come qualquer coisa,
menos escorpião.
A tristeza deste século que chegaserá de não haver mais horas mortase nem fantasmas nelas.Um mundo iluminado, limpo e organizado,sem espaço para transgressões.A melancolia será subterrânea e todos acuados,teremos de ter e de ostentar.Os seres tristes sorrirão tambéme se atracarão às lumináriasem busca de pé no remoinho.A agonia que haverá na nova eraserá o som do mundo ininterruptoacima da perspectiva do infinito,mais forte que o pulsar dos corações.Um mundo preenchido, pleno e certificadoonde a insatisfação será um problema secundáriodiante da impossibilidade evidentede ouvirem nossos gritos.Os seres tristes somente poderãosoltar-se numa alegria fingida e sem sentidoe dançar para não mostrarem o que são.A repressão que espera na esquina será a ausência de ouvidos.Será estar na praça do infinitolendo um romance de cavalaria.O mundo ritmado funcionará aindae todos seguirão o enterro de seus dias,como relógios, inconscientes das horas.A solidão nos Belos Tempos será somentedelinear um pensamento e descobrir depoisque a solidez de um momento é ilusão.Como a bolha de sabão que sobepara estourar contra a vidraça sem voar.Nós passamos e não deixamos traço,e não voamos, a não ser cá dentro.E parece haver além beleza e umidade,mas o breve instante que pensamosnão é bastante que o vento nos carregue:o homem é uma bolha de sabão que sonhae não há janela aberta e nem vento.
Se as editoras conseguirem o que querem, implantarão suas “equipes cocriadoras” e tentarão amestrar todo jovem autor que as procurar querendo divulgação. Muitos talentos serão castrados. Para os corajosos, como a porta da rua é serventia da casa, restarão os desertos da independência. Meu Deus, a horrível liberdade.
Uma “equipe cocriadora”, no contexto da literatura, é um conceito tão monstruoso que foi preciso mais de um século para ele tomar corpo, desde que as editoras começaram a contratar revisores que iam além dos erros tipográficos. Tratamos aqui da suprema alienação da humanidade.
Com a Revolução Industrial o artesão se viu alienado do controle da produção, tornando-se proletário. As “equipes cocriadoras”, tomarão do autor o controle de sua obra e tornarão as editoras fábricas de livros, transformando os escritores em “proletários das letras”, produzindo obras sobre as quais não possuem voz definitiva, e cujos direitos são difusos por causa das muitas mãos envolvidas.
É possível até que surjam, na literatura, tal como já existem na música, “marcas” que não representam indivíduos, mas “equipes de criação”. Na música tivemos casos como o Technotronic e o C&C Music Factory, grupos cujos “intérpretes” eram contratados por “produtores”. Quando os músicos tentaram sair fora do esquema perderam o direito de interpretar “suas” músicas, porque estavam sob o controle das “equipes cocriadoras”. Para tais equipes, o esquecimento daquelas músicas não era um prejuízo: bastava criar outro sucesso no mês seguinte. Para os intérpretes, significava que eles não tinham um repertório.
Eu digo que é possível que esta excrescência se transmita à literatura porque, a partir do momento em que estiver estabelecido o conceito de que o escritor não sabe escrever e é preciso que a “equipe cocriadora” o ensine, nada impedirá que as editoras simplesmente produzam através destas equipes o conteúdo de que precisam. Isso já aconteceu com a música: não há mais ninguém procurando descobrir artistas, pois eles podem ser hoje produzidos em série.
Mas quem se importará em escrever livros se não tiver nem ao menos a expectativa da fama? Todos sabemos que é muito difícil ganhar dinheiro escrevendo livros, a maioria o faz pelo orgulho de fazê-lo, e de pôr o nome na capa. Coloque o autor em uma “equipe cocriadora” que desindividualizará o seu trabalho e justamente aqueles que mais desejam fazer trabalhos criativos e inovadores ficarão desestimulados.
Eu vou mais longe, correndo o perigo de ir reiterando o que disse em outros parágrafos. Já sabemos muito bem que muitas obras são rejeitadas por polêmicas ou por “não são comerciais”. Mas pelo menos elas são rejeitadas “in totum”, o que é melhor do que serem aceitas e mutiladas pelo trabalho de tal “equipe cocriadora”, de tal forma desfigurando o original que o autor nem mais tenha orgulho dele. Sim, as crianças iludidas que sonham em “escrever um livro” não se importarão, mas os autores mais maduros e com mais ambições do que mostrar para os amiguinhos, esses ficarão de pelos eriçados, como eu.
E eu ainda estou supondo que as crianças iludidas ainda terão o direito de ter seu nome na capa, mas para que a editora precisará da figura difícil e cheia de ego, um autor estranho, se já tem a seu serviço pago uma “equipe cocriadora” capaz de “melhorar” as obras que recebe? Para que correr o risco de investir no novo se a “prata da casa” já faz o trabalho? O resultado disso: algo semelhante ao que houve com as gravadoras. Artistas fabricados, cantando obras compostas por profissionais, tocadas por músicos de estúdio. Artistas que não têm controle algum sobre o que cantam, de forma que quando perdem o contrato com a gravadora eles sequer podem continuar a carreira cantando seus sucessos.
Não estou aqui discutindo se isso vai acontecer ou não. Sei muito bem que os que ficam no caminho do “futuro” encontam a Paz Celestial. Mas se tem algo que devo lhe dizer é que eu sou um desses, senhor motorista do tanque. É melhor ser derrotado na luta em defesa de nossos ideais, do que viver rendido aos objetivos alheios.
A era eletrônica, o paraíso do editor. Ou melhor, do censor. Antigamente se poderia bem dizer que “livro é como passarinho”, depois que saiu da prateleira da livraria ninguém mais controla. Hoje em dia é possível revogar a publicação do livro, apagar do dispositivo chique o arquivo ofensivo que não deveria ter saído. Mas, acima de tudo, hoje em dia é possível fazer as “correções” na redação do escritor-aluno até que seja aceitável no contexto da edição-escola. Onde foi que esqueceram pelo caminho a ideia de que o escritor é um adulto livre para ousar, diante de quem a sociedade reverente espera? Ah, bem.
Os editores celebram no livro eletrônico justamente isso que ele tem de monstruoso: a facilidade de um trabalho colaborativo. Trabalho colaborativo é o meu … de óculos. O nome dessa colaboração é censura prévia: você só chega a ser aceito se você se tornar do jeito que o “mercado” quer. Vimos isso ao vivo na televisão, em um programa chamado “Fama”. Cantores de diversos estilos e personalidades foram amestrados durante semanas até que todos passassem a cantar de forma curiosamente parecida. O mercado quer produtos em série, embalados a vácuo, todos de formato igual. Parabéns a você que tem o formato certo ou que é maleável o suficiente para entrar na forma e ficar parecido. Eu pretendo endurecer aqui de meu lado.
As mutilações digitais não deixam marcas. Os originais nunca existiram mesmo! São apenas arquivos vagos, nuvens de elétrons circulando por circuitos. Esse trabalho colaborativo é uma ferramenta quase stalinista, mas está usada pelo capitalismo. No fundo, os totalitarismos se servem dos mesmos instrumentos, variando a dose, ou a maneira como são consorciados.
Não me acusem de estar preso ao século XX, de ser um arauto do passado. Prefiro ser arauto de coisas que entendo, do que papagaio de palavras vagas, cujo impacto ainda está além de minha ideia. Oh, não, lamento dizer que vocês talvez não entendam o que acham que entendem. Hoje em dia as pessoas são muito curtas e superficiais. Hoje em dia os intelectos são pontos. Ninguém faz análises de longo prazo, afinal o ano fiscal termina em dezembro. Com o tempo começam a achar que o mundo começou em janeiro.
O novo não é sempre bom. Certas coisas horríveis que aconteceram no passado foram novidade quando apareceram: o amianto, a sífilis, o comunismo, a peste negra, os aditivos à base de chumbo para a gasolina. Precisamos ser críticos em relação ao novo, talvez mais até do que em relação ao velho. Ser profeta do passado é muito fácil: esticar um longo dedo para os erros de nossos pais e avós é algo que não custa muita ousadia, pois os resultados, muitas vezes, são conhecidos. Difícil é ser cético em relação ao canto da sereia do futuro. Todos temos a ingenuidade de crer que o nosso futuro é a redenção de todos os nossos pecados.
Mas o futuro é perigoso.
Hoje existem tecnologias fantásticas, inimagináveis há quarenta anos. Ferramentas fantásticas, mas com dois gumes. Certamente fazem coisas inimagináveis em 1971, mas temo que nem todas estas coisas sejam, além de inimagináveis, desejáveis. Ferramentas que nos dão a impressão de que no futuro não haverá nenhuma forma de arte, e muito menos de artista, um futuro que me parece desinteressante. Um futuro de informação precarizada, controlada e impessoal. Nesse futuro tampouco haverá liberdade de informação.
Hoje, se algum autor deseja ser dono exclusivo de sua obra, tem ferramentas para publicação independente — dizem os editores, sugerindo que somente os que topam abrir mão de parte de sua autoria poderão deixar de ser “independentes”. Os editores querem matar o autor, ao que parece.
Acontece que a publicação independente sempre foi a exceção na história da literatura. Relegar a ela todos os que não aceitem conformar-se significa fechar as portas do grande mercado aos que não desejam submeter-se a imposição do coletivo. E pensar que houve uma época em que as pessoas achavam a URSS monstruosa porque impunha a coletivização de fazendas, a serviço "do povo". Hoje as editoras, que desejam coletivizar a criação literária, a serviço do lucro, são “cool”. Sabemos, mas, porém, no entanto e todavia, que o mercado é ditador. Portanto, “a porta da rua é serventia da casa” para quem acha que pode escrever o que quer. Tal como é serventia da casa para o repórter que não quer difundir a agenda do patrão, para o político que se filia na legenda sem querer se render às “práticas normais” do meio.
Se você quer ser um autor “muderno” precisa “reconhecer que faz parte de uma equipe cocriadora, na qual cada um contribui com o que sabe fazer melhor e trabalha em consenso com os demais”. Imagino que reação teriam os membros de uma “equipe cocriadora” dessas diante dos ícones de nossa literatura. “Consenso”, teu nome é “censura”. Estes conceitos revelam que para a maioria das editoras, livro é como pão de forma, cortado e ensacado e vendido a peso exato. O pão do espírito em formato adequado para armazenar em prateleira, e com prazo de validade compatível.
E é por causa disso que nós, os criadores de conteúdo, não podemos ter ilusões quanto às intenções de quem capitaneia esse barco avariado. Eles chamam aos outros de piratas apenas porque eles têm cartas de corso. É por isso que nós, os criadores de conteúdo, devemos ansiar e até trabalhar, para que vá abaixo todo esse edifício, que se destrua toda a atual estrutura de comando e controle do conteúdo, com seu arcabouço legal e suas práticas corriqueiras. Somente destruindo essas empresas de forma definitiva e irreparável haverá possibilidade de salvar o futuro. Certamente não conseguiremos salvar um futuro parecido com o passado que havia, quarenta anos atrás, mas numa hora dessas não podemos ser egoístas: se pensarmos apenas em nossos direitos autorais podemos terminar com uma sociedade na qual não teremos quase direitos.
Vocês devem estar imaginando, então, que eu sou mais um que celebra o futuro esfuziante que vem aí. Que sou contra as ferramentas de controle do conteúdo, mas que abraço entusiasticamente o mundo eletrônico. Nem tão depressa assim, motorista, pare o ônibus do futuro, pois quero descer.
Quero voltar para minha casa, achar meu próprio armário debaixo da escada, ali me esconder, com minha velha máquina de escrever, e então, de dentro da escuridão desse meu canto, oferecer-lhes meu vislumbre desse futuro. Uma resposta algo poética demais (e hoje em dia a poesia se tornou algo pejorativo), porém somente com poesia se atinge a contundência. Não me acusem de dramalhão, falo em nome de valores que muita gente não entende, falo do ponto de vista de quem está acuado no quarto debaixo da escada. O que para vocês pode parecer casca, para mim é a medula.
Eu sou o ego. Eu sou a ambição do ego. Eu falo em nome dos desejos do ego. Eu não acho que o ego seja ruim.
É errado supor que o ego seja egoísta. O egoísmo é uma perversão tão grande quanto a total ausência de amor por si. Eu não sou egoísta, apenas aprecio ser quem sou, apenas aprecio a ideia de poder ser quem quero ser. Sei que muitas coisas que eu sou, ou sei, resultam do amálgama de coisas que foram ditas, ou feitas, por outras pessoas. Resultam de coisas que vi, ouvi, e copiei. Mas todas as coisas que fazem parte de mim, quando não foram simplesmente se instalando, como mofo numa toalha, são escolhas que eu fiz. Ninguém me impôs que eu escrevesse, por exemplo, ninguém conscientemente me fez ver que há mais beleza na mulher morena do que na loura.
O Ego é bom. Penso, logo existo — ele diz. “Penso” não é um fenômeno coletivo. “Penso” é uma ilusão de individualidade que nos torna saudáveis. “Penso” é a felicidade.
No mundo eletrônico, o ego está sob ataque. Movem guerra nuclear contra ele. Uma guerra cuja primeira batalha foi travada, décadas antes do primeiro chip de computador, quando alguém teve a ideia de que os livros escritos pelos autores não eram bons o bastante, que era necessário haver um “profissional” capaz de ensinar o escritor a escrever.
O nome desta profissão é “censura” e o seu fruto é a negação do ego. O autor não tem a “permição” de escrever com cê-cedilha, a não ser em contextos muito limitados. Tal como atores de novelas não podem falar com outro sotaque que não o de Capacabana, a não ser em contextos muito limitados, como novelas regionais caricatas. O nome desta profissão é “censura” e a sua marca é a soberba.
Houve um tempo em que escritores escreviam, revisores revisavam e editores editavam. Hoje escritores escrevem, revisores reescrevem, editores mandam reescrever. No fim do processo “interativo” a obra que chega a ser publicada já foi expurgada dos defeitos do autor. Todo autor tem defeitos, os únicos perfeitos são os editores e os revisores.
Mas esse tema é tão complexo que tenho que deixar para semana que vem.
Na postagem passada eu argumentei que o “livro eletrônico” entre aspas (marketeado como “e-book”) não é um produto novo, mas uma tentativa de mercantilizar algo que já existe. E que o objetivo do “e-book” não é oferecer conteúdo, mas controlá-lo.
O livro é uma ferramenta muito poderosa. Tão poderosa que ele, praticamente sozinho, acabou com a Idade Média e produziu esta sociedade em que você vive, este Admirável Mundo Novo, cheio de tantas pessoas adoráveis. Não acredite nos historiadores tradicionais: o mundo que nós conhecemos não é fruto das contradições do feudalismo e nem de uma fase de grandes navegações, mas de uma mudança de mentalidade produzida por uma invenção que rapidamente revolucionou a transmissão do conhecimento pelo mundo: a imprensa.
Antes da imprensa o conceito de autoria era difuso porque o próprio livro era algo inexistente. Os manuscritos antigos e medievais eram reproduzidos por copistas, que muitas vezes alteravam, adulteravam ou abreviavam o original. Certos tipos de obras, especialmente poesia e música, tinham um caráter efêmero, não eram vistas como “obras de arte” no sentido em que hoje as vemos.
Com a imprensa o livro se difunde e com ele se difunde o nome de seu autor, criando a vaidade da originalidade, da autoria. Não se passaram dois séculos até começarem a surgir as primeiras leis regulando os direitos do autor. Estas leis eram, em essência, justas. Procuravam remunerar o criador do conteúdo, em vez de deixar todo o lucro nas mãos do dono da impressora. Permitiram que homens de classes pobres ganhassem a vida sem ser de forma braçal: surgiu a figura do “intelectual” este ser abjeto e detestado hoje em dia. Junto com ele surgiram profissões, como o jornalismo, a literatura de ficção, a crônica. O ápice das leis do direito autoral se consubstanciou na Convenção de Berna, que assegurou que cada país respeitasse os direitos dos autores nascidos em outros, permitindo assim que o mercado de traduções funcionasse, e aumentando os ganhos dos autores.
Quando o autor se tornou profissional, foi necessário que ele passasse a ter proteção para continuar profissional. Se a proteção do direito autoral se extinguisse com a sua morte, haveria sérios riscos e inconvenientes. Pelo lado do editor/impressor, havia a possibilidade de que a morte súbita do escritor lançasse em domínio público uma obra de que se fizera há pouco uma grande tiragem, causando prejuízo a quem investira nela. Pelo lado do autor, havia a perspectiva de se tornar impublicável à medida em que envelhecesse, pois os editores simplesmente esperariam que ele morresse, para poderem ter acesso gratuito à sua obra. Por isso foi criada a extensão póstuma do direito autoral.
Porém, tal como as pensões das filhas de militares, nisso também se criou uma situação escabrosa. Muitas vezes o autor morria e deixava de herança uma renda expressiva em forma de “royalties” para parentes que em vida o haviam desprezado, abandonado, tachado de louco etc. Imagine, por exemplo, se Bruna Surfistinha, que até hoje não foi perdoada pelos pais, for casada em regime de separação de bens (não sei se é ou não e isso não me interessa, a não ser teoricamente, para fins de argumentação). Em caso de sua morte agora, os direitos de suas obras escandalosas ficaria sob o controle deles. Como nem os loucos rasgam dinheiro, o mais certo é imaginar que eles aproveitariam muito bem esse dinheiro. Usei um caso famoso e próximo de nós, mas casos análogos existiram às pencas pelo mundo. Tudo graças a extensão póstuma do direito autoral, que em alguns países chega a absurdos noventa anos!
Eu escrevi tudo isso sobre o direito autoral porque somente entendendo o alcance que ele tem, e a ideologia que existe por detrás dele, é possível ver porque os “livros eletrônicos” buscam controlar o fluxo de conhecimento e de informação. Existem empresas interessadas em manter em seu lugar a atual estrutura de poder — que não é de todo injusta, como já disse, embora longe de perfeita. Para chegar a esse fim quimérico, posto que na contramão do rumo indicado pela tecnologia, esses interesses estão atacando e solapando a democracia.
Imagine um mundo no qual leis impostas pelos fabricantes de carruagens tentassem impedir os automóveis de andar a velocidade maior que a de um cavalo em trote (15 km por hora). Imagine um mundo no qual leis impostas pelos pintores tentassem impedir que os fotógrafos tirassem mais de uma fotografia por dia, e que fizessem mais de uma cópia de cada negativo. Imagine um mundo no qual leis impostas pelos copistas impedissem edições de livros acima de vinte exemplares. Agora imagine um mundo no qual leis impostas pelos antigos controladores do conteúdo (editores e gravadoras) tentam impedir que os arquivos digitais (por sua própria natureza transmissíveis, copiáveis e alteráveis) sejam justamente transmitidos, copiados e alterados.
A introdução de novas tecnologias deve ensejar a criação de novas estruturas de poder e marcos regulatórios, adaptados aos novos tempos. Tentar continuar com as mesmas leis e paradigmas de antes é um obstáculo ao curso da natureza. E toda lei que tenta impedir a natureza de seguir seu curso produz violência. Pois somente com violência é possível “tentar” resistir à natureza. E sempre que a violência vence a natureza, o resultado é uma terra arrasada.
Na próxima postagem, apesar desta defesa apaixonada do futuro, lhes explicarei porque tenho fascínio pelo passado e medo do que está por vir.
Comecei a postagem passada dizendo que o “e-book” é uma “buzzword” poderosa, que adquiriu um caráter de dogma, e cuja crítica é retrucada com o anátema. Esta é uma característica predominante de nosso tempo: após décadas de modernismo, caracterizado pelo pensamento multifacetado, vivemos uma era de aspiração ao pensamento único, sob o signo do infame “fim da História” apregoado por Francis Fukuyama, nome que será eternamente lembrado pela ignomínia. Algumas “buzzwords” nomeiam coisas que efetivamente existem, são novas e se consolidam, como foi o caso da internet (que já foi um tema da moda, antes de virar item básico de nossa sociedade). Outras são apenas conceitos desenhados no ar por pessoas interessadas em ganhar o dinheiro de pessoas que gostam de palavras aéreas. Outras ficam no meio termo: nomeiam coisas que existem, mas não são novas, apenas revestidas de nova aparência. Penso que o “livro eletrônico” está neste terceiro grupo.
A rigor, se julgarmos pelo sentido literal das duas palavras, podemos dizer que existem livros eletrônicos desde meados dos anos setenta, quando foi criado o Projeto Gutenberg, com o objetivo de transcrever em formato eletrônico a herança cultural da humanidade. Desde então surgiram outros projetos e outras formas de geração, distribuição e leitura de conteúdo textual (e não textual). Um sítio na internet não deixa de ser um livro eletrônico, se contiver texto apropriado para um livro.
Porém, quando os marketólogos do mercado põem a mão em algo, eles procuram criar um produto a partir de uma “commodity”. O “livro eletrônico” etiquetado como “e-book” só traz de novo o velho anseio de manter sob controle o conteúdo que a internet, anárquica por natureza, ameaçava arrebentar. Os leitores de livros eletrônicos sempre procuram restringir o acesso do usuário ao conteúdo, criando formatos incompatíveis, licenças dificultosas, impedimentos operacionais. Pessoas que adquiriram os primeiros leitores de livros eletrônicos e gastaram dinheiro comprando “livros” para eles provavelmente hoje se perguntam aonde foram parar: quando o aparelho deu defeito os livros simplesmente sumiram. Arquivos digitais somem. Se para morrer basta estar vivo, para um arquivo digital desaparecer irremediavelmente, basta que ele tenha sido criado.
Como autor eu deveria estar preocupado com o controle sobre o meu texto. E estou. Como ser humano eu deveria estar preocupado com a realidade de que um dia morrerei. Eu estou. Em um caso, como no outro, porém, eu enfrento o inevitável: o conhecimento quer circular e as pessoas querem compartilhar aquilo de que gostam. As empresas que vendem produtos culturais gostariam de impedir isso e criam regras absurdas. Se eu fosse seguir tais regras, eu sequer poderia tocar na festinha de aniversário de minha filha o CD da Xuxa que lhe dei de presente, pois está proibida a “execução pública”. Portanto, eu sei que se o meu texto for bom e agradar, ele será copiado e eu não ganharei dinheiro nenhum com isso. Só me resta esperar que pelo menos a maior parte dos copiões tenha, pelo menos, a decência de não remover a menção à minha autoria (se bem que confio mais na decência dos cachorros do que na do ser humano, considerado em sua média).
Portanto, quando são criadas regras para controlar o acesso ao conhecimento, mesmo que tais regras sejam feitas em meu nome (ou seja, em nome dos criadores de conteúdo, profissionais ou não), eu sei que elas não me beneficiarão, que dificilmente beneficiarão aos controladores de tal conteúdo (gravadoras, editoras etc.) e que certamente prejudicarão à humanidade. Inúmeras são as leis que são criadas e custosos são os procedimentos e processos que são levados a termo em nome do combate à pirataria, tal como são inúmeros e custosos em relação ao combate quixotesco contra as drogas. O ser humano quer anestesiar-se, e ocasionalmente destruir-se, e é inútil tentar suprimir as ferramentas, pois se a necessidade existe, outras ferramentas sempre serão inventadas. O ser humano é inteligente e engenhoso, sabe improvisar em caso de necessidade. E o ser humano quer o conteúdo. Quer ver o filme, quer ouvir a música, quer ler o livro.
Na próxima semana continuarei analisando o tema, desta vez falando sobre o tipo de proteção e de reconhecimento que realmente me interessam como autor.
Discutir o tema “livro eletrônico” é clamar por encrenca. Como toda “buzzword” da era da internet, “e-book” é um conceito que adquiriu uma aura de dogma e qualquer tentativa de dissensão resulta em anátema. Aliás, qualquer pessoa que se preocupe com “firulas” como “privacidade” e “direitos” acaba sendo tachada de coisas horríveis, tal como fazem com o Richard Stallman — um sujeito brilhante, embora pouco hábil para cativar as pessoas pela simpatia, ingenuamente imaginando que as pessoas são racionais e compreendem argumentos lógicos. Richard Stallman é uma verdadeira geni da era da Internet, tudo porque há trinta anos ele se insurge contra praticamente tudo quanto é novidade alardeada pelo “mercado”. Até hoje ele esteve certo todas as vezes. E eu, como não me incomodo em perder mais dois ou três de meus leitores, ouso aqui entrar em mais um terreno pantanoso.
O principal texto de Stallman que interessa ao tema se chama “The Right to Read” (“O Direito de Ler”). Trata-se de um conto de ficção científica no qual um jovem apaixonado por uma colega de classe pobre enfrenta um dilema existencial: ajudá-la a estudar para a prova, emprestando-lhe seus livros eletrônicos (e assim cometendo um crime), ou negar-se a isso, cumprir a lei e perder a oportunidade de cativar a garota de seus sonhos. Sob a capa deste dilema tão comezinho está a questão do “Gerenciamento de Direitos Digitais” (ou “Digital Rights Management — DRM”, como preferem os anglófilos): ao impedir a cópia de um arquivo digital, não fica apenas impedida a difusão sem pagamento das obras publicadas, mas fica também impossibilitada uma tradição de séculos: o empréstimo e/ou doação de livros. Na escola do futuro descrita no conto de Stallman, os alunos precisam pagar por todos os livros pedidos no currículo. Não existe para eles a opção de ir à biblioteca da escola e consultá-los lá, gratuitamente.
A leitura desta história, em 2002, deixou uma impressão forte em mim. Primeiro porque sou fã de ficção científica desde meus tempos de moleque, quando assisti, cheio de lágrimas nos olhos, “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”. Segundo porque, sendo eu um usuário de Linux, as ideias de Stallman estão muito mais próximas de mim do que de um usuário comum de Windows: Linux não é só um sistema operacional, mas uma ideologia sobre como deveria ser o mundo. A ideologia foi dada justamente por Stallman, em 1984, quando abandonou o emprego no MIT para criar um sistema operacional inteiramente livre, dando origem, assim, à FSF (“Free Software Foundation” — “Fundação em prol do Software Livre”). Muita água rolou de lá para cá sob a ponte.
Uma ideia é algo muito poderoso. Depois que você tem contato com ela, depois que você a entende e assimila, será preciso muito mais do que um argumento racional para retirá-la de seu castelo no fundo de sua alma. Porque ideias não plantam apenas conceitos, mas desconfianças. Stallman plantou em mim a salutar desconfiança de que as poucas e poderosas empresas que dominam o mercado mundial de computadores e de programas para computadores não estão interessadas em construir uma democracia mais bonita, um mundo de fartura e alegria, etc. Empresas estão interessadas em dinheiro, e sem a focinheira do Estado em suas bocas, elas comerão tudo. Não foi um comunista barbudo que disse que “não existe almoço grátis”, mas um expoente do pensamento liberal, Milton Friedman. Stallman é barbudo e suas ideias muitas vezes tangenciam o comunismo, mas ele concorda com Friedman: tudo que existe de graça relacionado a computadores está interessado em conhecer e controlar você. Com esse conhecimento e esse controle é que as empresas ganham rios de dinheiro.
O mundo já foi um lugar mais simples para os escritores. A chance de ser publicado era ínfima, claro, mas o mundo era mais livre, pois cada um era dono do próprio caderno e da própria máquina de escrever. Não era preciso pagar aluguel pelo uso da estante, nem temer que um texto pela metade evaporasse sem remédio por causa da falha de um programa mal escrito. E quando o autor chegava a ter seu livro publicado, tinha a garantia de que ele existiria fisicamente por décadas a frente, que não desapareceria se simplesmente a editora se arrependesse de tê-lo publicado. Para quem chegava a obter o sucesso, especialmente nos países mais estáveis, como os Estados Unidos, décadas de direitos autorais poderiam assegurar a profissionalização. Era um mundo excludente, que só funcionava para poucos, mas ninguém acha a loteria injusta só porque os vencedores são raros.
Acontece que este mundo, bom ou mau, está caquético, prestes a perder os últimos dentes. Dentro de poucos anos será inimaginável esperar ter uma carreira como a de um Stephen King ou mesmo a de um Graham Greene. Isto ocorre porque o “livro eletrônico” (ou “e-book”, como preferem os anglófilos) possui um caráter totalmente diferente do livro tradicional, tal como a fotografia é outra coisa, quando comparada com a pintura a óleo sobre tela, que era a principal expressão artística mundial antes do século XX. Vivemos agora a transição entre os dois mundos, não temos ainda como prever como será o futuro “fotográfico” da literatura, mas já sabemos que não será como o passado, e que isso não será necessariamente bom.
Na próxima postagem continuarei destrinchando este tema, abordando a questão do “livro eletrônico” como um conceito repressivo, comparado com o tradicional.