Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
03
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 23:00link do post | comentar
Estas montanhas têm uma história, desde os tempos dos índios, desde antes do primeiro português cortar a primeira árvore. Eles vieram, viveram, morreram, viram o mal que havia e se foram, ficaram apenas alguns pobres puris isolados, entocados quase como bichos. Vieram os emboabas a caminho das minas, tentaram fixar-se aqui, mas não ficou nenhuma vila, queimaram todas as casas, sumiram no tempo como se nunca tivessem pousado, e a estrada real passou ao largo.

Minha avó costumava me contar que toda esta região era pacífica e silenciosa até a segunda década do século, que ela mesma viveu numa casinhola entre árvores, beijada pela sombra fria da mata. Mas veio o café, veio a guerra, a estrada de ferro, vieram as armas. Mataram os índios, abriram clareiras, começaram a produzir. Mas em pouco tempo a terra negou seu seio, os cafezais feneceram, os fazendeiros faliram. O povo restou pobre, em uma terra mais seca e nua. Os trilhos de ferro recuaram, abandonando estações ilhadas nas montanhas.


Nasci aqui, sentindo esse vento seco e duro que cresta a alma e corta a cara, que arranca as folhas das árvores, como se tentasse arrancar os homens da terra. Mas eles só sairão quando chegar a hora da colheita. Toda vez que eu olhava os morros erodidos, as encostas peladas, a terra retalhada com cercas e dividida em lotes de cores diferentes eu me sentia cúmplice dessa violência.

Este ano, porém, começou diferente. O cheiro do ar foi outro desde o início, os dias foram encolhendo, as noites ficando mais frias e quando eu olhava as bordas dos morros cortadas contra as nuvens eu tinha calafrios, temendo que essa Hora maldita estivesse a caminho.

Nas primeiras semanas eu me senti assim, sozinho. Não tinha coragem de falar com ninguém, porque desde menino tivesse essa fama de sensível, de fresco, de frágil. Nem os calos duros em minhas mãos, nem minhas botinas armadas com arame, nem o cheiro forte da terra em meu corpo conseguiram apagar as impressões que os outros tiveram de mim no dia em que saí de mim e disse aquelas coisas que ninguém nunca ousou repetir.

Mas quando o outono começava a envelhecer, notei que não era mais o único. Podia pressentir que os jovens estavam irrequietos  que os velhos estavam mais abatidos. Alguns sonhando em voar, outros querendo dobrar definitivamente as asas. Então senti voltando a mim a sensação, e os cheiros, que me abateram naquela tarde de criança. Eu pressenti a proximidade do escuro, eu enxerguei as dobras do destino direcionando o correr de nossas vidas para o canto da mesa, para a caçapa inevitável. Senti a Presença pela primeira segunda vez, mas não tive medo nem ódio, aliviei-me de toda irritação e adorei aquela época do ano.

Os Gonçalves então apareceram com a notícia de que estavam indo embora. Eles tinham uma fazenda grande, com várias casas, currais, tulhas, silos e cocheiras. Tinham feito um trabalho bonito, por vinte ou trinta anos, desde que o velho Nhonhô Gonçalves chegara de Itaperuna cheio de dinheiro, que as más línguas diziam ser mal havido, e comprora a terra de um colono antigo, que eu nem chegara a conhecer. Eles trabalharam muito, fizeram render o seu dinheiro, tinham vacas, tinham milharais, canaviais, um pomar que dava gosto. Então veio aquela seca longa do ano retrasado, emagrecendo o gado, matando o milho plantado, prejudicando a cana. E justo quando a seca acabava apareceu a praga da erva roxa nos pastos, intoxicando os animais famintos que comiam tudo.

Perderam muito dinheiro, tiveram que vender as vacas boas enquanto valiam alguma coisa, muitas morreram vacas de fome, muitas ficaram vacas maninas, cresceram bezerros de pelo ruço, novilhas de tetas murchas.  Um gado sem valor, em uma terra que precisava ser roçada de novo, com uma praga que ninguém sabe de onde veio, como se o próprio demônio tivesse passado semeando.

Agora estão finalmente vendendo, e é uma tristeza ver os garotos com os olhos cheios de água, tentando sorrir enquanto põem preço naquilo que nada paga. Dizem que vão comprar caminhões, ganhar a vida no transporte de carga. Enquanto eles falam eu escuto um vento soprando forte, um vento que arranca folhas das árvores. O vento que anuncia que chegou o tempo de colher. Os dias continuaram encolhendo, as noites ficando frias. Colheita no inverno, colheita mais amarga. Os jovens irrequietos, os velhos andando de cabeça baixa. Eu sei que a escuridão está mais perto, alguma presença está aqui. Parece que o clima mudou, mas eu não estou mais gostando dessa época do ano.

Sempre vivi nesta casa de fazenda. Hoje fazem dez anos que meu pai morreu. Foi num agosto ventoso como esse, talvez ali eu tenha ouvido esse vento pela primeira vez. Herdei esta terra, estas cercas, estas pobres vacas, companheiras de meu infortúnio, pobres reses que eu nunca consegui vender. Não sei bem do que eu vivo, o leite que tiro mal dá para comer. Tenho a herança de uma tia rica, o ódio de uma mulher que me deixou. Faz muito tempo que não tenho medo, muito tempo que não sentia nada mau. Tinha aprendido a conviver com esta terra, deixar crescer o mato, receber a chuva, proteger a ave, abrigar o bicho. Dizem na cidade que eu também virei meio bicho, só porque não consegui cortar a árvore que nasceu debaixo do Mustang que ficava na garagem. Garagem que já caiu de podre porque não a uso: por que me enjaular entre dobras de ferro e produzir fumaça ruidosa pelo mundo? Vou a pé aonde vou, e sempre é perto. Dizem na cidade que a lucidez também me deixou.

Os Gonçalves eram meus últimos amigos. Catarina a última mulher que não me achava louco. Teria sido minha esposa se eu quisesse, me ajudaria a cuidar de meus coqueiros, meus horta, minhas laranjeiras, de todos esses pássaros que pousam na varando cada silenciosa tarde. Eles me dão uma música melhor que qualquer rádio.

Ficará um buraco em forma de Catarina em minha vida. Um buraco na forma de cada amigo que vai embora, na forma de deus que nunca vi, na forma de cada alegria irrepetida que nunca descobri.

Então esta tarde veio o homem de longe, com cabelos penteados, camisa branca de riscado roxo. Enverga botinas pontiagudas, sem esporas, porque sua montaria é dessas de que não gosto.

Ele me falou de coisas que não entendo — como dinheiro, eucaliptos e carros. Fala em derrubar estas espertas, angicos, paineiras, jenipapos, imbaúbas e ipês. No lugar de todas estas cores e perfumes diferentes, uma árvore apenas há de imperar, com sua resina roxa, seu aroma doce.

“Apenas oito anos”, ele diz, “e pode-se vender a um preço exorbitante. Tão exorbitante, aliás, que eu estou disposto a contratar agora a venda, para protegê-lo da possibilidade de que em oito anos tanta gente tenha plantado que o preço nem seja mais exorbitante. Aproveite esta oportunidade única na vida, está na hora de ganhar dinheiro outra vez, sacudir a poeira desta terra adormecida.”

Eram palavras bonitas, mas eu só consegui me fixar nas listras roxas de sua camisa, pensar nas folhas roxas da praga que matou o gado dos Gonçalves e vai levando embora Catarina. Nada de bonito pode vir de alguém que usa roxo. Cor de morte, cor de hematoma, cor de luto de homem, pois homem não se veste de viúva.

“Uma terra tão grande normalmente a gente oferece em parceria, mas se o senhor preferir podemos fazer-lhe um preço muito bom por seus cento e vinte alqueires.”

Não, não venderei a terra, nem plantarei eucaliptos. Tenho trinta anos e ainda tenho alguns mognos para ajudar a crescer. Espero um dia estender minha rede entre os dois jacarandás que plantei na entrada do terreiro, como sentinelas a bloquear a entrada de qualquer carro.

“Sua propriedade vai ficar isolada entre todas as outras, única ilha de mato e pasto sujo num mar de montanhas verdejantes de reflorestamento.”

Que seja, mas há uma beleza nas ilhas. As únicas que eu conheço são as que existem no rio, que eu costumo contemplar quando vou à cidade receber alguma venda, verificar a renda que me legou a minha tia e fazer minhas compras. São pedaços bonitos de terra que resistem no meio do rio, deixando a água passar ao largo, a turbulência ir embora. Resistem à enchente até. Que seja, minha fazenda será uma ilha. E eu o habitante feliz, Robinson Crusoé eternamente a espera de que não me resgatem dela. Espero viver muito, tenho de me cuidar. Enquanto estiver vivo talvez consiga proteger o trinca-ferro, o mão pelada e a preá.

Que sopre o vento o quanto quiser. Que leve embora as folhas doentes das árvores. Pode ser o tempo de colheita delas, mas as folhas vivas, que ainda bebem a seiva da terra, estas não vão ser arrancadas pelo primeiro vento.

Quando ele foi embora eu senti a escuridão mais perto do que nunca. Senti uma presença estranha aqui por perto. Estava perto da noitinha, mas eu não tinha medo. Faz muito tempo que não acontece nada estranho, esta terra nunca me fez mal. Nunca fizera mal aos índios que ficaram, os que a entenderam.

Mas o calafrio continuou, uma sensação de algo forte caminhando entre os galhos emaranhados, algo acinzentado, peludo e frio. Não tenho medo, mas não saio à noite quando pressinto isso. Fico na varanda contemplando o escuro, e o escuro me contemplando com seus olhos amarelos, que às vezes piscam. Acho que o estranho não deveria ter sido tão ousado, não a ponto de vir aqui em carro conversível.

Os grunhidos que ouvia longe, contidos, pareceram mais perto. Os olhos não estavam me olhando enquanto eles estalavam na noite. Ouvi o motor de um carro acelerar ao máximo, bater contra a minha porteira com a força de quebrá-la, mas por felicidade desapareceu pela estrada aos poucos. Pude ouvir o motor um longo tempo, como se a distância não aliviasse o pé do estranho de camisa roxa. Que nunca mais voltou, nem voltaria sob a mira de uma espingarda.

Ele talvez não saiba, mas não deveria ter falado comigo tão ríspido. Todos me chamam de louco, mas ninguém me incomoda. Não desde que o filho do Gracindo, aquele idiota, veio tentar caçar minhas capivaras. Eu o proibi, adverti, implorei, mas ele me estapeou, abusando de sua força e me chamando de maricas. Entrou na mata e não voltou. Sua mãe só o viu de novo embrulhado em plástico preto, uma fotografia ampliada colada no lugar do rosto.

Tentaram me acusar, mas não havia como associar minhas mãos com aquelas marcas, meus dentes com aqueles nacos de carne arrancada. Mataram uma pobre onça nestas redondezas e deram o caso por terminado. Isso é o que a polícia diz, mas ninguém nunca mais entrou na minha terra pensando em caçar. O povo daqui é mais esperto que esses polícias que vem de Ubá ou Muriaé, e não entendem a língua da terra. A diferença é que eu, diferente do povo, não tenho medo. Não vou me deixar levar.

Os Gonçalves foram embora hoje. Estava lá na despedida, barbeado pela primeira vez em meses. Uma cena de fazer chorar, os pobres homens, despossuídos de suas vidas, condenados a vagar no mundo conduzindo máquinas, a maldição da terra. Catarina estava entre eles, parecia mais triste que todo mundo. Não fui o único a notar que lhe haviam dado remédio outra vez, e amarrado suas mãos e pés.

Voltei para casa triste, sentindo a vida me escapar. Sentei na varanda olhando a noite, ouvindo os curiangos no terreiro, e sentindo falta dos olhos amarelos que me acompanhavam nestas solidões frequentes.

Então ouvi de novo o grunhido, e tampouco tive medo. Tanto faz à vida, se a gente morre tarde ou cedo. Mas a fera não tentou morder, nem veio junto a mim. Apareceram os seus olhos, amarelos, na penumbra do terreiro. E no dia seguinte eu encontrei na horta um lenço arrebentado, como se tivesse amarrado os punhos de alguém.

02
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 11:28link do post | comentar

A Zona da Mata Mineira vive hoje uma crise – humana, econômica e ecológica. Por toda parte onde se vá, encontramos a descaracterização cultural, a perda das tradições orais, o esquecimento do artesanato (e da própria história) e, mais grave que tudo, uma absurda destruição da natureza que, de tão arraigada, deixou de significar apenas a remoção da vegetação nativa e agora está chegando à remoção do próprio solo e das montanhas: percorrendo a região vemos morros pelados, terra aparente, erosões, cursos d'água assoreados. A Zona da Mata deixou de merecer esse nome: hoje é uma região em processo incipiente de desertificação.

“No começo isso aqui era só mato, bicho e índio. Mas nós limpamos a terra e a fizemos produzir.” A frase foi dita, de verdade, por um proprietário de terras da Zona da Mata Mineira, em algum momento nublado de minha infância. Ele certamente não se lembrava de quando chegaram os primeiros colonos, procedentes do norte do estado do Rio de Janeiro ou dos Campos das Vertentes, mas a presença dos três elementos definidores – mato, bicho e índio – perdurou durante décadas depois, permaneceu no imaginário do povo até bem há pouco tempo. E eu sempre achei curioso como a gente de minha terra contava sua história.

Conheci pessoas que diziam que um ou outro de seus antepassados havia sido “índio pego a laço no mato” – uma referência oblíqua a indivíduos sobreviventes dos massacres dos grupos isolados de tapuias, puris, goitacazes e outros povos ameríndios que aqui viviam. Quando os colonos brancos vieram, trazendo seus escravos e seus machados, a presença dos índios foi sendo extirpada, junto com o mato e com os bichos. As três palavras foram sempre empregadas em um tom pejorativo.

“Mato” era, no português coloquial de antigamente, uma palavra carregada de negatividade. Dizer que algo “era mato” era como dizer que era vulgar, que era encontrado em qualquer lugar. O “mato” era, também, o lugar desorganizado, o caos primevo. “Bola para o mato, que o jogo é de campeonato” e “fugir para o mato” são expressões que mencionam esse sentido. Joga-se a bola para onde ela desaparecerá, para retardar o jogo. Foge-se para longe do alcance do braço da lei. No meu tempo de criança ainda corriam histórias de pessoas que fugiam das cidades e vinham “para o mato” trabalhar em terras de coronéis, e que não eram presas se esses não deixassem, porque a polícia não entrava nas propriedades. Remover o “mato” era um processo civilizatório. Lembro-me de como a professora leiga, de minha escolinha rural, me contou, embevecida, como seus antepassados “desbravaram” a terra. “Desbravar” é cognato de “bravio”. Envolve um sentido de “doma”. Desbravar é amansar a terra. É tirar o mato, o bicho e o índio. E eu me lembro até hoje do desenho que fiz, de um colono enxugando o suor da testa, apoiado em seu machado, no meio da lida hercúlea de derrubar árvores em um campo imenso.

Meus antepassados odiavam árvores. Tanto que construíam suas casas em clareiras lisas, os “terreiros”. O tamanho do terreiro estava vinculado ao poder do proprietário. Viver em uma casa isolada no meio de um terreiro imenso era para os coronéis, ou quem tinha dinheiro equivalente. Manter o terreiro limpo envolvia o trabalho de muitos homens, para remover as folhas do mato, arrancar as ervas que teimavam em nascer. O terreiro era também uma proteção natural contra emboscadas. À noite, mesmo sem lua, era mais fácil ver alguém tentando atravessá-lo para atacar a casa. Mais fácil do que seria se em vez de terreiro a casa fosse cercada de árvores.

“Bicho” tinha um sentido ainda mais forte. A palavra “animal” era reservada para as bestas domesticadas: cavalos, mulas, vacas, jumentos, cabras, ovelhas. Pequenos animais domesticados, ou que viviam próximos à casa – como gatos, ratos e lagartixas – eram chamados de “bichos”, assim como os insetos (bicho-de-pé, por exemplo). Os outros eram os “bichos do mato”, vistos como “invasores” e predestinados à caça ou ao mero extermínio porque interferiam na economia. E o colono sabia muito bem que remover o mato era uma maneira eficiente de afastar o bicho, sem ter que matar cada um, correndo risco. Por isso as grandes queimadas, por isso “desbravar” até mesmo encostas de ângulo impossível para a agricultura e a pecuária. Era preciso “limpar” a terra, para que o bicho não ficasse perto. A onça, o quati, o piriá, a jaguatirica, o guará, o guaxinim, o maracajá, o mão pelada, o caboclo d'água, a lontra – todos bichos que, embora fossem bonitos alguns, tinham o infeliz hábito de ver nas galinhas das fazendas uma caça mais gorda e mais fácil do que os magros e velozes pássaros “do mato”.

E o “índio”, por fim, era o “bicho” por excelência. Dotado de uma inteligência “quase humana”, reunia a ferocidade e a matreirice. Por isso o ódio que despertava no colono, de forma espontânea e natural. Se algum era capturado e trazido à fazenda, era para ser simplesmente morto ou escravizado. Poucos comentam, mas os antepassados pegos a laço eram, em geral, mulheres. Estuprar a índia e fazer filhos nela era uma forma de subjugar este animal estranhamente humano que vivia em torno das regiões de colonização incipiente. Mas uma vez trazido à civilização, se “aprendesse a falar” (o que geralmente só acontecia com crianças) e conseguisse aprender uma profissão, o índio não era mais um inimigo, apenas outro elemento subjugado, na estrutura de poder da grande fazenda.

Não podemos esquecer essa mentalidade se quisermos entender o desastre. Os colonos removeram a mata para afastar o bicho e para exterminar o índio. Removeram a mata até mesmo nos lugares onde isso nem era necessário, como encostas de pedreiras com ângulo de sessenta graus. No lugar da mata plantaram monoculturas que não ofereceram cobertura ao solo, as mais recentes são o eucalipto e a brachiaria. O uso frequente da queimada enfraqueceu a terra, salinizou-a, acidificou-a. Queimada proposital, ou queimada acidental, causada por balões, raios, acidentes domésticos ou, em dias excepcionalmente quentes, pedaços de vidro perdidos em moitas secas. Nos lugares mais queimados já não cresce mais nada: a terra está pelada, mostrando sua derme, vermelha ou amarela. Sem cobertura a chuva arranca e arrasta: surgem erosões imensas. A terra solta vai para os riachos, que ficam rasos e largos. As nascentes são sufocadas, riachos secam na estiagem, coisa que nunca se imaginou acontecer por aqui.

E este desastre acontece aos poucos, sem que ninguém proteste. Os jornais não comentam. A televisão não fala. O cadáver vai apodrecendo e é como se ninguém sentisse o cheiro. As pessoas dirigem pelas estradas olhando exclusivamente para o asfalto, sem ver as feias marcas de destruição que perfilam ao redor. Tal como, nas cidades, ignoram os mendigos, ao sair delas ignoram a destruição.

Ninguém quer ver, porque ninguém quer admitir que tem alguma responsabilidade. Não fomos nós, foram nossos pais, avós e bisavós. Nossos netos e bisnetos também dirão que não foram eles, mas que fomos nós – mas nós estaremos mortos então, o que significa que não veremos seus dedos apontados em nossas caras, e não precisaremos ter vergonha da acusação. Por isso podemos ficar inertes, sem nada fazer, sem nada dizer.

Nascemos em uma cultura violenta, uma cultura de genocídio, estupro, desmatamento, queimada e depredação. Matamos ou “pegamos a laço” os índios, arrancamos as árvores, secamos os brejos, queimamos os montes, destruímos os sinais de tudo que houve antes de nós. Tomamos posse da terra através da terraplenagem e da espólio. Esfolamos a terra, tiramos sua pele, para que crescesse outra, nova, nossa. Agora vemos essa pele que nasceu, ressecada, feia, cicatrizada, e não a queremos. Eis o fruto da ira e da cobiça de nossos antepassados. Até quando os desculparemos, até quando nos desculparemos?

Eu poderia também estar quieto, mas me dói cada vez que vejo uma nova erosão, que noto que esqueci outra cantiga que fez parte de minha infância. Dói quando vejo que a colonização continua, sempre em novas vagas, cada uma determinada a suplantar a que havia antes, sob camadas sucessivas de esquecimento. Rompendo a continuidade, para que tenhamos a ilusão de que o mal lá fora não é fruto nosso: queremos ser novos, fingimos ser outros, porque não queremos saber que matamos os bichos, que laçamos os índios e que limpamos o mato.

Eu não estou quieto porque todo escritor é consciência de sua era. Eu sei muito bem que a perfeição, possível ou não, é apenas um ideal vazio, apenas outra forma de não olhar lá para fora e ver o vazio, de árvores, de bichos e de índios, que o nosso passado produziu. Se eu ficasse obcecado apenas em contar, do melhor modo possível, as histórias e os sentimentos que agradam aos outros, eu estaria sendo apenas outro colono, que vive aqui, mas tem a cabeça no Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar. A mentalidade do colono é transitória. Ele não ama a terra, ela não tem família: seu coração está em outro lugar, para onde quer ir ou voltar, quando arrancar da terra o que seja preciso para viver lá como patrão, ele que veio como ladrão. O colono não é um cidadão.

Então eu começo, aos poucos, a falar disso, e de outras coisas que sinto, da raiva que sinto. Posso estar escrevendo mal, mas cada dia que passa tenho mais definida esta sensação de que é preciso vocalizar esta frustração. Falar em nome das árvores, dos bichos e dos índios. Falar em nome do que esta terra foi antes de ter sido reduzida ao que é.


30
Jun 12
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar | ver comentários (4)

Não me refiro à educação escolar, essa que sucessivos governos parecem querer dificultar, mas à educação cidadã e humana, que cabe às famílias e a cada um de nós. Esta é a que faz mais falta, porque se trata da que não precisa de grandes investimentos, nem de grandes construções. Não dispende energia, não move terras e céus, não cria dívidas e nem polui. Não custa livros, não consome dinheiro, não requer transporte. Mas apesar de ser tão barata em termos econômicos, é caríssima em termos de cuidado e de carinho — e cuidado e carinho parecem ser justamente os insumos que mais estão em falta no mundo do tchu e do tcha, do tchan e do Telò. Tem muita gente por aí que sabe fazer o lelelê, mas nada mais.

Tudo isso me vem à mente depois de ter ido assistir à festinha junina da escola da minha filha mais velha.

O evento até que foi bem organizado: tinha seguranças, som profissional, cantina produzindo os salgados fresquinhos, o guichê de fichinhas tinha troco, os banheiros eram bons e as crianças estavam muito bem ensaiadinhas. Vergonha foram os pais.

Apesar de ser evidente a falta de espaço do recinto, logo no começo se verificou que um canto da quadra, mais próximo da entrada, ficou atolado de gente, enquanto o canto oposto ficava vazio. Todo mundo querendo pegar o «melhor lugar» se amontoava junto à passagem, impedindo a entrada e saída dos outros, de modo que não apenas era difícil aos recém chegados verem seus filhos dançando a quadrilha, mas era também difícil para quem já estava conseguir enxergar alguma coisa através do mar de cabeças e braços erguidos com câmeras desesperadas para tirar uma foto qualquer.

Sucessivos pedidos da direção através do microfone foram em vão: ninguém se movia e a muvuca aumentava. Começou a haver acotovelamentos, alguém xingou palavrões altos (em um ambiente escolar, numa festinha de crianças, por Júpiter!). Somente quando a diretora ameaçou pedir aos seguranças que abrissem caminho foi que alguns «educados» concordaram em desobstruir a entrada e passar para os fundos da quadra.

A luta seguinte foi para retirar de dentro da própria quadra os pais desesperados por fotos dos filhos dançando. Tanta gente tinha entrado lá com câmera na mão e merda na cabeça que não havia espaço para as crianças dançarem. Novamente foram necessários apelos repetidos da direção da escola e os pais só se tocaram de lá quando novamente se ameaçou chamar os seguranças.

Liberada a quadra, a direção da escola, desistiu de tentar organizar o resto, pois já havia dito algumas coisas bem pouco elogiosas na tentativa de convencer os pais a abrirem espaço — como, por exemplo, sugerir que eles precisavam dar exemplo para seus filhos ou que a escola era um ambiente de respeito e não um lugar para se dizer palavras chulas e cometer agressões. O resultado foi um verdadeiro caos em torno da quadra, com gente se empurrando e se embicando como dava. Há um antigo axioma da ciência da organização que diz que para todo corredor estreito existe um imbecil disposto a empilhar coisas lá, ou obstruí-lo ele mesmo. Havia muitos destes no local, que, em vez de procurarem um lugar amplo para manter sua conversa ou paquera, ficavam parados no corredor, ainda por cima fazendo cara feia para quem vinha tentando passar. E cada turma que concluía seu turno na quadrilha gerava um tropel de crianças e pais que se espremiam pelas passagens apertadas com o desespero de quem está prestes a cagar nas calças. Essa era a hora em que os imbecis do corredor se sentiam pisoteados ou acotovelados e xingavam ou reclamavam da falta de educação alheia.

Nos lugares amplos a situação não era muito melhor. Onde não houvesse luz direta havia casais dando amassos. Caramba! Em um ambiente escolar? Por que esses animais vão se esfregar pelos corredores de uma escola primária? Não dá para satisfazer o cio em outro lugar, ou esperar para depois da festinha junina das crianças?

Para completar o drama, a escolha das músicas foi de uma lástima terrível. Para uma festa de crianças dançando quadrilha resolveram tocar estas porcarias breganejas que só falam de beber cachaça, fazer lelelê, querer tchu e tcha e coisas piores. E a gente que dizia que a Xuxa era uma influência perniciosa para os «baixinhos» por causa de seus shortinhos. Que valores está transmitindo uma escola que toca numa festa infantil uma música que diz:

Ela chega no baile faz a galera delirar Mascando chiclete doidinha pra namorar De saia curtinha só pra provocarE deixa a macharada delirando sem párarEla dança mexe mexe eu não vou aguentar.Eu vou beber cachaçaEu vou tomar méEu vou encher a cara por causa dessa mulher.

Muito educativa esta escolha, para acompanhar a quadrilha das crianças do segundo ano, todas na faixa dos sete ou oito anos de idade. Elas vão crescer sabendo que a «macharada» delira sem parar quando uma mulher chega de sainha curta no baile, «doidinha para namorar», e que para isso a referida «macharada» vai tomar cachaça.

Eu poderia escrever vinte páginas de lamentos sobre as coisas que pensei e senti, mas chega que me dá nojo. Alguns vão dizer que minha reclamação é «puritana» e que «é isso que as crianças encontram na sociedade em que vivem», mas a escola não é «a sociedade», ela precisa ser, e deveria ao menos pretender ser, um microcosmo de excelência, um lugar melhor do que a sociedade, onde se ensina aos pequenos um mundo ideal, que sonhamos que exista para eles, já que não existiu para nós. Não é lugar de endossar o mé que a «macharada» toma por causa de mulheres doidas de sainha curta, mas de ensinar justamente estas crianças a perceberem a brutalidade, a grossura e a estupidez que são necessárias para que uma pessoa conviva com essa música sem revoltar-se.

Enquanto nossa escola toca nas festinhas juninas infantis uma trilha sonora que não tocava nem em puteiro até há bem poucos anos, as verdadeiras tradições juninas são esquecidas: as crianças dançaram em estilo country.


14
Abr 12
publicado por José Geraldo, às 10:00link do post | comentar
Um artigo de polêmica cultural/política, não datado, mas provavelmente escrito entre 1998 e 2000, encontrado em um velho caderno que ia a caminho do lixo. Devido ao contexto em que foi escrito, este texto não se dirige ao público amplo que a internet alcança, mas a um público muito mais estrito e regional, alcançado pela imprensa escrita do interior. Lembro-me vagamente de tê-lo preparado para ser lido em um encontro de escritores que se estava tentando organizar na época.

O centro-sul do Brasil nos é apresentado como a região irradiadora do desenvolvimento econômico e cultural do país, mas quando olhamos de perto verificamos não ser bem assim. O impulso econômico que daqui se espraia é originário de fora e não se volta para a edificação da nacionalidade -- mas para a produção de excedentes que são absorvidos pelos mercados locais, arranjados de acordo com a estruturação do capitalismo internacional, que busca, por sua vez, esmagar as variedades regionais e políticas e impor a plana homogeneidade de uma aldeia global consumista, onde apenas sobrevive a arte como cadáveres das formas antigas de expressão.1 E a cultura genuína, que aqui havia, foi suplantada pelos maneirismos modernos e civilizados — que, de fato, nada são além de formas pasteurizadas das culturas de outros locais absorvidos antes pelo polvo capitalista.

Prova disso é o caráter exótico que é atribuído por nós, aqui da região mais globalizada do país, às sobrevivências de folclore das regiões menos amesquinhadas pela sedução da «modernidade» uniformizante. Estamos mais à vontade diante de fotos de antigas estátuas neoclássicas do que diante da obra do Mestre Vitlaino, entendemos melhor de porcelana chinesa do que de cerâmica marajoara, nos agrada mais a música da moda importada da Europa e da América do Norte do que as formas populares de canção.

Que foi feito de nossas festas? Alguém aqui ainda se lembra de ter ouvido uma moda de viola, uma toada, um calango ou um desafio?  Estas formas musicais pertencem à rica tradição de Minas Gerais, mas a maioria de nós jamais pegou uma viola, nunca viu uma sanfona de oito baixos, sequer ouviu falar de uma rabeca (eu mesmo me incluo nos dois primeiros grupos). Ninguém aqui saberia dizer o que é uma «torda», raríssimos terão tomado leite de onça em uma festa junina ou comido batata assada. Não faz parte da memória coletiva de nenhum de nós as melodias da Folia de Reis, da Festa do Divino ou de outras festas musicais de antigamente.

Todas estas coisas que citei fazem parte de um mundo antigo, pisado e esquecido desde que a Redentora resolveu se intrometer nos rumos do século XX e matar nossos projetos autônomos de futuro. A descaracterização da cultura popular, antes restrita aos centros de imigração e ao Rio de Janeiro sempre cosmopolita, se enveredaram pelo interior, deixando atrás de si uma terra arrasada, habitada por seguidores de novela e proprietários de radinhos de pilha sintonizados nas estações cariocas ou paulistas.

Houve um tempo em que as estradas do interior eram ocasionalmente pontuadas por cruzeiros de madeira. As pessoas sabiam o que comemorava cada um deles. Os antigos cemitérios de escravos ainda existiam, e havia quem plantasse flores neles, ou os cercasse para que o gado ali não pastasse.

Houve um tempo em que se podia organizar uma festa fincando doze bambus no chão e montando uma coberta com folhas de bananeira para proteger do sereno. Isso era uma «torda», e debaixo dela o baile acontecia desde que houvesse um sanfoneiro, um barril de pinga, uma bacia de pães recheados com molho de carne moída e um garrafão de vinho. Não precisava de polícia, nem de alvará. Nem de convite e nem de roupa nova.

Vocês podem estar surpresos com meu apego ao passado, achando que pareço um fantasma desses dias antigos, embora seja tão novo. Eu tive tempo de viver algumas destas coisas que estou mencionando, e pelo pouco que vi entendo que tenho motivos suficientes para a saudade. Então eu não venho com regras para nenhuma vanguarda, venho com a história da minha vida e os maus hábitos que os bons autores me ensinaram. Sonho repelir a colonização, pelo menos naquilo que ela mais me mata, e poder falar das coisas que sei e sinto.

Grito por uma arte nacionalista. Cessemos de copiar servis os cânones decadentes de uma Europa grisalha, que em breve será senil.2 Nesses países a morte das raízes pode nos parecer ter sido menos grave, porque o novo mundo que eles criaram ainda parece descender de suas antiguidades. É entre nós que o desenraizamento danifica mais, porque substitui o nosso por algo que é alheio. Somos ainda felizes por termos dentro de nossas fronteiras3 cinco identidades regionais tão fortes que nem mesmo o uso de uma língua única as nivela. Mas deixamos que prossiga a morte lenta dos dialetos e da saborosa prosódia popular. É um crime de lesa-pátria compactuar com essa emasculação de nossa cultura, antes que dê frutos universais.

Na infância, em verdade, porque uma cultura só amadurece no cultivo dos séculos. A nossa data de menos de três, e já está em decadência. O Brasil é um país onde muita coisa que ainda está em construção já está em ruína, como mencionou Gilberto Gil em famoso verso.4 As obras de nosso folclore estavam ainda em fase de elaboração quando foram surpreendidas pela agressão de um século uniformizado e colonial, que as desprezou como se fossem primitivas, que as insultou de «mestiças» numa época racista em que este termo era uma ofensa. Nossos nativistas do passado apenas refletiram sobre a grandiosidade do que estávamos pondo a perder para produzir, a partir da síntese dos elementos abandonados, os últimos brilhos da moribunda cultura de talhe ocidental.

O modernismo foi, sim, canto do cisne do Ocidente enquanto construção ideal, ideológica e política. Foi quando o racionalismo neoclássico perdeu a primazia: abriu-se caminho à liberdade, à expressividade, à anarquia. O resultado é mesmo decadência. Que se manifesta no questionamento do objeto, da obra, da arte. Nossa arte tão moderna não produz mais clássicos. Não procura admirar, mas apenas intrigar.  Estranhamos essas obras, nos surpreendemos com esses enigmas, mas dificilmente os tomaríamos como enfeite, como objeto de veneração, como símbolos de identidade. São obras que contemplamos à distância, às vezes até com asco.

Enquanto o Ocidente discute seu desmonte, nós vamos substituindo o que tínhamos de nosso pelas telhas quebradas e restos de estuque roubados da demolição deles. Não sei se tudo já foi feito: apenas suspeito que a casa que se faz com restos sempre se parecerá com restos.

Infelizmente vivemos sob o signo da mediocridade. A obra do medíocre procura, antes de tudo, justificar a si mesma. O objetivo do medíocre é o consenso: no consenso não há necessidade de criatividade, nem de maior capacidade. Os medíocres podem ser inimigos pessoais, mas concordam em suas obras. Ao contrário dos grandes gênios, que às vezes se insultavam por meio dos jornais falando das obras respectivas, mas frequentemente tomavam cafés cordiais quando se encontravam.

O medíocre acredita no fim da História, que tudo já foi dito e feito. Esta ideologia do fim do mundo interessa a quem suspeita que está morrendo. Depois de mim, que venha o dilúvio. «Morro com minha pátria», disse o ditador que, de fato, quase a levou a morte por um capricho seu. Morreu o ditador, a pátria sobreviveu. A duras penas, mas sobreviveu. O pós modernismo e seu consenso botam a mão na boca da África, da América, da Ásia, de Marte e de Plutão, de onde quer que se suspeite que alguém ainda pode ter uma ideia original: findou a História, morreram as estéticas, transfigurou-se a arte. Pendurem um urinol na parede do museu, amontoem cachorros mortos na Bienal, vendam borrões de tinta por milhões.

Sou, porém, um idealista. Acredito que dentro do adormecimento em que vive o resto do Brasil que ainda não foi castrado pela globalização pode ainda existir o anseio pela novidade. E dali pode nascer uma nova nacionalidade, uma nova arte.

Nacionalista esta, não por ódio ao alheio, mas por amor ao próprio. Não por repelir o diferente, mas por difundir dissensos criativos. Não por absolutamente pôr num pedestal nosso folclore, que muito tem de obscurantista e retrógrado, mas por oferecer-lhe espaço para que se transforme seu produto em artefato.

Esse folclore que ignoramos é uma fonte de indícios de futuro. Podemos inventar de nosso jeito, sonhar em nossa língua, contar a nossa história, cunhar nossa moeda. Independência é isso, é algo que quase ninguém conhece, porque quase ninguém tem.

Convido a todos vocês, descrentes da modernidade, ao lodaçal desafiante da oportunidade. Fora do asfalto estéril que só leva a lugares conhecidos. Entrem comigo nesse brejo perigoso, onde certamente alguém vai se afogar. Vamos fundar ali uma outra tribo, uma que não faça pajelança para gringo ver. Tragam seus tambores, alguém pelo amor de deus me arranje uma rabeca porque eu quero ouvir. Perdidos na insuportável solidão do concreto, vamos imitar pios de pássaros e ler versos em dialeto. Vamor fugir de volta para a região de nossa infância de onde a escola e a academia nos tiraram.

Prometo que não sei como será esse mundo novo que eu sonho ver erguido. Beleza é isso, o imprevisto, o impossível. Mesmo as ruínas do Ocidente serão mais bonitas do que o seu futuro. Procuro profetas para um novo mundo. Venho de Masada, do Langue d'Oc, da Etrúria, de Creta, da Irlanda e do Egito. Venho de Alcácer-Quibir, de Canudos, de Copá e Macchu-Picchu. Venho de lá e estou andando no rumo vago do sertão.

Busquemos essa direção, longe do mar corrupto e da montanha inculta. Gritemos a ambos os lados que o progresso é só um lusco-fusco  diante da longa idade da humanidade.

Existe um perigo, no entanto. A proposta que faço é tipicamente talhada para o gosto das elites políticas, e surgirá sempre a tentação fácil de render homenagens ao que já está. Mas a política não é compromissada com estes objetivos, somente com lucros e poder. Verdadeiros artistas não podem compactuar, devem agredir. Esquecer a perspectiva de salários gordos, soldo de mercenários. Sem ilusões: se a política se interessasse por cultura, nosso país estaria bem melhor do que está.

1 Este texto foi escrito bem antes que eu sequer tivesse acesso à internet, de forma que eu ainda não tinha a compreensão dos fenômenos culturais que ela acabaria por propiciar. No entanto, continuo acreditando que a frase é verdadeira, porque aquilo que a internet produziu de novo é apenas uma variação esvaziada de formas artísticas preexistentes, com o agravante de que a evolução das ferramentas eletrônicas tornou-se muito mais fácil o fazer artístico.

2 Para quem estudou História e não gastou o tempo fumando maconha no campus, já estava mais do que evidente em 1999 que a Europa tinha subido no telhado. O que ainda não está claro é se a queda a matará ou servirá de alerta para que reencontre o rumo.

3 Neste trecho eu me referia ao estado de Minas Gerais, que possui cinco falares variantes regionais: o mineiro propriamente dito, no centro do estado, o mineiro-baiano, no norte, o triangulino, o sulista (estes dois influenciados, mas não exatamente da mesma forma, pelos falares paulistas) e o mineiro-fluminense da Zona da Mata.

4 O famoso verso em questão está na canção «Haiti», e se refere a uma curta menção às «ruínas de uma escola em construção».


25
Set 11
publicado por José Geraldo, às 20:13link do post | comentar
Apontamentos avulsos e incompletos encontrados datilografados sobre o verso de páginas contendo alguns poemas. Tanto os poemas quanto esses apontamentos haviam desaparecido de minha lembrança. A data (dos poemas) é 1994, a destes apontamentos deve ser um pouco depois (um ano, no máximo). Trata-se aqui do texto mais antigo cuja forma original não tem influência alguma de revisões posteriores. Uma verdadeira relíquia da época em que eu ainda estava aprendendo a tentar escrever. Mais do que isso, parecem ser apontamentos para um glossário que ficaria como apêndice de um romance que, sob certos aspectos, evoca muito o «Serra da Estrela». Por uma dessas estranhas coincidências que a vida tem, meu pai encontrou essas folhas soltas no meio de um monte de papel velho que ia queimar, e salvou para mim.
Benzinho
Planta rasteira cujas sementes são envoltas por uns espinhos terríveis que se curvam ao entrar na pele, tornando difícil e dolorosa a retirada. Talvez o sábio homem do campo tenha visto nesta adesão teimosa uma metáfora para o amor obstinado, que machuca a carne, é difícil de largar e deixa uma inflamação persistente depois que é arrancado.
Quinze Bandas
Em Minas Gerais as direções não coincidem com os pontos cardeais, não são as oito da rosa dos ventos: são quinze, que incluem acima, abaixo, para lá, para cá, desse lado, daquele, antes, depois etc. A semente do quinze bandas (um outro espinheiro da região) são recobertas de espinhos orientados para todos os lados (ou "bandas", como se diz por aqui).
Moça Velha
Trata-se de uma flor cujo traço peculiar é a falta de viço: as pétalas parecem um papel crepom sem brilho, áspero, o talo é grosso, mas tem uma consistência murcha e é recoberto de pelinhos. As folhas são escuras e molengonas. As flores, por sua vez, são de muitas cores possíveis: vermelhas, amarelas, alaranjadas, rosadas, violetas, brancas e acastanhadas. As pétalas são radiadas e algumas plantas têm flores com dupla camada
Coração da Índia
Não consegui apurar com certeza o motivo do nome poético dessa fruta, parecida com uma pinha. Sua polpa é delicada e doce, de cor branca semitransparente e consistência de geleia, mas o cheiro é forte e resinoso. O formato lembra vagamente um coração, mas casca é verde.
Chá da Meia Noite
Dito zombeteiro muito comum nas histórias de nossas avós, que relatavam histórias de esposas maltratadas por maridos violentos que encontraram a sua libertação fazendo-os beber o dito chá. Na língua do povo as mortes súbitas de pessoas relativamente jovens e aparentemente saudáveis eram atribuídas a feitiço, veneno ou “artes de mulher”, um termo obscuro que engloba principalmente a exaustão do parceiro no amor. Mas o chá da meia noite, por ser meio menos sacrificado, era o preferido. Muitas plantas nativas de Minas Gerais são venenosas, e algumas podem agir em doses relativamente pequenas.
Os Misteriosos Efeitos da Aparição do Diabo
Consta que o diabo era visitante regular de uma certa sede de fazenda, cujo antigo dono, sacrílego e assassino, morrera sem extrema unção. O fantasma do velho ainda se arrastava pelas ruínas da fazenda abandonada, tão apegado às suas posses que nem o diabo conseguia tirá-lo de lá e levar para o Inferno. As aparições do diabo eram saudadas por uma sucessão de eventos antinaturais: peixes que saíam da água para respirar, ratos caçando gatos, vacas montando nos bois, frutas subindo de volta para as árvores e… o mais extraordinário de todos: a troca de crias entre duas espécies inusitadas. Mesmo o fantasmas sendo invisível e o diabo não fazendo nenhuma questão de aparecer para mais ninguém, era fácil detectar a presença demoníaca pela visão de uma porca que dava de mamar a uma ninhada de pintinhos e de uma galinha que chocava uma ninhada de porquinhos. Ou vice-versa, isso depende de quem conta.

Além desses trechos, estou expandindo uma outra história contida no mesmo manuscrito, que postarei na quarta feira.


25
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 21:15link do post | comentar | ver comentários (3)

Antes de começar a efetivamente postar o texto de meu próximo romance aqui, vou fazer alguns comentários sobre a natureza da obra, seus objetivos, suas características e o modo como vou disponibilizá-la. Isto é necessário para que o leitor não caia de paraquedas no texto e fique perdido. Futuramente, ainda, esta página servirá de índice dos capítulos, tal como fiz na tradução da “Casa no Fim do Mundo” (título de que me arrependo: a versão definitiva, que vou fazer em e-book deverá se chamar “A Casa Sobre a Fronteira”).

“Serra da Estrela” é um romance do gênero fantástico que emprega os personagens e a imagística do folclore brasileiro (mais especificamente do estado de Minas Gerais) para tentar construir um efeito de “terror sobrenatural“ semelhante ao obtido por autores como H. P. Lovecraft, Stephen King e outros clássicos do terror americano. Contrariamente a outros projetos meus, “Serra da Estrela” foi concebido desde o começo como uma obra de intenções “comerciais”, no sentido de que ele procura atingir um público grande e jovem.1

A história está integralmente ambientada em um pequeno trecho do estado, entre as regiões da Zona da Mata Mineira e do Campo das Vertentes: dali se originam os personagens, ali se passa toda a ação “real” e ali se encontra o ponto de partida para a ação “surreal” — que de certa forma também se localiza ali. Quem quiser ter uma ideia geral do conceito, pode usar a mini-novela em três partes A Cabana ao Pé da Montanha como uma introdução. “Serra da Estrela” procura desenvolver o mesmo universo sobrenatural, com algumas adições e improvisos, e possivelmente recorrerá a um ou dois dos personagens que ali aparecem (mais provavelmente a mulher de negro) e certamente empregará um ou dois locais onde a ação deste conto se passa.2 Um outro conto que pode ser útil como introdução ao mesmo conceito é Inocência Assassina, de onde retirei a protagonista.3

Entre os personagens haverá pelo menos quatro de natureza sobrenatural: a mula-sem-cabeça, o lobisomem, a iara e um que eu mesmo inventei a partir do imaginário popular europeu, mas cuja existência eu não pude atestar no folclore mineiro. Dos quatro, a mula-sem-cabeça será o mais destacado, talvez até ganhando o status de “protagonista” da história, mas o lobisomem também terá seu valor. Para preparar-me para escrever sobre os dois eu fiz uma razoável pesquisa e cheguei a escrever dois breves ensaios sobre eles (as ligações que incluí).

Eu já tenho desenvolvida até agora a personalidade e os conflitos de pelo menos oito personagens (incluindo três capítulos inteiros inéditos), mas justamente me falta acabar de alinhavar as suas histórias. Digo isto porque, contrariamente aos meus dois primeiros romances, este será bem complexo. “Praia do Sossego” e “Amores Mortos” se caracterizavam por ter um personagem central, que mantinha sempre o foco da história. Um narrador em terceira pessoa não onisciente os acompanhava e os demais personagens só tinham vida à medida em que interagiam com o protagonista. Em “Serra da Estrela” não será assim. Acompanharei quatro as “vidas”4 de quatro mulheres diferentes até que se entrelacem (as vidas, não as mulheres, embora isso não esteja inteiramente descartado…) e durante a maior parte do tempo as quatro linhas serão independentes. Poderão eventualmente tocar-se (as vidas, não as mulheres, repito, mas isso não está fora de questão…), mas seguiram cursos independentes, possivelmente sem chegar a um final comum, pois o assunto central do romance não é um personagem e sua vida, mas um lugar e as coisas que nele acontecem.

Capítulo 1: Língua GeralCapítulo 2: Estrada Estreita, Trilho AntigoCapítulo 3: A Porteira do Mundo

Outro aspecto diferente em relação a este projeto é ele ser uma obra ainda grandemente aberta: ainda com menos de 20% do texto necessário para concluir o projeto (que deverá fechar com pelo menos 350/400 páginas). Isto significa que eu ainda acolherei sugestões e comentários que me pareçam interessantes, preferencialmente feitos por pessoas que vivam no interior de Minas Gerais5 ou que sejam especialistas em folclore.

1 A intenção comercial, no caso, se explica pelo desejo de sensibilizar a juventude de hoje para a viabilidade do imaginário nacional como fonte para a cultura pop, combatendo a americanização dos leitores que se formam hoje em dia lendo best seller.

2 No entanto, que fique bem claro que a ação de “A Cabana…” não tem nada a ver com a ação de “Serra da Estrela”. No máximo pode-se dize que a ação desta noveleta se passa posteriormente em relação aos fatos narrados no romance.

3 Ainda não sei como vou encaixar a ação deste conto no contexto do romance, mas eventualmente ele se tornará parte de “Serra da Estrela”, tal como “Memórias de um Cafajeste” se tornou parte de “Amores Mortos”, meu romance inédito.

4 Fica difícil usar literalmente o termo “vida” para os quatro casos, como o leitor eventualmente perceberá.

5 Estou muito interessado em histórias de fantasmas e criaturas legendárias do estado de Minas Gerais. Disposto até ao ponto de ir entrevistar pessoas que se dispunham a me contar suas histórias para eu escrevê-las.


22
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 14:04link do post | comentar | ver comentários (1)

Hoje é Dia do Folclore. Não temos muito o que comemorar, infelizmente, se considerarmos que os nossos jovens estão cada vez mais alienados em relação às nossas tradições. Resolvi, porém, começar a fazer a minha pequena parte quanto a isso. Começando esta semana e durante os próximos meses, encerrando no Dia do Folclore do ano que vem, publicarei em capítulos semanais o meu romance « Serra da Estrela », que tem por assunto os personagens fantásticos de nosso folclore. Até o momento atual, com 30% do texto já feito, tenho uma mula sem cabeça (protagonista), um lobisomem (personagem importante), uma iara (personagem coadjuvante) e uma Mulher de Branco.

As postagens serão sempre nas quintas-feiras, que é dia de mula sem cabeça, é é claro.


17
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 16:09link do post | comentar

Quando eu era criança, ser chamado “caipira” era praticamente um xingamento. Equivalia a ser chamado de “ignorante”, “abobalhado” ou “ingênuo”. Piadas de caipira eram muito mais fortes que as de português. Talvez isso se explique pelo fato de que nós, os habitantes da Zona da Mata de Minas Gerais sermos descendentes de colonos provenientes, principalmente, das terras fluminenses, gente mais ligada à “Corte” e ao exterior. Nós da Zona da Mata de Minas Gerais vivíamos de costas para Belo Horizonte e o resto do estado, olhando com saudade para o litoral. Nós reclamávamos de viver numa terra de montanhas, adorávamos vargens, viajávamos à praia nas férias e aprendíamos a chiar o esse com poucas semanas de convivência. Caipiras eram os outros, e música sertaneja (uma concessão para uma minoria de aborígenes que viviam nos cantões), coisa que só se ouvia de manhã cedinho em nossas rádios. Torcíamos para os times do Rio de Janeiro, acompanhávamos revoltados o noticiário policial carioca, vivíamos a dizer que não queríamos nunca viver no Rio de Janeiro. Só que era mentira, claro.

Só que isso tudo foi nos anos oitenta, no século passado. E desde então muita coisa mudou. Quase ninguém mais acomapnha rádio em ondas médias (a gente ouvia Rádio Globo, a Tupi, a Mundial e a Eldorado), pouca gente lê jornais (Jornal do Brasil, O Globo, o Dia, Jornal dos Sports e Jornal do Commercio) e a televisão via satélite, com programação neutra, nos afastou do contato imediato com os anúncios das lojas cariocas. Hoje conhecemos as grandes, essas que aparecem na programação nacional, mas ninguém mais ouve falar de lojas como a Impecável Maré Mansa (que patrocinava um famoso programa humorístico na Rádio Tupi, e posteriormente na Globo), ou a R. Pinto (“que canta de galo com preço de milho picado”, uma presença indefectível na Rádio Relógio Federal, “cultura e hora certa a cada minuto”, “… você sabia?”).

Nada poderia ser mais estranho à cultura carioca do que a cultura caipira. O carioca é cosmopolita, olha para o mundo, conhece vários tipos de gringos, tem hotéis, teatros e museus. O caipira, recatado, olha em volta de si, desconfia do mundo lá fora, cheio de pessoas diferentes e mal-intencionadas. Toda a cultura do carioca gira em torno da espontaneidade, da alegria. A cultura caipira gira em torno da formalidade, do respeito, da religiosidade. O carioca é esperto, o caipira é heroico. Nunca as rádios do Rio tocavam música caipira. Para o carioca, o caipira é um enigma, um selvagem, talvez uma relíquia, possivelmente um fóssil. O carioca ri do caipira. O caipira ignora o riso, tal como o visitante do zoológico não liga para a gargalhada do macaco. Dois mundos que existem de costas um para o outro, quando se encaram não se reconhecem.

A gente só podia ouvir música caipira em ondas curtas, nas rádios de Belo Horizonte (Inconfidência, Itatiaia e Atalaia, as principais), nas de São Paulo (Record, Globo, Aparecida) ou de Goiânia (Anhanguera). A transmissão chegava com muitos assobios por causa da interferência. Afora isso, havia o programa “antropológico” da manhã de domingo (o “Som Brasil”), no qual Rolando Boldrin (a princípio) ou Lima Duarte (pouco depois), fantasiados de Mazzaropi, apresentavam artistas folclóricos. A música caipira só tinha lugar nos canais de televisão quando era mostrada como como folclore.

“Mas a tal música caipira não é folclore?” Deve alguém estar perguntando. Depende do ponto de vista. Se considerarmos que o samba é o “folclore carioca”, então música caipira é folclore também. Mas se pensarmos no folclore como uma coisa distante e quase morta, que precisa ser preservada através de programas governamentais, então ela não é isso. Pelo menos não naquela época. O gênero caipira era a expressão artística do Brasil rural, do Brasil do planalto, do Brasil sem mar, do Brasil português. O Brasil de antes do imigrante, o Brasil de antes da cultura de massa. Para os que viviam esse mundo, o gênero caipira era tão espontâneo quanto uma roda de pagode o é para cidadão carioca.

Mas nos anos oitenta do século xx, esse Brasil estava morrendo rápido, com a migração para as grandes cidades e com a eletrificação dos grotões. A alfabetização e a entrada da televisão eram forças irresistíveis, diante das quais o Brasil caipira recuava sempre mais para longe. Triunfava o cosmopolitismo do carioca, definhava o brio conservador do caipira. O Brasil caipira aprendeu a rir, esqueceu a viola e começou a perder o sotaque. E aqui, onde o sotaque nunca foi forte, resta pouca lembrança dele.

Curiosamente, nesse processo em que a cultura caipira desaparecia, as ondas culturais se chocavam e os fluxos se invertiam. A televisão passou a repetir o sinal vindo de Belo Horizonte, o rádio deixou de ser popular e a internet criou um canal direto com o mundo, sem precisar fazer escala no Rio de Janeiro. Com isso, fica até parecendo que estamos mais longe de lá, que até estamos em outro estado. Junto com os telejornais belo-horizontinos, vieram também os jogos de Atlético e Cruzeiro, que começaram, aos poucos, a dividir torcida com Flamengo, Vasco da Gama, Fluminense e Botafogo. Hoje já não estamos de costas para Minas Gerais, porém, a verdade seja dita, Minas Gerais ficou muito mais parecida com o Rio de Janeiro, até na violência urbana e na cultura de massas. Minas Gerais não é mais caipira, mesmo ainda estando cheia de cidadezinhas drummondianas.

Ficou mais fácil rejeitar a identidade “caipira”, e tudo que ela acompanha. Nós somos diferentes, somos descendentes de colonos da “corte”. Nós não falamos “engraçado” e nem nos vestimos de um jeito ridículo (que, aliás, nunca passou da caricatura inventada pelo cineasta e ator ítalo-brasileiro Amacio Mazzaropi). E como nós rejeitamos a identidade caipira, por causa destes aspectos que julgamos ridículos, rejeitamos junto com ela a cultura tradicional que a ela se liga. Vivemos estas montanhas, mas não olhamos para elas: queremos o mar distante, o além-mar se possível. O que está próximo não nos interessa. “Nem no passado nós fomos caipiras”.

Mas por que essa rejeição. O que era tão horrível no mundo caipira, para merecer que o rejeitássemos tão completamente. Não tenho gabarito suficiente para dizer isso, mas tenho as minhas opiniões. O Brasil caipira representa algo que o Brasil resolveu superar: o caipira é discriminado porque nós temos vergonha de nossas raízes indígenas, africanas e portuguesas. Rejeitamos o caipira porque o nosso objetivo é a assimilação no globalismo: não gostamos de nossa cara, então queremos fazer uma plástica que nos deixe com cara de um ator americano. Não queremos ser morenos, queríamos ser louros escandinavos. Nós não gostamos do Catolicismo “supersticioso” e nem da Umbanda primitiva, queremos a “reza forte” e “fashion” das igrejas “fast-food” importadas com franquia e tudo lá dos Istêitis. Nossos nomes são difíceis de pronunciar (pelos americanos) então queríamos outros, mais “internacionais”, como Johnny, Peter, Richard, Michael ou David. E como não sabemos inglês, acaba ficando Jhone, Piter, Rikky, Maicon e Deyvid. Temos vergonha da viola e da botina, mas não temos vergonha de agradar gringo na praia para ganhar trocado, como macacos de realejo. Temos vergonha da música caipira, porque fazia chorar e pensar, mas não temos vergonha de rebolar para o riso do mundo.

Hoje descobri que sou caipira, que ainda estou ligado a essas coisas antigas e a uma forma tramontana de pensar. Estou aqui, entrincheirado nas minhas montanhas, olhando desconfiado para os perigos que vem debaixo, lamentando que não tenha suficiente azeite para enfrentar todo o assédio que vem pela frente.


12
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 00:38link do post | comentar

Estava concluindo o terceiro volume da tetralogia épica sobre uma sociedade secreta maçônico-judaica-ocultista que se refugiara no Brasil durante a colonização portuguesa. Conceber e detalhar os rituais mesclando o Antigo Rito Escocês com outras influências cabalísticas lhe custara meses de pesquisa e o amor de Rafaela, que não suportara mais as longas horas de ausência perambulando por sebos e bibliotecas, não aceitara perder outro dos três quartos do apê para mais prateleiras de livros. Estava ali imerso em seu mundo particular e em contas a pagar já quase impagáveis. Sentiu então o característico cheiro sulfúreo de que as lendas falam. Era ele de novo.

— Boa tarde, amigo.

— Muito boa tarde, Memê. O que anda fazendo?

Sua surpreendente familiaridade com o escamoso, a ponto de lhe ter dado um apelido desses, já não o surpreendia.

— Andando por aqui e por aí…

— Andaste sumido nos últimos meses.

— Ora, aquela nega que você arrumou era muito supersticiosa e encheu a casa de velas, de incensos, de arrudas e de bentinhos para manter-me longe.

— Rafaela? Curioso, nunca notei nada demais de estranho.

— Ora, foram muitas as coisas dela que você não notou, não foi, Totó?

O desviado também tinha lhe dado um apelido de colegial.

— Por favor, este não é um momento legal para conversarmos sobre isso.

— Lhe doem ainda os chifres?

— Não tanto quando uma próclise no começo da frase. Mas… peraí, chifres quem tem é você.

— Me faça o favor, Totó… é coisa feia caçoar do defeito físico de alguém.

— Tudo bem, desculpe-me… Mas… chifres?

— Lhe surpreende que eu diga isso?

— Ah, não sei. Mas poderia, por favor, parar de colocar esses malditos pronomes nos começos das frases! Isso me irrita.

— Ora, mas irritar aos outros é algo realmente diabólico de se fazer…

— Pára, Memê. Seu papo já andou melhor. O que quer hoje?

— Olha, voltei para lhe fazer de novo a velha oferta.

— Não, Memê, não vou lhe apresentar a prima Teresa. Tenho medo da cria que pode nascer disso.

— Não é nada disso, seu tarado!

— Tarado!?

— Aqueles comentários foram irônicos! Eu teria que ser muito pervertido para pensar em ter alguma coisa com aquela mulher. Aliás, eu sou muito pervertido, me dá o telefone dela?

A gargalhada dele era obscena.

— Memê, eu vou lá buscar as velas da Rafaela para lhe mandar pros quintos.

— Tá bom, eu prometo que não falo mais nisso. Aliás, meu assunto é outro.

— Sim.

— Vim lhe repetir a oferta.

— Oferta… oferta…

— Oh, sim, faz tanto tempo. Como da última vez: eu lhe dou o sucesso em troca de sua alma e etcétera.

Os olhos de Fausto percorreram a pilha de notificações extrajudiciais sobre a escrivaninha e ele se sentiu balançado a aceitar.

— Não sei se vale a pena vender-lhe minha alma em troca de alguns anos de prazeres e de riqueza.

— Certamente que não vale. Mas existem compensações. Uma delas é que, ao contrário do que dizem, eu não me empenho em torturar ninguém.

— Eu sei, eu sei. Já me disseram que o problema do inferno não é o clima, mas as companhias…

— De toda forma, eu resolvi lhe facilitar. Deixo-lhe meu cartão: se decidir aceitar os termos do contrato — ele tirou do bolso um documento de trinta e seis páginas, em três vias — é só me chamar.

— Você tem telefone celular?

— E por que não teria? Existe coisa mais infernal do que o celular?

Fausto riu gostosamente e aceitou das mãos de Mefistófeles a minuta do contrato. O diabo lhe alertou para que lesse atentamente, rubricasse cada folha, reconhecesse firma em cartório (uma coisa infernal, claro) e então ligasse.

Assim acertados, Memê foi embora deixando, como sempre, uma garrafa de bebida de alta qualidade. Daquela vez foi slivovitz artesanal búlgaro, feito com ameixas espremidas pelas mãos de lindas camponesas louras dos Cárpatos.

Tinha muito tempo que Fausto não provava uma bebida boa. Somente na base da água e da cerveja barata. Não tinha sangue de barata. Abriu a garrafa e sentiu o aroma suave, que evocava os calmos regatos dos Bálcãs. Pensou nas mãos calejadas das lindas camponesas búlgaras e isso o excitou. Gostava de mulheres trabalhadoras. Quanto criança, na época de uma distante guerra fria, muitas vezes se masturbara diante da capa de uma revista soviética que recebera de brinde da embaixada: Rabotnítsa, “mulher operária”. Na capa ia uma moça de rosto arredondado, olhos ligeiramente amendoados, cabelos que pareciam fios de teias de aranha, tão finos e brancos. Ela tinha um sorriso lindo e uma roupa colorida, padrão folclórico de algum lugar do Cáucaso. A revista estava em russo e Fausto nunca conseguira saber nada a respeito da moça, cuja biografia estava em destaque no interior, entre fotos pálidas em preto e branco, que a mostrava entre seus pais num lugarejo rústico. Pensava nas mãos calejadas da camponesa soviética e … oh, como o mundo é imenso e cheio de delicadas pequenas maravilhas para aqueles que têm dinheiro e tempo para percorrê-lo!

Tomava o slivovitz devagar. Sorvia cada gota como se fosse o próprio hidromel do paraíso. O roxo pálido daquele líquido tingia os seus olhos de tristeza por ser tão pobre, e de repente a trilogia pareceu sem sentido.

Revirou nos dedos o cartão de Mefistófeles. Por fim, não conseguir mais suportar a vontade de sentir acariciando o seu sexo as mãozinhas pequenas e calejadas das louras camponesas dos Bálcãs, ou do Cáucaso ou da Puta que o Pariu. Digitou apressadamente o número: 3613-0666.

Oi informa: você não tem créditos suficientes para fazer esta ligação.

Xingou todas as gerações de locutoras que emprestaram suas vozes melífluas para as companhias telefônicas e discou de novo, a cobrar. Era uma vergonha fazer isso, mas Mefistófeles já era seu chegado, não se importaria.

— Boa tarde, aqui é Fausto.

— Booooa tarde, Fausto. Então, leu o contrato inteiro?

— Sim — mentiu.

— Estás de acordo?

— Sim.

— Já registrou?

— Não precisa, eu assino com sangue como você gosta. De qualquer forma, não tenho dinheiro para reconhecer firma desta joça.

Mefistófeles apareceu de novo diante dele. Com uma seringa hipodérmica extraiu 10 ml de sangue e injetou na sua caneta Montnoir Plus dizendo, divertidamente:

— Você devia fazer isso é com a sua impressora: fica mais barato do que comprar cartuchos de tinta. Aliás, se você puser ouro líquido ali ainda fica mais barato.

Passou-lhe a caneta e Fausto rubricou o documento, em todas as vias. Quando terminou Mefistófeles lhe cumprimentou:

— Muito bem, bem-vindo à companhia. Será um prazer tê-lo conosco no time. Espero que tudo fique conforme o seu agrado. Agora, por favor, me desculpe, mas tenho de me retirar, nesse exato momento tenho um ocultista carioca que já foi letrista de rock me evocando e eu sinto que ali vai ser algo grande.

E Fausto ficou sozinho em casa, com suas contas, e sem perceber nada de mudado em sua vida.

Semanas depois, no entanto, começou a receber ofertas de inúmeros editores. Ofertas com valores bem razoáveis. Desovou todos os livros que já havia escrito, cada poema. Os contratos lhe renderam uma grana preta. Investiu em ações e em menos de dois anos, graças a um faro sobrenatural para o risco, havia se tornado um dos maiores milionários do mundo. Tinha um castelo na Bulgária, onde era servido por sete jovens de mãozinhas pequenas e sorrisos alvos. Os aldeões faziam o sinal da cruz ao vê-lo passar.

Até que um dia notou que as suas gavetas estavam vazias. E os editores ainda queriam mais. Sentou-se então para tentar terminar a trilogia e descobriu, espantado, que não tinha nenhuma ideia.

Vinte dias depois, ainda sem conseguir escrever nenhum bilhete, telefonou para Memê.

— O que houve, não consigo escrever nada! Até a lista de compras tenho que ditar para a Natasha! E olha que eu até aprendi a falar búlgaro!

— Mas, Fausto, você não me disse que tinha lido o contrato?

— Bem, eu menti!

— Então abra a gaveta e leia a sua via, por favor.

E desligou.

Fausto pegou a sua via do contrato e foi prescrutando as infindáveis causas até que, espantado, parou:

CLÁUSULA VIGÉSIMA QUARTA – Em compensação pela facilidade para enriquecer que lhe será proporcionada, o contratado entrega ao contratante a sua originalidade artística.
PARAGRAFO ÚNICO – Caso o contato final seja feito por meio deuma chamada a cobrar originada de  telefone móvel,  ademais daoriginalidade o contratado também entregará o seu talento.

Como requinte de crueldade, no verso da folha anterior, Mefistófeles havia rabiscado em sua caligrafia barroca e aljamiada: “mas pelo menos você vai ficar rico antes.”


05
Set 10
publicado por José Geraldo, às 11:33link do post | comentar

Já que ontem eu escrevi sobre a mula sem cabeça, resolvi aproveitar o embalo, enquanto os dados ainda estão frescos na memória, e escrever sobre o lobisomem, com que ela possui na tradição luso-brasileira, uma relação muito próxima.

O lobisomem luso-brasileiro não é o mesmo lobisomem que é visto nos filmes de terror americanos e que passou a fazer parte da tradição literária europeia. Na cultura pop de hoje a comparação mais próxima que se possa fazer com ele seja a do professor Lupin, da série Harry Potter, que tampouco é uma fera irracional e sanguinária que se manifesta nas noites de lua cheia. Porém, ainda assim, há diferenças inconciliáveis entre os dois.

A exemplo da mula sem cabeça, o “nosso” lobisomem é um instrumento de propaganda da Igreja Católica, cuidadosamente desenvolvido como uma espécie de “propaganda viral” do sacerdócio em uma época em que a Internet ainda não existia. Eu explico. Mais tarde. As características católicas do lobisomem ficam evidentes na natureza de sua maldição, no seu comportamento enquanto transformado e nos métodos utilizados para desviar, neutralizar ou meramente sobreviver à maldição.

O lobisomem do cinema carrega consigo uma maldição de forte conotação sexual, pois é transmitida pelo contato sanguíneo: a violência da mordida do lobisomem é uma metáfora para o estupro da mesma forma como a suavidade da mordida do vampiro o é para a sedução. Ambos, lobisomem e vampiro, na tradição centro-europeia e balcânica (que é a que chegou ao cinema) são seres pervertidos pelos instintos e que transmitem sua brutalidade através de atos de “contaminação”.

Mas o lobisomem luso-brasileiro não é assim: a sua maldição não possui um caráter sexual e ele não é violento como o centro-europeu. É uma maldição individual, uma espécie de predestinação. Trata-se do sétimo filho de um sétimo filho: uma condição que não se transmite, mas com a qual se nasce, e que não se reverte, no máximo, se contorna. Ninguém “se torna” lobisomem: ou você nasce para ser um ou jamais o será.

Uma vez que a condição é pessoal e intransferível, verifica-se que é possível evitá-la de todo: basta que nunca haja um “sétimo filho de um sétimo filho”. Nos dias de hoje isto já não é um problema, visto que as famílias não procriam tanto (isso certamente explica a raridade de lobisomens atualmente), mas até meados do século XX não era incomum as famílias chegarem a essa quantidade de crianças, ou a números ainda mais incríveis: a minha avó paterna teve nada menos do 22 irmãs e cinco irmãos, e o caso dela nem foi tão extraordinário assim. O meu avô, que não era de brincar muito, nas raras vezes em que o fazia mencionava que “antigamente se rezava muito a oração de São Bento: um fora, um dentro”.

Se havia tanta família com tanto filho no mundo, então a possibilidade de haver um “sétimo filho de um sétimo filho” era real e presente, sendo necessário evitar essa condição a todo custo. Não era incomum que o sétimo filho fosse morto, ainda era menos incomum que fosse entregue à Igreja para ser feito padre, não era raro que fosse castrado e criado como mulher. O mundo antigamente era muito violento e cruel, muito além do que nós supomos. Na Argentina, onde a lenda do lobisomem chegou muito cedo, pela boca de escravos brasileiros fugidos, sétimos filhos eram abandonados em encruzilhadas, sendo acolhidos por famílias hispânicas, desconhecedoras da tradição luso-brasileira, ou criados por missões da Igreja. A situação se tornou muito grave em certa época, a ponto do presidente Hipólito Yrigoyen ter se disposto a apadrinhar os sétimos filhos e conceder-lhes bolsas de estudo integrais. Formalmente, o primeiro batismo de sétimo filho tendo o presidente por padrinho só aconteceu em 1907, mas o costume se tornou tão arraigado que em 1973 o presidente Perón oficializou-na forma do decreto 848 que automaticamente tornou “afilhado do presidente” todo sétimo filho.

Havia outras formas de ser lobisomem, todas relacionadas a algum tipo de condição impura na origem da criança: filho de padrinho com madrinha, filho de tio com sobrinha, filho de padre. Por esta última razão surgiu a complementaridade em relação à mula sem cabeça, que raramente encontrará o lobisomem na condição transformada. A condição, porém, só se manifestava a partir da puberdade, ou melhor, a partir dos treze anos. A criança, que até então fora normal em todos os aspectos (no máximo apresentando uma magreza ou uma palidez ligeiramente maior do que a regra), passa a sofrer terrores noturnos nas noites de terça para quarta e de sexta para sábado, que vão se tornando progressivamente mais intensos (talvez à medida em que os sinais da maturidade sexual vão se desenvolvendo) até ocorrer a completa transformação do amaldiçoado em um grande cão ou lobo ou, mais raramente, onça. Deve-se notar que não há, na lenda luso-brasileira, relação alguma entre a transformação e a lua cheia. Por fim, nas regiões onde o mito do lobisomem não concorre com a mula sem cabeça de forma frequente, a transformação ocorre nas noites de terça para quarta e de quinta para sexta feira.

O principal sintoma da condição “lobisômica” é o sonambulismo, ou alternativamente a insônia. O amaldiçoado dorme sempre muito mal e padece de sono diurno (sendo, portanto, um mau empregado para se ter a seu serviço). Ele tem uma tendência quase irresistível a sair de casa à noite, especialmente nas noites de transformação, perambulando de preferência pelos lugares ermos, por onde costumam andar os animais.

A transformação do lobisomem ocorre necessariamente em um espojadouro ou em uma encruzilhada. Ali ele rolará na poeira e se transformará. Para quem não sabe, um espojadouro é um trecho de terra onde os animais se deitam e se esfregam para coçar-se ou para dormir. Com o tempo a terra ali fica mais macia e se desprende uma poeira fina. Como a transformação do lobisomem depende da disponibilidade de um espojadouro, pingar água benta ou pó de hóstia em tais lugares impede que sejam utilizados, o que evita o incômoda da “corrida do lobo” pelas redondezas (mas aumenta significativamente o sofrimento do amaldiçoado e a violência de sua transformação seguinte).

Uma vez transformado, o lobisomem, antes de fazer qualquer outra coisa, precisa cumprir a sua sina. A palavra “sina” é cognata de “sinal”, ou seja, trata-se de uma manifestação ritual de alguma coisa. A sina do lobisomem é visitar sete cemitérios, sete encruzilhadas, sete vilas e sete oratórios. As tradições variam quanto à ordem ou quanto a obrigatoriedade dos itens, sendo sempre três as categorias visitadas; mas cemitérios (ou adros de igreja) e encruzilhadas estão sempre na lista. A corrida começa sempre à meia noite, quando ocorre a transformação, e terminará, mesmo que incompleta, quando o galo cantar pela primeira vez (o que ocorre entre as duas e as quatro da manhã, dependendo da região e da raça do galo).

O lobisomem luso-brasileiro raramente buscará ferir um ser humano, exceto se encontrá-lo no meio da estrada, e não é carnívoro. A lenda raramente o menciona alimentando-se enquanto transformado, e quando o faz ele se alimenta exclusivamente de excrementos de animais (“bosta de galinha”, segundo dizia a minha avó). Na verdade parece haver muito pouca deliberação nos atos praticados pelo lobisomem; que estará a maior parte do tempo preso à obrigação de correr por encruzilhadas, cemitérios, igrejas etc.; ou mesmo “maldade”: em vez disso, o “corredor” (como às vezes o chamam em Portugal) é um pobre diabo sofredor, digno de pena e de riso.

Tal como a mula sem cabeça, o lobisomem pode ser redimido parcialmente de sua condição caso alguém lhe tire sangue enquanto estiver transformado. Caso isto aconteça a transformação não mais ocorrerá enquanto estiver vivo o benfeitor (mas os demais sintomas da maldição continuarão), mas existe um perigo relacionado ao sangue: se ao ferir o lobisomem você se sujar com o seu sangue, você passará a se transformar em lugar dele enquanto estiver vivo o lobisomem original. Neste caso, a única maneira de livrar-se da maldição adquirida é matando o amaldiçoado (ou suicidando-se, o que lhe enviará de volta a maldição). Uma outra maneira de se evitar a maldição é confiar à guarda da Igreja a criança que se teme crescer como lobisomem. Sob a proteção direta de Deus, a maldição não se manifestará — ou se manifestará em condições controladas, dentro do claustro.

Quando analisamos este aspecto, em especial, notamos como a Igreja Católica conseguiu engenhosamente utilizar a superstição do lobisomem (de origem romana, relacionada à festa da Lupercália) para construir seu poder: ao amaldiçoar o sétimo filho (ou os filhos de incesto, ou filhos de padre) e apresentar-se como solução para o problema, a Igreja garantia para si um fluxo contínuo de candidatos à vida religiosa. É preciso explicar isso à luz do momento histórico vivido por Portugal entre os séculos XV e XVII, para entender porque isso foi feito.

Na Idade Média vigorava em Portugal um costume chamado “morgadio”, ou seja, o direito de primogenitura feudal. Somente um dos filhos de um senhor feudal poderia herdar seus bens imóveis. Geralmente era o filho mais velho, mas era permitido ao pai indicar outro filho caso o mais velho não se mostrasse digno. Aos demais filhos restava a carreira militar, um posto na Igreja ou uma “sinecura” no governo. As Grandes Navegações, porém, jogaram tudo de pernas para o ar: os filhos sem herança passaram a contar com a possibilidade de virem para as colônias tentar a sorte e, com isso, quem não estivesse disposto a enfrentar o sofrimento da castidade, poderia ter outra opção de vida. Mas diante da perspectiva de viver uma vida de maldição humilhante, na qualidade de lobisomem, pelo menos os sétimos filhos se sentiriam tentados a entrar para o sacerdócio, garantindo a continuidade da Igreja. Desta forma, o mito do lobisomem, tal como ele se apresenta na tradição brasileira, não é senão uma estratégia de “marketing” primitiva que a ICAR desenvolveu para evitar a “fuga de cérebros” naquela época.

Claro que a lenda é mais complexa do que isso, claro que existem outros aspectos a considerar, mas este aspecto, em especial, merece ser considerado, especialmente quando comparamos o lobisomem e a mula sem cabeça.


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