Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
16
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 23:27link do post | comentar | ver comentários (3)
Uma amiga postou hoje «numa rede social» (estilo Rede Globo de mencionar não mencionando) que estava com vontade de largar tudo e sumir. Minha primeira reação ao ler o seu comentário foi um pensamento singelo: por que pensamos sempre que, antes de fugir, temos de largar tudo. O que é esse «tudo» e o que representa esse «largar»? Fugir para onde?

Alguém já disse que a Aldeia Global significa que não haverá asilo para ninguém em lugar algum. A frase foi dita num contexto político, mas não é preciso ser um dissidente para se sentir desalojado neste mundo: aonde poderemos ir e achar a paz? Fugiremos para que parte do planeta? Por que não podemos levar «tudo» para lá?

Talvez seja porque exatamente «tudo» seja o que nos faz ter vontade de fugir. Temos «tudo», e isso significa uma falta imensa, um buraco indefinido, que em alguns tem a forma de Deus, em outros tem a forma de qualquer coisa que elejam como séria. Temos tanta coisa. Talvez sonhemos com uma época mais feliz, em que poderíamos carregar «tudo» em uma mochila e sair perambulando pelo mundo. Uma época em que éramos bosquímanos nos planaltos da África Austral, verdadeira felicidade.

Como eu poderia fugir amanhã pela manhã, se isso fosse necessário? Poderia eu desaparecer deixando para trás todos esses móveis, esse computador, minha coleção de discos de rock, minha pequena biblioteca, minha impressora laser, minha geladeira frost-free, minha televisão com tela de plasma de 36 polegadas? Poderia eu carregar meu aparelho de telefone celular, meu cartão de crédito, meus remédios controlados, meu fio dental mentolado e o papel higiênico macio? Quanto de minha vida cabe no meu carro? Poderia eu fugir num carro? Como pagar pela sua gasolina depois de alguns quilômetros?

Largar tudo e fugir, a suprema utopia. O único lugar aonde ainda podemos ir sem levar «tudo» é o túmulo, pois da vida só o «nada» se leva. Enquanto isso vivemos ancorados em nossos portos inseguros, amarrados a armários, fogões, fornos de micro ondas, baixelas de aço inox, e todos esses confortos.

Ontem à tarde, ao voltar de Leopoldina, topei com dois andarilhos pela estrada. Sujos, magros, despenteados, mas vestidos com alinho. Ele com um terno amarrotado e ela com uma roupa de estilo indistinguível. Caminhavam lentamente, com a pouca pressa de quem sabe que vai chegar, fatalmente. Iam trocando palavras e gestos de afeto. Observei-os pelo retrovisor até eles sumirem na curva: ali estavam dois que poderiam fugir largando tudo. Talvez até já tivessem largado. Até mesmo suas vidas. Vagam pelas estradas como fantasmas sem destino. Possuem o nada.

Não os invejei, porém. Gosto das minhas âncoras, de todos os certificados que coleciono em pastas bonitas. Gosto desta varanda. Não quero largar tudo e fugir, mesmo sentido o peso de todas estas coisas tolhendo as minhas pernas aos poucos, mesmo que tudo me afogue devagar, num mar de compromissos e contradições. Talvez a minha amiga, como eu, saiba que não é possível mesmo largar tudo, não sem largar a vida. Estamos condenados ao tudo.

18
Jul 11
publicado por José Geraldo, às 22:30link do post | comentar | ver comentários (1)

Uma semelhança entre a realidade e sonho é que as duas coisas não tem começo. Da mesma forma como não nos recordamos das primeiras cenas de um sonho, tampouco nos recordamos das primerias coisas que vimos, sentimos, cheiramos, bebemos, pensamos. Cada um de nós vive como em um interminável sonho, do qual talvez acordemos um dia bêbados do cansaço da noite. E se morrer em meu sonho, o que acontecerá comigo na invisível cama na qual, calmamente, eu repouso?

Eu não sei exatamente quem sou. Venho me tornando, esta é a verdade. A minha vida teve muitos episódios estranhos e a primeira coisa de que me lembro é um pijaminha de macia flanela, estampado com figurinhas desbotadas de animais. Estava vestido assim, calçado de um par de sandálias fortes de couro e montado em um velocípede de metal. Não lembro bem o que acontecera antes, mas sei que, por uma razão qualquer, naquele dia fresco de inverno tropical, eu saí pela estrada afora de velocípede, empregando toda a força das minhas pernas gordinhas. Tinha dois anos de vida e muita vontade de ver o mundo, ou de fugir para algum lugar além das montanhas que tapavam o horizonte, como um mar de mãos erguidas com os dedos contra o céu.

Lembro dos odores desse dia: eu cheirava fortemente a leite fresco e a estrada possuía um aroma penetrante de capim gordura. Lembro do cheiro do ar quente cortando as minhas narinas com o esforço das pedaladas. Mas não me lembro da razão pela qual saí de casa, não lembro tampouco aonde fui. Houve um tempo em que eu lembrava, mas hoje não consigo mais discernir exatamente que lembranças são de fatos realmente que aconteceram, quais de coisas que eu somente imaginei. Então esse episódio aparece cortado na minha mente, como uma figura retirada duma revisa: eu era menino e queria enfrentar a estrada e pus toda minha força nos pedais de um velocípede. Segundo a minha mãe eu cheguei à casa da vizinha, que me deu uma broa de fubá e mandou um empregado chamar meu pai para buscar-me. Pode ser verdade. Pode não ser. Eu fui muitas vezes à casa de Deuslira, não lembro da broa de fubá, não tenho motivos para duvidar de minha mãe, mas a memória é traidora em qualquer idade.

Eu estive pensando em maneiras de começar a contar a minha história, essa que todas as pessoas acham que está contada em minha ficção. Pensei durante semanas e não tinha uma maneira de começar. Ontem, então eu me dei conta da semelhança que há entre a vida e o sonho, percebi como as minhas memórias mais antigas aparecem tênues como sonhos, quase derretendo com o passar dos dias. Já tive uma lembrança muito mais rica deste antigo e enigmático dia, hoje só lembro do pijama de flanela, o velocípede, os cheiros de leite e de capim gordura. Nem sei mais da cor do velocípede. Talvez se demorasse mais quatro anos para contar isso para alguém, nem teria mais o que contar. Eu tinha pouco mais de dois anos quando saí de casa vestido apenas com um pijaminha e pedalando um velocípede de metal. Hoje para sair de casa tenho necessidade de levar tanta coisa que a força de minhas pernas parece muito menor do que a que eu tive naquele dia.


06
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 23:40link do post | comentar

André Dahmer é quase um filósofo. A profunda amargura de suas tirinhas se torna quase engraçada quando analisamos. Ele que me perdoe, mas não resisto a escrever sobre esta tirinha, de algumas semanas atrás. Provavelmente vou dizer merda, mas dizem que a arte se caracteriza por ser aberta a interpretações. Então tenho a minha, que provavelmente discorda da do Dahmer.

Vemos nesta figura a expressão mais acabada da impotência dos sonhadores diante da injustiça do mundo. Talvez somente a piada do mineirinho e do copo de veneno seja mais pungente, mas esta tirinha tem mais poesia, certamente. Dudu é um inconformado. Ele constroi seu balão para fugir de "tudo isso". Talvez o balão, um hobby arriscado, seja apenas uma forma de suicídio sublimado, talvez apenas uma maneira de expressar concretamente seu desapego. Mas no momento em que está concluíd sua preparação, alguém à força usurpa-lhe esta possibilidade e foge em seu balão.

Quantas vezes na vida não fogem no nosso balão? Quantas vezes não somos surpreendidos na vida, como poeta Raul de Leoni, cuja magnífica amendoeira dobrou-se sobre o muro ao crescer e foi dar frutos no quintal alheio? André Dahmer poetiza o mesmo drama abordado pelo poeta petropolitano, de uma forma um tanto mais crua, mais adequada a esse mundo carnívoro em que vivemos, incapaz de ainda apreciar filigranas poéticas como os versos quase femininos de Raul de Leoni.

Pobre Dudu, seu fado é contemplar o voo do balão que construiu, que transporta alguém que não o sonhou. Tal como o jovem que sonha com a amada e a vê casar-se com outro. Tal como o garoto que plantou a amendoeira que sorveu o húmus de seu quintal mas foi florir no jardim do vizinho, deitada sobre a cerca.

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17
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 16:09link do post | comentar

Quando eu era criança, ser chamado “caipira” era praticamente um xingamento. Equivalia a ser chamado de “ignorante”, “abobalhado” ou “ingênuo”. Piadas de caipira eram muito mais fortes que as de português. Talvez isso se explique pelo fato de que nós, os habitantes da Zona da Mata de Minas Gerais sermos descendentes de colonos provenientes, principalmente, das terras fluminenses, gente mais ligada à “Corte” e ao exterior. Nós da Zona da Mata de Minas Gerais vivíamos de costas para Belo Horizonte e o resto do estado, olhando com saudade para o litoral. Nós reclamávamos de viver numa terra de montanhas, adorávamos vargens, viajávamos à praia nas férias e aprendíamos a chiar o esse com poucas semanas de convivência. Caipiras eram os outros, e música sertaneja (uma concessão para uma minoria de aborígenes que viviam nos cantões), coisa que só se ouvia de manhã cedinho em nossas rádios. Torcíamos para os times do Rio de Janeiro, acompanhávamos revoltados o noticiário policial carioca, vivíamos a dizer que não queríamos nunca viver no Rio de Janeiro. Só que era mentira, claro.

Só que isso tudo foi nos anos oitenta, no século passado. E desde então muita coisa mudou. Quase ninguém mais acomapnha rádio em ondas médias (a gente ouvia Rádio Globo, a Tupi, a Mundial e a Eldorado), pouca gente lê jornais (Jornal do Brasil, O Globo, o Dia, Jornal dos Sports e Jornal do Commercio) e a televisão via satélite, com programação neutra, nos afastou do contato imediato com os anúncios das lojas cariocas. Hoje conhecemos as grandes, essas que aparecem na programação nacional, mas ninguém mais ouve falar de lojas como a Impecável Maré Mansa (que patrocinava um famoso programa humorístico na Rádio Tupi, e posteriormente na Globo), ou a R. Pinto (“que canta de galo com preço de milho picado”, uma presença indefectível na Rádio Relógio Federal, “cultura e hora certa a cada minuto”, “… você sabia?”).

Nada poderia ser mais estranho à cultura carioca do que a cultura caipira. O carioca é cosmopolita, olha para o mundo, conhece vários tipos de gringos, tem hotéis, teatros e museus. O caipira, recatado, olha em volta de si, desconfia do mundo lá fora, cheio de pessoas diferentes e mal-intencionadas. Toda a cultura do carioca gira em torno da espontaneidade, da alegria. A cultura caipira gira em torno da formalidade, do respeito, da religiosidade. O carioca é esperto, o caipira é heroico. Nunca as rádios do Rio tocavam música caipira. Para o carioca, o caipira é um enigma, um selvagem, talvez uma relíquia, possivelmente um fóssil. O carioca ri do caipira. O caipira ignora o riso, tal como o visitante do zoológico não liga para a gargalhada do macaco. Dois mundos que existem de costas um para o outro, quando se encaram não se reconhecem.

A gente só podia ouvir música caipira em ondas curtas, nas rádios de Belo Horizonte (Inconfidência, Itatiaia e Atalaia, as principais), nas de São Paulo (Record, Globo, Aparecida) ou de Goiânia (Anhanguera). A transmissão chegava com muitos assobios por causa da interferência. Afora isso, havia o programa “antropológico” da manhã de domingo (o “Som Brasil”), no qual Rolando Boldrin (a princípio) ou Lima Duarte (pouco depois), fantasiados de Mazzaropi, apresentavam artistas folclóricos. A música caipira só tinha lugar nos canais de televisão quando era mostrada como como folclore.

“Mas a tal música caipira não é folclore?” Deve alguém estar perguntando. Depende do ponto de vista. Se considerarmos que o samba é o “folclore carioca”, então música caipira é folclore também. Mas se pensarmos no folclore como uma coisa distante e quase morta, que precisa ser preservada através de programas governamentais, então ela não é isso. Pelo menos não naquela época. O gênero caipira era a expressão artística do Brasil rural, do Brasil do planalto, do Brasil sem mar, do Brasil português. O Brasil de antes do imigrante, o Brasil de antes da cultura de massa. Para os que viviam esse mundo, o gênero caipira era tão espontâneo quanto uma roda de pagode o é para cidadão carioca.

Mas nos anos oitenta do século xx, esse Brasil estava morrendo rápido, com a migração para as grandes cidades e com a eletrificação dos grotões. A alfabetização e a entrada da televisão eram forças irresistíveis, diante das quais o Brasil caipira recuava sempre mais para longe. Triunfava o cosmopolitismo do carioca, definhava o brio conservador do caipira. O Brasil caipira aprendeu a rir, esqueceu a viola e começou a perder o sotaque. E aqui, onde o sotaque nunca foi forte, resta pouca lembrança dele.

Curiosamente, nesse processo em que a cultura caipira desaparecia, as ondas culturais se chocavam e os fluxos se invertiam. A televisão passou a repetir o sinal vindo de Belo Horizonte, o rádio deixou de ser popular e a internet criou um canal direto com o mundo, sem precisar fazer escala no Rio de Janeiro. Com isso, fica até parecendo que estamos mais longe de lá, que até estamos em outro estado. Junto com os telejornais belo-horizontinos, vieram também os jogos de Atlético e Cruzeiro, que começaram, aos poucos, a dividir torcida com Flamengo, Vasco da Gama, Fluminense e Botafogo. Hoje já não estamos de costas para Minas Gerais, porém, a verdade seja dita, Minas Gerais ficou muito mais parecida com o Rio de Janeiro, até na violência urbana e na cultura de massas. Minas Gerais não é mais caipira, mesmo ainda estando cheia de cidadezinhas drummondianas.

Ficou mais fácil rejeitar a identidade “caipira”, e tudo que ela acompanha. Nós somos diferentes, somos descendentes de colonos da “corte”. Nós não falamos “engraçado” e nem nos vestimos de um jeito ridículo (que, aliás, nunca passou da caricatura inventada pelo cineasta e ator ítalo-brasileiro Amacio Mazzaropi). E como nós rejeitamos a identidade caipira, por causa destes aspectos que julgamos ridículos, rejeitamos junto com ela a cultura tradicional que a ela se liga. Vivemos estas montanhas, mas não olhamos para elas: queremos o mar distante, o além-mar se possível. O que está próximo não nos interessa. “Nem no passado nós fomos caipiras”.

Mas por que essa rejeição. O que era tão horrível no mundo caipira, para merecer que o rejeitássemos tão completamente. Não tenho gabarito suficiente para dizer isso, mas tenho as minhas opiniões. O Brasil caipira representa algo que o Brasil resolveu superar: o caipira é discriminado porque nós temos vergonha de nossas raízes indígenas, africanas e portuguesas. Rejeitamos o caipira porque o nosso objetivo é a assimilação no globalismo: não gostamos de nossa cara, então queremos fazer uma plástica que nos deixe com cara de um ator americano. Não queremos ser morenos, queríamos ser louros escandinavos. Nós não gostamos do Catolicismo “supersticioso” e nem da Umbanda primitiva, queremos a “reza forte” e “fashion” das igrejas “fast-food” importadas com franquia e tudo lá dos Istêitis. Nossos nomes são difíceis de pronunciar (pelos americanos) então queríamos outros, mais “internacionais”, como Johnny, Peter, Richard, Michael ou David. E como não sabemos inglês, acaba ficando Jhone, Piter, Rikky, Maicon e Deyvid. Temos vergonha da viola e da botina, mas não temos vergonha de agradar gringo na praia para ganhar trocado, como macacos de realejo. Temos vergonha da música caipira, porque fazia chorar e pensar, mas não temos vergonha de rebolar para o riso do mundo.

Hoje descobri que sou caipira, que ainda estou ligado a essas coisas antigas e a uma forma tramontana de pensar. Estou aqui, entrincheirado nas minhas montanhas, olhando desconfiado para os perigos que vem debaixo, lamentando que não tenha suficiente azeite para enfrentar todo o assédio que vem pela frente.


21
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 10:59link do post | comentar

Nada é tão difícil na vida quanto superar fases. Tomar decisões é algo muito fácil, enfrentar as consequências é algo mais complicadinho. No momento em que você decide tomar uma atitude você se sente um super herói, capaz de ir até o fim com todas as suas decisões e determinações. Infelizmente o super herói não é o Superman, mas o Ultraman. Explico: nossas decisões não são invulneráveis e imaculadas, motivo de admiração para todos que nos veem e conhecem. Em vez disso, elas são precárias e frágeis, tomá-las já implica em uma confissão que faz com que as pessoas nos olhem torto. O pobre Ultraman não conseguia lutar contra os monstros por mais do que alguns minutos e precisava ir embora. Na vida de hoje a impressão que eu tenho é que eu estou sempre indo embora, sempre suportando alguns minutos e depois voando para o meu planeta distante. Como é difícil persistir!

Hoje admito que tenho um problema: estou viciado em internet. Não, não sou hipócrita de dizer que esse é um vício terrível que me destruirá porque eu não sou desses alarmistas. O «vício» a que me refiro é algo como um hábito que se arraigou e do qual é difícil ficar livre. Não é difícil por causa de uma noia incontrolável, mas porque vivemos em um mundo que nos exige interagir eletronicamente.

Então eu vivo, como muita gente, o dilema de saber que o uso da internet está me modificando, mas ao mesmo tempo reconhecer que eu não tenho a opção de me abster dela definitivamente. Eu não gosto das mudanças que estão acontecendo, tanto quanto não gosto de envelhecer. Melancólico isso.

O que me resta é controlar o acesso daquilo que me faz mais mal. Desde sábado estou vivendo sem Orkut. Resta-me ainda um perfil fake para usar, vinculado a uma única comunidade, mas ele também será apagado até o final do mês. O meu perfil original não será apagado, mas isso apenas porque eu ainda posso querer um dia voltar e copiar algum texto meu que deixei naquele saite de relacionamentos. Essencialmente posso dizer que vivo sem Orkut, que estou vivendo sem Orkut.

E que bela vida é! Estou trabalhando de novo no romance que eu comecei a escrever faz quatro anos! Quem sabe até o termine antes de morrer senil! Hoje consegui fazer uma longa caminhada, cumprimentei mais de vinte conhecidos. Agora depois do almoço vou andar de novo, apesar do calor. Vou visitar algumas lojas, comprar uma bicicleta, marcar consulta no dentista. Coisas que só fazia pela internet ou por telefone eu vou fazer pessoalmente. Talvez consiga até visitar alguns amigos nestas férias. Estou devendo uma visita ao Nando Pinto, lá em Astolfo Dutra, faz quase dez anos. Eu tenho um amigo que mora a menos de um quilômetro de mim e eu não o visito faz um ano!

Mas apesar disso, resta a síndrome de abstinência, este monstro de olhos vermelhos e cabeça inchada que persegue os que tentam se livrar de suas pequenas escravidões. Estou aqui imaginando como desenvolver a trama do romance e não consigo ficar nem dez minutos sem pensar em verificar o que terão respondido nos tópicos que criei nas últimas comunidades de que participei. Mas estou resistindo.


20
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 20:22link do post | comentar | ver comentários (1)

Hoje acordei mais cedo, às 8h00, graças ao fim do horário de verão. Tive tempo de dar uma caminhada pelo centro da cidade e comprar o jornal de domingo (como sempre, edição fechada às 12h00 de sábado, mas pelo menos tem os cadernos especiais com reportagens mais aprofundadas). Depois disso, toquei de carro pro sítio da família, em Itamarati de Minas.

Passei o dia conversando com meu pai sobre muitas coisas. Descobri, espantado, o quanto desaprendi a arte da conversa, o quanto estou apressado e afastado de contatos. Nem tive vontade de caminhar pelo sítio (embora, nesse caso, o sol forte e os 35° fossem um bom motivo). À noitinha retornei para casa.

Desde ontem às 17h00 eu não entro no Orkut. Deletei todas as comunidades que possuía, saí de todas de que participava, deletei dois fakes meus. Agora estou quase em paz. Vida que segue.

Nos próximos dias, aproveitando as férias, vou tentar finalmente terminar meu romance sobre a Mula Sem Cabeça, para tentar participar de um concurso literário que tá vindo por aí.

Sem Orkut, dá mais vontade ainda de postar no Blog. Hoje estou, talvez pela primeira vez, fazendo uma postagem estilo «querido diário». Mas a sensação de liberdade é muito grande.

Nenhuma outra rede social é tão viciante e tão estéril quanto o Orkut. Houve um tempo em que perdi muito tempo ali, mas agora, talvez beneficiado pelo refluxo do site, consegui de volta minha liberdade. Ali você encontra um número imenso de comunidades sem dono, de perfis abandonados. É uma verdadeira casa assombrada da Internet, uma casca vazia em comparação com o que já foi. Ficou fácil abandonar, mas a cada dia me convenço de que teria sido melhor se eu tivesse conseguido largar antes.


23
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 14:57link do post | comentar | ver comentários (1)

Em algum momento, em 2003, eu tive um sonho no qual me via seguindo uma mulher a cavalo, vestida de negro. Na época eu ainda não conhecia o som do Uriah Heep e não poderia ter feito a ligação com “Lady in Black”. Em vez disso, o sonho se referia mais à uma figura existente na capa da edição de “As Brumas de Avalon” que eu tinha comprado naquela época. A “Senhora da Magia” levando Excalibur à mão e cavalgando um cavalo branco.

Este sonho acabou se conectando, pelas tortas vias da inspiração, com outro que eu tive no dia seguinte, no qual me via na pele de um perseguido político, ameaçado de tortura. A conexão dos dois resulta no argumento inicial do conto. A segunda parte, escrita cerca de duas semanas depois, procurou relacionar os episódios algo sobrenaturais narrados na primeira a algum tipo de acontecimento histórico conhecido. Eu planejava fazer outras conexões mais amplas, usando, por exemplo, um outro conto que eu intitulava “História de uns Fantasmas” (que acabou resultando em “Inocência Assassina”). O plano que eu tinha era de um romance, ou um ciclo de contos, baseado em um universo paralelo conectado com o interior de Minas Gerais.

Mas o projeto não prosseguiu. Em parte isso foi porque eu não gostava muito de histórias de fantasia e terror, mas a principal razão foi eu não vislumbrar maneiras de dar prosseguimento à história. Durante muito tempo os contos “A Cabana ao Pé da Montanha” (atual Parte I) e “A Mansão Além da Montanha” (núcleo da Parte II) figuraram como duas histórias independentes e inacabadas em meu antigo site. Porém, durante o ano de 2009, eu resolvi retomar o projeto do “Grande Romance Místico Mineiro” e acabei revisitando os dois contos. Na época escrevi um terceiro conto, chamado “O Círculo Entre as Montanhas”, que foi o esqueleto da Parte III. Este conto nunca foi publicado.

Por fim, agora no comecinho de 2011, numa tarde razoavelmente inspirada, eu revisei os três contos, consertei as conexões entre eles, tornando-os efetivamente partes de uma mesma história, e os publiquei no blog (usando a ferramenta de agendamento de postagens).

A “Cabana ao Pé da Montanha” ainda será revisado algumas vezes, certamente aumentado em talvez até 50%, mas já está em uma forma apresentável. Ele será, futuramente, uma espécie de introdução ao universo da “Serra da Estrela”, no qual vou ambientar um romance e alguns contos. Nesse universo, as lendas brasileiras existem, de certa forma, e algumas maldições portuguesas foram desterradas.


22
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 20:00link do post | comentar
Quando contemplas o abismo, o abismo também te contempla. — Nietzsche.

Quando Roberto e Teresa foram vistos a sair da cidade para um passeio no campo ninguém podia imaginar o que estava por acontecer naquela tarde. Naquele domingo nada de especial parecia estar ocorrendo aos olhos de quem os visse passar no jipe: eram os mesmos sorrisos, a mesma falta de precaução que é tão característica do amor.

Iam a um desses lugares calmos onde se pode nadar e permanecer por horas sem ser molestado pela presença de seres humanos. Havia uma piscina natural cercada de areia fina e pedras, próxima a umas colinas ermas de onde não se ouvia nenhum rumor de civilização e podiam ficar à vontade. Lá chegaram pelas duas ou três da tarde. Deixaram as roupas sob uma árvore e foram nadar. Ela despiu-se porque fez questão de, naquele momento, estar nua. Roberto nunca entendia estas insistências que lhe ocorriam. Para ele tanto fazia uma coisa ou outra, não entendia a magia da nudez. Nenhum prazer ele sentia nisso.

Ela saiu sorridente da água fria e estendeu uma toalha sobre um trecho de gramado e deitou-se. Tudo parecia estar tão bem. Mas não aos olhos de Roberto.

Ele foi até o jipe, tomou o embrulho de papel pardo que estava sob o banco do motorista e aproximou-se a passos curtos e leves. Estava pronto, ou assim pensava. Num gesto muitas vezes ensaiado rasgou o envelope com fantástica rapidez e segurou o revólver com firmeza.

Teresa estava entorpecida pelo calor gostoso do sol e deixava que seus raios dourassem sua pele. Nada percebera. Roberto então aproximou-se, saltou sobre ela, segurou sua boca com a mão esquerda e encostou o cano do revólver sobre o mamilo esquerdo, um pouco para dentro do peito. Disse friamente: “Você não vai me estragar a vida, sua piranha. E nem esse bastardo que você carrega no bucho e não é meu”.

Pôr um momento os cavalos ergueram suas cabeças sobressaltados, quando um grito tentava rasgar a tarde. Mas depois voltaram a pastar na mesma tranqüilidade de antes. A cidade não ouviu e o rio continuou a correr discretamente.

Roberto olhou as mãos, surpreso com o seu ato, mas faltou a coragem de punir-se. Olhou em torno e não havia mesmo testemunhas, a não ser os pássaros. Cerrou os olhos e saboreou de novo a intensidade de haver matado, não lhe sobreveio nenhum sabor especial. O sol brilhava igual, o mesmo vento sacudia as folhas, nenhum silêncio novo amaldiçoava o ar e nenhuma atmosfera diferente envolvia a paisagem.

Saciado nesta certeza, abriu de novo a sua perspectiva em direção à realidade e viu apenas o que viu. Apesar do estrondo da arma de fogo ninguém viera acudir e o eco tivera tempo de estender-se ininterrupto até morrer de repetir-se.

Agora estava incrivelmente só, mas o arrependimento não vinha. Teresa jazia a seus pés, uma flor vermelha amanhecia em seu peito e o vento não desistira de agir em seus cabelos. Soltou a arma, depois apanhou de volta, racionalizado: não poderia deixá-la onde poderiam encontrar.

Assim iniciou-se o trabalhoso processo de ocultação de toda prova que lhe fosse possível identificar. Embrulhou o corpo na toalha, nu mesmo, e ocultou-o entre duas pedras, sob uma árvore, dentro da corrente do rio. Era verão e muitas chuvas fortes costumavam ocorrer ao anoitecer. A próxima provavelmente a levaria água abaixo.

O resto dos pertences, embrulhou num saco de plástico e enterrou na margem, um buraco de um metro e pouco de fundura pareceu suficiente. Depois de alisar a areia o quanto pôde, achou que já estava bem perfeito. Escondeu a arma outra vez debaixo da poltrona do carro e deu as costas a quem fora seu amor.

Antes de chegar ao pé do morro olhou de volta como se quisesse confirmação de que ela não se levantara. Não havendo sinais de atividade, continuou andando em direção ao jipe. Ao tocar a fria maçaneta da porta lembrou-se subitamente do que realmente fizera, uma escuridão baixou em seus pensamentos e uma náusea cruel comprimiu o seu estômago até o almoço cair ao chão.

Respirou fundo, buscou forças e limpou o amargo-ácido que ficara na boca com um bochecho do resto de água mineral que ficara na garrafa de plástico. Então pôr um momento se deu conta de haver lágrimas em seus olhos.

Quis raiva, como se elas fossem uma cobrança injusta que Teresa ainda lhe fazia, mas já se sentia a pisar num pântano: o pranto saiu grosso e entrecortado, com dentes rangendo, calor no rosto e tremor nas mãos que apertaram-se no vazio até as unhas ferirem a pele. Chutou com fúria os duros pneus, cuspiu o resto do amargo, arrancou cabelos e sentou-se ao volante para acalmar-se. Quis ouvir uma canção, ou um ruído que rompesse a redoma de silêncio que o comprimia e acusava. Mas as mãos tremiam a ponto de não conseguirem sintonizar o rádio e a ponto de deixarem cair as fitas.

Olhou para cima, esperando que Deus mandasse o seu anjo para fender-lhe o crânio com uma espada flamejante mas havia apenas nuvens desmaiadas escorregando pelo céu azul-aço. Xingou e Deus não o puniu. Gritou e ouviu só o silêncio que insistia. Lembrou-se de estar a vinte quilômetros da estrada principal e este pensamento, que a princípio fora providencial e confortável, pareceu naquele momento desesperador. Apenas grilos denunciavam a sua premeditação.

Enquanto se vestia começou a refletir sobre as possíveis conseqüências de seu ato. Algumas nuvens negras a mais toldaram o horizonte, mas era apenas chuva.

Caminhou de volta sem saber porque o fazia. Talvez vontade de vê-la viva. Mas viu apenas a verdade e isto o fez ouvir mais alto o zumbido/grito do silêncio no fundo de seus ouvidos. Sentou-se numa pedra e pôs-se a contemplar o cadáver, como se nunca antes houvesse tomado consciência da beleza manifesta nela.

À medida que os lábios que beijara alteravam sua cor e exalavam últimos vestígios de calor e os olhos iam se vidrando até assumirem uma crueldade acusadora, relembrou cada instante de ciúme e ao reler seus atos a certeza que o movera dissipou-se em contradições que o fizeram rir. A morte parecia santificar o corpo profanado pelo amor torto que lhe dedicara e violado pelo tiro, última dádiva de quem pouco soubera dar. A inofensividade angelical que havia nela morta!…

Não suportou mais. Um mugido interrompeu a sua dor. Era uma boiada tocada por alguns cavaleiros. Então se deu conta da besteira de ainda estar ao lado do cadáver, levantou-se, desceu rapidamente o morro e tomou o jipe. Dirigiu com saudades e sentiu os solavancos no fígado e nos rins. Ao passar pela primeira ponte de madeira teve ganas de atirar fora o revólver, mas pensou a tempo de interromper o gesto: sendo ainda tão perto seria um lugar provável para que procurassem.

Passou por um homem de ar triste e dentes enegrecidos de cáries que ia em uma charrete, olhou-o com toda a naturalidade que foi possível, mas ainda assim levou a impressão de que ele retivera o seu rosto na memória. As árvores às vezes pareciam dobrar seus galhos sobre a estrada para decapitá-lo.

Atraído por um ruído de cachoeira tomou um desvio, metros depois parou à beira do abismo e contemplou um amplo vale em cujo outro lado despencava uma cascata formidável duma altura de uns setenta metros. A água se despedaçava nas pedras como um copo de vinho que cai da mão.

O sangue retornou à lembrança, Armando olhou suas mãos, certamente impregnadas do doce cheiro da pólvora. O estômago agora exigia alimento. Desceu. Sentir-se pisando o chão de novo deu-lhe de volta um pouco da sensação de estar vivo que parecera estar definitivamente perdida.

A cachoeira chamava e a grama estalava de prazer sob os seus pés. Sentou-se no chão, descalçou os pesados sapatos de motociclista, o súbito vento neles enterneceu-o a ponto de querer chorar, cada dedo gritava de felicidade ao pisar livre. As saudades desapareceram porque era um belo mundo novo, sequer relatado por testemunhas humanas. Muitas eram as novas terras a explorar, muitos os mares novos a navegar.

O vento se intensificou, como num convite. Arrancou a camisa com um ímpeto apaixonado, desfez-se da calça. Em torno ninguém estava. As vozes de Legião estavam no abismo e lhe contavam que os boiadeiros haviam encontrado o corpo, que na verdade havia um arraial perto da colina, que o homem da charrete era bom fisionomia, que muita gente os tinha visto deixar a cidade, e Deus também sabia. Mas o vento o acarinhava com uma ternura que o fazia chorar.

De repente acordou do devaneio se sentindo estúpido por estar lá nu e ouvindo pensamentos que não deviam ser os seus. Ergueu-se do chão para seguir fugindo. Se fosse pego, haveriam de pegá-lo longe. Havia esperança, apesar do medo.

Tirou o revólver de dentro do bolso da jaqueta, olhou-o firmemente amaldiçoando-o. Fora ele que possibilitara a loucura. Não fosse ele e Teresa estaria ainda viva. Arrojou-o longe dentro do abismo e abaixou-se para pegar de volta as roupas que estavam pelo chão. Afinal, não fora tudo mera deformação da realidade pelos seus sentidos enlouquecidos pela culpa?

Decidido a levar adiante a vida que quase fora desperdiçada por um simples escorregão, Armando tomou uma estrada diferente da que percorrera na vinda e voltou à civilização.

Texto escrito originalmente em 2002.

20
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 20:00link do post | comentar
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<div class="nav"><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha.html" rel="noopener">Parte I</a> <em>·</em> <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha-parte-ii.html" rel="noopener">Parte II</a> <em>·</em> <a anchor"."="anchor&quot;.&quot;" rel="noopener">Parte III</a></div><p>A desolação escaldante da paisagem parecia piorar à medida em que o sol subia no céu, e os fatos da noite, ainda queimando na minha memória, me impediam de pensar com propriedade. Que maldito lugar era aquele? Por que as malditas sepulturas estavam esvaziadas? Quem era a Inês, que se parecia tanto com a mulher que se matara na colina? Tantas perguntas. Nenhuma resposta.</p><p>Fui perdendo o medo de ficar por ali e retornei à casa. Seus longos corredores de paredes sem pintura tinham uma frieza cavernosa, apesar do sol que vergastava a terra lá fora. Uma formidável construção, feita para resistir às intempéries dos trópicos. Curiosamente, uma construção da qual eu nunca ouvira falar, mesmo residindo, em teoria, a menos de cem quilômetros dali.</p><p>O lugar realmente se parecia com um mosteiro abandonado. Os demais quartos, que permaneciam fechados, tinham o seu ar de claustro mais preservado, com móveis ainda mais rústicos e até mesmo um ocasional rosário de contas negras pendurado na parede. Boa parte do que normalmente se encontra em um tal lugar estava, porém, faltando. Não havia biblioteca e a capela estava ausente. Apenas um terreno pavimentado de pedras encaixadas, bem ao lado da construção maior, dava a ideia de que ali existira um templo cristão. O que motivara sua completa destruição era algo que me escapava. A igreja maior, localizada onde deveria ter sido a aldeia, ainda estava lá, mesmo arruinada e coberta de ervas. Apenas a capela dos monges tinha sido obliterada da face da terra.</p><p><a name="more" rel="noopener"></a>Vasculhei o prédio durante todo o dia, na esperança de encontrar algum registro deixado por algum dos antigos moradores. Mas não havia nada. Nenhum livro, caderno ou simples calendário com anotações. Na verdade, à medida em que eu percorria aquele lugar, ficava com a impressão mais forte de que ele estava se desfazendo diante de mim, como se os séculos tivessem resolvido finalmente andar.</p><p>Vendo, então, que não havia nada que pudesse me dar notícia do lugar onde estava, decidi que era melhor mesmo retornar ao único lugar onde encontrara alguém com respostas: a cabana ao pé da montanha. Quem sabe a jovem grisalha estaria lá, embora tivesse me alertado para não permanecer naquele lugar por muito tempo?</p><p>Fiz uma trouxa com comida para alguns dias, escolhendo com cuidado na despensa pouco provida. Montei o cavalo sentindo medo, talvez, de algo mais grave que a morte ou mais dolorido que o pau de arara. Deixei que o animal me levasse, e notei com estranheza que ele parecia não ter mais nenhum tipo de receio, nem de ir e nem de voltar. Como se alguma sombra que antes o assustava tivesse sido removida.</p><p>O caminho de volta à montanha não teve aventuras. Passei com cuidado pelas encruzilhadas que não conhecia, temendo especificamente aquela que me faria dobrar a crista do monte e entrar de volta na pequena estrada vicinal que me trouxera, fugido, do mundo onde eu era um criminoso. A custo localizei a entrada da picada na parede fechada da mata virgem, através da qual cheguei ao prado florido à beira do regato, ao vau por onde se podia cruzar a pé a correnteza e à estrada pavimentada de pedras chatas pela qual se subia ao cume fatal da Montanha.</p><p>Não sei que horas eram, porque meu relógio de corda andava louco desde que deixara a civilização. Sem outros com que conferi-lo, poderia estar marcando qualquer hora. Mas eu sabia que devia ser por volta de seis da tarde, ou pouco mais, porque o sol já ia tocando as serras, o ar já tinha um sopro frio que descia pelas árvores, um vento que fazia os troncos estalarem fantasmagoricamente.</p><p>Encontrei a jovem grisalha, vestindo sua longa túnica negra, sentada em torno de uma mesa de madeira rústica, à sombra de uma alta árvore, cuja copa se perdia acima das copas menos notáveis de outras árvores: um centenário pau-brasil, cuja casca rescendia um aroma suave no ar. Ela me acompanhava com os olhos, sem demonstrar emoções. Aproximei-me calado, sem ter mesmo ideia de como dar início à conversa.</p><p>Quando me aproximei dela, a ponto de poder perceber que ela não era, de fato, tão jovem — mas não tão velha que devesse ter aquela cor lunar nos cabelos.</p><p>— Estou confuso — foi o que eu consegui dizer, depois de algum tempo.</p><p>Ela me mostrou um sorriso, ou rosnado, e olhou para os lados e para cima, como se tivesse algo que eu devesse ver. Mas não havia nada, apenas o silêncio e os estalos dos troncos movidos pelos ventos e o murmúrio da água do regato.</p><p>— Como eu pude ter encontrado Inês ontem se a vi matar-se anteontem?</p><p>A jovem grisalha se levantou e caminhou até mim, sem que seus pés descalços quebrassem as folhas secas do chão. Ela me estendeu os braços, cobertos de marcas azuis de tatuagens e maldições milenares. Os olhos dela tinham uma tristeza tão profunda que eu tive vontade de abraçá-la.</p><p>— Ah, querido. Tudo é tão complicado. Tudo seria tão mais simples. Eu mesma não entendo tudo. Não entendo onde estou mais, é como se eu vivesse um círculo eterno. Uma solidão que nunca passa. Desde que vieram os homens de branco, com aquele maldito ritual. Parece que o tempo sempre volta e vem, e vai e está. As coisas acontecem depois de suas consequências, as vidas e mortes sempre se repetem e eu sempre permaneço aqui em torno desta cabana, tentando ir e nunca indo, tendo de testemunhar através das décadas e dos séculos a traição e a morte que tanto me magoaram.</p><p>— Quem é você? O que é você?</p><p>A jovem grisalha me olhou desolada.</p><p>— Quem eu sou não importa mais, nem o que eu era. Tu és apenas mais um que chega, para enfiar outro espinho no meu coração. Quantas vezes não contei minha história a homens como tu, ou mulheres! Quantas vezes não os amei, matei ou ignorei! Nada importa. Vivos, mortos, amados, feridos, abandonados. O tempo continua sua dança em torno de mim e outros vêm.</p><p>Quando disse que muitas vezes havia matado, não pude deixar de notar a adaga de lâmina curva que levava à cintura: distintivo certamente de uma ordem hermética. Estava diante de uma bruxa, de uma proverbial bruxa das histórias infantis. Das que são capazes de matar ou amar com a mesma intensidade e indistintamente. Isto explicava o livro em língua estranha, língua de bruxa. E por isso aparecia ao anoitecer.</p><p>Recuei dois passos enquanto ela falava. Começava a acreditar em toda aquela loucura. Ela não percebeu, ou fingiu não perceber. Minha curiosidade ainda me queimava, mas não tanto quanto o ferro em brasa dos torturadores:</p><p>— Eu não sei quem és. Mas eu quero, eu preciso ficar por aqui. Eu não entendo onde estou, não sei o que estou fazendo. Mas quero e preciso ficar.</p><p>Ela me olhou sem surpresa:</p><p>— Outros antes quiseram ficar.</p><p>— E não é bom que de vez em quando alguns queiram ficar? Se é como você diz, a solidão das décadas já deve ter se acumulado demais.</p><p>— Oh, querido. Tu não entendes nada, e o que dizes é loucura!</p><p>— Se o que digo é loucura, então ouça o que digo: eu preciso de ajuda. Preciso de um lugar onde possa ficar escondido, por alguns anos, talvez para sempre. Dizem que as irmãs sempre ajudam quem as procura com sinceridade e sem desejar o mal.</p><p>Ao ouvir-me mencionar “as irmãs” a jovem grisalha se empertigou subitamente, como se lhe tivessem cutucado em uma parte sensível do corpo.</p><p>— O que sabes, profano? Como reconheces o nome secreto!?</p><p>Se fosse verdade que ela estava há séculos presa naquele canto perdido de Minas Gerais, fazia sentido que ela não imaginasse a facilidade com que se podia ter acesso aos grimórios do passado.</p><p>— Calma, irmã. É em paz que venho.</p><p>— Quia est nomem tuus?</p><p>— Johannes</p><p>A bruxa pronunciou com uma rapidez quase cômica uma série de imprecações em alguma língua mais antiga e mais assustadora que o latim, durante a qual a forma latinizada de meu nome foi repetida várias vezes. Então ela sentou e começou a chorar:</p><p>— Já não funciona mais. Já nada funciona.</p><p>— O que não funciona?</p><p>Aproximei-me dela com cuidado, mas sinceramente comovido, e acariciei os seus cabelos descoloridos pela dor da solidão eterna. Ela permitiu que eu o fizesse, murmurando entre soluços:</p><p>— Oh, tu sabias, velho maldito. Tu o sabias! A carne é frágil diante da solidão e do tempo. Tu o sabias, maldito!</p><p>A bruxa me conduziu de volta à cabana, à sua cabana. Ali ela me preparou um chá, que eu bebi com receio e vagareza, temendo que ela me envenenasse. Mas não era nada disso: apenas hortelã-brava fervida em pura água da montanha e adoçada com o mel das abelhas selvagens.</p><p>Então ela me contou a sua história. Contou-me que se chamava Júlia Carneiro, que realmente fora bruxa em Portugal, que por isso recebera o degredo para o Brasil, casada à força com um proprietário de terras, que parecia ter a missão de espancá-la, mas que nunca ousara tocá-la, talvez por receios de sua fama de bruxa. Havia histórias horríveis sobre lábios com dentes e sobre escorpiões escondidos no útero. Em vez dela, o bronco engravidava as negras e as índias e se enchia de aguardente e de maldades. Um dia os negros e os índios da fazenda se revoltaram, os empregados não puderam resistir muito, pois uma enchente molhara os paióis de pólvora. Foi assim que ela se tornara viúva, vendo o marido ser esquartejado, “como um porco”, pelos vingativos negros, cujas costas tanto haviam sofrido a mando dele.</p><p>Sobrevivera ao massacre atirando-se no rio gordo e turbulento. Deveria ter morrido, mas salvou-se graças à arte mágica da natação, que bem poucas mulheres daquele século sabiam: só as que tinham sido raparigas de navio ou mulheres de pescadores.</p><p>Os índios a acolheram quando ela demonstrou algumas de suas artes. Mas uma pajé mulher era algo que não fazia sentido e ela acabou tendo de deixar a aldeia. Conseguiu retornar à civilização graças a um convento que estava sendo construído bem no centro da Serra da Estrela, a poucos quilômetros do Pico da Mesa, que dominava dezenas de quilômetros quadrados de planície pantanosa e pedregosa: o perigoso vale do Rio Vermelho.</p><p>Nesse ponto da história, fez uma longa pausa. Seu rosto, mal iluminado pela vela de sebo, parecia corar um pouco ao lembrar dos detalhes.</p><p>— Acreditas no amor?</p><p>— Sim.</p><p>— Acreditas no amor absolutamente sem fronteiras, no amor entre almas, ou crês que o amor está preso a corpos?</p><p>— Não sei o que dizer, mas acredito que o amor não pede licença e nem se explica.</p><p>— Eu ainda tenho receio de falar sobre o que aconteceu.</p><p>— Mas não me disseste, há pouco, que é uma história que já te cansaste de contar?</p><p>— Mesmo que a conte mil vezes, sempre terei receio de que a maldição se renove.</p><p>— Então somente me fales sobre isto se houver necessidade. E se quiseres falar. Eu não te cobro respostas. Tudo que desejo é abrigo na tempestade.</p><p>Lá fora soou um trovão distante.</p><p>— Um dia certamente eu te contarei a parte que mais me enluta. Mas por enquanto te baste saber que os padres descobriram tudo, acharam que havia obras do demônio em curso nesta região. Eles já tinham ouvido histórias, dos índios, dos negros, dos brancos supersticiosos que evitavam estas montanhas. Disseram que havia sido imenso o sacrilégio, tão imenso que havia contaminado toda a terra e que somente arrancando, como um tumor, o foco de infestação, seria possível evitar a “gangrena do mundo”. Foi assim que eles fizeram. Não sei a quem recorreram. Artes escuras de todas as partes foram conjuradas pelos homens de branco, a pedido dos padres e suas crenças. Não foi o Deus deles que fez isto. De uma forma sacrílega e estranha eles acharam que valeria até mesmo o recurso aos maiores inimigos da humanidade para poder fazer algo que a Cristo agradaria. E foi o que fizeram.</p><p>— O que foi que fizeram? Eu não consigo entender!</p><p>— Oh, querido. Não vês este emaranhado do tempo em que estamos? Aqueles malditos sacerdotes do Inominável fizeram o que os padres pediram. Amputaram todo esse território do mundo dos vivos, do presente, do passado e do futuro. Estamos aqui fora da geografia, fora da história, fora de tudo.</p><p>— Como assim? Isso não faz sentido? Como eu entrei aqui?</p><p>— A Arte deles não é perfeita, é claro. Ela não tinha que ser. Bastava que cumprisse o que havia sido pedido: não poderíamos jamais morrer ou sair, nem Inês e nem eu. Deveríamos viver a eternidade experimentando e expiando a culpa de nosso sacrilégio.</p><p>— Então é possível entrar?</p><p>— Sim. Muitos entraram antes. De vez em quando alguém entra. Quase todos acabam saltando do Pico, como você viu Inês fazer. Tu mesmo um dia o farás, quando estiveres cansado de mim e não puderes mais sair. Outros acham outros meios. Não sei de nenhum que saiu, mas deve ser possível sair, tanto quanto é possível entrar. Mas a quantidade de corpos no fundo do vale sugere que achar uma saída não é tão fácil.</p><p>Júlia foi me contando sua história naquela noite e eu tomando o chá de hortelã, segurando a xícara com cuidado para não queimar a mão. As palavras dela eram amargas, amargas como o chá que o mel não conseguia adoçar.</p><p>Foram muitas noites como aquela, na cabana ao pé da montanha. A cabana que Júlia construíra com suas próprias mãos para tentar parar a marcha cíclica do destino.</p><p>Muitas outras vezes nós vimos Inês passar, sem parecer vê-la, ou até mesmo a mim. Ela sempre subia ao alto do Pico e de lá se atirava ao abismo. Cada vez que isso acontecia eu pensava ver brotar um fio branco na cabeleira de Júlia. A contar pelos outros que já tinha entre os seus, eram dois séculos ou mais daquela agonia.</p><p>Todos os domingos, à tarde, ela subia a montanha e se atirava, sem dar mostra de nos ver. Júlia chorava ao ouvir o ruído do corpo dela corpo contra o chão e entrava a recolher-se, mesmo sem conseguir dormir. Lá pela madrugada velha ela acordava e saía, sem nunca dizer aonde ia. Assistir aquele espetáculo era uma terrível forma de começar a noite, praticamente impedindo que Júlia e eu tivéssemos qualquer atração.</p><p>De fato um dia eu não suportei mais tudo aquilo. Permanecera ao lado de Júlia querendo ter alguma explicação. Mas nunca tivera mais do que novas perguntas. Não sei quanto tempo demorou para que me cansasse, mas podem ter sido dois anos, ou vinte. Não quis, porém, atirar-me do alto do pico: preferi procurar uma saída. Afinal, eu já tinha uma vaga ideia de onde poderia haver uma.</p><p>Uma manhã, logo depois que Júlia retornou de seus misteriosos passeios noturnos e foi dormir, como sempre envolta naquela túnica de luto, roubei o caderno encapado em couro, que roubara do cadáver de Inês, e saí pela estrada levando uma magra trouxa com o resto de minhas roupas e alguma comida.</p><p>Cheguei à encruzilhada ao pé do morro. Durante o tempo em que vivera na cabana ao pé da montanha, passara muitas vezes por ali, sem nunca criar coragem para subir o morro e conhecer o que haveria do outro lado. Eu vivia com o pavor de haverem soldados espreitando para localizar-me e prender-me tão logo eu saísse detrás de alguma árvore e pusesse o pé na estrada.</p><p>Mas naquele dia o medo não existia mais: certamente a ditadura acabara e eu não teria mais que fugir de soldados e temer torturas. Subi o morro devagar, conquistando cada metro como se fosse um território inimigo. Esperava chegar ao alto e encontrar a beira de uma estrada, alguns carros passando. Ali talvez haveria o ruído de música e de vida urbana filtrado pela distância.</p><p>Não foi o que vi. O que havia diante de mim era o brejo sem fim do vale do Rio Vermelho, dominado pela presença tétrica do Pico da Mesa. Não fazia sentido: o caminho era praticamente em linha reta em direção ao leste, margeando o rio. Dava para acompanhar pelo sol. Mas eu estava ali, encarando de frente aquela paisagem que eu só deveria ver se viesse do sul. Era como se tivessem recortado aquele pedaço do mundo e emendado em torno de si mesmo, num eterno círculo ou buraco negro, cujos caminhos são todos espirais em torno de um ponto. “O Pico da Mesa domina uma região de dezenas de léguas”, dissera Júlia. Era fato.</p><p>Sentei-me em uma pedra e abri o caderno de Inês. Ele devia conter alguma pista adicional sobre o acontecido, mas estava coberto de garatujas angulosas.</p><p>— Meu Deus, são … são caracteres cuneiformes!</p><p>Ali estavam, desenhados com um tipo secular de pena, símbolos malditos e esquecidos de uma civilização extinta, anteriores à Bíblia e a Jesus. Símbolos anteriores às penas e aos livros, que eram antigamente gravados no barro usando estiletes de cana.</p><p>Guardei o livro no bolso, reconhecendo enfim que haveria uma solução para o mistério algum dia, se conseguisse sair daquele poço no tempo em que me metera. Sim, eu sempre temera sair e ser pego, mas nunca pudera, de fato sair. E no momento em que o queria, e muito, percebia que a saída era uma ilusão como outra qualquer.</p><p>Assim derrotado, saí caminhando a esmo por aquele mundo em redoma, procurando alguma brecha por onde pudesse saltar. Quando finalmente o cansaço me derrotou, e já era noite velha isso, achei uma pedra razoavelmente plana, à beira de uma encruzilhada, e ali me deitei, usando a trouxa como travesseiro.</p><div style="text-align: center;">***</div><p>Acordei na manhã seguinte completamente derrotado. Passara o dia anterior sem sonhar como sair. Depois dormira uma noite de pavores, ao relento e sobre uma pedra desconfortável. Sonhara com monstros que passavam em torno, carregando imensos cascos nas costas. Sonhara com monstros de olhos flamejantes, com homens de túnicas brancas que evocavam forças desconhecidas, fazendo o mal em nome do bem.</p><p>Mas quando amanheci e meus olhos doeram com o sol, percebi que estava à beira de uma rodovia maior do que as que conhecera antes. Por ela passavam continuamente imensos caminhões e inumeráveis automóveis, de modelos que pareciam saídos de filmes futuristas.</p><p>— Deus seja louvado! Voltei!</p><p>A encruzilhada já não existia. A pedra estava longe, empilhada com outras à beira do caminho.</p><p>Aos poucos fui me familiarizando com o mundo. Muita coisa havia mudado, mas não tanto assim. Consegui entrar em contato com a minha família e vieram me buscar. Para eles voltei como voltaria um defunto: receberam-me com uma incredulidade que somente minha semelhança com as fotos e a memória fiel de muitos acontecimentos foi capaz de convencer.</p><p>Havia pouca coisa que eu pudesse fazer. Felizmente eu tinha um irmão que era advogado e ele conseguiu-me uma indenização do governo, em nome dos anos de prisão e tortura que eu supostamente passara. Nunca consegui convencer ninguém da minha história alternativa. Com o tempo desisti de tentar. Aliás, o que me passou naquelas montanhas foi de fato prisão e tortura, mereço esse dinheiro.</p><p>Com ele reconstruí minha vida. Casei-me, tive filhos. Esqueci aquela história, guardei o caderno de Inês em uma gaveta da memória e toquei a vida. Hoje tenho sessenta e cinco anos e passei a ter certos sonhos que me incomodam.</p><p>Foi por causa desses sonhos que eu mandei uma cópia das notas do caderno para um especialista em línguas antigas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Não posso dizer o nome desse homem: ele não leciona as disciplinas proibidas a que recorreu para fazer-me a tradução. Soube dele através de meus contatos com maçons amigos.</p><p>Recebi ontem a tradução. Foi por causa dela que resolvi contar a história que agora termino. O caderno contém muita coisa que não ousarei transcrever. Coisas, porém, que não deveriam condenar nem a Júlia e nem a Inês.</p><p>Deus não deve ter gostado mesmo que se amassem. A demolição da capela certamente serviria para purificar o lugar da mancha do que os padres assistiram naquela noite. Até o mosteiro teve que mudar de lugar, até os mortos já enterrados tiveram de ir junto. Porque o que veio a seguir afetaria a eternidade.</p><p>O motivo de meus pesadelos recorrentes é que eu passei a imaginar, veja só que loucura, a possibilidade de retornar. Amo a minha pobre mulher, claro. Amo aos meus filhos também. Mas este mundo em que tenho vivido parece tão alheio quanto o outro. A diferença é que neste eu envelheço e tenho um câncer.</p><p>Se eu puder retornar à Serra da Estrela, estarei condenado à eternidade. Desde que ache outra entrada, em algum acaso da estrada. Desde que Júlia me perdoe e não me sangre com seu punhal.</p><div class="nav"><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha.html" rel="noopener">Parte I</a> <em>·</em> <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha-parte-ii.html" rel="noopener">Parte II</a> <em>·</em> <a anchor"."="anchor&quot;.&quot;" rel="noopener">Parte III</a></div>

12
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 19:51link do post | comentar

Ela se foi e eu fiquei sozinho o resto da noite naquela casinha de pedras no meio do nada. Não tive, porém, tempo para sonhos loucos ou terrores noturnos: apesar do breve sono da tarde, eu estava cansado demais pelos três ou quatro dias de estrada para negar-me a dormir na cama macia e segura, apesar de suja.

Acordei na manhã seguinte com um sobressalto: nos últimos estertores do sono eu havia encontrado uma abertura para ter um pesadelo e lembrei da misteriosa mulher que se jogara no abismo.

Ao me levantar, deparei-me com o fogo aceso e com a mesa posta para o desjejum. Era curioso que isso acontecesse, visto que eu fora dormir sozinho naquela cabana. Mas sobre a mesa estava um envelope rústico contendo um bilhete numa caligrafia que parecia saída de um manuscrito medieval:

Tente não demorar muito nessa casa: ela não o salvará de si mesmo, e o exporá a muitos perigos que você não conhece. Não deixe que minha irmã Lua o engane.

O caderno que eu subtraíra da suicida estava dentro do envelope: sua capa de couro marrom estava úmida, como se manchada de sangue, do sangue dela. Mas não estivera assim quando o pegara. O cheiro dele era quase insuportável, como se o seu texto revelasse horrendos e imemoriais segredos. Coloquei-o na mochila pensando em tentar ler depois.

Tomei do amargo café e comi dos pães duros, untados de manteiga rançosa, e fui ver o que havia do lado de fora. O cavalo da desconhecida estava pastando no relvado próximo à cabana, e pareceu dócil à minha aproximação. Abracei-o carinhosamente, lembrando a pele áspera, mas feminina, de sua dona morta. O cavalo me olhou profundamente, como se tivesse inteligência em vez de ser apenas uma besta de carga.

Selei e montei aquele animal com o respeito que merecem os cavalos, pelo menos no mundo estranho em que eu tão de repente me perdera. Saímos pelas estradas

A estrada era larga, maltratada e pedregosa. Um cavalo poderia facilmente derrapar e cair naquele chão traiçoeiro. Ninguém seguia no rumo oposto, ou no mesmo, e o silêncio da paisagem conspirava como se todo o mundo se tivesse desabitado de seres humanos e das trevas o mal me espreitasse. Cavalgava por horas sem destino, observando cada traço da paisagem, sempre buscando alguma indicação de rumo.

Quando o sol estava alto no céu, parei à sombra de um imenso pau-ferro à margem da estrada e roí algum pão enquanto observava as estranhas runas do caderno. À luz do sol elas pareciam bem menos misteriosas, dava para ver que estavam em alguma língua humana, embora talvez antiga demais para que eu a reconhecesse. Montei novamente e segui meu rumo sem sentido.

Ao cruzar a crista de um morro bastante íngreme, entrei em um território onde parecia ter chovido recentemente. As folhas estavam tão viçosas que dava vontade de fazer-lhes carícias, e os grilos por toda parte se preparavam para a noite que em breve cairia.

Todo o meu dia foi passado em uma estrada interminável, serpenteando por entre montanhas e vales e matas e rochas. Nenhuma casa, nenhuma viva alma, nenhuma encruzilhada. Mas quando já começava a cair à noite, num raro trecho de vargem à beira de um rio largo, limpo e tão silencioso quanto um lago cheio de sapos, eis que achei a primeira bifurcação da estrada desde que entrara naquele mundo. Lembrei-me dela imediatamente, pois fora através dela que eu entrara naquele lugar.

Contemplar aquele lugar me fez sentir firmeza novamente: ali estava o elo que me levaria de volta aos lugares conhecidos, onde as coisas todas têm explicação. Bastava guinar o cavalo à direita e subir aquele morro baixo e triste, tão cheio de feridas avermelhadas. Do outro lado, salvo engano, haveria a cachoeira onde eu me banhara pouco após sair do cemitério da cidade sem nome.

Porém não havia força no universo capaz de me forçar a tomar aquele caminho. Por ele certamente eu retornava ao mundo conhecido, mas por ele eu igualmente retornava ao mundo no qual havia homens cruéis determinados a me conduzir à presença da lei arbitrária que me enquadrava como um facínora. Permanecer naquele mundo estranho era permanecer longe do pau de arara e da cadeira do dragão.

Por isso não tomei nenhuma atitude, apenas deixei que o cavalo, preguiçosamente, seguisse o caminho do menor esforço, o caminho através do qual eu continuaria margeando o rio e me dirigindo à noite que nascia com a lua entre duas montanhas redondas como seios.

Não demorou que começassem a surgir outras encruzilhadas. Estas, porém, eu não conhecia. Cada uma delas poderia ter me levado de volta, ou ainda para mais longe. Mas nelas eu não tive de deixar que apenas o meu livre arbítrio me guiasse.

Logo na primeira delas havia um lenço dependurado em um galho de goiabeira. Poderia ter sido uma indicação, ou poderia ter sido apenas um pedaço de roupa rasgado quando um cavaleiro passara em disparada. Aquele alvo pedaço de pano já estava tão úmido pelo tempo que não guardava traço algum do perfume ou da catinga de quem o usara um dia.

Na encruzilhada seguinte havia uma pedra grande. De cada lado havia uma fratura que se assemelhava a um assento. Mas somente em um dos lados havia algo diferente: um livro, também mostrando sinais de ter sofrido com a chuva. Apeei e fui buscá-lo, pensando nas informações que ele poderia ter, mas era somente um daqueles livros baratos com histórias para moças.

A noite começava a se desdobrar, como um vestido escuro cobrindo a linda nudez da paisagem. O livro tinha a capa arrancada, indício de que fora talvez comprado a quilo em um encalhe de banca de jornal. Mas ao folheá-lho percebi que a sua presença ali poderia não ser casual: havia frases sublinhadas, palavras isoladas marcadas a tinta. Concatenando os trechos soltos parecia haver uma mensagem, mas ela fazia pouco sentido:

Vivendo em uma linda casa … morrendo por … isso a … enganara … pensava talvez em fugir … enfeitiçar … quem vier …

Segui pelo caminho sugerido por aquele livro. Notei sem espanto que ali a noite caía silenciosa, nenhuma viva alma passava, nenhum pássaro piava. Uma negra solidão foi me envolvendo ao mesmo tempo em que eu sentia uma necessidade absurda de fazer amor outra vez, com a misteriosa morta.

Na virada do morro seguinte se descortinava um vale desolado, um amontoado de construções de pedra muito mal acabadas com um ar mais de fortaleza que de residência. Uma alta torre encimada por uma cruz inscrita dentro de um círculo predominava sobre as demais construções, mais baixas, indicando que aquele lugar, em algum momento perdido de um passado, fora consagrado. Ao lado da enorme e negra igreja de pedra nua, coberta de trepadeiras, um mar de cruzes quebradas e lápides gastas indicava que aquelas colinas cobertas de touças altas de capim haviam sido, num passado distante, uma aldeia populosa.

Mas quando me aproximei eu vi que todas as covas haviam sido escavadas, sabe Deus quando, e que os antigos residentes delas tinham sido levados, somente Ele sabe para onde. O cavalo trotava com familiaridade por aquele terreno, como se tivesse sido apascentado ali desde que fora um potrilho. Depois de passar pelo cemitério o caminho passava a ser calçado de lajotas irregulares de pedra calcária, muito gastas pela chuva de séculos e por cascos e pés de todas as espécies. Detrás da igreja aparecia uma construção que destoava do resto: baixa, clara, geométrica e aparentando modernidade. Estava silenciosa como tudo, e escura também. Outra construção, um imenso paralelepípedo negro com janelas, repousava na parte mais baixa, já perto de um regato que quase não murmurava. Uma luz acesa ali indicava que alguém vivia, ou vegetava, naquele lugar.

Mal podendo imaginar o que me aguardava, em vez disso agradecendo a sorte de um pouso — e talvez até de um lugar onde ficar pelo tempo que fosse preciso — eu me dirigi à porta daquela medonha habitação. A sua porta alta indicava uma construção totalmente fora dos padrões de hoje, com um pé-direito de três metros ou mais. A pesada madeira nem se moveu quando a toquei, nem pareceu sentir quando a pesada aldrava de ferro soou.

Um homem veio atender, macérrimo e pálido. Tinha a fisionomia desolada e os lábios finos. As suas unhas estavam crescidas e as suas costas eram curvadas. Ele poderia ter oitenta anos ou mais.

— O que deseja?

— Encontrei o cavalo por aí venho saber se não pertence a esta propriedade.

— Não criamos cavalos — ele respondeu secamente.

— E nem ao menos pode me dizer de onde é o animal?

O homem deu dois passos para fora e olhou o triste cavalo em que eu viera. Ao vê-lo a besta curvou a cabeça e soltou um relincho de reconhecimento. O homem resmungou alguma coisa que eu não entendi, acariciou o cavalo com uma doçura surpreendente e tirou do bolso algo que lhe deu. Mas quando se voltou tinha os olhos cheios de lágrimas.

— Então o cavalo é daqui?! — eu devolvi secamente.

Ele permaneceu ainda em silêncio por um tempo. Por fim acenou com a cabeça.

— Reconheço a criatura, mas ela não pertence a nenhum proprietário das redondezas.

— Não compreendo.

— O que lhe importa, com mil demônios?! Pode deixá-lo comigo. Quanto à recompensa, receberá do diabo.

— Sua falta de educação finalmente me irritou. Com que então eu tenho a boa vontade de trazer um animal perdido e o senhor me manda buscar recompensa com o demo! Vá à merda e que ele o leve!

A intensidade da minha rudeza surpreendeu-me. Nunca antes me imaginara sendo tão agressivo com alguém, especialmente com alguém que parecia estar visivelmente assustado e agindo contra sua vontade. Mas era bom exercer minha prepotência depois de tantos dias humilhado na estrada, mesmo que ela me atirasse de volta ao desamparo.

— Você não sabe o que diz!

Ele respondeu com um desprezo e uma expressão de desolação tão profunda no rosto que por um momento eu quase me arrependi. Mas logo recompus minha dureza. Nesse momento, uma voz familiar gritou de cima perguntando quem era e simplesmente ao ouvi-la eu retomei minha firmeza absoluta. Uma chuva fina e fria começara a cair, um vento cortante assobiava nas árvores e uma mulher apareceu à porta, com uma expressão gelada no rosto, como se jamais me houvesse conhecido. Ela era loura bela, como a jovem grisalha que eu vira na descida da montanha fatal.

— Jorge!?

— Ele trouxe o cavalo — disse num fio de voz o Jorge.

— Muito obrigada — disse a mulher, estendendo-me a mão com um sorriso — serás recompensado. Jorge, não vamos deixar que este homem siga viagem sob esta chuva cruel e este frio que vem com a noite, faça-o entrar e lhe prepare um quarto de visitas.

— Realmente, senhora, não é de bom-tom deixar que ele atravesse esta noite inclemente a pé…

E me fez entrar.

A aparência interna do lugar não era melhor que seu exterior desolado. Os móveis eram todos muito grandes e de desenho bruto, o chão era de lajotas enceradas e as paredes caiadas não ostentavam nenhum ornamento. Prepararam-me uma mesa na cozinha e comi alimento recém-preparado pela primeira vez em muitas semanas. Jorge e sua mulher, uma criatura gorda e sorridente, eram os únicos empregados daquela imensa casa.

Depois de terminar, me conduziram escada acima até um pequenino quarto de hóspedes localizado logo à direita, antes de um imenso portão de ferro trancado com um cadeado maior que a minha cabeça. Além do portão um longo corredor com várias portas. Seguramente aquele edifício fora um convento e aquelas eram as celas em que dormiam solitariamente os frades ou as freiras do lugar.

Depois que me fez entrar em meu quarto, pude ouvi-lo girar a chave na fechadura e tive medo pela primeira vez em muito tempo. Segurei a maçaneta, mas já era tarde: Estava trancado! O quarto, uma das celas do antigo monastério, era grande o bastante para caber um guarda-roupa, uma cama e uma mesa de cabeceira. Para mais nada, porém. Havia uma única janela vazando as paredes muito grossas que davam para o exterior. Apesar de estreita, era larga o bastante para que eu pudesse debruçar-me nela e contemplar a noite de lua crescente sobre os campos.

Um ar pesado soprava do norte, como se alguma coisa horrível estivesse vindo. A janela, localizada do lado que dava para o riacho, se abria sobre uma escuridão difícil de avaliar. A luz da lua não chegava até ali porque as montanhas e as construções mais altas se interpunham obliquamente no caminho do luar.

Apesar disso, dispus-me a dormir. Mesmo porque não havia remédio. Despi-me parcialmente e me estendi na pequena cama de colchão duro. Quando estava semi-adormecido, apesar do nervosismo, ouvi uma janela batendo, senti o frio da madrugada beijando meu rosto e levantei-me para ver o que era. Minha janela estava aberta. Enquanto imaginava como pudera ela abrir-se, senti uma presença familiar atrás de mim e me voltei.

— Que bom que vieste…

Era a mulher loura que me recebera à porta. Olhei-a de alto a baixo, apreciando cada detalhe de seu corpo entrevisto através da camisola diáfana que usava. Ela sorriu-me e desprendeu-a de seus ombros, fazendo-a cair e deixar diante de mim uma nudez fulgurante. Então abriu os braços e me chamou ao seu seio e fizemos amor com uma intensidade maior que a da vida.

Em dado momento, ouvimos um ruído ecoar pelos campos, um ruído de tiro. Os olhos dela se iluminaram.

— Ei-lo que chega!

A cancela da entrada rangeu e minhas pernas amoleceram. Suei frio e ergui-me num sobressalto. Um ríspido diálogo se travou embaixo na cozinha:

— De quem o cavalo? — pergunta uma voz estrondosa.

— Não sabemos, um cavalheiro chegou nele, dizendo tê-lo encontrado pelos campos. Veio perguntar pelo dono porque quer a sua recompensa. — Respondeu servilmente Jorge.

— E por que pousou aqui em minha casa este estranho?

— Choveu depois que ele chegou e ficamos constrangidos de ordenar-lhe que seguisse viagem sob tão cruel tempo.

Uma torrente de palavrões ribombou pelo salão, simultânea a dois tiros. Catarina, que até então estivera radiante, rompeu em pranto convulso, levantou-se da cama e atirou-se pela janela antes que eu a pudesse impedir! Pesa segunda vez ela me escapava! Assustado, vesti-me rapidamente e, instintivamente, abri o armário. Lá encontrei, por obra de Deus ou de Satanás, não sei, um rifle carregado!

Enquanto o engatilhava ouvi os passos pesados do recém-chegado logo além da porta e o chocalhar de chaves. Apaguei a única vela que havia no quarto e cerrei a cortina. A escuridão mais completa se fez. Apontei a arma para a porta e aguardei que ela se abrisse para atirar duas vezes no peito do desconhecido, antes que ele tivesse tempo de me ver.

O homem arregalou os olhos, deixou cair a pesada carabina que carregava e tombou pesadamente para trás. Fui até seu cadáver e, reacendendo a mesma vela do castiçal ao lado da cama, pus-me a mirar-lhe. Era uma criatura formidável aquele homem: teria mais de dois metros de altura e uma musculatura firme e poderosa. Seu rosto estava tomado por uma cicatriz que lhe dava um ar cruel e os seus dentes eram bastante ruins. Vestia uma espécie de hábito de tecido rústico, bem pouco suficiente para abrigar-lhe do frio que fazia naquela noite. Toquei-lhe a fronte para certificar-me de seu falecimento e, comprovado este fato, desci as escadas.

No salão estava o pobre Jorge com a cabeça aberta pelo rombo do único tiro que levara. A arma usada para isso teria matado um elefante. A sua pobre mulher fora atingida no meio das costas, mas ainda respirava. Aproximei-me dela e dei-lhe a mão. Ela olhou-me nos olhos, lacrimejando de medo na presença do frio do Juízo próximo e disse:

— Maldito seja ele, maldito!

Eu não tinha nada que fazer por aquela pobre criatura. Apenas acariciei o seu rosto com ternura. Ao sentir a sinceridade de meu toque ela me disse:

— Cuida de Inês.

Imaginei imediatamente que este seria o verdadeiro nome da loura e, não desejando aumentar a tristeza da agonizante, informei que Inês estava bem e que eu cuidaria dela. A mulher cuspia sangue pela boca, indicando que seus pulmões haviam sido atingidos. Num último esforço, olhou-me e disse “pobre coitado de ti!”, vindo a morrer em seguida.

Saí em busca de Inês logo em seguida — e não a encontrei. Não havia nenhum corpo abaixo das janelas daquela construção sinistra, nenhum sinal que indicasse qualquer coisa semelhante à remoção de um cadáver. Para mais estranheza ainda, a provável janela de meu quarto era sobre uma horta, cujas alfaces intactas eram ainda mais intrigantes que o formato barroco daquela lua que parecia uma gargalhada no céu.

Pela manhã, sepultei Jorge e sua esposa em duas das covas vazias do cemitério. As armas, eu achei prudente enterrar no solo fofo do fundo da horta, a fim de que aquela noite ficasse esquecida. E tendo feito isso, enquanto tomava da salobra água do único poço que servia à casa, me perguntei o que deveria fazer em seguida. O sol me respondeu que era preciso descansar. Mas descansar não me parecia nada sábio, diante das circunstâncias.


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Fechei para textos de ficção. Não vou mais blogar ...
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