Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
26
Jan 13
publicado por José Geraldo, às 00:24link do post | comentar | ver comentários (7)
Uma das maiores dificuldades que há no mundo é a de se ensinar. Quem tenta ensinar geralmente se expõe. Não raramente surge a cobrança da legitimidade: Como você quer me ensinar a falar inglês sem ser nativo? Como vai me ensinar música se toca toscamente esse violão? Como vai me ensinar a dirigir se tem carteira de motorista e seguro de automóvel há dez anos e o seu bônus é zero? Como vai me ensinar a desenhar se os seus personagens parecem tortos no papel?

Mas os questionamentos não acabam junto com a fase da falta de legitimidade (que chega ao fim por preguiça do aprendiz, que se conforma em não achar instrutor melhor, ou porque aceita que, afinal, nem é preciso saber fazer para ensinar a fazer). Depois que as pessoas resolvem ouvi-lo surge o desafio do poder, e você pode começar a escrever besteiras, desnudando-se de uma forma que não queria. Infelizmente o mundo já não é mais tão escasso de crianças de cinco anos dispostas a apontar que o rei desfila peladão.

Esta semana está bombando nas redes sociais o caso de uma editora que teria postado em seu saite, sob o título de «Dicas Para Escrever um Romance», uma curiosa peça, de autoria de uma certa Thayane Gaspar (quem?) que incluía conselhos polêmicos, como:
Seja original, e para isso fique longe de outros livros. Em total abstinência literária. Será como se só existisse seu romance no seu mundo, do mesmo jeito para o mocinho, só existe a mocinha.
Inspiração é o estado de sintonia entre sua alma e você, é o momento em que a alma consegue se expressar verbalmente. Por isso, busque coisas que evoquem esta sintonia: uma música, um lugar, uma foto que mexa com você. Fique perto dessas coisas, e dê voz à sua alma, e não a force, ela só fala o necessário e quando necessário.
Descreva o mínimo possível a aparência dos personagens. É como se eu fizesse apenas o contorno de seus desenhos e passasse a tarefa adiante, para o leitor. Esse é o trabalho deles. O meu é dar vida a sentimentos, sonhos e histórias. E o nosso trabalho é, que juntos, façamos essas pessoas reais dentro de nossas mentes.
Esses três parágrafos (transcritos ipsis litteris) nos revelam muita coisa sobre Thayane Gaspar, sobre a Modo Editora (que muito antes de ter publicado esse texto havia endossado a autora) e sobre o tipo genérico de escritor que tem procurado as nossas editoras. Mas revela também sobre o arquétipo de literato que vem sendo transmitido em nosso país, de geração a geração. Um dos muitos arquétipos nocivos (ou seja, «preconceitos») que expressam o nosso atraso mental coletivo.

O que Thayane está expressando neste texto é o que ela, certamente, tem dentro de si: a concepção da literatura como o resultado de uma inspiração superior, e não um trabalho com as palavras, algo que exige «inspiração», mas não «transpiração» (não force muito), e que não dialoga com o mundo real (como se só existisse seu romance no seu mundo), mas com um mundo de fábula, uma torre de marfim onde o escritor, este oráculo dos deuses, produz sua obra. Dentro de sua torre de marfim o autor não precisa dialogar com a cultura na qual está imerso (ou não, isso depende de cada um), mas com um plano mais elevado (fisica e espiritualmente) de onde misteriosamente vem a tal «inspiração» (ela só fala o necessário e quando necessário).

Esta personificação da inspiração como algo alheio ao autor, e independente de sua vontade, busca, claro, valorizar o produto obtido como algo que não estaria ao alcance de «qualquer um». Faz parte da mitologia literária nacional imaginar o autor como uma espécie de Escolhido, portador de um dom gratuito de Deus ou da natureza (ou de Satanás, se tiver fechado um pacto numa sexta feira numa encruzilhada sacrificando um bode).

Tão importante é esse trabalho (quase no sentindo umbandista do termo) a que se dedica o Autor (com letras maiúsculas, pois ele é um ser iluminado), que ele não deve perder tempo com detalhes trabalhosos, como descrições. Não é trabalho do autor descrever narizes, imaginar cores, catalogar características, saber tamanhos. O trabalho do Autor é «dar vida» (tal como um Dr. Frankenstein que lida com memórias e inspirações, cadáveres de emoções e sensações) a «sentimentos, sonhos e histórias». 

A autora, apesar do desastroso modo como apresenta o conceito, está, de fato, buscando ser moderninha, ao ecoar a tese da obra literária como um processo aberto, do qual o autor não tem controle, e no qual cabe ao leitor um processo de co-criação durante a leitura. Conheço apenas vagamente o conceito, que meu amigo João Francisco diz originar-se em Roland Barthes (autor de que li um excelente livro certa vez e depois esqueci benditamente cada linha). O que ela não sabe é que ninguém razoavelmente culto ousaria dizer que o autor devia se abster de criar, confiando que o leitor criaria o que faltasse. Parece óbvio que, se o leitor estivesse dispostos a tanto, e soubesse tanto, não haveria necessidade de se valorizar tanto o Autor e sua Inspiração (que o diabo os carregue se eles não servem para produzir bons livros). Thayane não percebe que seus conselhos se chocam uns contra os outros, porque ela tenta harmonizar seus preconceitos arquetípicos com doutrinas filológicas modernas e um pouco de justificação das próprias limitações.

Por fim, a abstinência literária (sic) recomendada pela autora ecoa este privilégio, ao negar a importância, ou o valor, da influência de uma obra sobre outra. Mais que isso, supõe a autora que, por não ter lido outros romances, você não os imitará. Esta afirmativa revela uma profunda ignorância dos mecanismos da literatura, pois ela desconhece a existência de modelos mentais que condicionam a estruturação narrativa até mesmo de pessoas iletradas: os causos contados pelos pitorescos matutos do interior não são menos estruturados do que os bons romances, apenas estão vazados numa linguagem não padronizada e padecem, devido ao contexto oral e informal, de uma série de elementos «poluidores» que desviam seu foco e seu fluxo, dificultando uma linearidade maior. Desconhece, ainda mais, essa continuidade estrutural entre a literatura oral e a literatura escrita, visto que mesmo os que não leiam livros terão acesso à primeira através mesmo de fatos prosaicos, como a repetição de notícias de jornais. E o mais curioso é que justamente esse conceito vem corroborar uma antiga tese provocativa que circulava nas redes sociais: a de que o autor brasileiro não vende porque não escreve bem, e não escreve bem porque é um bronco sem cultura (mais sobre isso no final).

Evidentemente uma postagem tão desinformada acaba por lançar fortes dúvidas sobre quem a escreveu. Eu nunca tinha ouvido falar de Thayane antes (isso não é problema, visto que ela dificilmente terá ouvido falar de mim), mas agora que a conheci por este texto, terei muita dificuldade para levá-la a sério. Se não por suas contradições e erros oriundos de desinformação ou falta de jeito, certamente por não conseguir pontuar corretamente um texto de três parágrafos.

No começo eu dizia que a postagem também revela algo sobre a Modo Editora. Refiro-me ao fato de que a Editora tenha não apenas aceitado difundir um conselho tão tosco, mas que não tenha sequer corrigido o uso de vírgulas no texto. Obviamente a Editora Modo não acha importante corrigir vírgulas, tanto quanto a autora não acha importante descrever personagens, ou ter uma bagagem literária. Imagino que, se não corrigiu vírgulas em três parágrafos, não as terá tampouco corrigido nas dezenas ou centenas de páginas de «Princesa de Gelo», a obra que Thayane produziu.

O problema não está em haver uma editora que dá vez e voz a depoimentos como esse, se fosse uma voz isolada isso não teria nenhum problema. O problema está em haver uma massa crítica de pessoas que acredita nesses conselhos e os põe em prática. Porque Thayane não inventou isso. Por mais que se esforce em «ser original» enterrando a cabeça na areia para não conhecer o resto da literatura universal, a verdade é que esses conselhos são a condensação de um estado de espírito amorfo que vem se formando nas redes sociais há pelo menos uns seis anos. A ideia de que ler outras obras «contamina» o talento do autor é antiga, e eu mesmo já escrevi aqui, há dois anos e meio, sobre o mito do autor genial que não lê.

O caso me faz lembrar a parábola cristã do Guia Cego. “Porventura pode um cego guiar outro cego? Não cairão ambos no barranco?” (Lucas, VI, 39). Se Thayane padece destas deficiências (mais do que o uso das vírgulas, a crença em preconceitos infundados e um conhecimento porco de teoria literária), como pode ensinar a seus leitores como produzir romances perfeitos? A questão da legitimidade urra aqui com uma força ensurdecedora. É aceitável que o professor não saiba fazer, mas saiba ensinar. O técnico de futebol ensina o jogador a jogar sem que ele mesmo saiba dar um drible num cone. Mas é inaceitável que um mestre não tenha nem a prática e nem a teoria. Esse mestre é um guia cego, e todo aquele que o segue vai para o barranco junto com ele.

E para o barranco segue uma multidão de jovens autores brasileiros, que publicam por editoras que os iludem com capas bonitas, noites de autógrafos e estandes em feiras, que afagam seus egos e ordenham seus bolsos enquanto desperdiçam belas árvores. Autores que acham que serão originais caso se tranquem num quarto, de preferência antes de terem lido qualquer coisa.


Quando a polêmica se instalou, a Modo Editora removeu de seu site o arquivo de imagem que continha os conselhos da Thayane, mas continuam lá outros conselhos igualmente inacreditáveis. Tamara Ramos, por exemplo, dá os seguintes conselhos:
Um bom autor precisa conhecer os grandes clássicos da literatura nacional e internacional e deve estar atento às tendências do mercado literário.
Parece ser um conselho sensato, ainda mais em comparação com o de Thayane, mas não tem a mais remota base factual. Porque se tal conhecimento amplo fosse «preciso» para um bom autor, a grande maioria dos clássicos não teria razão para ser lida. Os autores clássicos não conheciam os grandes clássicos (o próprio conceito de «clássico» é uma invenção bastante recente) e até muito recentemente inexistia um «mercado literário» para se prestar atenção.

É certo que conhecer os clássicos não faz mal, mas é errado imaginar que somente um douto literato sabe fazer boa literatura. Esse é, aliás, o motivo pelo qual a acusação de que o autor brasileiro escreve mal porque é inculto não passa de uma trollagem tosca. Há bons autores que tem uma cultura imensa, mas há tantos outros que adquiriram a cultura apenas na forma de uma biblioteca, enquanto que alguns autores genuinamente incultos produziram livros interessantes. A falha está em enxergar uma relação de causalidade entre quantidade e qualidade. Algumas pessoas precisam ler alguns bons livros para conseguirem escrever alguns bons livros, outras precisam ler muitos, e muitas não escreveram bons livros nem que leiam cada página jamais impressa, em cada língua do mundo. A chave está em aproveitar o que se tem, tal como é impossível gastar um bilhão de reais, também é impossível tirar proveito de ter lido dez mil romances clássicos.

Mais do que recomendar o conhecimento dos clássicos como uma estratégia para buscar um nicho de mercado, Tamara acredita que exibir cultura cativa o leitor:
Para começar o processo da escrita de um romance, um autor necessita de uma grande bagagem literária e cultural. Isso enriquece o texto e conquista os leitores.
Novamente ela confunde quantidade com qualidade. Exibir uma grande bagagem cultural não necessariamente enriquece o texto, na maioria das vezes apenas o torna pesado, intimidador. Depende do talento do autor para dosar e apresentar essa bagagem. Porque, definitivamente, não é a bagagem literária do autor que conquista o leitor. O que conquista o leitor é o livro ser bom, ou, pelo menos, atender às suas expectativas do que seja «bom» (e tanto há quem goste do olho como da remela).

O caso é que Tamara sabe disso. Tanto que escreveu em outra postagem sua «não tente um estilo forçado ou literato». Ora, então por que escreveu que uma grande bagagem literária e cultural enriquece o texto e conquista os leitores? A resposta é simples: também Tamara está divida entre a teoria que aprende na faculdade (onde lhe ensinam sobre literatura, mas não ensinam literatura) e os seus antigos preconceitos. A faculdade lhe diz que o autor culto produz uma obra mais densa e de qualidade, mas ela sabe, instintivamente, que a maior parte das obras citadas como exemplo na faculdade são verdadeiros soníferos, do tipo que, como disse Millôr Fernandes, «quando você larga não consegue mais pegar.»

Entre Thayane e Tamara eu acredito que a segunda tenha escrito um livro melhor. Não só porque não levou rasteira das vírgulas, mas também porque ela me passou um conflito mais profundo entre o que lhe dizem e o que ela quer. Um conflito que pode levá-la a uma reflexão de valores mais amadurecedora do que uma abstinência literária para preparar o corpo para o nascer do pão do espírito.

Mas ambas, ambas, são vítimas de uma Editora que atira seus autores aos leões, sem dar-lhes nenhuma assessoria. As duas viraram vítimas das redes sociais porque se expuseram com opiniões caracterizadas, respectivamente, pela ignorância e pela incoerência. Uma editora que realmente cuidasse da carreira de seus contratados não permitiria que elas postassem aqueles conselhos, possivelmente não permitiria nem que publicassem os seus livros. Mas o que fazer se há tantos jovens iludidos pela cobiça do distintivo duvidoso de «escritor» a ponto de justificar o florescimento do mercado de «fábricas de fábulas» que temos visto acontecer? Se a Modo não publicasse, haveria alguém para publicar, e outro lugar onde as duas pudessem guiar rumo ao barranco quem as quisesse seguir.


EM TEMPO: Contrariamente ao que muitos podem pensar, eu não sou nenhum guia cego porque não estou aqui ensinando ninguém a escrever. Como não tenho essa proposição, não tenho o ônus de justificar minhas ideias. Esse ônus pertence a quem pretende ensinar “como”. E se alguém segue minhas ideias, lamento dizer que tal atitude só poderá levar meu seguidor pelos caminhos que trilhei e ao destino a que cheguei. Parágrafo adicionado em 26/01/2013 às 21h00.

13
Jan 13
publicado por José Geraldo, às 10:57link do post | comentar
O prédio das repartições municipais era bonito, histórico, razoavelmente bem depredado e detestável. Entrei pela porta de madeira bruta, entalhada a machado, em busca do departamento de arrecadação do imposto predial e territorial urbano, onde deveria tentar obter, pela quarta vez em trinta dias, uma certidão negativa que me habilitasse a hipotecar a minha própria casa para poder custear o tratamento da doença terminal de minha mulher. Um dia falarei sobre isso, sobre a obrigação que temos de dilapidar o futuro dos filhos para fingir que tratamos da morte inevitável dos vivos, tudo porque a sociedade nos culpará se sobrarmos razoavelmente ricos depois de uma desgraça na família.

Impus ao meu rosto a melhor seriedade que ainda podia fingir, mascarando bem o alívio de saber que o sofrimento da querida Estela não duraria muito mais, e talvez nem fosse preciso usar a certidão. Somente assim, preparado para o luto, eu poderia transitar entre os conhecidos sem olhares reprovadores.

A sala do departamento de arrecadação era caracterizada pelas cadeiras desconfortáveis, de madeira nua e irregular, e pelo verniz meloso que estragava as calças de quem se sentasse durante muito tempo. Ainda teríamos muitos meses a esperar de pé até que os pobres peões de roupa suja e costas cansadas fossem curtindo o excesso de verniz até aquela cobertura caramelenta se transformasse numa sebosidade escura e segura. Lá dentro não havia senão um ventilador, que girava exclusivamente pelo amor de gastar alguma eletricidade, visto que a velocidade de grama crescendo com que girava não servia nem para refrigerar o próprio mecanismo. A sala de espera, dotada do conforto luminoso de amplos janelões de vidro que davam para o pôr do sol, estava separada do gabinete do oficial por uma porta que dava para uma sala refrigerada. O expediente começava ao meio-dia.

Ainda achei um lugar para me recostar próximo à parede oposta à janela. Se fosse atendido rápido ainda teria a bênção de não ter que aturar o sol das três horas. Teria ficado recostado lá, em cômodo silêncio, se não tivesse entrado o Rogério Justo, que eu não via há tanto tempo que mal lembrava seu rosto. Ele tinha sido um grande amigo de meu pai quando eu era menino, fora responsável por alguns bons presentes que ganhei de aniversário, e por muitas vezes que ele chegou em casa tarde e com cheiro de cachaça, para desespero de minha mãe. Felizmente meu pai nunca chegara sem dinheiro no bolso. Jogava, mas incrivelmente ganhava sempre mais do que perdia, e sempre voltava das noitadas quite com a despesa: o lucro gasto em bebida e salgadinhos. Andava afastado desde que meu pai se tornara abstêmio e ele não, mas ainda se cumprimentavam quando se encontravam pelo mundo.

Estávamos ainda nos cumprimentando quando Eleonora Gomes entrou, carregando um grosso envelope nas mãos. Tinha as unhas pintadas de rosa claro e um par de óculos em uma armação que combinava tanto com elas quanto com o tom dos sapatos, o tipo de luxo que ostenta cuidado obsessivo com a aparência. Era uma das conhecidas que fizera em minha carreira de representante comercial. Conhecida apenas. Mantenho distância de pessoas complicadas, especialmente as ricas. Levo uma vida simples e bastante sozinha. Gosto assim.

Achei-a bastante tranquila, apesar da recente perda de uma prima e o seu gênio, inalterado. Depois de breves minutos alternando entre respondê-la e ao Rogério, dei-me conta da falta de educação que estava cometendo:

— Desculpem-me a falta de educação, eu nem me lembrei de apresentá-los. Eleonora, esse é o Rogério, amigo de minha família, lá de São Pedro. Rogério, essa é a Eleonora, filha do Joaquim Gomes, lá de Leopoldina.

Eles se cumprimentaram cortesmente, com a urbanidade comercial e neutra que se espera nos dias de hoje. Deixei-os à vontade para darem continuidade à conversa, porque estava mais preocupado com a minha vez na fila do que com qualquer assunto que eles pudessem começar. O sol ia avançando pelo chão, como uma doença que se espalha, e a a fila andava lentamente demais. De vez em quando eu interrompia minha preocupação para dar um ou outro empurrão no assunto. Numa dessas vezes o empurrão funcionou tão bem que eles entraram numa conversa que tardou quase meia hora, e me colocou no meio:

— Você sumiu de Leopoldina, Eleonora.

— Estou agora vivendo em Governador Valadares. Meu marido está trabalhando com mineração por lá, temos uma empresa grande, que presta serviços à Vale do Rio Doce.

— Interessante, dizem que aquela região voltou a crescer bastante nos últimos dez anos — comentei, sem nenhuma intenção especial.

Foi a deixa para que ela começasse a falar sobre as maravilhas de lá, do pleno emprego, das oportunidades de negócios, do fluxo de pessoas e coisas. Eu até comecei a ter vontade de abandonar o meu emprego e ir para lá também. Felizmente eu sabia que ela era dada a exageros, especialmente quando falava de si mesmo e de suas infinitas qualidades. A menção de que o marido estava no ramo de mineração acabou atraindo Rogério para o assunto:

— Eu também estou no ramo — ele disse. Mas claro que não tenho uma empresa grande. Aliás, eu não trabalho diretamente com minério, eu alugo caminhões para as mineradoras.

— Pois é, menino. Lá em Valadares o negócio tá crescendo tão depressa que está faltando caminhão. E os que aparecem estão cobrando um horror. Meu marido está tentando conseguir 150 caminhões trucados para transportar minério, mas se for pagar o preço que andam cobrando ele não vai conseguir ter lucro. Você não conhece, por acaso, quem possa nos arranjar esses caminhões?

— Uai, eu posso — disse o Rogério. Eu arranjo esses 150 caminhões para você. E eu sei quanto andam pagando por lá. Eu faço por vinte por cento a menos se me der um contrato.

Eu me assustei um pouco com a afirmação do Rogério, que não me parecia ser o dono de tanto caminhão, especialmente numa cidade tão pequena quanto São Pedro.

— Mas, Rogério. Você tem tanto caminhão assim, homem? Com cento e cinquenta caminhões dá para levar embora São Pedro inteira!

— Uai, só eu tenho uns vinte a meu serviço, e eu arranjo o resto com amigos, parentes ou conhecidos. Fácil.

— Não vai sobrar um caminhão num raio de noventa quilômetros se você arranjar 150 caminhões para ela.

Rogério ficou um pouco ofendido com a insinuação. Mas reafirmou que conseguia.

— Passe o seu telefone, por favor — pediu a Eleonora.

Rogério não se fez de rogado e cantou o número de um telefone móvel. Ela tomou nota dele em uma folha avulsa de papel, retirada de dentro da bola, mesmo estando com o próprio celular à mão. Anotar um telefone num pedaço avulso de papel é desejar perdê-lo, para ter a desculpa de não ligar. Desculpa talvez desnecessária, pois um número citado tão depressa talvez estivesse errado.

Estávamos nisso quando chamaram a senha do Rogério para um dos dois guichês de atendimento, e logo a minha. Saímos de lá, separadamente, para resolver nossos problemas pessoais, deixando Eleonora com o telefone anotado e aquele seu belo sorriso escancarado.

Nunca soube se ela ligou, ou se o número estava certo. Porque eu mesmo não tomei nota dele. Só sei que continuou duvidando que haja tanto caminhão em São Pedro, ou num raio de noventa quilômetros. Tanto quanto duvido que Eleonora tenha uso para 150 trucados em seja qual for a empresa de seu marido. Ela é dada a exageros, só não contava que a gente de minha terra fosse dada a mais. Com 150 caminhões trucados não sobrava nenhuma casa em São Pedro. Não sobrava, talvez, nem a Pedreira Velha.
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27
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 00:07link do post | comentar
Você não ouviu falar de Christopher Schewe. Dificilmente terá ouvido falar de “shoenice22” — seu nome de usuário no YouTube. Não perde grande coisa, mas a vida e as apresentações deste assim chamado “comediante” da internet podem servir de base para algumas reflexões interessantes sobre quão doentia é a psique coletiva da humanidade.

Sim, você que é bem informado provavelmente já tivera o primeiro vislumbre do real valor do ser humano ao saber que aproximadamente 55% de todo o tráfego da internet se refere a pornografia. Recentemente tomei conhecimento de informações mais precisas sobre o chamado “lado negro da web“, ou “Deep Web“, que corresponde a mais de 90% do conteúdo da internet, e é o domínio de toda espécie de seres ditos “humanos” (entre aspas) que nem deveriam ter o direito de estar vivos: traficantes de drogas, assassinos de aluguel, pedófilos, estupradores, traficantes de escravos, pervertidos sexuais, canibais etc.

Todas estas coisas existem porque há um público. Só quem pregou no deserto foi João Batista.

Mesmo na internet “normal” existem coisas que não parecem normais, que evocam o lado negro, ou simplesmente a filhadaputice encarcerada dentro de cada cavalheiro ou dama. E não é preciso procurar muito, porque parece que estamos chegando a uma “geléia geral” difusa, sem fronteiras entre o aceitável e o escroto.

Houve um tempo em que o povo não tinha nenhum controle sobre a programação do rádio ou da televisão que assistia.  As pessoas, sensatamente, sabiam que tudo aquilo era uma idealização da realidade — que, muitas vezes, recebiam a informação filtrada por olhos e mentes que haviam visto e pensado primeiro. Como dizia Raul Seixas: “Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz”. Sempre havia um tolo que acreditava na novela, mas era do tipo que a gente ria.

O povo, porém, consumia sem entusiasmo este feno pasteurizado que era produzido pelos meios de comunicação de massa. No fundo, as pessoas ansiavam por ver coisas mais viscerais. Lembro do entusiasmo com que meus coleguinhas de escola falavam dos golpes de “tele-catch” ou de filmes de terror como “Sexta Feira 13”, “A Hora do Espanto” e “Halloween”. Acredito até que foi o sucesso estrondoso deste último filme que impulsionou a popularidade das festinhas promovidas pelos cursinhos de inglês, que, enventualmente, sairam de lá e cairam no gosto do povo, como uma espécie de carnaval gótico fora de época.

No fundo sentíamos saudades dos monstros de circo e dos espetáculos extremos. Em séculos passados era possível ir à feira no domingo e ver uma bruxa sendo queimada ou um criminoso sendo estripado na praça. O populacho adorava estas cenas de sangue, nisso filmes históricos hiperviolentos, como “Coração Valente” não se enganaram.

Esse impulso inspirou Kafka a escrever uma de suas mais brilhantes histórias, “O Artista da Fome”, sobre um pobre diabo que atrai a atenção do público jejuando, possivelmente por dinheiro ou talvez por migalhas de atenção apenas. As pessoas querem vê-lo passar tempos cada vez maiores sem comer, trancado em sua jaula, como um miserável animal.

A Internet já nos brindou com algumas figuras tão melancólicas quanto o Artista da Fome, mas nenhuma tão semelhante a ele quanto “shoenice22”. Ele é o legítimo palhaço triste, em toda sua inglória. Com pouco mais de quarenta anos de idade, divorciado, pai de duas filhas, veterano da Guerra do Golfo, filho de hippies fumadores de maconha e concebido e criado num trailer sujo (suas próprias palavras, em um de seus primeiros vídeos). Seu rosto sempre crispado por uma agonia que pode ser física ou não, Christopher propõe e aceita desafios de seus “fãs” pelo mundo. Desafios que consistem em comer ou beber coisas que não deviam ser comidas ou bebidas, ou então comer ou beber coisas de uma maneira inatural e socialmente inaceitável.

Enquanto o francês Michel Lotito comia coisas (quase sempre de metal) cortadas em pequenos pedaços, ao longo de um grande espaço de tempo (levou dois anos para comer um monomotor Cessna 150), Christopher “ShoeNice” Schewe come coisas que possa cortar com os próprios dentes e engolir de forma rápida, filmadas em vídeos sem interrupção, que posta no YouTube com o subtítulo de “funniest man alive”. Mas não é engraçado.

Schewe já comeu uma barra de desodorante sólido, um rolo de papel higiênico, um cheeseburguer com plástico e tudo. Já bebeu vodca, absinto, álcool líquido e tequila. Já bebeu fluido de isqueiro e água de narguilé.

Eu deveria estar tecendo muitas considerações sobre ele, mas é tarde e meu cérebro já desligou. Continuo na quinta feira, amanhã.

18
Out 12
publicado por José Geraldo, às 01:17link do post | comentar | ver comentários (1)
Decidi-me a um passo radical nas minhas relações facebookianas. Estou começando a cortar relações com pessoas com quem não tenho conhecimento direto e, simultaneamente, não formam, em minha opinião, um público potencial para a minha literatura. Vou cortando esta turma porque estou cansado de conversas vazias que não vão a lugar nenhum, cansado de gente cheia de certezas, idênticas ou opostas às minhas.

Acredito que esta medida higiência me favorecerá bastante. Ajudará a me manter afastado da internet e mais perto de coisas como árvores, bichos e trabalho. Mesmo que não tenha esse condão, pelo menos me afasto de uns malas.

Esta semana fiquei conhecendo três.

O primeiro mala é aquele cara que posta coisas e depois reclama se você comenta. O segundo é o mala que te adiciona a grupos que ele acha que você quer participar. O terceiro é o mala que só sabe falar em Jesus.

Eu digo que fiquei conhecendo esses malas somente esta semana porque eu nunca tivera a oportunidade de trombar com eles. Mas tenho a certeza de que já os intuía antes: alguns me acompanhavam desde os tempos de Orkut.

Meu contato com o primeiro mala ocorreu quando ele postou um comentário qualquer, de cunho extremamente provocador. Era alguma coisa sobre uma campanha para desacreditar a campanha movida por alguns grupos na internet em favor de que seja também julgado o chamado «mensalão mineiro». Seu comentário foi o de que não há necessidade de julgar nada daquilo, porque é tudo mentira mesmo, já que a justiça até hoje não achou o que julgar, ou algo assim. E que o livro «Privataria Tucana», que acusa os acusadores do atual governo, seria uma «peça de ficção». Quando eu comentei que ele estava agindo movido por fé cega, sem prestar a mínima atenção à coerência, o mala me atacou com uma versão sofisticada daqueles dizeres de auto ajuda barata, algo como «eu nunca fui poluir o seu mural com as minhas opiniões, por que você vem me criticar no meu?» Senti-me atingido porque, de fato, era o mural dele e, de fato também, ele nunca comentara suas opiniões de ultra direitista no meu mural. Mas se eu não tenho o direito de comentar, mesmo acidamente, o que um «amigo» posta em seu mural, então esse não é um «amigo» meu, apenas um sujeito que está adicionado, sabe-se lá por que acaso. A única reação possível, diante da distância ideológica e da necessidade de preservação de seu cercadinho mental, foi a que tomei: desfazer a amizade. No momento em que o fiz, percebi que existem dezenas de outros «amigos» meus que tampouco são amigos: porque não tenho conhecimento pessoal seu, e nem confiança para, em algum momento, comentar livremente o que postam. Amigos que só aceitam comentários laudatórios ou neutros não são amigos. São pessoas que precisam ser ignoradas.

O segundo tipo de mala é mais sutil e, de fato, eu não tenho enfrentado esse problema nas últimas semanas, desde que excluí alguns adicionadores contumazes. Mas foi só nesta semana que eu percebi que essa prática também é um abuso, e um motivo para não somente eu excluir os «amigos», mas a própria conta no Facebook. Aguardarei o lançamento do segundo livro e talvez o faça.

O terceiro tipo de mala tem me atacado menos, e esse era, talvez, o que eu mais tinha noção anterior de sua existência. O que mudou esta semana foi a percepção de que, invariavelmente, a pessoa que toca no assunto Jesus nas primeiras vezes em que você conversa com ela é alguém que tem Deus na cabeça — e mais nada. Existem muitas pessoas que acreditam em Deus e são simpáticas, mas há pessoas que acreditam que a crença é uma desculpa para ser mala permanentemente ou,  pior, que se tornam tão obcecadas que se tornam malas sem querer. Eu não tenho saco para discernir os dois tipos: ignoro ambos.

Há outros tipos de malas bastante incômodos também, como o mala prolífico, aquele que resulta em 76 notificações de atividade, ou o mala científico, que é uma espécie de crente pregador das últimas descobertas científicas. Ambos são de dar dor de dente em galinha. Imagine você abrir suas notificações e ler que «Beltrano de Tal curtiu uma notícia em G1.com», daí você clica e lê que «Mônica Bérgamo (quem?) prepara pizza com Angélica». Ou, no caso do mala científico: «Observatório americano descobre que Plutão tem 0,5% mais merdato de bóstium do que se esperava — descoberta deve revolucionar a teoria das brânquias hipersônicas de Andrômeda». Daí você passa à notificação seguinte e outro «Fulano de Tal» curtiu uma página com «Todos os personagens de 'Malhação' se reúnem para homenagear Zé Ninguém das Couves». Você ignora, mas a notificação seguinte, novamente, do amigo científico, lhe lembra «Asteróide de 0,025 toneladas passou a 0,05 unidades astronômicas da Terra nesta noite». Daí você assusta achando que foi algo grande que passou perto e descobre que foi uma bosta de pedregulho irrelevante de 25kg que nos errou por um vigésimo da distância até o Sol.

Eu estava acostumado a conviver com esses dois malas, e mais o que a cada cinco minutos compartilha um versículo fofoso da Bíblia, ou uma pérola de auto ajuda. Nesta semana percebi o incômodo dos malas políticos que, por uma estranha coincidência, estão inundando o Facebook de calúnias contra o Fernando Haddad, o Lula, o Hugo Chávez e até contra as cerejas de bolo (porque também são vermelhas). Já vi gente dizendo que «Serra é lindo» (tem gosto para tudo, até para vômito) e outro dizendo que «tinha mais é que acabar com essa merda de democracia para afastar esses petralhas do poder». Sei muito bem o que é isso: é uma campanha de astroturfing em plena ação. Esses idiotas aparentes não vão continuar postando isso depois que acabar a eleição: quem está pagando vai deixar de exigir produtividade e eles vão voltar a compartilhar auto ajuda ou notícias irrelevantes, só alguns mais impressionáveis vão continuar bajulando os candidatos. É difícil conviver com isso, não tenho mais tanto tempo. Prefiro cair fora e torcer para eles caírem na real quando precisarem trocar as fraldas, melhor do que caírem na real quando houver tanques nas ruas, e não para lavar roupa suja.

Então, para evitar esse desgaste de meu humor, estou apagando essa gente chata e dedicando meu tempo livre a assistir os filmes do Monty Python e a pesquisar na Internet por discos de violeiros. Isso enquanto O Pecado da Tristeza não sai — e já tá demorando uma meia eternidade.

11
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 22:07link do post | comentar
Debate no Facebook sobre o caso dos mendigos que devolveram 20 mil reais. Alguém, não podendo crer que exista gente honesta no mundo, comentou que havia visto a primeira entrevista deles e que eles haviam devolvido por medo: estavam cobrindo o rosto e falavam com a voz trêmula. Outro respondeu que isso não provava nada, pois o Brasil é mesmo um país onde para se fazer algo ético você precisa ter muito receio, fica de vez trêmula e às vezes tem até que esconder o rosto para evitar represálias. Faz sentido.

14
Jan 12
publicado por José Geraldo, às 15:57link do post | comentar

Reconhecidamente autor de obras insuportáveis para quem efetivamente lê, em vez de comprar para enfeitar estante ou para ter «lições de vida», Paulo Coelho se tornou o pivô de uma curiosa briga na internet nas últimas semanas. Eu, como sempre, marido traído em matéria de notícias culturais, fiquei sabendo só agora. Em uma postagem no Twitter, o Mago chamou de insuportável o novo livro de Mário Sabino. Achei a atitude do mago bastante imoral, embora o livro criticado seja mesmo, provavelmente, difícil de suportar. Para que o leitor possa entender as razões de meu julgamento, vou fazer um apanhado da história.

Mário Sabino é um jornalista brasileiro. Como muitos jornalistas, tem uma plataforma gratuita para lançar-se como autor literário (mas provavelmente vociferou contra a derrubada da exigência de diploma para o exercício do jornalismo e não aceitaria que autores literários tentassem a mão no jornalismo). Mário Sabino, ao que parece, nunca se notabilizou como repórter, mas chegou a cargos de mando relevantes em publicações como IstoÉ e, até recentemente, Veja. É um cara de ultra-direita (se for sincero), ou totalmente prostituído para a direita (caso não seja). Não tenho problemas com sua ideologia: apenas discordo antipodamente dela (em qualquer das hipóteses). Não estou aqui para falar de sua postura profissional, e nem sequer de suas qualidades de autor, mas do entrevero Sabino/Coelho. Quem não quiser ler a minha versão, pode procurar no Google, que está bombando com o assunto, ou ler a resenha do Luiz Nassif, um jornalista que, a julgar pelo que escreve, deve ser uma ótima pessoa (não o conheço pessoalmente).

Na qualidade de editor-chefe da revista Veja, Mário Sabino sofreu vários tipos de críticas quanto à sua conduta profissional. Estas críticas não me interessam. O que me interessa é que este período de sua vida coincidiu com o início de sua carreira literária. Tal como eu, Sabino é um late bloomer, ou seja, só começou a publicar tardiamente. A diferença é que eu publico em editora pequena e tenho quase nula repercussão. Sabino, devido ao poder emanado de sua condição de manda-chuva editorial de uma das principais publicações do país, publicou pela Editora Record. Tal como muitas celebridades, vendeu muito, mais pelo nome conhecido e pela divulgação recíproca entre seus pares. Provavelmente teria vendido algumas dezenas de exemplares apenas, se em vez de editor-chefe da veja ele fosse editor-chefe da Folha de Cabrobó ou da Gazeta Leopoldinense. É preciso desconfiar do sucesso que é alimentado pelo poder.

Pelo que pude verificar, Sabino publicou quatro livros durante sua fase na Veja (não sei e não quero saber se publicou algum antes): dois romances e dois volumes de contos, a saber:

O Dia em que Matei Meu Pai
Romance, traduzido para italiano, espanhol (Argentina), francês, holandês, inglês (Austrália e Nova Zelândia), coreano e romeno. Republicado em Publicado em Portugal. Ou seja: deve ser um livro razoável, ou não teria atraído tanta atenção. Se bem que ficou notoriamente fora de países importantes do mundo literário, como Espanha, México, Rússia, Polônia e Alemanha, e certas traduções foram publicadas na periferia (em inglês, na Austrália e Nova Zelândia, em espanhol, na Argentina). De qualquer forma, eu estaria rindo de orelha a orelha se tivesse tido repercussão igual.
O Antinarciso
Coletânea de contos, vencedor do Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional.
A Boca da Verdade
Coletânea de contos. Ao contrário dos dois livros anteriores, nem foi traduzido no exterior e nem ganhou prêmio.
O Vício do Amor
Romance, publicado recentemente, e pivô da crise com Paulo Coelho.

Na época em que era editor-chefe da Veja, os livros de Sabino foram bastante elogiados na imprensa brasileira. Aliás, os elogios e a vendagem de tais obras foi alvo de uma controvérsia, com suspeita de manipulação da lista dos Mais Vendidos, além de certas relações inadequadas no mercado editorial.

Nada disso importa, porém, se considerarmos que, por medo ou indiferença, os livros de Sabino eram elogiados (ainda que esses elogios fossem ouvidos apenas pelo eco), foram vendidos e foram promovidos na grande imprensa. Paulo Coelho, por exemplo, jamais se manifestara sobre o caso. E tinha direito, visto que ser autor de obras insuportáveis não impede um crítico de detectar a insuportabilidade alheia. Como meu dentista certa vez disse: «mau hálito você só sente o dos outros». Falta de talento é uma espécie de «mau hálito», mas, em nome da higiene universal da arte, não devemos esperar que somente os de boca limpa tenham o direito de se incomodar com o hálito alheio.

Acontece que Mário Sabino foi demitido (ou demitiu-se) da Veja no final do ano, em circunstâncias ainda misteriosas. A ser verdade o que se especula por aí, sua saída, se por demissão, foi em condições tão desfavoráveis que dificilmente ele ainda terá um futuro no ramo. Espero que tenha uma boa poupança. E não demorou para que se manifestassem alguns que permaneceram em silêncio durante todo o tempo em que Sabino detinha o poder fulminatório da Veja em suas mãos. Veículos de imprensa, como o Valor Econômico (que é um jornal de economia, não de literatura) e a Folha de São Paulo não perderam tempo em atacar-lhe justamente no que um autor (bom ou mau) tem de mais sensível: a sua auto-estima de criador. Depois que o inimigo é derrotado, aparecem muitos heróis para ir no campo de batalha cuspir nos cadáveres, dizia um antigo ditado polonês (ou iídiche, não consegui descobrir). Além de perder subitamente seu poder de editor-chefe da maior revista deste país, Sabino ainda foi chamado de vários adjetivos.

E justamente Paulo Coelho, notório autor de livros insuportabilíssimos, tuitou que o último livro de Sabino seria insuportável. A julgar pelas resenhas, deve ser mesmo. Mas por que razão será que Paulo Coelho deixou para falar mal de Sabino apenas depois de ele ter perdido seu emprego na Veja?

Em tempo, se alguém quiser tuitar que meu livro é insuportável, favor deixar o link do blogue e da editora. E se tiver mais artigos interessantes, talvez eu ponha no blogroll.

P. S. — não se trata aqui de ficar implorando por atenção. A questão é que, para um autor, a divulgação de seu livro é sempre interessante, mesmo que seja uma divulgação negativa. A literatura é uma das únicas profissões na qual um renome, mesmo horrível, ajuda a vender. Além do mais, ao contrário de certos autores, eu já desencanei de minha obra, e vejo os comentários, mesmo os mais críticos, com distanciamento. Quem não consegue esse distanciamento (e parece que o Mário Sabino ainda não consegue) acaba desestimulando a crítica, ou fazendo com que ela se torne rancorosa.


08
Jan 12
publicado por José Geraldo, às 20:40link do post | comentar | ver comentários (1)

Na qualidade de desconhecido pessoal de mais de noventa por cento de meus amigos virtuais,1 decidi estabelecer uma série de parâmetros através dos quais classificarei os conteúdos digitais que lerei. Obviamente tais parâmetros são necessários, pois o volume de informações na rede sendo tão grande, querer ler tudo seria como tentar uma coleção filatélica geral.2

Os parâmetros a que me refiro são, obviamente, arbitrários. Como minha vida é algo total e pessoalmente meu, reservo-me ao direito de fazer escolhas baseadas em critérios coerentes somente com as coisas em que creio.3 Reunindo em um conjunto único todos os meus conceitos, preconceitos e defeitos, proclamei os seguintes parâmetros para inclusão de blogs no meu blogroll e para inclusão de amigos no meu amigoroll.

Título em inglês
Não leio e não adiciono blogues com título em inglês. A menos, é claro, que sejam integralmente escritos em inglês, de preferência um inglês tão correto quanto o de um apresentador de notícias da BBC. Acho vulgar, pedante e tosco usar termos em qualquer estrangeirês para dar um verniz de «curtura» ou de «féchion» para qualquer coisa. Acho vomitivamente vulgar o xampu «Head & Shoulders». Eu ia pensando em dizer que acho isso «caipira», mas pensando melhor, não. Por outro lado, se o título for em uma língua exótica, como romeno, finlandês, vietnamita, curdo ou guarani eu até vou ler, mas dificilmente adicionarei.
Título em caixa alta
Escrever tudo em maiúsculas é uma maneira de chamar a atenção sem mostrar conteúdo. Você quer que o seu blogue apareça mais que os outros nas listas então ESCREVE O NOME GRANDÃO ASSIM. Isso é desrespeitoso com os outros pobres mortais que não tiveram esta brilhante ideia.4
Miguxês
Não gosto de conviver com idiotas. Ninguém gosta. Escrever com excesso de deformação ortográfica das palavras, inclusive dizendo ser uma questão de estilo, dá impressão de idiotice. Você precisa ser no mínimo um talento do tamanho do Guimarães Rosa para poder escrever fora da norma ortográfica sem parecer um fugitivo do Mobral.5
Mensagens de Pensamento Positivo
Nada tenho contra quem gosta dessas xaropadas pseudo qualquer coisa psicológicas baseadas em rasas leituras de auto-ajuda e versículos bíblicos. Se você gosta, afogue-se nisso e seja feliz. Mas eu não gosto. Minha opinião sobre auto-ajuda não é sequer publicável. Cada um com seus «pobrema» e cada um acha suas soluções. Quando não acha, procura. Soluções insistentemente chegando a domicílio são apenas uma fonte de incômodo.
Umbiguismo
Algumas pessoas gastam horas preciosas cada dia refletindo sobre o quanto são maravilhosas, fodásticas, bonitas, bem-vestidas, invejadas, ricas e bem-comidas (ou bem servidos, conforme o sexo). Gostaria de dizer a estas pessoas que, mesmo que eu concorde com um ou dois desses adjetivos, não tenho nenhum interesse em acompanhar cada dia a crônica de seus penteados, roupas, transas, tratamentos cosméticos ou festas chiquérrimas. Estou interessado no que as pessoas têm a dizer. Eu até poderia estar interessado em rostinhos bonitos e temperamentos desinibidos, se eu fosse solteiro e os donos de ambas as características não vivessem em outro estado, país ou planeta. Como não é assim, não se importe, por favor, se eu não quiser fazer papel de espelho diante de seu desfile de sensacionalidade.
Metralhadores de textos
Confesso que já fui um desses,6 mas detesto gente que posta vinte coisas por dia. Especialmente quem posta vinte coisas irrelevantes por dia. Eu quero seguir blogues que postem quatro ou cinco textos por semana, se muito.

1 Por extenso, porque só quero ser lido e compreendido por quem presta atenção no que lê.

2 Este blogueiro teria grande prazer em ser lido por pessoas que sabem o que é uma «coleção filatélica geral», e um prazer supremo em ser lido por pessoas que já tentaram fazer uma «coleção filatélica», de qualquer tipo.

3 Isto inclui achar tosco e primitivo um funk com melodia de dois ou três acordes, mas ao mesmo tempo ter orgasmos sonoros ouvindo uma canção do Ramones, do Clash ou do Joy Division. E se você não entendeu a associação, está na hora de expandir seu horizonte musical.

4 Escrever em maiúsculas é como gritar. Imagine-se em uma sala onde todos estão falando civilizadamente, cada um pedindo licença na sua vez. Então uma pessoa começa a gritar sem pedir licença. Obviamente todos vão ouvi-la, já que não podem bloquear os ouvidos. Mas se todos começarem a gritar do mesmo jeito, ninguém mais ouve ninguém.

5 Este blogueiro dá certa importância a pessoas que sabem o que foi o Mobral. Não para discriminar quem se beneficiou dele, mas porque as pessoas que têm este conhecimento também conhecem uma série de outras coisas a respeito de uma época triste de nossa História, mas cara a esse que vos escreve.

6 Não há nada de errado nisso. Eu não sou obrigado a querer nos outros aquilo que eu tenho/tive em mim.


13
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 20:45link do post | comentar | ver comentários (1)

Tal como no ano passado, compareci ao Festival Literário de Cataguases. Este ano, além de tietar eu também tive a oportunidade de falar umas bobagens com um microfone na mão enquanto alguém filmava para pôr no sítio oficial. Ao meu lado estava Miklós Palluch, que também estreia no romance, como eu, mas — ao contrário deste mineiro interiorano — padece de muito mais cultura, experiência de vida e contatos.

Fiquei bastante feliz de ver que minha campanha de divulgação foi relativamente bem sucedida. Embora tenha atraído apenas aproximadamente 3,5% das pessoas que eu efetivamente contactei, ela me ajudou a ter uma marca estranha: minha noite do Festival teve mais público que a de sábado, que contou com gente de muito mais peso.

Mas comecemos falando do que aconteceu primeiro, que é sempre uma boa e lógica maneira de começar — ainda que, literariamente falando, seja o óbvio.

Miklós Palluch é cineasta, esta é a sua praia. Na literatura ele ainda é estreante, mas estreia com muito mais tarimba de mundo do que eu, e por uma editora que certamente tem mais nome, a Ediouro. Seu romance é mais ou menos do mesmo tamanho (em páginas que o meu), mas oh, quanta diferença em todo o resto.

Estilos quase diametralmente opostos, objetivos idem. Ainda não fui longe na leitura, mas o que ele escreve me parece algo tão realmente alheio, e fresco, que dá até prazer continuar lendo. O velho húngaro escreve com uma secura, com uma sinceridade e com uma clareza que espantam.

Quanto a mim, bem, vocês que me leem sabem que eu sou amante de elipses e metáforas, de jogos, torneios e ardis. Nem sempre consigo completar a cambalhota, às vezes os malabares me caem da mão, mas fico fazendo meu número com graça e ousadia. Miklós não busca isso, a praia dele é outra. Ou melhor, enquanto carioca (mesmo que adotivo) ele realmente sabe de praia. Eu sei de morros e de rios e de ventos e de lendas. Ele escreve claro como o sol do Rio, eu escrevo sombrio como as estradas estreitas e gretas e grotas dos lugarejos de Minas Gerais.

Ver-nos trocar ideias deve ter sido interessante. Ele, descontraído, senhor de si, alguém que parece tanto ter nascido com um microfone na mão que nem sequer o quis usar, preferiu brandi-lo, qual varinha de condão, para encantar os olhos da plateia. Eu, vestido “como um padre”, nas palavras de meu irmão, me sentia pressionado a ser interessante, algo que normalmente não sou. Eu tinha ido lá com medo de parecer didático ou soberbo. Miklós foi ambas as coisas, mas com uma simplicidade que deu inveja…

Falamos sobre um tema espinhoso, que o moderador — Enzo Menta — fez questão de ressaltar que tem até um lugar no Código Penal. Risos na plateia, senha para sermos descontraídos. Naquele momento me arrependi de minha calça social e de minha camisa impecavelmente abotoada. O que falamos não vou detalhar, porque amanhã ou depois, quando me recuperar do desânimo, eu vou postar minhas notas para o debate, acompanhadas de algumas observações inspiradas no que o Miklós disse.

Depois, enquanto autografávamos nossos livros para os presentes, ele veio até mim, fez questão de comprar Praia do Sossego e me pediu uma dedicatória. Imagino se ele sentiu algo em meu jeito ou minhas palavras que lhe sugeriu que devesse ler o que escrevo, ou se estava sendo apenas simpático, algo que, ao que me parece, ele não precisa querer ser. No dia seguinte nos reencontramos e trocamos mais umas palavras. Fiquei com a impressão de que ele é um sujeito que eu adoraria ter como vizinho. Ainda bem que o Rio de Janeiro é “logo ali”.1

O evento seguinte na sexta-feira foi uma mesa-redonda entre os poetas Chacal, Ondjaki e Marcelo Benini.2 O tema entre eles foi que comentassem sobre o aforisma de que “um poeta não se faz apenas com versos”. O conceito fora atribuído pela organização do FELICA ao próprio Chacal, indiretamente concedendo-lhe uma primazia sobre os demais. Primazia que ele, humildemente, tratou de dissolver sacando da sacola as suas notas. Nelas ele leu, para certa surpresa da plateia e do próprio moderador do debate, que a frase era de Torquato Neto e aparecera na obra de Chacal através de uma citação. Antigamente não havia hiperligação.

Benini foi o mais comedido dos três, certamente surpreso pela erudição demonstrada por Chacal. Para espanto de muita gente que o julga sem o conhecer (e acha que ele deve ser uma espécie de porra-louca vazio), o poeta carioca exibiu uma segurança, uma cultura, uma vivência e uma autoridade dignas de um acadêmico. Mostrando-se conhecedor de um amplo período da história literária brasileira, o poeta acabou dando o tom de quase metade do debate, e ainda achou um modo de se defender de uma estocada que eu sem querer lhe dera em meu debate (oh, ousadia).3 Mas quem realmente roubou a cena foi Ondjaki. Muito mais articulado do que Chacal, com sua fala rápida, com seu talento corporal e seu jeito de jovem rebelde, que tanto encantou uma aluna de Letras.4 Ondjaki, porém, preferiu usar sua presença cênica para equilibrar o debate, introduzindo mais temas e evitando que a erudição de Chacal monopolizasse as atenções. O próprio Chacal beneficiou-se disso, pois os temas variaram mais, permitindo que todos brilhassem. Particularmente brilhou o Benini, cujos versos breves e concentrados, de um livro escrito inteiramente sobre pássaros, ofereceu um grande frescor temático.

A noite de sexta terminou com todos bebendo e se divertindo no bar D'Ângelo, mas eu não pude ir, devido ao sono das crianças. Mesmo assim a noite foi rica, pela oportunidade de ouvir assuntos sobre os quais nunca se fala em uma cidade pequena e pelas amizades que fiz, ainda que algumas delas fiquem apenas na memória.

No sábado o auditório estava um pouco mais vazio do que na noite anterior, o que em parte se deveu a concorrência de vários outros eventos que estavam acontecendo na cidade simultaneamente. Fica a dica para a organização do Festival, que no próximo ano ele se realize antes, talvez em outubro ou setembro.

Mesmo assim era um público qualificado, do tipo que ouve com atenção, faz boas perguntas e sabe respeitar as personalidades e as biografias que lá estavam. Às vezes é melhor falar para trinta pessoas interessantes do que para centenas que não fazem diferença.

A primeira mesa-redonda da noite foi com Elias Fajardo e Ana Paula Maia. Representantes de duas gerações diferentes, os dois também possuem estilos antípodas. Elias é alguém que eu entendo melhor: cria do interior, dotado de uma prosa lírica, um falar cantado. Ana Paula é urbana, elétrica, mas antropologicamente interessada no distante, no desértico, no confuso tecido das relações humanas do Brasil profundo. Mas continua urbana, elétrica.

Seus estilos percorreram caminhos muito diferentes. Ele foi jornalista, poeta, pintor, viajante, escritor. Ela foi baterista de uma banda punk, foi criança travessa, foi jovem rebelde. Ele sempre gostou de ler, mas esteve um tempão afastado da escrita. Ela nunca gostou, mas um belo dia, quase que a contragosto, foi mordida pelo mosquito da literatura. Conseguiram fazer com que eu ficasse curioso para ler os seus livros, ambos conseguiram. O do Elias foi mais fácil: ele estava lá à venda. Eu tive foi de ser rápido, porque ele não ficou muito tempo depois que terminou de falar. Alguns minutos de distração e ele teria ido embora sem que eu lhe pedisse o autógrafo. O da Ana Paula eu vou ter que adquirir por outros meios, sem seu autógrafo.

A noite terminou com um debate menos parelho quanto ao tema. Bartolomeu Campos de Queirós e Sabrina Abreu são muito mais diferentes do que quaisquer dos outros debatedores haviam sido. Eu e Miklós somos praticamente de planetas diferentes, mas estamos unidos por opiniões e conceitos políticos que se tocam, embora nossas literaturas não se entendam muito. Os poetas da noite anterior haviam podido dar-se ao luxo de serem diferentes porque poeta é mesmo um bicho estranho, o conjunto deles é um maravilhoso rebanho de gatos e eles se aceitam e se somam quando se atritam com suas opiniões diferentes. Ana Paula e Elias, embora vindos de mundos quase incomunicáveis, aproximam-se pelo universo em que ambientam suas histórias e, acima de tudo, pela erudição que um mostrou ter em relação ao universo do outro.

Nada disso pareceu funcionar muito bem em relação a Bartolomeu e Sabrina. Talvez porque eles fossem, mesmo diferentes demais. Bartolomeu é um idealista, um timoneiro da utopia. Sabrina é uma jornalista. Ele tem um estilo de profeta, ela de analista. Ele fala de um mundo que, sendo idoso, não verá. Ela fala de um mundo que viu de forma diferente daquela que a maioria enxerga. Ele tenta abraçar a filosofia, ela tenta enquadrar um canto da realidade que lhe interessa.

Obviamente fiquei fascinado pelo jeito quase papal com que Bartolomeu expôs, com notável firmeza lógica, as suas opiniões e suas proposições. Porém, identifiquei-me muito mais com Sabrina. Talvez porque ela, ao contrário dele, está mais próxima de mim (embora ele seja mineiro do interior e ela, da capital). Eu sou, como ela, um blogueiro, alguém antenado no presente (embora, ao contrário dela, tenha medo). Além do mais, Sabrina conseguiu falar muito mais de si e de seu livro do que Bartolomeu.  Saí do debate sabendo os nomes de dois livros dela, de suas ideias, de seu estilo, de sua abordagem. Mas consegui não saber o que Bartolomeu escreveu na vida, embora ele obviamente seja uma sumidade em seja lá o que for que faça.

A noite de sábado valeu também pela oportunidade de reencontrar alguns amigos de Cataguases com quem vinha tendo pouca chance de conversar. O William, por exemplo, agora que virou prefeito anda com a agenda cheia pacas. O mesmo posso dizer do Ivan, que se tornou secretário. Mas continuam sendo boas pessoas, velhos amigos de faculdade, gente que viveu ao meu lado uma época de que tenho saudades.5

Voltei do FELICA 2011 me sentindo feliz e realizado por ter vendido dez livros. É uma sensação estranha, e gratificante, receber dinheiro em troca das coisas que escrevo. A gente passa a vida inteira ouvindo amigos e parentes dizendo que o que fazemos não tem nenhum valor, e de repente aparecem pessoas pagando trinta e cinco reais. Senti-me bem com isso, especialmente porque ninguém comprou o livro “para ajudar”, mas para conhecer.6

Peço desculpas às demais atrações do FELICA que eu não comentei aqui. Infelizmente eu não pude estar presente todos os dias (que péssimo jornalista sou! — ainda bem que não sou!). Mesmo assim, cumpro o prazeroso dever de compartilhar minhas impressões, inclusive para convidar a você, que lá não esteve, a participar no próximo ano. Cataguases é uma estranha cidade de sessenta mil habitantes que, por uma anomalia da natureza, goza do privilégio de ter uma história de movimentos literários (notaram o “s”?) e eventos culturais. Que precisam ser mais prestigiados. Cataguases é impressionante.

1 Reza uma lenda que nós mineiros somos incapazes de conceber como distante algo que não esteja além do Oceano ou da Cordilheira. Isso é apenas uma lenda, obviamente, pelo menos aqui na Zona da Mata. Se duvida, sugiro que venha fazer-nos uma visita para conhecer o povo de cá. Não é difícil achar, tanto Cataguases, a do FELICA, como Leopoldina, onde vivo, ficam pertinho de Juiz de Fora, uns 100 km a nordeste, mais ou menos.

2 Perdão, poeta, por ter grafado seu nome com “ll” na dedicatória. Eu, que tanto me incomodo quando me chamam de “Gouveia”, deveria ter tido um pouco mais de cuidado.

3 Como vocês lerão ainda durante a semana, um dos “pontos altos” (ou terá sido baixo?) de minha intervenção foi o momento em que eu disse que não devemos valorizar o paradigma da droga ou da embriaguez como ferramenta de aquisição de conhecimento ou de inspiração pelo autor pois todo viciado tende não apenas a negar o próprio vício, mas também a encontrar justificativas não-hedonistas para o uso da substância. Acredito que a estocada a que me refiro foi no momento em que eu disse que, se todo bêbado inventa desculpas e explicações para o próprio vício, quão fascinantes e maravilhosas não devem ser as desculpas e explicações inventadas por um bêbado que possui o talento com as palavras. Em suma, tachei as produções literárias “aditivadas” de “papo de bêbado” sofistica. Oh, ousadia, que somente a ignorância permite!

4 De fato, encantou-a tanto que, nas três vezes em que tentou dizer o quanto gostava de obras suas, citou textos de outros autores “africanos”, o que acabou fazendo com que o poeta, no seu único momento de  aridez verbal, criticasse a postura arrogante com que as pessoas veem a África de fora, sem distinguir as culturas dos diversos países, com suas particularidades.

5 Quando voltava da faculdade, com a matrícula orgulhosamente na mão, encontrei um antigo professor do segundo grau, a quem contei do meu feito de ter passado em primeiro lugar no Vestibular. Ele, do alto da sabedoria que a vida dá e depois toma, sentenciou-me algo que jamais esqueci: “Isso não é importante, Geraldo. Importante é que na faculdade você viverá os dias mais felizes de sua vida. Você não terá saudades de um número na lista, mas dos amigos e amores que vai viver nesses quatro anos. Viva-os bem.” Obviamente, quando se tem vinte anos, a gente acha que sabe tudo. Não segui o conselho, mas ainda tenho saudades daqueles tempos, e daqueles amigos e amores.

6 se alguém quiser “me ajudar”, deve fazer o favor de não comprar o livro. Eu não tenho muitos, apenas algumas dezenas, e preciso que eles cheguem exclusivamente às mãos de quem esteja interessado em lê-lo. Obrigado.


05
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 23:00link do post | comentar

Você provavelmente nunca ouviu falar de Charles Kembo. Acontece que ele se tornou hoje o pivô de uma das notícias literárias mais interessantes do ano, ao tornar-se o autor do livro “A Trindade dos Super-Garotos, Livro I: A Busca pela Água”. Aparentemente não há razão alguma para que o caso seja “interessante”, mas o caso merece atenção.

Antes de tudo, é preciso dizer que a obra citada é bem justamente o que parece: uma trilogia de ficção científica protagonizada por jovens que salvarão o mundo de uma catástrofe. Mais do mesmo, óbvio. Você já leu esta história tantas vezes que não precisa ler mais esta para saber quase em detalhes tudo que acontecerá. Eu não li, mas as poucas informações que pude obter sobre o livro (que não pretendo comprar, pois meu dinheiro não dá em árvore) me fazem supor que os jovens correspondem a todos os modelos prefabricados de personagens heroicos adolescentes que aparecem nos livros mais vendidos atualmente. Portanto, a menos que Charles Kembo seja um artista genial com as palavras, o livro dele é provavelmente ruim. Acontece que o título por ele escolhido para o primeiro volume de sua trilogia não sugere que ele seja.

Ademais, o canal através do qual esta obra chegou a ser publicada não é nem um pouco recomendável: trata-se da famigerada PublishAmerica (cujo link não incluo para não gerar receita para picaretas), famosa por ter aceitado um pastiche intitulado “Atlanta Nights”, criado por alguns autores filiados à Associação Americana de Autores de Ficção e Fantasia (SFWA), mais um programa de computador. O caso está arquivado aqui (em inglês, sorry). Mas incluo um resumo abaixo, para benefício dos que não sabem inglês (e também da preguiça peluda que em que às vezes certos leitores se metamorfoseiam em noites de lua, cheia ou não, em uma estranha licantropia). Se você já conhece o caso, preferiu ler o texto que está no link ou se simplesmente confia em minha palavra, de que a PublishAmerica deveria chamar-se PublishIt!, salte os parágrafos comentados a seguir.

Muitos autores filiados à SFWA (e também jovens autores não filiados, mas que buscavam conselho) reclamavam das práticas da PublishAmerica, uma editora de fachada que se fazia passar por “tradicional”, mas que apenas arrancava dinheiro dos ingênuos. Esse tipo de empresa é chamada nos EUA de “author mill” (moinho de autores).
As reclamações variavam desde a qualidade da revisão e do projeto gráfico até à falta de promoção, passando pelos altos preços cobrados dos autores (você que escreve deve ter encontrado algo parecido aqui no Brasil, não?). Diante da divulgação destas reclamações pela SFWA (em sua página Writers Beware, ou “Atenção Autores”), a PublishAmerica defendeu-se atacando, de forma arrasadora, não apenas os autores reclamantes, mas todos os autores de ficção científica e fantasia. Segundo a PublishAmerica, o insucesso dos autores não se devia à falhas da editora, mas à falta generalizada de qualidade das obras destes gêneros, que, por serem relativamente fáceis de escrever, atraem um grande número de incompetentes, que se escondem atrás da fantasia para não terem que fazer pesquisa e nem preocupar-se com a verossimilhança de suas histórias. Ainda segundo a editora, os altos preços cobrados eram destinados especificamente aos autores de tais gêneros, pois em relação a eles não havia a menor possibilidade de sucesso devido à péssima qualidade das obras, e o dinheiro assim obtido seria investido nas carreiras de outros autores, mais talentosos.
Diante destas acusações graves e arrasadoras (com as quais eu concordo em parte, mas não em relação a todo e qualquer autor de ficção científica e fantasia), a SFWA se propôs a uma vingança: humilhar a PA provando que eles publicariam qualquer coisa desde que o autor estivesse disposto a pagar, e publicariam não apenas sem revisar, mas até sem ler.
Os autores se propuseram a escrever um livro que não apenas fosse terrivelmente ruim (mal escrito e incoerente), mas também cheio de erros óbvios: dois capítulos com a mesma numeração, um número de capítulo faltando, um capítulo com numeração menor que o anterior, personagens que não apenas morrem e depois reaparecem, mas até mesmo mudam de sexo de uma página para outra. Um dos capítulos foi produzido através de um programa de computador chamado Bonsai Text Generator, que produz frases gramaticalmente corretas, mas absolutamente sem sentido, a partir de um outro texto longo dado como amostra.
A obra assim produzida foi submetida à apreciação da PublishAmerica e não apenas foi aceita (com as congratulações e elogios de praxe, acompanhadas da “perspectiva de tornar-se um sucesso”) como foi supostamente “revisada” e “formatada” para impressão. Tendo coletado as provas (através de comunicações via e-mail) os autores foram aconselhados por um advogado a não assinar o contrato (pois incorreriam em falsidade ideológica) que permitiria a publicação (pois causariam prejuízo intencional). Preferiram divulgar amplamente o caso, achando que haviam obtido sua vingança.
Infelizmente, o mundo não é justo. Nasce um idiota a cada dia, e o fluxo contínuo de idiotas mantém a PublishAmerica funcionando e ganhando dinheiro até hoje. Talvez a PublishAmerica tivesse razão.

O que torna o caso de Charles Kembo literariamente interessante não são os aspectos intrínsecos de sua obra (que é provavelmente lixo), mas as circunstâncias que envolvem o autor. Se você já ouviu falar de “literatura marginal”, deveria engolir em seco, pois trata-se de muito mais do que isso: Charles Kembo é um assassino condenado à prisão perpétua por vários crimes ocorridos entre 2002 e 2005, um perfeito exemplar da fauna norte-americana de serial killers.

Por chocante que esta revelação possa parecer, ela traz à baila um debate importante para a literatura: até que ponto devemos separar a vida e a obra de um indivíduo. Recentemente, no Brasil, houve um sério debate sobre a proibição (ou pelo menos a restrição da divulgação) da obra infantil de Monteiro Lobato porque o autor era manifestamente racista. Charles Kembo é comprovadamente um assassino cruel e calculista, sem nenhum remorso. Isto, claro, é muito pior do que ser meramente racista. Ainda mais: ele está vivo, pronto para causar mais mortes se sair da cadeia, enquanto Monteiro Lobato, do túmulo, não pode produzir mais nenhuma frase racista além das que cometeu em vida. Quando do debate sobre a obra do criador do Sítio do Picapau Amarelo, defendi a tese de que as obras deviam ser analisadas em seu contexto, e não à luz dos defeitos do homem que as produziu, pois se formos policiar o caráter dos indivíduos para julgar o que fazem, então praticamente não haverá obra neste mundo que possa ser aceita, pois todos são, de alguma forma, moralmente reprováveis, ainda que apenas pelo bolinho que roubaram da vendedora ambulante quando crianças. Mas será que eu tenho a coragem de pregar o mesmo no caso de um assassino que se torna escritor?

No caso em questão eu não preciso me preocupar, porque o livro escrito pelo serial killer é uma porcaria óbvia. Ou melhor, pensando bem, preciso preocupar-me sim, porque a história recente nos tem mostrado que porcarias óbvias estão se transformando em livros muito vendidos e influentes. Não cito nomes porque não estou a fim de levar pedradas hoje, mas provavelmente você que me lê deve ter na cabeceira pelo menos uma obra que, se algum dia acumular mais leituras, se envergonhará de admitir que leu.

Então, se a falta de qualidade da obra não nos permite afastar a possibilidade de que ela faça sucesso (da mesma forma que a picaretice da PublishAmerica não a impede de continuar tendo um grande número de clientes até hoje), precisamos analisar o caso com atenção, e três perguntas se configuram:

1 - É aceitável que um criminoso tente tornar-se um artista? Vivemos a ilusão de que a cadeia é uma instituição que se propõe a regenerar o criminoso. Ao mesmo tempo convivemos com a existência no mundo de penas capitais e de prisão perpétua, que negam a possibilidade de regeneração de alguns criminosos ou, alternativamente, negam a aceitabilidade de que, tendo cometido certos crimes especialmente graves, alguém tenha o direito de querer regenerar-se. Existem até estudos psiquiátricos fundamentando que certos indivíduos, os tais “sociopatas” seriam criminosos incuráveis. Temos então duas posições possíveis, antagônicas.

A primeira nos diz que o indivíduo que comete um crime, qualquer crime, tem o direito de regenerar-se e eventualmente retornar ao convívio da sociedade, tendo cumprido sua pena. Se aceitarmos esta tese como correta, então não podemos negar a Charles Kembo o direito de aspirar a ser um escritor. Afinal, escrever é um tipo de trabalho (ainda que muita gente ache que não), inclusive um que tem grande potencial para utilização em tratamento psicoterápico ou psiquiátrico, devido à possibilidade que oferece de se ter acesso aos processos mentais do paciente. Permitir que um criminoso escreva é permitir que ele produz extenso material que pode ser utilizado para analisar seu comportamento e seus processos mentais, o que pode ser útil para definir se ele pode ser ressocializado.

A segunda posição nos diz que existem certos crimes para os quais não há e nem pode haver perdão ou regeneração, apenas a vingança. Você comete o tal crime e a sociedade se vinga de você, aprisionando-o pelo resto da vida em um cubículo, com acesso controlado a todas as coisas que definem a vida livre de um cidadão (ar puro, sol, liberdade de expressão, direito de ir e vir etc.), ou então matando-o de forma mais (enforcamento, apedrejamento, garroteamento, empalamento, linchamento, afogamento, sufocamento) ou menos (envenenamento, guilhotinamento, fuzilamento) dolorosa. Nesse caso a pretensão literária de um condenado à pena perpétua é uma violação de sua reclusão, e deve ser impedida.

2 - Quais os riscos envolvidos em ler uma obra produzida por um criminoso? Esta pergunta embute o conceito de que as pessoas são influenciáveis por aquilo que leem, o que eu acho correto, e que os autores conseguem fazer com que suas obras influenciem os leitores sempre em uma direção deliberada durante o ato da escrita, o que já acho altamente discutível. O grande problema com esta pergunta é que ela ignora um fato: não existe fundamentalmente nada diferente na mentalidade de um delinquente que não tenha pelo menos uma vez passado pela mente de alguém que nunca delinquiu.

A diferença é que algumas pessoas resolvem não fazer certa coisa, enquanto outras resolvem fazer. Podem existir razões que condicionam a escolha para uma direção ou para outra, mas existe também a sublimação: a possibilidade de converter um impulso destrutivo em uma ação não destrutiva. Um piromaníaco pode tornar-se um especialista em efeitos especiais, a fim de saciar sua vontade de ver as coisas queimando através da encenação de incêndios em cenários. E uma pessoa com tendências sádicas pode contentar-se em escrever livros profundamente violentos, detalhando torturas e mutilações espantosas. Nesse sentido, pelo pouco que li dos dois, existe mais violência na obra de um autor incensado, como Chuck Palahniuk, do que na tímida obra infanto-juvenil de Charles Kembo. Então é óbvio que o perigo de uma obra escrita por um assassino em série não está no seu conteúdo, visto que obras ainda mais violentas podem ser produzidas por pessoas de bem, que nunca fizeram mal a uma mosca. Se chegamos a esse ponto do raciocínio, fica a dúvida: qual seria, então a natureza do perigo envolvido na leitura de uma tal obra?

3 - Quais as motivações pelas quais Charles Kembo escreveu sua obra? Esta terceira pergunta é a consequência lógica da dúvida mencionada no item anterior. Se nos parece óbvio que o livro escrito por um criminoso violento e impiedoso não possui elementos tais, evidentemente isso se deve às motivações pelas quais a obra foi escrita. Quando Charles Kembo estava matando pessoas (sempre brancas, adultas e de classe média para baixo) ele tinha um determinado recado para a sociedade. Agora que ele está escrevendo, pode ser que ele tenha outro recado, relacionado ou não. Se existe um recado subjacente, então existe um perigo também: poderia o autor estar querendo passar algum tipo de mensagem codificada para alguém fora da cadeia? Ou está apenas querendo atrair simpatia para sua causa? Não custa lembrar que o famoso “Maníaco do Parque” pôde escolher uma esposa entre centenas de candidatas, jovens bonitas e estudadas — e não precisou escrever nada.

Penso que existem no mundo muitos livros mais perigosos do que qualquer obra escrita por um assassino confesso e condenado, como Charles Kembo (por quem, admito, desenvolvi certa simpatia ao escrever estes comentários). O autor dos “Protocolos dos Sábios de Sião” foi um funcionário público respeitável, que provavelmente morreu sem saber das consequências nefastas de seu patético esforço para convencer o povo russo de que todos os males do país eram resultado de um complô secreto dos judeus. É espantoso que tal livro tenha ensejado uma guerra mundial e justificado o massacre de dezenas de milhões de judeus ao longo do século XX (não estou me limitando aos judeus mortos pela Alemanha nazista, mas incluindo os linchados ou executados pela URSS, pela Turquia, pelas nações árabes após a partilha da Palestina e até pelos EUA). Dificilmente a obra humilde de Charles Kembo provocará algo de tal gravidade — e eu duvido muito que seja esta a sua intenção, a menos que ele tenha uma personalidade de vilão de desenho animado.

Como você já deve ter percebido, as respostas para estas três perguntas são difíceis. Para a primeira é possível simplesmente deixar que cada leitor escolha uma, de acordo com suas opiniões. Mas para as duas outras não há como achar explicação, somente poderíamos ter resposta se pudéssemos ler a mente do autor.

O resultado desta falta de solução é o espanto com que contemplamos o esforço literário de um condenado por tantas mortes. Cabe perguntar que tipo de gente se interessaria em ler tal livro? Que tipo de gente lê livros apelativos, pornográficos, violentos? Que tipo de gente desenvolve simpatia por criminosos (a ponto até de querer casar com eles)? Que mundo é esse, meu Deus?

Eu só sei de uma coisa: continuo mantendo a minha opinião. A obra é uma coisa separada do artista. Não me importa se quem a produziu era o maior dos depravados, desde que a obra produzida seja boa. Eu até acho aceitável rejeitar obras que tenham sido produzidas especificamente através do crime (uma obra escrita, por exemplo, com o sangue das vítimas do assassino, ou o seu diário “de campo” seriam totalmente inaceitáveis), mas se a obra não está diretamente conectada, na posição de “resultado” com o ato do criminoso, que mal há nela? Muitos autores foram, em algum momento de suas vidas, condenados (alguns até a morte). Tal condenação tem efeito retroativo para desqualificar as suas obras? Ou somente as obras produzidas depois dos crimes são “ruins”. Uma pessoa que comete crimes (especialmente crimes em série) não tivera sempre dentro de si o impulso para o mal?

Se não quisermos ter que responder a estas questões bizantinas, teremos que nos contentar com a solução pela simplicidade: julgue a obra por si, de forma que o autor possa até ser elevado ou rebaixado por ela, mas não deixemos que os erros ou acertos do autor interfiram nos erros ou acertos de sua obra. Pois, não custa lembrar, aquilo que é válido para o mal igualmente vale para o bem: devemos ler avidamente os livros péssimos escritos por pessoas de ótimo caráter?


12
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 12:56link do post | comentar | ver comentários (1)

Entre as muitas coisas polêmicas que me encasquetam a cabeça a respeito de temas literários reside uma em particular que me tem inquietado muito: o significado de Paulo Coelho para a literatura de um modo geral e para o mercado editorial de forma mais específica. Acredito que o mago tenha se tornado uma personalidade que ninguém pode ignorar, sob pena de ser ignorante. Podemos amá-lo ou odiá-lo, mas não podemos mais fingir que ele não existe. Infelizmente, muita gente finge. E muita coisa não se compreende a respeito do enigma que ele representa.

Em primeiro lugar, devo dizer que minha opinião sobre a qualidade literária do que ele escreve é conhecida. Eu simplesmente não vejo nenhum valor em nada do que ele até hoje escreveu e penso que enquanto escritor ele é um excelente mago. E acrescento que sou inteiramente cético quanto a magias. Preciso começar dizendo isso para que os desavisados incapazes de boa interpretação de texto não venham a pensar que eu estou aqui defendendo esse embromador.

De certa forma, porém, odiar Paulo Coelho é tão inútil quanto amá-lo: uma e outra atitude não muda nenhum fato a respeito do autor e seus livros e ambas são irrelevantes para o público cativo do tipo de literatura a que o mago se dedica. Desta forma, a relevância a que me refiro não está no autor e nem em sua obra, mas no curioso fenômeno editorial em que ele se transformou. Estudar a biografia de Paulo Coelho e observar como ele veio a se tornar o que ele hoje é. Quando pensamos em todos os paradigmas quebrados por Paulo Coelho, fica evidente que ele representa algo diferente no universo literário (não nos cabe julgar se bom ou ruim) e que a sua posição no mercado editorial é digna de nota.

Os comentaristas brasileiros tendem a ser unanimemente críticos quanto à obra do mago, reservando-lhe os mais ferozes adjetivos. Eu mesmo me insiro nesses, tendo-lhe acusado até mesmo de ter um domínio insuficiente da língua portuguesa e de desconhecer técnicas narrativas básicas. Poucos são os comentaristas eruditos que se acercam dele sem pesadas pedras nas mãos (eu mesmo levei todas as que pude carregar e ainda tinha uma sacola cheia à tiracolo). Um dos que olharam para Paulo Coelho de forma mais leve e neutra foi o escritor iraniano Arash Hejazi, cujo texto The Alchemy of the Alchemist tece alguns comentários dignos de nota.

Hejazi começa lembrando quem era Paulo Coelho em 1988, antes do sucesso dO Alquimista: um autor então desconhecido, vivendo no Brasil, um país que não tinha uma tradição relevante de traduções de sua literatura para outras línguas.. Poucos de nós nos lembramos disso quando colhemos calhaus por aí para atirar nos outros. Paulo Coelho se tornou um best-seller internacional vencendo uma série de barreiras que ninguém antes dele tinha vencido. Será que não nos interessa saber como ele fez?

Paulo Coelho tornou-se desde então um dos autores vivos mais traduzidos do mundo e embora seus livros nem sempre estejam entre os mais vendidos em todos os países, em todos eles vendem suficientemente bem para serem um investimento rentável para seus editores e se em números absolutos. Isto se torna ainda mais significativo se considerarmos que na grande maioria dos países do mundo as obras traduzidas vendem menos do que as obras produzidas localmente (o Brasil é uma curiosa exceção a tal regra, com os best-sellers internacionais roubando mercado dos autores nacionais). Além do mais, alguns dos países nos quais Paulo Coelho se tornou um fenômeno de vendas (como França, Estados Unidos, Alemanha, Turquia, Irã, Itália, Grã Bretanha e Espanha) possuem literaturas fortes e variadas e o mercado editorial de pelo menos dois desses países (Grã Bretanha e Estados Unidos) é bastante fechado a autores estrangeiros, a não ser que algum fator externo (como um Prêmio Nobel ou a invasão de seu país pelos Estados Unidos) atraia interesse.

Não podemos esquecer que Paulo Coelho nasceu em algo que poderia ser considerado um “berço de ouro”, uma família de classe média alta no Rio de Janeiro. Graças às posses de sua família e aos contatos que ele mesmo construiu no mundo artístico, o autor começou muito cedo a travar contatos com gente como Raul Seixas e Christina Oiticica (mais tarde sua mulher), ganhando visibilidade no cenário cultural brasileiro. Certamente o nome que ele construiu na qualidade de parceiro de Raul lhe foi de grande ajuda resolveu migrar para a literatura.

Estas amizades tiveram também um papel preponderante no início da divulgação internacional dO Alquimista: foram conhecidos de Paulo Coelho que se dispuseram a trabalhar quase gratuitamente para traduzir, agenciar ou até publicar no exterior aquele que viria a ser o primeiro sucesso do mago. Houve até o caso de uma fã, filha de um editor, que rompeu com o negócio do pai e fundou a sua própria editora para publicar o livro depois que seu pai se recusara a fazê-lo por julgar o livro muito ruim. De uma forma que até parece sobrenatural, todos esses acontecimentos se encadeiam e levam ao sucesso de uma forma totalmente inesperada, e até contrária ao modo como normalmente funciona o mercado editorial.

Hejazi ressalta que o sucesso de Paulo Coelho foi frontalmente em contradição com os princípios tácitos que regem o mercado: um autor obscuro, de um país periférico no contexto internacional, escrevendo em uma língua que sequer está entre as dez mais traduzidas, um livro que não recorre ao exotismo local estilo macumba para turista, um livro que não teve nunca sequer uma página favorável de crítica em qualquer veículo de imprensa, um livro que não foi transformado em filme de sucesso e que nunca teve qualquer grande campanha de publicidade. Além disso Paulo Coelho nunca contratou agentes a peso de ouro e não escolheu um título de impacto, desenvolvido de acordo com regras semióticas precisas. Sem qualquer dessas características que o mercado editorial aconselha como “essenciais” aos livros de sucesso, ainda assim o mago conseguiu “chegar lá”, vendendo mais que os livros de muita gente que fez tudo “certo”.

Evidentemente, esse sucesso remando contra a maré não pode ser ruim para os interesses dos demais autores. Quando o mercado editorial desenvolve uma “fórmula” (tal como a descrita por Hejazi) e passa a martelar dentro desta “fôrma” as obras que pretende publicar, isto significa que numerosas obras, inclusive algumas de boa qualidade, serão rejeitadas e destinadas ao esquecimento não por seu valor, mas por simplesmente não se adequarem aos preconceitos dos editores. Não custa lembrar que outro grande fenômeno, J.K. Rowling, ouviu sete vezes o não de editores a quem enviou seu livro. Rowling chegou a ouvir que escrever não era para ela.

Mas existe algo especial a respeito do sucesso dO Alquimista: todos os envolvidos em sua tradução e publicação foram pessoas que gostaram tanto do livro que resolveram empenhar-se pessoalmente em publicá-lo, expondo-se em nome disso. O livro foi lido e foi gostado e a partir de então foi transformado em um projeto pessoal por tradutores e editores. Isto, claro, depois que o próprio Paulo Coelho investira seu próprio patrimônio em sua edição e dedicara-se a vendê-lo, praticamente como um mascate, nos eventos culturais de que participava.

O que há por dentro já não importa tanto. Como dizia McLuhan, em uma frase que se tornou praticamente um meme: O meio é a mensagem. Paulo Coelho não é um autor relevante pelo que escreve, mas pelo fato de ter conseguido ser um sucesso mesmo contrariando a todas as regras “infalíveis” do mercado editorial. Nesse sentido, o mago nos inspira a acreditar no próprio trabalho, em vez de acreditarmos na opinião muitas vezes preconceituosa de algum editor.


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