o nosso sistema literário, no início, era assim: as pessoas que produziam eram as pessoas que consumiam. Esse é o nosso grande problema, nós não temos leitores. O escritor escreve para agradar o crítico, pra agradar o professor de teoria literária e para agradar os seus amigos.
Então ele precisa ser politicamente correto, precisa fazer experimentos linguísticos, esconder o narrador, abusar da metalinguagem. Precisa fazer do texto dele um resuminho daquilo que a vanguarda fez nos últimos anos, para agradar as pessoas. Se você não tem uma crítica que está disposta a agradar o público, numa linguagem que ele compreenda por que aquele livro é bom ou não é, você não forma leitores.
Eu já sabia que este tipo de literatura que frequenta os cadernos culturais tem um caráter esotérico, já sabia que não são formados leitores a partir de romances da chamada “alta literatura”. Sabia também que existe um lugar para esta literatura excelsa. O que eu disse na época, e repito hoje, é que essa forma de literatura não pode ser a única, porque ela não é porta, ela é esfinge. As pessoas não se atraem por esfinges. Alunos em fase de alfabetização não querem palavras cruzadas. Tanto quanto alunos de primeiro ano do conservatório não querem tentar tocar Tom Jobim ou Yngwie Malmsteem.

Ocorre que nosso país possui uma ideologia dominante que aspira ao pensamento único. Ao partido único, ao estilo único. Se você discorda de mim, então você está errado, você é um imbecil ignorante, você tem de ser suprimido. Não sabemos conviver com a diferença. Não temos um histórico de filósofos adversários que, depois de se xingarem pelos jornais, se encontravam à tarde nos cafés para jogar dominó e rir das polêmicas criadas em torno de si. Nossa tradição é de autores criticados xingarem os críticos, de críticos questionados fulminarem os autores, de autores experimentais criticarem os narradores “primários”, dos narradores primários pretenderem derrubar do Olimpo os acadêmicos. Nossa sociedade tem um espírito de rinha, não de disputa. Nossa ideologia é o MMA, que vença o melhor, o vencedor é quem ficar de pé. Não concebemos um tipo de vitória no qual o adversário permaneça digno.

Com isso não convivemos com a diferença, por isso nossa democracia é frágil, por isso nossa imprensa tende ao golpismo, por isso nossas instituições se corrompem, por isso nossos partidos almejam perpetuar-se a qualquer custo.

Por isso nossos críticos, incapazes de conceber que outros críticos possam dar valor àquilo que eles escolheram desprezar, se prestam a “usar os critérios” para determinar o resultado, tal como um político que se alinha com forças ocultas para dar um golpe de estado e impedir a vitória iminente de um adversário no pleito seguinte. Por isso Gurgel continua errado, mesmo dizendo coisas com que concordo. As coisas certas, quando convivem com um mal evidente, tornam-se instrumentos a serviço desse mal.

Portanto, quando Gurgel diz coisas que são obviamente verdadeiras, o que ele está fazendo é criar uma cortina de fumaça sobre o ato aético que perpetrou, abusando de sua condição de jurado.

Mas então chegamos ao fim da entrevista, e aí compreende-se finalmente, porque Gurgel cometeu o ato que cometeu. Ele se revela aluno de Olavo de Carvalho, o que é uma coisa inconfessável para uma pessoa de cultura. As peripécias de Olavão são inúmeras, desde provar que Newton estava errado em sua física até negar a validade da Teoria da Relatividade de Einstein (sendo que o dito filósofo não é nem físico e nem sequer possui um grau acadêmico de exatas). Some-se a isso o horror mórbido à mudança, sua rejeição à novidade, sua agressividade contra as utopias de esquerda e sua crítica paranoica ao “esquerdismo” e  temos provas suficientes de que ele não pode ser levado a sério por uma pessoa de cultura mediana. Olavão pertence ao seleto clube das pessoas que nunca erraram (pelo menos nunca o vi retratar-se de uma opinião ou expressar qualquer ideia sua de maneira menos enfática do que uma certeza absoluta). Não erra porque se coloca como verdadeiro Oráculo, veículo da verdade divina. “A hegemonia da esquerda foi lentamente construída”, diz Gurgel. Olavo traz a verdade súbita, o golpe da verdade, o golpe.

Golpe que o jurado C desfere contra seus desafetos literários, contra o “sistema” que rejeita. Olavo e Gurgel, cada um em seu papel, Dom Quixote e Sancho Pança, lutando contra os moinhos de vento do mal, para salvar o mundo, ou pelo menos a literatura, da unanimidade burra do esquerdismo.

E então me lembro que, no texto introdutório da entrevista, Gurgel revelara ao repórter seu novo projeto: Atualmente, desenvolve um projeto ambicioso: reler todo o cânon da literatura brasileira e submetê-lo a seu crivo em textos publicados no jornal “Rascunho”. O primeiro fruto, o volume de ensaios “Muita Retórica, Pouca Literatura - de Alencar a Graça Aranha” (Vide Editorial), foi publicado em agosto. 

09
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 23:04link do post | comentar
Se posso destruí-lo, então eu sou melhor do que você. Assim funciona o argumento da força, a ética da opressão. Intimidação física enquanto argumento não é algo tão fácil de detectar porque é a ideologia do poder, é assim que se impõem as leis. E é assim que se fazem os heróis: matando, explodindo, derrubando. O poder de construir algo belo não é tão admirado quanto o de destruir qualquer coisa, bela ou não. Uma arma fascina mais do que uma colher de pedreiro. O punhal é mais estiloso do que a faca de cozinha. A bomba atômica comanda mais admiração do que a dinamite que abre caminhos para a engenharia. Assistir a uma construção é um processo tedioso: não se juntam multidões para ver um arranha-céu subir, mas aglomera-se um povo respeitável para assistir a implosão de um que se tornou “velho”.
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17
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 22:29link do post | comentar

No feriado saí para uma caminhada em companhia de mim mesmo e, como eu sempre faço nessas ocasiões, desfrutei de uma animada prosa que ninguém ouviu e cujo registro inicial, aliás, se perdeu graças aos desígnios arcanos dos arcanjos que regem a literatura. Hoje, aqui mais tranquilo, apesar de ainda sofrendo a perda daquelas palavras apagadas para sempre, sofrendo o aborto daquele texto como o de um filho aos oito meses e meio, relembro vagamente os raciocínios que me passaram pela mente.

Escrevia eu, antes de ser tão bruscamente interrompido pelo destino, que no dia me sentira tão à vontade para falar de poesia que até mesmo tivera ideias sobre isso. Ideias causadas pela sensação de conversar com o meu alter ego, cuidadosamente sem mover os lábios, para que as pessoas em volta não pensassem que, afinal, eu era mesmo louco como se diz que os poetas são.

Era como estar numa roda literária, dizendo todas estas coisas vazias e sem sentido que os intelectuais dizem quando não estão ocupados pronunciando os nomes de outros intelectuais estrangeiros ou dizendo como o mundo antigamente era melhor. Antigamente os intelectuais não eram tão metidos a bestas, como se pode ver nas obras de Foucault, Kierkgaard e Rímsky-Korsakov.

O meu interlocutor era poeta, ou assim se dizia.1 Estava falando sobre simplicidades muito complicadas que me faziam a cabeça doer e eu me sentia meio alheio àquele ninho tão culto, eu que bebi leite de vaca quando menino e sei qual é o cheiro que tem o capim gordura. Olhei em volta de mim mesmo, imaginariamente, vi a multidão de gente e de carros transformar-se na plateia classuda, mas rala, de um evento cheio de grife, e tive medo de não saber o que dizer. A minha sorte é que toda vez que o desconforto piorava eu abria os olhos, apertava o passo, suava mais e me confortava estar tentando atingir o quinto quilômetro, jogando as pernas em um forte passo lipolítico.

Quando meu deram a vez de falar eu já estava mais calmo e gentilmente pedi desculpas a todos por não mais fazer poesia. Contei que havia um vizinho nosso, nos meus tempos de infância na roça, que zombava de sua lustrosa careca e de seu peito preto de pelagem alta dizendo que na vida dera o azar de crescer demais e passar do cabelo. Ele não era tão alto, mas sempre completava dizendo que na sua família o cabelo também não era. E tendo arrancado alguns risos complacentes com esta história, contei-lhes que cresci demais e passei da poesia. Vinda de mim a frase soou pretensiosa, pois eu cresci até um metro e noventa, mas os poetas devem ter gostado, pois ficou implícito que a poesia não está ao alcance do cocuruto de qualquer um.

Mas sempre que um ser folclórico, como este ogro que aqui escreve, tem a chance de dizer alguma coisa, os presentes, mesmo que imaginários, se sentem à vontade para rir, pois ogros sempre são engraçados, em seu exotismo tão complacente e adequado. Tudo aquilo que eu dissera aos meus interlocutores inexistentes eu já dissera outras vezes, para diversos ouvidos atentos, mas as frases espedaçadas ao longo da vida, quando reunidas com uma pretensa coerência resultaram num atestado autenticado de óbito da poesia, da minha pelo menos.

Mas me perguntou então o meu alter ego se eu não poderia dar à plateia que eu não via, ou que não havia, o prazer de explicar como eu tivera a infelicidade, ou a felicidade, dependendo de quem diga, de ter crescido demais e ultrapassado a poesia. Lembro-me de ter, então, dito alguma coisa mais ou menos assim.

Tudo começou quando começou, eu tinha dezoito anos. Tinha também nenhum plano, doía na alma uma coisa que eu bem sabia o que, mas que poeticamente não convém dar um nome. Então, expulso da realidade, achei meu conforto no amor perfeito, o de uma morta, e escrevi-lhe trinta e nove versos cortantes que, se não eram afiados no romantismo, pelo menos continham lágrimas suficientes para lavar deles a tinta nova do século vinte e fazê-los parecidos com desbotados faqueiros de museu. Quando eu terminei estava quase chorando, todos os meus poemas tinham esse calor que só se tem quando ainda é cedo. Eram versos dispensáveis e melados, do tipo que nem a minha mãe leria, mas eu não tinha escrito uma Ilíada, apenas confessara meus pecados ao papel e para mim aqueles rabiscos tinham mais valor do que o Paraíso Perdido.

O poeta estremeceu-se ao me ouvir dizer um número tão grande. “Trinta e nove”, quase uma blasfêmia. Imagino que se eu estivesse em um debate de verdade haveria alguns vates que recuariam os seus troncos, pasmos, como eu exalasse uma pestilência.

— Trinta e nove versos! Eis aí um exagero! Não me admira que lhe tenha morrido a poesia. Você a afogou em uma torrente de vocabulário, como um padre que afoga a criança em um lago no dia do batizado, em vez de apenas molhar-lhe a cabeça.

Tive de explicar ao poeta que eu creio noutra poesia. Há muitos poetas que pretendem um poema vácuo, brevíssimo, relampejado. Eu porém, prefiro que seja intenso (mesmo que precise ser extenso) e sem nenhum pejo de uma voz que grite o que penso. Não deixo flor branco nas minhas paisagens, para que os leitores usem seus lápis de cores. Que o leitor recubra com sua tinta a cor que escolhi, gerando outro matiz, que encontre ele mesmo onde enfiar a sua flor, que arranque alguma minha se necessário.

Fazer a poesia é como sair pelo mundo a catar poedras. Eu não procuro poedregulhos. Há quem aceite até fezes secas, sementinhas secas. Eu procuro o que nunca foi úmido, porque o ressecado me entristece. Não importo de carregar um: não vou polir grãozinhos de granito para fazer um colar que ninguém use.

Pois nisso morreu minha poesia. Não morreu quando escrevi meus trinta e nove versos de amor à minha amada morta, mas quando terminei de lapidar a obra que lhe dedicava. Eu comecei com uma poedra generosa e tanto martelei e meditei que encontrei dentro dela, timidamente, a semente de outra poedra. E então descobri, na poedrinha ali oculta desde o início, não apenas uma coisa nova, mas a coisa original, perdida, eterna, que eu sempre quisera ter dito. Os versos que achei não apenas eram, e são, o resumo do conjunto de todos os outros mas, muito mais importante do que isto, são a expressão exata de tudo.2 Foi tão chocante a experiência disso que eu não tenho mais escrito nenhuma poesia desde o dia em que me acertou aquela poedra.

Meu interlocutor imaginário ficou tão surpreso quanto eu, exatamente tanto quanto eu. Porque de fato, naquele instante de um feriado cívico que eu nem tenho razão para comemorar, enquanto eu suava penosas calorias numa manhã que prometia chuva, eu descobri uma coisa que eu não sabia. Até segunda feira eu sabia que não escrevia poesia. Desde terça feira eu sei porque.

O que acontece é que, instintivamente, eu não tenho guardada em gaveta alguma a versão colhida, a versão comprida, a versão cheia, a versão original destes trinta e nove versos. Mas tenho duas versões mais completas, verdadeiramente poedras:

Minha morte, tua morte
Outras que virão.
O pássaro morre
Apesar da canção.

E uma versão ainda mais completa:

O pássaro morre
Apesar da canção.

Quando dei-me conta do processo inteiro, que tardou para extrair uma poedra de uma massa disforme de versos, morri com a minha poesia. Não havia como continuar tentando, ou estaria fadado a produzir um livreto de quarenta e nove páginas — e ele talvez fosse mais relevante do que os outros que ainda poderei escrever. Hoje prefiro usar o meu talento para erguer frases mais cheias. Gosto de poluir o mundo com muitas palavras, cresci demais, passei da poesia.

1 Dizemos que são poetas os escritores quando eles se ocupam em fazer livros fininhos, sem um assunto definido, muitas vezes tipograficamente compostos de uma forma estranha, cheios de desvios propositais de ortografia (que são sempre bons para fazer com que os involuntários se percam no meio) e com prefácios, dedicatórias, sumários e biografias que, juntos, perfazem mais palavras que todo o conteúdo.

2 Eu devo dizer que não acredito em resumos tanto quanto não acredito em beijos breves, em pequenas doses, em “rapidinhas” ou em livros que não parem de pé na estante.


16
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 22:20link do post | comentar | ver comentários (2)

Quanto você pagou pelo seu dia de hoje? Nada? Tem certeza? Provavelmente você está enganado, tanto quanto eu estive durante décadas perdidas de minha vida. Cada dia que você vive está pago, e muito bem pago, com uma moeda cujo valor subjetivo é maior que o do dólar e o do iene: a liberdade.

É com liberdade que você paga por lhe terem deixado vivo mais um dia. Com ela você comprou, indiretamente, o pão e o café que o prepararam para outra jornada. Esta, por sua vez, nada mais é do que a privação diária porque passa o homem, obrigado a coisas que não entende e que não lhe fazem sentido. Em vez de estar criando seus filhos, realizando seus sonhos, fazendo amor ou deitado à toa. Durante mais da metade das horas de cada dia, exatamente as horas melhores, aquelas em que você está mais alerta e se sente melhor. Justamente nelas não há mais liberdade, a não ser relativamente.

Em troca de você abandonar a sua liberdade, vão lhe pagando por ela valores variáveis. Nunca lhe pagam o que você quer: é sempre menos ou mais. Quanto mais lhe pagam, em relação ao que você espera, mais lhe tiram. Pagar sempre um valor diferente é uma forma de impedir que você perceba o valor exato desta condição. Se lhe pagam pouco, é porque você provavalmente lhe dá muito valor e é preciso que você passe a crer que ela vale menos. Se lhe pagam muito, é porque lhe deixam apenas o mínimo necessário para que você ainda respire hoje (mas nunca se sabe o dia de amanhã). Fazem isso aproveitando-se de que você acha que ela vale pouco. Se você avaliar com precisão, verá que, no fundo, a sua liberdade vale tanto quanto a do lixeiro que você despreza. Muda apenas quanto pagam.

Há muitas maneiras de tomar a liberdade de alguém, e a mais cruel de todas é a tomada preventiva da liberdade que ainda não pode ser gozada. Em palavras mais piegas: é tomar do homem a liberdade que ele ainda pode vir a ter no futuro. Isso se faz de várias maneiras. Pode ser, por exemplo, pelo acúmulo de responsabilidades (essas notas promissórias que pagamos com liberdade); ou pode ser de forma agressiva, deteriorando o seu corpo para que você não possa chegar a gozar da liberdade futura. O primeiro método é o preferido da sociedade, pois permite dar uma finalidade à liberdade que você não vai aproveitar. O segundo, que a inutiliza, é apenas uma maneira de assegurar que a liberdade seja restrita. Fazem isso quando não há uma demanda suficiente por liberdade, mas há muita oferta. É mais ou menos como fazem os produtores de leite quando não conseguem vender: jogam fora, mesmo com tanta gente passando fome. A economia exige isso: não haveria meios de levar esse leite a quem precisa. Quem pagaria o frete?

A vida vai passando e o seu estoque de liberdade vai minguando. E quanto menos liberdade você tem, menos lhe pagam por ela. Esse é o paradoxo econômico desta moeda, razão pela qual os economistas riem dela. A liberdade é uma commodity que só tem valor quando é farta. Aqueles que tem muita conseguem vender a um preço alto. Aqueles que pouca têm, esta escassa ainda têm de entregar a preço vil, isso quando não lhes é tomada de graça.

Mas um dia percebem que sua liberdade já acabou, nesse dia não existe mais utilidade no homem. Ninguém respeita ao indivíduo que já não é livre, ninguém o ama, ninguém o admira. Todos, no máximo, fingem isso. Neste momento o homem está pronto para aposentar-se. Não sendo já livre, não poderá desfilar pelas ruas com a indecência de seu livre-arbítrio arregaçada no rosto como um sorriso. Toda a admiração da sociedade pelo homem que finalmente se aposenta é idêntica à que ela tem pelo homem que finalmente cumpre uma longa pena. Alguns podem estar festejando lá fora dos portões, mas não creia que será possível reiniciar os esboços abandonados na infância.

Quando você se aposenta lhe dizem que você finalmente terá tempo para seus projetos. Possivelmente terá tempo, mas dificilmente terá ainda projetos. A privação da liberdade é uma condição que induz ao costume: nos tornamos tão afeitos a viver sem aproveitá-la que quando finalmente já não nos obrigam a deixá-la, não sabemos para onder ir.

Nos idos dos anos cinquenta ou sessenta, antes que eu nacesse, havia em minha cidadezinha natal um burrico que puxava a carroça de leite pelas ruas da cidade. Toda manhã o leiteiro o laçava no pasto, botava-lhe arreios e ia à Cooperativa comprar leite em garrafas. Depois saía pela cidade entregando aos fregueses habituais. Quando o burrico ficou velho seu dono, compadecido, como nossa sociedade, deixou o animal em um pasto em um bairro afastado, para que ali descansasse. O pobre bicho não aproveitou sua liberdade tão tardia: toda manhã, em vez de pastar o capim tenro e nadar no riacho, ele cruzava a cidade e parava à porta da Cooperativa, puxando uma imaginária carroça. Depois saía a esmo pela cidade, entregando oníricas garrafas de leite. E assim foi por algum tempo, até morrer, magro de tão pouco pastar. Pois o burrico livre comia menos do que antes, quando seu dono lhe dava capim à boca durante a viagem.

Se este fosse um texto de auto-ajuda eu terminaria dizendo que nossa liberdade é tão pouca e tão pouco nos deixam aproveitá-la, que é preciso, que é imperativo, que é sensato que a empreguemos toda, ao máximo, já, ontem! Ou então que a usemos “com sabedoria” (qualquer coisa feita “com sabedoria”, segundo as pregações dos sábios, precisa ser muito chata—a ponto de quase ser inútil).

Mas este não é um texto de auto-ajuda, eu não estou aqui para ensinar nada a ninguém, eu sou apenas aquele ruído que lhe acorda no meio da noite, parecendo um móvel que caiu ou algo que se quebrou na cozinha. Eu sou esse ruído que lhe faz pensar que há um ladrão em casa, e você treme sem saber se deve ir ver o que é ou se deve fingir dormir e deixar que o ladrão o roube, por medo de um tiro. A verdade é como um tiro, ou como um prato que se quebra na madrugada destruindo o seu sono inocente. Eu escrevi este texto porque eu já não durmo e quero que minha insônia se espalhe: é preciso urgentemente produzirmos liberdade, ou ela deve acabar—e nesse dia nenhum de nós terá valor algum. Pois não valemos nada se não somos livres nem felizes.


23
Set 10
publicado por José Geraldo, às 07:28link do post | comentar
Os homens de lodo e de sonoaguardam o fim da última velarepetindo com vozes defuntassuas preces de cor sem sentido.O fascínio do latim está perdidoe a força do fantástico apagou-se,nenhum Aquiles romperá o nadapara lutar contra palavras ocas.A Torre de Marfim sofreu o golpe,os que nela vivem se espantam,mas as plantas crescem sem Platãoe os pássaros não ouvem Nietzsche.De dentro do esterco nasce a rosa,de dentro dos ruídos, porém, nada.Nada nas cores deste dia a certezade que este esterco é estéril.Os frisos de Atenas são vendidosem cópias plásticas baratas,tenho Tutancâmon em um quadroe o Discóbolo num livro.E tudo tem o seu lugar correto,nesta catedral de gostos mortose de dons postiços.Não tenho memória de ter sido,mas tenho palavras com que cavosaudades falsas de enfeite para o livro.Belas palavras que acendem-mea vontade de ter acontecido,mas isso não basta que me façamais que um tolo com sede de sentido.

Escrito originalmente em 1999, ligeiramente revisado nesta data.


22
Set 10
publicado por José Geraldo, às 04:26link do post | comentar

Nietzsche colocou em seu livro Assim Falou Zaratustra um subtítulo interessante: «um livro para todos e para ninguém». Trata-se de uma declaração quase esfíngica: como um livro pode, ao mesmo tempo, ser destinado a todo mundo e a ninguém? A solução do enigma surge quando você analisa o livro em si, pelo seu conteúdo e pela sua forma. Quanto à forma, é um livro para todos devido ao estilo bíblico e linear da narrativa (sim, embora escrito por um filósofo, trata-se de uma narrativa): supôs o autor que estas escolhas tornariam o livro acessível a praticamente todos os que fossem alfabetizados. Por isso «um livro para todos». No entanto, o conteúdo desta obra é particularmente difícil, por lidar com dilemas existenciais cuja própria reflexão é rejeitada por estes seres cordatos que habitam as civilizações, esse homo vulgaris que persegue a gratificação de seus desejos imediatos tal e qual um cão correndo atrás do próprio rabo. Por isso é um livro para ninguém.

Há certos assuntos sobre os quais falamos que deveriam ser também agraciados com um subtítulo equivalente: para todos, porque é perfeitamente possível falar deles de uma forma que muita gente entenda; para ninguém, porque é quase impossível achar quem se interesse por eles. Um de tais assuntos é a política.

O lugar comum (que é o sistema através do qual pensam, de forma quase exclusiva, as pessoas sem imaginação e/ou sem inteligência própria) dita (no sentido de «ditadura») que «político é tudo safado» — talvez porque as pessoas que assim o dizem espelham os políticos em si mesmas. Embora eu não ponha a mão no fogo por nenhum político, essa afirmativa é preguiçosa e burra. Preguiçosa porque é um preconceito e porque exime quem assim pensa da obrigação de informar-se (ai, isso envolve ler, ah, e ler dói), de refletir, de discutir e de concluir. É muito mais fácil dizer que todo político é safado e não ter que se dar a esse trabalho.

Como vocês já devem ter percebido, existe uma estreita relação entre a nossa postura diante dos livros e as causas desse desastre que é a nossa política. Nosso povo lê pouco, e por ler pouco ele não sabe quase nada daquilo que não diga respeito ao seu horizonte imediato. E por ser ignorante daquilo que não lhe diz respeito de forma direta, ele não é capaz de discutir a política.

Acontece que os ignorantes não vão querer admitir isso. No fundo, apesar do desprezo verbal pela cultura que vive na boca de muita gente, ser ignorante não é bonito. Então é preciso sentar em cima desse rabo grande e peludo e fingir que ele não existe. A incompetência de ter uma discussão sobre política é mascarada pelo desinteresse, justificado pela constatação, necessariamente desinformada, de que todo político é safado.

O curioso é que essas pessoas que assim pensam estão duplamente equivocadas. Não apenas estão partindo para uma conclusão preconceituosa (porque é uma generalização desinformada), mas estão abordando o problema pelo lado errado: política não se faz de cima para baixo. É perfeitamente justificável a sensação de que nós não temos nenhum tipo de controle sobre o que pensam e fazem os políticos nas altas esferas do poder. Mas eles não chegaram lá de paraquedas, eles passaram por um longo processo, que muitas vezes começou numa candidatura à vereança em sua cidade. E é nesse momento que a política distante se torna próxima que vemos, com maior vergonha, o quanto as mesmas pessoas ignorantes são também desonestas.

Safado é povo, não o político. O político é safado porque ele é parte do povo. Talvez se os nossos políticos fossem estrangeiros eles fossem menos safados (ou mais). Mas como eles são brasileiros como nós, eles são tão safados quanto somos, na média.

Safado é o eleitor que vende seu voto em troca de cimento, de um emprego, de gasolina, de um par de tênis ou de dinheiro. Quem prostitui a sua opinião em troca de vantagens imediatas (tal qual o macaco da fábula, que vende a cauda por um pão) não tem moral para acusar os nosso políticos de coisa alguma.

Safado é o eleitor que se orgulha de ser parte do curral eleitoral de um político: «aqui no bairro tal a gente vota é no fulano», ou «sicrano é o candidato da cidade X». Abdicando da própria opinião e aceitando ser levado no cabresto (como burro que é), esse eleitor vai reclamar do que?

Essas coisas que eu disse acima não são filosofias profundas, dignas de um Nietzsche, de um Schopenhauer ou de um Espinoza. São coisas simples e claras que para concluir basta você pensar com calma e somar dois com dois. No entanto elas serão incompreendidas e rechaçadas. A transparência do raciocínio será rejeitada pela oposição do conteúdo ao que é confortável ao leitor. «Eu fiz isso, diz minha memória. Eu não posso ter feito isso, diz meu orgulho. Por fim a memória cede».

Por isso estas palavras que disse são para todos e para ninguém. São para todos porque qualquer um que saiba ler as lerá e compreenderá. Para ninguém porque com elas não ganharei nenhum seguidor no blogue, não farei nenhum amigo, não receberei sequer um elogio, não mudarei a postura de um eleitor sequer. O ser humano nunca muda, de fato: apenas se torna, cada vez mais, aquilo que é. A única mudança possível é a que se faz nas gerações futuras, através da educação de nossos filhos. Esta é a tragédia da humanidade: os estúpidos têm mais filhos e têm mais tempo para ensinar.


15
Set 10
publicado por José Geraldo, às 21:30link do post | comentar
  • Um “espírito prático” é um dos venenos da inspiração.
  • O ignorante espelha o sábio em si, em vez de espelhar-se nele.
  • Todo tolo surpreendido tem uma desculpa, mas somente os estúpidos são capazes de teimar nela mesmo depois que a verdade já triunfou.
  • Quando alguém obviamente ignorante é flagrado dizendo uma grande bobagem, é comum que rejeite qualquer tipo de correção que seja feita por alguém que alguma vez também tenha dito uma bobagem, pequenina que fosse. Mas os tolos só usam isso como desculpa, porque jamais acreditarão que alguém tenha a capacidade de corrigir-lhes.
  • Basta uma incoerência para dedos inquisidores tentarem calar o sábio, mas esses dedos não têm nenhum efeito sobre sobre os ignorantes: por mais asneiras que digam, nenhuma reação o convencerá de que é uma boa ideia calar-se.
  • Todos temos desculpas para nossos erros, mas os sábios têm planos alternativos para usar em casos imprevistos.
  • Sempre que você anota um número de telefone em um pedaço de papel é porque, de fato, não deseja ligar para ele. Quando você realmente quer ligar, ou você tem uma agenda ou tem uma memória suficientemente boa para lembrar sem precisar de anotar.
  • Ninguém sabe tudo, mas em geral esta frase é usada por quem está falando sobre o que não sabe para questionar as pessoas que sabem alguma coisa, exatamente quando elas tentam dizer do que sabem.
  • Como ninguém é perfeito, os mais corruptos carregam lupas para o caso de terem que enfrentar pessoas melhores do que eles.
  • Você precisa estar cheio das melhores intenções para conseguir realmente magoar a fundo uma pessoa a quem ama.
  • A verdadeira amizade não é de cristal.
  • Se eu ganhar na Mega-Sena um dia, terei todos os meus amigos de volta.
  • Nas redes sociais se tem a prova cabal de que as pessoas em geral são ignorantes, arrogantes, narcisistas, superficiais e dotadas de uma profunda necessidade de crer naquilo que lhes é confortável.
  • Advogados são torturadores do vernáculo que submetem as frases escritas ao pau de arara dos sofismas a fim de extorquir-lhes dúbios sentidos que possam resultar em causas.
  • O advogado é um ser que usa a lógica ao inverso: a causa vem depois do fato.
  • Um casal de advogados unido em comunhão universal de bens é a coisa mais rara de se ver.
  • Por mais que a polícia seja corrupta e truculenta, a biografia da maior parte dos que dela reclamam não ajuda muito a causa.
  • Se os políticos fossem obrigados a ouvir os próprios jingles de campanha e a ler os textos dos santinhos, haveria mais silêncio no mundo e menos políticos analfabetos.
  • O mundo conspira contra o escritor, mas quando ele se torna um sucesso a rua inteira reclama que ele é convencido porque não listou ninguém na dedicatória.
  • Se você quer parecer inteligente sem ser, basta ter um olhar penetrante, um temperamento calmo e a capacidade de ser irônico. Se você fizer as pessoas rirem, mas não gargalhar, é bastante provável que elas não consigam prestar atenção nem nas sandices que você está dizendo e nem na humilhação a que as pessoas que sabem do que estão falando estão lhe submetendo. A massa estúpida adora a ironia porque é um argumento que está ao alcance de todos.

Em homenagem à Ilka Canavarro, que me deu o fofucho apelido de Ogro.


05
Set 10
publicado por José Geraldo, às 14:29link do post | comentar

Dois escribas, preocupados com o futuro, discutiam à sombra de um juncal, à beira do Rio Nilo:

— Imhotep, tu que és tão sábio, diga-me: Crês que um dia a arte dos hieróglifos terá sido abandonada?

— Merhemptah, querido, temo que sim. Ela está a se perder: não vês que os sacerdotes de classes inferiores já os abreviam e corrompem, que já não se importam mais como antes com a exatidão da semântica, preferindo recorrer aos símbolos fonêmicos? Oh, temo que um dia a expressividade dos hieróglifos se perca, que todos sejam reduzidos ao nível da massa ignara. E a culpa disso, Merhemptah, é do pergaminho, essa estúpida invenção grega. Com ele fica fácil demais escrever, ele aceita qualquer forma de traço, aceita costura, aceita dobradura, aceita o diabo!

— O que vai acontecer com a literatura, então, meu amigo. Responde tu, que és tão sábio e vês tão longe no tempo.

— Ah, eu temo, querido Merhemptah, que os belos rolos de papiro encastoados em tubos de cerâmica, que hoje ornam as paredes de nossos templos do saber… ah, eles serão esquecidos!

— Imhotep, meu amigo, mas isso será algo terrível!

— Terrível, de fato, Merhemptah… as pessoas no futuro não saberão mais o prazer do conhecimento, da leitura, a fruição das palavras, o gozo da escrita. Serão como analfabetos, incapazes de ler e de entender o que hoje escrevemos.

— Então, o que podemos fazer? O que nos resta fazer, amigo Imhotep?

— Ainda escrevemos porque ainda resta a esperança, Merhemptah, de que pelo menos o negro Egito consiga resistir ao pergaminho, pelo menos aqui se conserve a pureza da língua milenar, a tradição do papiro.

— Que os deuses o ouçam, Imhotep. Que os deuses o ouçam.

E os dois escribas terminaram de beber suas cervejas vermelhas, contemplando o rubro pôr do sol. E o Egito continuou sua trajetória milenar, por alguns séculos ainda.


25
Ago 10
publicado por José Geraldo, às 23:45link do post | comentar
O poema nasce, às vezes,como uma necessidade dos dedos.O toque deles contra as teclas,o prazer de ver as palavrasformarem-se das letras, tornarem-se negrase deitarem-se na página.A frustração de retornar a apagar,o apego apertado de saberque o cursor retorna implacávelcondeno o erro a não ter havido.E aquele eterno temor de talvez haveralgum perigo à espreitaque destrua o arquivo,que delete inapelavelmenteo esforço despencado em um verso.O poema, às vezes, nasceuma necessidade com medo.
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23
Ago 10
publicado por José Geraldo, às 19:37link do post | comentar

Um homem extremamente infeliz não consegue nunca crer na profundidade do abismo. A infelicidade necessariamente induz ignorância: somente esquecendo um pouco é que se pode tolerar a pressão das lágrimas que a alma exige, mas que os olhos não querem dar. Melancolia é diferente, há uma tristeza pouco aparente entre não ser alegre e não ser feliz. Pouca gente sabe, mas existem infelicidades muito alegres.

O homem vivendo no extremo da felicidade aprende a fingir: somente quem finge consegue sobreviver ao espelho quando ele é sincero demais. Ausentando-se da sabedoria do mundo, o parvo não percebe sua dor. Dança o palhaço em meio à culpa e o abandono. Dança, triste palhaço, dança e chora por detrás de tuas gargalhadas e de teu nariz vermelho.

A dança dos tolos é uma arte, uma arte de sobrevivência. Nas maiores tragédias surgem os maiores humoristas, nos abismos mais profundos da alma nascem as mais delicadas estrelas bailarinas. A alegria é a vingança do infeliz contra o mundo: através de seu doce ópio ele se liberta, transcende-se. Somente os que fingem conseguem ser livres: os sinceros são escravos da própria coerência.

Tu que te tornaste sábio nesta arte de dançar diante das trevas, fazendo dos fantasmas a plateia de teus passos, dança! Dança e sê feliz, porque nós não somos. A tua dor não rouba de tuas mãos isso que trazes da infância. Dança, palhaço. Dança, que te aplaudimos e admiramos enquanto miramos além da janela a paisagem cinza que construímos. Colore de vermelho e de esperança esta paisagem de cimento. Precisamos de ti.

Tu que te tornaste ridículo, somente tu enxergas os caminhos destas almas verdes que fenecem cedo. Ris para eles, eles não entendem, eles te enxotam. Somente os velhos, somente os que entenderam a dor, somente eles são capazes de rir de ti, palhaço das ruas, poeta das nuvens.

Tu, somente tu, enxergas ao redor. Tua capacidade de enxergar a dor alheia e tratá-la, mesmo sendo sem remédio, torna-te melhor. Mira os erros e defeitos da alma vagabunda que verga sob o peso da modernidade. Mira, mas não erra! Que é preciso matar esse mostro que se chama mágoa.

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