Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
26
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 20:51link do post | comentar | ver comentários (2)
We don't need no education,We don't need no thought control,No dark sarcasm there in the classroom.Teachers, leave them, kids, alone.Hey, teacher! Leave the kids alone.All in all it's just another brick in the wall.
A leitura de Preconceito Linguístico: o que é e como se faz — obra seminal de Marcos Bagno — me abriu os olhos para algo que eu intuía, mas nunca articulava: o viés de luta de classes que está presente na concepção da língua como algo que precisa ser ensinado ao povo ignorante, ao povo que não sabe falar. Na visão da gramatiquice tradicional, já devidamente desancada por Monteiro Lobato em sua Emília no País da Gramática, o povo é uma espécie de primata pelado que não se humaniza, pela linguagem, se não for à escola, esse laboratório do saber onde o tosco bípede é amestrado naquilo que serve aos objetivos da sociedade capitalista.

Eu já havia sentido na pele esta situação nas vezes em que fora discriminado por falar como um «roceiro», já percebera esta tensão na diferença de prestígio entre o falar de uma região em relação ao de outra. Mas Bagno me abriu os olhos também para uma outra coisa que eu não tinha ainda percebido: que a língua, tal como a falamos, não é uma versão bastarda e manca da Última Flor do Lácio Inculta e Bela. Em vez disso, é um fenômeno novo, coerente, gramaticalizável e perfeitamente útil na boca de quem o usa. A língua que a gente fala é um dialeto do português padrão, que os gramáticos tradicionais querem descongelar da forma em que foi posto ainda no século XIX.

Estas ideias ficaram voejando em torno de minha cabeça durante anos, sem que eu as levasse mais adiante, até o dia em que se acendeu em mim uma centelha de novidade: o dia em que meu interesse por línguas artificiais — eu estudara esperanto ainda na adolescência, embora nunca tivesse aprendido a realmente falar — se uniu às ideias de Marcos Bagno e ao meu orgulho mineiro. Isso aconteceu enquanto começava a escrever um romance — ainda não terminado — intitulado provisoriamente Serra da Estrela.1 Meus amigos +Eduardo Jauch e +Sergio Ferrari são alguns que estão acompanhando o processo.

Enquanto pesquisava para formatar a língua «estropiada» que os personagens de meu romance falariam, comecei a perceber que não era necessária tanta pesquisa, bastava mapear os metaplasmos, arcaísmos, «corruptelas» e outros fenômenos, fonéticos, morfológicos e sintáticos, que ocorrem em meu próprio falar quando não me policio para tentar parecer «educado». Esta constatação foi ainda mais aprofundada quando, ao dialogar com estrangeiros, percebi a facilidade com que eu saía do português castiço e recaía em meu dialeto, ininteligível para eles.

O processo de mapeamento destas características me levou, no fim, a perceber que a gramática do português que tem sido ensinada na escola não é realmente a da língua que falamos. É uma gramática estrangeira para a maioria de nós. Nada é tão alijado do falar do povo quanto uma gramática normativa que ainda emprega segunda pessoa e recomenda a mesóclise. Se esta língua formal está tão longe do falar do povo, por que o nosso sistema de ensino não reconhece isso e adota em seu ensino técnicas pedagógicas adequadas para o ensino de línguas estrangeiras? Seria certamente mais efetivo do que cobrar de pobres crianças que assimilem como «errada» a língua que aprenderam naturalmente e como «certa» uma língua que lhes é imposta pelo sistema de ensino. Crianças mais inteligentes e de auto estima mais alta, como eu modestamente me declaro (e vocês logo entenderão porque), aprendem eficazmente o português padrão sem abandonar o uso de sua língua natural. Crianças menos inteligentes, ou menos talentosas para o aprendizado de línguas, padecerão a vida inteira com a impressão de que falharam em aprender a própria língua. Para elas o português está errado, e é uma língua difícil. Mas elas se enganam: errado está o método, errada está a escola que finge que o povo fala exatamente como nos livros.

Basta que eu passe a escrever empregando convenções ortográficas mais próximas do coloquial e tolerando os fenômenos morfológicos e gramaticais característicos de meu dialeto para que se perceba que não podemos aceitar como dada esta correspondência entre a língua que se ensina e a que se fala. Afinao, a gente nõ fala iguao screve. Cada lugar do Brasio tem um jeito seu de falar. Nõ tá nem errado e nem certo, é só dois jeito diferente de ser e de falar. Na gramática formao tem «concordança» do sustantivo com toda as palavra que ligõ co ele, maes em quaes todo os dialeto do país o plurao fica só no artigo. A diferença entre o L e o U no finao das sílaba é uma coisa que só eziste na gramática e no dicionari, e o povo se entende co isso. As palavra «proparoxítona» é otro pobrema: pelo menos aqui in Minas Geraes isso quaes nõ eziste e o povo assimila as duas última sílaba. «Fósforo» vira fosfo, «música» vira musca. E quano nõ dá para fazer essa mudança, mudam a palavra: nada fica «próximo», maes umas coisa fica perto.

Mudanças léxicas, semânticas, sintáticas, fonéticas, morfológicas. À parte as semelhanças restantes, as diferenças já acumuladas são suficientes para se afirmar, sem muito medo de errar, que entre os dialetos brasileiros e o português padrão já existe mais diferença do que entre as formas padrão do português e do galego, tidos como línguas diferentes.

Não quero aqui argumentar que devamos sucumbir a estas forças (elas vencerão de qualquer forma, com o tempo), mas que está mais do que na hora de entendermos que o povo não fala «errado», apenas fala uma variante linguística não padronizada e não gramaticalizada (posto que não há gramáticas e nem dicionários desses falares coloquiais). Precisamos respeitar o povo, deixar de vermos nele um primata pelado que precisa «aprender a falar» e enxergar nele o que é, um cidadão pleno de direitos, como qualquer outro, que apenas calha de falar diferente.

Não é necessário, claro, abolir o ensino do português padrão, como algum boçal leitor dirá que eu estou defendendo porque não foi letrado o suficiente para ler até aqui, apenas modificar o modo como é ensinado, para que deixe de se basear na humilhação inútil dos alunos com a imposição de um padrão artificial como natural. Ensinar o português padrão com a noção de que ele é diferente daquela língua que o menino fala e que esta língua que a escola ensina, apesar de não ser «melhor» do que a outra, é a língua adotada pela nação, como traço de união de todos os brasileiros.

Quando se popularizar esta consciência de que o português padrão é um fenômeno alheio à realidade imediata do aluno, será mais fácil ensinar-lhe a gramática pátria. Não será preciso, intolerantemente, dizer-lhe que «assim é que é certo», apenas que na língua padrão é diferente. No dia em que não for mais necessário usar a língua padrão como ferramenta de subjugação das identidades regionais ela será até mais efetiva para unir os diversos povos que formam o povo brasileiro.

1 Nome que vai aos poucos se tornando definitivo pelo costume.

23
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 11:13link do post | comentar
Onde algo é sacralizado, é natural que surjam os contestadores. O iconoclasmo é uma espécie de rito de passagem  para os jovens e uma marca de «independência» dos mais maduros. Provocar essa irreverência é uma maneira eficaz de manipular as pessoas: tendo um judas para chutar o indivíduo acredita que é um contestador, e obedece aos comandos, subreptícios ou explícitos, e segue mais ou menos na direção que interessa ao provocador. Identificado um alvo tido por muitos como sagrado, é muito fácil reunir uma turba de pessoas para cuspir nele, com a desculpa de que estão fazendo a revolução.

Não, eu não estou falando da religião. Estou falando do conceito de nacionalidade. Durante muito tempo nos foi vendida a ideia de que o nacionalismo era uma espécie de «doença infantil» dos estados,  e que a adesão a uma irresistível «globalização» marcaria nossa transição desta metafórica infância para uma posição em pé de igualdade diante das nações «adultas». O grande exemplo era o da Comunidade Europeia, onde nações separadas por séculos de ódios estavam se juntando para cooperarem rumo a um futuro comum. Ser um nacionalista era algo como ser fascista ou, pior, um equivalente moderno ao homem das cavernas hirsuto e renitente diante das propagandas da Gillette.

Pois bem, o tempo passou, a Comunidade Europeia entrou em crise, países mais afoitos em sua crença acabaram liquefeitos e entregues às harpias. Democracias jovens e instáveis, como as da Grécia e da Espanha, se revelaram jogos de cartas marcadas e a suposta irmandade dos povos acabou abrindo as portas para o saqueio em favor de nações mais estáveis, especialmente a Alemanha e a Grã Bretanha. Tendo renunciado às suas moedas e fronteiras nacionais, países como Itália, Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda acabaram incapazes de controlar a mobilidade de pessoas e de capitais, expondo-os, sempre instantaneamente, aos humores de um mercado financeiro que trabalha a prazos cada vez mais curtos, chegando a consumar compras e vendas a intervalos de minutos para obter ganhos de milésimos de centavos por lote de papeis.

Os estragos desse corte impensado da cerca que dividia espaços desiguais não foi restrito à economia, porém, a cultura sofreu e sofre com esse impacto, através da intensificação do impacto da cultura de massas. Se até os anos 1980 um best-seller americano ou britânico demorava meses ou anos para chegar às livrarias brasileiras, hoje ele está aqui em poucas semanas. As traduções, que eram feitas, muitas vezes, por escritores de renome (como Clarice Lispector, Nélson Rodrigues, Autran Dourado, Orígenes Lessa, Monteiro Lobato, Adonias Filho e outros), passaram a ser feitas, muitas vezes, por gente que não sabe nem conjugar o pretérito mais que perfeito. Como resultado, uma obra dispensável (como essa em que você está pensando, mas que não vou nomear para não atrair a ira dos fãs) chega ao nosso mercado antes que saia de moda, revelando sua irrelevância. Antes tínhamos acesso aos livros que mostravam ser sucessos duradouros, mesmo que literariamente sofríveis. Hoje qualquer peidinho que venda alguma coisa na Barnes and Noble recebe uma tradução nacional. E não são escritores que estão sendo convocados para fazer essas traduções, mas gente que ganha centavos por lauda e cujo trabalho é revisado por outros que não sabem nem para que serve uma vírgula. A qualidade péssima das traduções é um fato. A pressa é inimiga de qualquer parâmetro de qualidade.

E ninguém acha que isto está errado porque há um desrespeito generalizado pela língua portuguesa. Desrespeito que se aproveita desse iconoclasmo seletivo e fácil e que alimenta uma cultura de submissão. A tradução não é mais vista como uma recriação literária de um texto, mas como um trabalho reles de interpretação destinado aos boçais que ainda não sabem falar inglês. O ideal seria que todos lêssemos os originais, isso até facilitaria para as editoras multinacionais, que poderiam simplesmente importar os livros impressos nos EUA ou na Grã Bretanha, sem terem o incômodo de traduzi-los para nossa língua primitiva. Ler no original é um distintivo de alguma forma de superioridade. A língua estrangeira, por ser excludente, torna-se uma ferramenta política de valor.

O desrespeito ajuda a colonização cultural, mas porque ele ajuda a manter relações de classe, distinguindo entre os recém chegados ao consumo cultural e os que obtiveram uma educação bilíngue, ele acaba sendo alimentado. O iconoclasmo parece promissor porque o ensino de português no Brasil é uma coisa odiosa, praticada por ignorantes pseudocientíficos que brandem a gramática de uma forma que parece que as regras foram feitas para humilhar os outros. «Professores» preconceituosos, reacionários, idealizando um idioma mumificado em livros, desatentos aos fenômenos linguísticos em curso e obcecados em negar algo que a ciência já sabe há mais de oitenta anos: a dicotomia entre a língua escrita e a falada. É muito fácil odiar o Professor Pasquale e seu DOPS linguístico, o Professor Napoleão e o seu nazismo gramático, vários outros com seus preconceitos, limitações e desprezo pelo povo.

Desprezar o povo e desprezar a língua são atos contínuos. Não é possível respeitar o primeiro desprezando o segundo, e nem vice versa. O suposto respeito que os gramáticos normativos têm pela língua idealizada em que crêem traz embutido o desprezo pelo povo que a «corrompe». Mas o desprezo pelo povo significa o desprezo pela verdadeira língua, em nome do amor a uma entidade abstrata, calcificado em dicionários e antologias. O amor ao que não existe é um comovente testemunho do conservadorismo ignorante.

Então, sabendo que o ensino formal da gramática normativa é uma violência, fica fácil usá-lo para desqualificar não o reacionarismo linguístico de gente que considera a língua coloquial uma «corruptela», mas a própria língua. Isso nos conduz a um caldo de cultura no qual muitos jovens crescem desprezando o português pelos mais variados pseudomotivos, simultaneamente a uma valorização exacerbada do inglês e até mesmo de idiomas estrangeiros que parecem tão alheios a nossa realidade, como o japonês ou o alemão.

Dada a importância atribuída à língua estrangeira, chega-se ao absurdo de confinar o português a um papel estritamente doméstico, o que foi exatamente o processo através do qual línguas antes pujantes, como o galês, o basco, o dálmata e o gaélico entraram em extinção. Dizem que precisam do português para comunicarem-se com o vizinho, mas do inglês para falar com o mundo. No fundo sonham com o dia em que poderão falar em inglês com o vizinho. Sente-se que para muita gente ainda ter que falar português é só um incômodo necessário.

Os argumentos políticos são os mais absurdos. Há pessoas que acreditam que não devemos resistir à imposição da cultura de massas anglo americana e seu idioma somente porque, em algum momento do passado, o português nos foi também imposto. O encontro desse «pecado original» de nossa identidade nega o seu valor diante de um processo que pode suprimi-la?

Para diminuir ainda mais a importância do português como veículo de identidade nacional, há pessoas que procuram negar a realidade do predomínio da colonização portuguesa, dizendo que «a maioria» dos colonos brancos do Brasil é de italianos, alemães e outros povos europeus. Claro que este argumento só existe onde existe muita ignorância ou então em cidadezinhas do interior onde predominam tais comunidades de colonos. Uma pessoa com conhecimento amplo do país sabe muito bem que o elemento luso é o único que está presente em todas as regiões, predominando na maioria das cidades, exceto naquelas onde houve um influxo excepcional de colonos europeus. Nossos sobrenomes são evidência disso.

O tal iconoclasmo a que me refiro se expressa quando se procura justificar a aceitação da imposição cultural estrangeira com uma negação de uma suposta «obrigação moral de ter alguma espécie de amor pela língua portuguesa». Obviamente não podemos esperar que todos tenham as mesmas fidelidades e cumpram igualmente suas obrigações morais, mas uma pessoa que rejeite tais sentimentos em relação à sua própria língua os rejeita também em relação a si mesmo, pois nega o valor de algo que lhe é próprio enquanto empresta tal valor a algo que é alheio. Não é indício de maturidade aceitar a submissão a outrem.

A evidência de que os mesmos que negam esses laços afetivos com o português os transferem para o idioma estrangeiro se revelam quando essas pessoas dizem que o inglês tem «palavras mais legais» que o português, o que é uma forma de dizer que se sentem mais tocadas em suas sensibilidades pela fonética e pela morfologia de outro idioma. Para essas pessoas, o português é uma língua «desengonçada» e «difícil». E por temerem soar desengonçadas e difíceis elas procuram usar o inglês o máximo possível, em seus nomes (muitas vezes escrevendo errado), em suas gírias, no que puderem.

Outros justificam seu desprezo enxergando no inglês qualidades que o português supostamente não teria: «uma rica literatura» (argumento muito usado por pessoas que não têm muito hábito de ler literatura, claro), uma tradição mais antiga (argumento muito usado por quem não pesquisou a história de ambos os idiomas, e portanto não sabe que o inglês moderno remonta ao fim do século XVI enquanto português moderno data do início do século XV) ou uma maior adaptabilidade.

Entre essas qualidades do inglês estaria a sua «facilidade», enquanto o português seria muito difícil. Certamente facilidade é um conceito plástico, que se moldará à mão de quem o manipule. Dependendo de quais características resolvamos comparar, é possível provar que quase qualquer idioma é mais fácil que outro. Mas é fato que a percepção do português como uma língua extremamente difícil é algo que existe mais na cabeça do brasileiro do que na realidade prática. Estudos internacionais sempre classificam o português como uma das doze línguas mais fáceis de se aprender para falantes de qualquer língua indo-europeia. As razões para isso são várias: vocabulário predominantemente derivado do latim, resultando em grande número de cognatos com vocábulos internacionalmente conhecidos, sistema ortográfico simplificado, gramática sem declinação nominal e sem distinções honoríficas, alfabeto latino, abundância de material de estudo etc. As pessoas que acham português difícil certamente nunca nem tentaram aprender línguas como alemão, russo, estoniano, húngaro, grego, polonês, árabe, coreano, mandarim, hindi, finlandês, irlandês, tcheco ou romeno.

Sabendo que o português é internacionalmente reconhecido como uma língua fácil de aprender, conclui-se que vê-lo como difícil é pura má vontade, desinformação ou manifestação de uma dificuldade para o aprendizado de línguas que se manifestaria em relação a qualquer outra língua. Mas não podemos nos esquecer, como já disse em artigo recente, que o nosso sistema educacional possui um status de verdadeira praga do Egito e que, como começamos dizendo acima, a praga do gramaticismo normativo grassa sem freios por suas campanhas.

O certo é que, no frigir dos ovos, não interessa ao Brasil e nem aos brasileiros que a nossa língua seja relegada a um plano secundário, que nossa literatura não seja defendida e que nossa cultura seja descartada. Precisamos trazer o português para mais perto de nosso dia a dia, dar mais peso à nossa literatura e defender nossa cultura. Isso, claro, não se fará com leis, nem cotas e nem exigências. Precisamos é consertar nosso sistema educacional, para que futuras gerações de jovens frustrados por não conseguirem aprender corretamente sua língua não cresçam com desprezo por ela e sua tradição.

06
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 18:30link do post | comentar

Incluído nos «Livros de Linhagens» da nobreza lusitana está um breve relato sobre a família de Diego Lopes, que inclui uma personagem que ficou célebre: a misteriosa mulher montanhesa com pés de cabra. Tata-se de uma história interessante por envolver profundamente as fantasias populares lusitanas (e estas fantasias, claro, ecoam na nossa própria cultura).


Aspectos culturais

Como se verá, a deficiência física (um pé deformado) era um sinal de deficiência moral. A Dama Pé de Cabra é apresentada como uma espécie de bruxa, e o seu pé deforme é uma grave advertência disso. Algumas histórias mais exageradas não apenas mencionam a deficiência como falam de uma mulher literalmente dotada de pés de cabra — mas nesse caso o casamento não ocorre pelo afeto espontâneo de Diego Lopes pela dama misteriosa, mas pela promessa que ela lhe faz de honras e glórias caso ele a desposasse e lhe fizesse mãe.

Interessante notar que a Dama Pé de Cabra nunca é mencionada por seu nome nas versões mais antigas da história (e esta que transcrevo parece ser a mais antiga). Tampouco sua filha. Afinal, os livros de linhagens se preocupavam apenas em registrar a linhagem patriarcal da nobreza. Nascer mulher era apenas um acidente, e a Dama, mesmo protagonista da história, não leva um nome.

A história está ambientada no tempo da guerra contra os mouros, antes da tomada de Toledo pelos cristãos (que foi em 1085). Isso significa que a história deve ter se passado por volta do século X ou XI (mas, é claro, sabemos que «ter se passado» é boa vontade deste que escreve, o caso é certamente lendário, ou muito modificado para tender a lenda).

Não consigo perceber muitos elementos semelhantes com contos de fada/bruxaria/cavalaria de outras culturas, e nisso reside justamente a originalidade e a beleza deste pequeno texto, que eu em breve modernizarei, para desgraça dos descendentes de Diego Lopes e da memória de Alexandre Herculano (que certamente romanceou o caso bem melhor). A diferença é que a minha Dama Pé de Cabra viverá no círculo mágico da Serra da Estrela, e não sei ainda como lhe apresentarei um Diego Lopes.

Elementos linguísticos

Saltam à vista as semelhanças com o espanhol. Inúmeros vocábulos do português arcaico (século XIII) se escrevem de forma parecida à castelhana: «muy», «ella» etc. Isto se explica porque, de fato, as duas línguas eram muito mais próximas naquela época.

Em seguida temos variações de ortografia de uma mesma palavra, «el foi», «ell lhe disse», «elle lho outorgou». Três formas diferentes do mesmo pronome e nenhum critério aparente de escolha. É algo parecido com o que acontece na escrita de uma pessoa mal alfabetizada, que erra de várias maneiras diferentes uma mesma palavra. Na Idade Média não havia gramáticas e nem academias, as pessoas escreviam como achavam que deviam e só o costume ditava alguma norma.

Você também notará palavras começadas com «cê-cedilha»: «em çima de huuma pena». Isto é porque no português antigo os grupos «ce» e «ci», bem como o «ç» eram lidos ainda com um resquício do «t» latino original: dependendo do dialeto a pronúncia deste «c» poderia ser lido como «ts» ou «θ» (o «theta» grego simboliza um «t» interdental parecido com o «th» inglês em «them»). A palavra «cima», porém, deriva de um original latino que era pronunciado como «k» (e não de um «t»), o que confunde a cabeça do falante e o leva a usar cedilha. Esta confusão secular fez com que a pronúncia do «c» como «ts» se tornasse pedante e desaparecesse por fim. Em espanhol europeu ainda existe esta pronúncia (também do «z») e pronunciar «Cima» como homófono de «sima» é considerado um vício de linguagem.

Os pronomes oblíquos não ficam separados do verbo por hífen, simplesmente porque o hífen ainda não fora inventado. Assim temos «vioa» (viu-a), «namorousse». A duplicação do «s» (nesse e em outros casos, já indica que o «s» intervocálico estava sendo sonorizado, tornando necessário deixar claros os casos em que fosse lido como «s» mesmo.

No primeiro parágrafo nota-se a menção a «muy alto linhagem». Em português medieval, tal como em espanhol ainda hoje, estas palavras terminadas em «agem» eram todas masculinas.

O pronome «que» escrevia-se «ca», o que confere com a tendência portuguesa a pronunciar o «a» átono como um «e». O «Ll» indica o fonema que hoje se escreve com «lh» e o «lh» era outra coisa, porque o «h» entre uma consoante e uma vogal indicava uma breve semivogal. Alguns autores escreviam «mha» em vez de «mia».

Usa-se o «y» em todo lugar onde a pronúncia seja de semivogal, mas também em monossílabos tônicos («ssy»), como se verá no segundo trecho. Isso parece indicar que a letra «y» não era usada necessariamente para indicar a duração menor do fonema «i», mas para indicar que em certos contextos o «i» seria pronunciado diferente. Os dialetos portugueses preservam esse «i» mais fechado (nem sempre nos mesmos contextos do português medieval), mas nós não o temos mais.

Usa-se «h» no começo de algumas palavras começadas com o fonema «u» para indicar que ele deve ser pronunciado como vogal. Ocorre que a letra «u» ainda não fora inventada e se usava a mesma letra para a vogal «u» e para a consoante «v». Quando o «u» foi inventado, criou-se uma maiúscula redonda para combinar com ele, e essa variação redonda ficou sendo a vogal. Inventaram também uma minúscula «quebrada» para combinar com o «V» e esta ficou sendo a consoante. Em português medieval segue-se a convenção latina: usa-se «u» sempre, inclusive quando a pronúncia é de consoante: «ouuyo» é «ouviu». Mas no início da palavra, especialmente maiúscula, usava-se uma variação do «u» bastante parecida com o «v», razão pela qual em alguns parágrafos você verá a letra «v».

Por fim, além da ausência da distinção entre «V» e «u», já explicada, notem que não se usa nenhum «J», nenhum «X», nenhum «W» e raríssimos «Q».

Mas não se usava o «h» inicial nos contextos em que ele era usado em latim. O verbo «auia» (havia) deriva do latim «habere». O emprego do «h» inicial atendia a uma necessidade fonética, não etimológica.

Um caso à parte é a palavra «pee», derivada do latim «pede». Evidentemente a pronúncia desse duplo «ee» tinha um significado. É provável que as palavras com «ee» final fossem pronunciadas de forma análoga ao que fazemos hoje com as terminadas em «oo».

O verbo «ter» ainda não era muito usado. Era muito recente a lembrança de seu sentido de posse material. Em vez disso usava-se mais o verbo «haver». Diego e a misteriosa dama «ouueram» (houveram) dois filhos.

Usa-se muito a conjunção «e», à maneira bíblica, para introduzir novas frases, evitando-se o ponto final. O que era fácil de fazer, pois a pontuação atual e suas regras ainda não fora inventada. Usava-se muito os dois pontos, para indicar que uma sequencia de frases segue um mesmo raciocínio (formando o que hoje nós agrupamos em parágrafos).

Notem bem que os nossos famosos ditongos nasais ainda não existem: «prisom» (em vez de prisão). Tampouco existem quaisquer acentos, somente o til, mas ele tinha um significado diferente. Não eram necessários porque não havia proparoxítonos (já que não havia latinismos e nem helenismos, apenas palavras devidamente moldadas pela boca do povo) e nem oxítonos (a não ser as palavras terminadas em consoante, inclusive verbos terminados em «s», como «tiraras», que deve ser lido «tirarás»).

Voltando ao til, ele não é usado para indicar a nasalização de uma vogal, mas que uma consoante nasal estava em processo de perda. A palavra «alaão» não contém um ditongo, mas um hiato ao final, provocado pela perda do «n» que havia entre o «a» e o «o».

Transcrição do original

Este dom Diego Lopez era muy boo monteyro, e estando huum dia em sa armada e atemdemdo quamdo verria o porco ouuyo cantar muyta alta voz huuma molher em çima de huuma pena: e el foy pera la e vioa seer muy fermosa e muy bem vistida, e namorousse logo della muy fortemente e preguntoulhe quem era: e ella lhe disse que era huuma molher de muito alto linhagem, e ell lhe disse que pois era molher d'alto linhagem que casaria com ella se ella quisesse, ca elle era senhor naquella terra toda: e ella lhe disse que o faria se lhe prometesse que numca sse santificasse, e elle lho outorgou, e ella foisse logo com elle.

E esta dona era muy fermosa e muy bem feita em todo seu corpo saluamdo que auia huum pee forcado como pee de cabra. E viuerom gram tempo e ouueram dous filhos, e huum ouue nome Enheguez Guerra, e a outra foy molher e ouue nome dona. E quando comiam de suum dom Diego Lopez e sa molher assemtaua ell apar de ssy o filho, e ella assemtaua apar de ssy a filha da outra parte.

E huum dia foy elle a seu monte e matou huum porco muy gramde e trouxeo pera sa casa, e poseo ante ssy hu sia comemdo com ssa molher e seus filhos: e lamçarom huum osso da mesa e veerom a pellejar huum alaão e huuma podemga sobrelle em tall maneyra que a podenga trauou ao alaão em a garganta e matouo.

E dom Diego Lopes quamdo esto uyo teueo por millagre e synousse e disse «samta Maria vall, quem vio numca tall cousa!» E ssa molher quamdo o vyo assy sinar lamçou maão na filha e no filho, e dom Diego Lopez trauou do filho e nom lho quis leixar filhar: e ella rrecudio com a filha por huuma freesta do paaço e foysse pera as montanhas em guisa que a nom virom mais nem a filha.

Depois a cabo de tempo foy este dom Diego Lopez a fazer mall aos mouros, e premderomno e leuaromno pera Tolledo preso. E a seu filho Enheguez Guerra pesaua muito de ssa prisom, e veo fallar com os da terra per que maneyra o poderiam auer fora da prisom. E elles disserom que nom sabiam maneyra por que o podessem aver, saluamdo sse fosse aas montanhas e achasse sa madre, e que ella lhe daria como o tirasse. E ell foy alaa soo em çima de seu cauallo, e achoua em çima de huuma pena: e ella lhe disse «filho Enheguez Guerra, vem a mym ca bem sey eu ao que ueens:» e ell foy pera ella e ella lhe disse «veens a preguntar como tiraras teu padre da prisom.» Emtom chamou huum cauallo que amdaua solto pello momte que avia nome Pardallo e chamouo per seu nome: e ella meteo huum freo ao cauallo que tiinha, e disselhe que nom fezesse força pollo dessellar nem pollo desemfrear nem por lhe dar de comer nem de beuer nem de ferrar: e disselhe que este cauallo lhe duraria em toda sa vida, e que nunca emtraria em lide que nom vemçesse delle. E disselhe que caualgasse em elle e que o poria em Tolledo ante a porta hu jazia seu padre logo em esse dia, e que ante a porta hu o caualo o posesse que alli deçesse e que acharia seu padre estar em huum curral, e que o filhasse pella maão e fezesse que queria fallar com elle, que o fosse tirando comtra a porta hu estaua ho cauallo, e que desque alli fosse que cauallgasse em o cauallo e que posesse seu padre ante ssy e que ante noite seria em sa terra com seu padre: e assy foy. E depois a cabo de tempo morreo dom Diego Lopez e ficou a terra a seu filho dom Enheguez Guerra.

Aspectos léxicos

Conforme prometido, vamos às palavras de sentido peculiar. «Monteyro» significa caçador. Deriva de «monte», porque já na Idade Média as terras baixas estavam ocupadas pela agricultura e as florestas estavam cada vez mais reduzidas às regiões montanhosas. «Atemder» significa «esperar». A «pena» sobre a qual a mulher estava sentada a cantar é uma que você não gostaria que caísse sobre sua cabeça. É cognata do espanhol «peña», que significa «rochedo». Não pensem que dom Diego desrespeitou a moça: «namorarse» significa apenas afeiçoar-se, é o antepassado de «enamorar-se». «Pois» significa «já que» ou «uma vez que», no contexto empregado.

«Alaão» e «podemga» são raças de cães. Era costume, mesmo entre os nobres, comer com cães para jogar-lhes os ossos e, eventualmente, deixar que lambessem a gordura de suas mãos. O inesperado do acontecimento é que o podengo, um cão de caça muito manso, apesar de arisco, tenha ataco e matado um cão de guarda «alano» O verbo «filhar» (cognato do nosso atual «filar») quer dizer «tomar» ou «levar» (que é o que os filadores fazem com o que nos filam, ou «filham»). «Recudir» é «recuar» e «freesta» (do latim «fenestra») é «janela». Imagino que você já saiba que «paço» é a forma popular de «palácio» (esta palavra foi reinjetada no português depois, como um novo aportuguesamento erudito de «palatium»). «Em guisa que» significa «de modo que».

«Pesar» significa «ficar triste». O nome do cavalo significa «pardal» e a misteriosa palavra «hu» significa «onde». Por fim, não imaginemos que os mouros mantinham dom Diego em um «curral» com o sentido que hoje a palavra tem, mas sim meramente em um cercado ou paliçada (esqueçam essa história de masmorra, castelos eram caros de construir e a maioria das prisões medievais eram simples paliçadas). Dom Diego «jazia» lá mas não estava morto, visto que a palavra não tinha ainda o sentido fúnebre de hoje.

Uma observação importante diz respeito aos sobrenomes. Notem que eles não existiam. O pai se chama «Diego Lopes» (provavelmente porque seu pai era um tal Lopo), mas o filho se chama «Enheguez Guerra» (provavelmente por ser famoso no combate). Os «sobrenomes» medievais são apelidos, não tem conotação familiar ainda. As famílias nobres ainda não haviam adotado o costume de identificar-se pelo nome da vila ou feudo onde tinham propriedade, e as famílias plebeias não tinham grande necessidade de identificar-se.

Conclusão

A análise deste texto nos mostra que, se não tivesse acontecido a contaminação etimológica ocorrida entre os séculos XVII e XIX e nem o influxo de latinismos eruditos e helenismos científicos, o português seria uma língua dominada por proparoxítonos, com poucos acentos gráficos, relativamente simples de se escrever e muito mais bonita.


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Mar 12
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar | ver comentários (1)

É difícil compreender as razões pelas quais tantas pessoas rejeitamde forma tão ríspida um ensino progressista do português, baseadonas descobertas da Linguística e da Pedagogia. Certa­mente asrazões disto envolvem ideologia, pois um ensino que não discrimineos falares populares ameaça uma estrutura de humilhação dasclasses oprimidas. Então, por se oporem à inclusão social e aoprogresso do ensino, erguem bandeira de guerra contra qualquerindício de que se está buscando uma abordagem não preconceituosado fenômeno linguístico.

O casorecente do livro de português que ensinava «nós pega o peixe» foium exemplo emblemático de como a ideologia e o preconceito deram asmãos para desqualificar uma obra que, com todos os seus defeitos,tinha o mérito de seguir o que é consenso no mundo científico emrelação ao ensino de línguas.

As vozesque se ergueram, porém, foram todas de leigos. Ninguémremotamente dotado de alguma formação na área manifestou-se. Asvozes ouvidas foram, em primeiro lugar, de jornalistas — queaprendem a escrever segundo «manuais de redação» impositivos esão ensinados por fonoaudiólogas a falar com uma pronúnciaartificial, que busca ser neutra mas emula a da Zona Sul do Rio deJaneiro e os melhores quarteirões da Paulicéia. Muitos blogueirosse manifestaram, em geral pessoas das áreas de Exatas e Biológicas,que entendem muito de planta, de bicho e de números, mas não deinterações entre pessoas, ou pessoas educadas em colégiosrigorosos, em geral mantidos por entidades religiosas. Gente do tipoque acha que o pessoal de Humanas é um bando de maconheiros que seformou paquerando a professora, lendo o Manifesto Comunista ebeijando a bunda de um bode nas sextas-feiras. Nenhuma destas pessoasparou para analisar seria­mente o livro citado, muito menos paratentar entender o que é Linguística. Linguística é uma dessasciências «esquerdistas», não é mesmo?

Mas apedagogia moderna propõe ensinar um «vale tudo» linguístico?

Óbvioque não. Seria uma insanidade derrubar a ideia de uma línguapadrão. O fim do ensino desta é algo que normalmente só ocorre como fim de uma civilização, quando o estado falido não é mais capazde difundir sua cultura. Foi o que aconteceu com o Império Romano,levando os dialetos regionais a se dividirem em protolínguas, os«romances», e dando origem às dez línguas nacionais neolatinas:português, espanhol, catalão, galego, francês, provençal,italiano, dálmata (hoje extinto), romanche e romeno. Não se querque num futuro próximo o Brasil esteja dividido em dezenas deregiões independentes, cada qual com sua língua neo-portuguesa.

Tudo oque a Linguística procura ensinar aos professores de português (masuma minoria deles está disposta a aceitar isso, ou é capaz deaprender isso) é que a situação da língua padrão em relaçãoaos falares populares requer uma abordagem diferente da que vem sendoadotada em nossas escolas. Especialmente em países como o Brasil,nos quais a divergência entre a língua culta e a coloquial jáse tornou tão grande que podemos afirmar que existe, ou estápróxima de existir, uma situação de «diglossia», ou seja, acoexistência de duas línguas.

Hávários tipos de diglossia, mas o que nos interessa é aquelasituação na qual a norma padrão é conservadora em relação àevolução do falar do povo. A do português é intencionalmentearcaizante, tendo sido definida no século XVIII, sob o paradigma daimitação do latim e do grego.1Ao longo do século XX, começando com a reforma ortográficaportuguesa de 1910 (à qual o Brasil só começou a aderir em 1946),livramo-nos do ranço desta ortografia, mas não do ranço dagramática criada pelos mesmos perpetradores da ortografiaetimológica. Isto faz com que a língua que se pretende ensinar naescola seja diferente da língua que as pessoas estão acostumadas aempregar no seu dia a dia. Este tipo de situação não é único noportuguês. Isto já aconteceu antes em outros países e osresultados foram sempre os mesmos: é inútil opor-se à língua dopovo. Vamos analisar quatro casos bem emblemáticos deste tipo dediglossia.

NaGrécia, até bem recentemente, a língua ensinada nas escolas erapraticamente idêntica ao grego comum antigo, o koiné hellenikós.Esta língua, o katharevousa («língua purificada») eramuito diferente do grego falado, a ponto de as pessoas terem queestudá-lo como se fosse outra língua. Esta situação se mantevegraças ao conservadorismo do Estado, muito mais voltado para aherança histórica do que para as necessidades presentes do país.Com a democratização, esta situação foi resolvida e os gregospassaram a estudar a norma padrão baseada no grego moderno.

NaAlemanha e na Itália, a existência de uma grande variedade defalares regionais, alguns muito diferentes entre si, resultado daunificação tardia dos dois países. Em ambos os casos, porém,havia uma «norma padrão» anterior. Para o alemão foi o dialetoturíngio, usado por Lutero para traduzir a Bíblia. Posteriormenteesta norma, até então usada somente pelos escritores e, de formalimitada, pelo teatro, foi difundida, com a pronúncia prussiana,como a língua nacional da Alemanha unificada. O italiano padrão foio dialeto toscano, utilizado por Dante Aligheri para a famosa DivinaComédia. Em ambos os casos o padrão é conservador, embora oitaliano moderno seja mais conservador, em relação ao italianomedieval, que o alemão. Italianos de hoje não têm grandesproblemas para ler Dante, caso dominem o italiano padrão, mas têmproblema para conseguir dominá-lo porque, para os habitantes deregiões mais afastadas, especialmente no sul do país, trata-sequase de uma língua estrangeira. Os alemães permitiram que sualíngua padrão evoluísse um pouco mais, especialmente após a IIGuerra Mundial, quando os movimentos migratórios apagaram um poucoas diferenças dialetais milenares.

Na Rússiaaté a época da Revolução Bolchevique a norma padrão eraextremamente arcaizante, influenciada por uma língua falada mil anosantes, o «eslavo eclesiástico», «velho búlgaro» ou«eslavônico». O alfabeto tinha letras desnecessárias, algumas sóusadas para escrever palavras de origem grega, por exemplo. Quando oscomunistas assumiram o poder, uma das primeiras coisas que fizeramfoi simplificar a norma padrão, reduzindo o alfabeto a 36 letras(eram 40) e mudando a ortografia de milhares de palavras por causa daeliminação de duas vogais. Sob o domínio soviético a línguapadrão se aproximou do uso comum, eliminando arcaísmos. A reformalinguís­tica do russo talvez seja o grande motivo pelo qual osconservadores se opõem à modernização da norma culta. Esquecem-sede que movimentos semelhantes ocorreram sob regimes de direita, comoa África do Sul dos tempos do apartheid, quando o holandêsque se falava no país foi alçado à posição de línguaindependente, o africâner.2

Nosquatro casos apresentados a situação de diglossia era resultante defatores diferentes. No caso do grego, houve o desenvolvimentointencional de uma norma arcaizante, algo parecido com o doportuguês. Nos casos de Alemanha e Itália a diglossia resultou daformação tardia da identidade nacional a partir de povos quefalavam dialetos muito diferentes. Alguns dialetos «italianos», porexemplo, estão mais relacionados com os falares do sul da França(occitânico, provençal) do que com o italiano padrão, enquantooutros, como o sardo, são de fato línguas independentes. No caso doRusso a diglossia resultava da contínua influência de um padrãoconservador, o eslavo eclesiástico, travando a atualização danorma culta, o que também tem certas semelhanças com o caso dalíngua portuguesa.

Quando setem uma situação de diglossia, como nos casos apresentados, osestudantes precisam passar, no aprendizado da norma padrão, por umprocesso de aprendizagem que tem semelhanças com o do ensino delínguas estrangeiras. Em uma situação de diglossia, a norma cultaé, para fins práticos, uma outra língua. O «problema» daaprendizagem de português no Brasil, denunciado por gramáticos«pop» — como Pasquale Cipro Neto, Sérgio Nogueira Duarte e LuizAntônio Sacconi — reflete apenas esta situação: a língua que oestudante fala é tão divergente da norma padrão que não podemossimplesmente assumir a «Língua Portuguesa» enquanto disciplinacomo sendo «sua» língua, tanto quanto o inglês ou o espanhol nãoo são, com a única diferença que o contato com a línguaportuguesa é mais frequente do que com estas.

Ignoraresta situação é ignorar a verdadeira causa do problema. Ignorar averdadeira causa do problema significa que todas as estratégiaspropostas para solucioná-lo estarão erradas, salvo um lance desorte improvável. É como trocar peças aleatórias de um carrodefeituoso esperando que ele funcione em algum momento. Se de fatoele vier a funcionar, será somente por sorte e depois de muitotempo. De outra forma, sabendo qual peça trocar o carro funcionarámuito mais rápido e sem o desperdício de tantas peças.

O que aLinguística propõe é a abordagem científica do problema, parasaber «qual peça trocar». As reações que aconteceram aosrecentes casos de livros didáticos «que ensinam o erro» foramhistéricas, injustificadas e obscurantistas. Foram reações deleigos, de pessoas que não sabem do que estão falando e que seacham no direito de desqualificar uma ciência que não conhecem, nãoentendem ou que rejeitam por razões ideológicas ou por meropreconceito.

Arejeição da reforma do ensino da língua portuguesa em nossasescolas é muito parecida com a rejeição do ensino da Teoria daEvolução pelos criacionistas. Em ambos os casos temos pessoas malinformadas ou mal intencionadas, que difundem concepçõesretrógradas, pseudocientíficas, reacionárias, preconceituosas eincorretas, que fazem isso porque estão condicionadas a rejeitareste conhecimento científico específico por causa ideologia sob aqual foram criadas. O criacionista rejeita o ensino da TE porque elalhe causa insegurança quanto à validade do texto sagrado de suareligião. O «gramatiquista» rejeita o ensino moderno do portuguêsporque ele próprio se vê detentor de um conhecimento sobre alíngua, que será obsoleto com a reforma. Em ambos os casos serecorre à «culpa por associação» para desqualificar aquilo quese rejeita por preconceito. O criacionista associa a TE às crendiceseugênicas do início do século XX, incluindo o nazismo. O«gramatiquista» associa reformas ortográficas ou mudanças nalíngua padrão ao «comunismo». No fundo, ambos sentam-se em cimade um grande rabo, que não admitem ter: sua rejeição aoconhecimento se deve a uma confissão implícita da própriaimpotência. O criacionista depende da validade plena de seu textosagrado. O «gramatiquista», tendo sofrido tanto para aprender o quesabe de português, teme ter de aprender de novo. Quando foi feita aprimeira reforma ortográfica do alemão, em 1911, adicionou-se àlei um artigo que autorizava o kaiser a continuar utilizando anorma antiga enquanto vivesse.

Mas agrande pergunta que precisa ser respondida para que possamos fecharesta humilde série de reflexões sobre o tema «preconceitolinguístico» é: de que forma reconhecer uma situação dediglossia resolve o problema da falta de domínio da língua cultapelos nossos estudantes?

Na raizdesta dúvida há o medo de que o reconhecimento da diglossia sejauma espécie de Caixa de Pandora, que levará à degeneração danorma culta, ao esquecimento da literatura e a uma série de malesterríveis e inomináveis. Como vimos nos exemplos da Grécia e daRússia, as atualizações da norma culta não produziram nenhumefeito negativo. No caso da língua grega, os estudantes seguemincapazes de ler Homero diretamente, tal qual já não conseguiamantes. Mas hoje conseguem ler e escrever melhor a língua que usam nodia a dia. Para quem queira ler Homero, as universidades oferecemedições críticas contendo o texto original e uma versãomodernizada. No caso do russo, os livros apenas tiveram que serreimpressos na nova ortografia e os russos não leem menos hoje doque liam nos tempos do czar.

Ambosos povos saíram de uma situação que era de fato diglossia (casogrego) ou caminhava para tornar-se (caso russo) e a literatura deambas as línguas só teve a ganhar com isso. Não houve degeneraçãoda norma culta porque a língua já havia de fato mudado, só faltavaaceitar que isso ocorrera. Não houve o esquecimento da literatura,porque o que faz os jovens lerem não é o arcaísmo da norma padrão,mas uma tradição (inclusive familiar) de valorização da leitura —que existia tanto na Grécia quanto na Rússia, mas não seconsolidou ainda entre nós. No entanto, a solução da diglossiapode não ser desejável nos casos, como o nosso, emque a língua sofreu e está sofrendo um processo de dialetaçãoimportante. Em tal situação, análoga às de Itália e Alemanha,ensinar uma norma culta útil para a comunicação entre as diversasregiões e estratos sociais é uma forma de manter a unidadenacional.

Oque vem sendo proposto já há alguns anos pelos autores antenadoscom a Linguística, para grande ira dos gramáticos normativoscarranças, não é a substituição da norma culta por alguma outraforma linguística, mas, sim, a adoção de uma estratégia de ensinodo português empregando técnicas normalmente empregadas no ensinode línguas estrangeiras — entre elas a separa­ção conceitualentre a língua que o aluno fala e aquela que a escola pretendeensinar, conscientizando desde cedo o estudante da dicotomiaexistente entre o universo coloquial e o universo da língua formalpadrão nacional.

Faz-seisto por várias razões. Primeiro porque se é possível ensinaringlês ao estudante brasileiro, tem de ser possível ensinar-lheportuguês, que é uma língua muito mais parecida com o que eleemprega no seu dia a dia. Segundo porque é uma questão de respeito:o aluno não é um animal estú­pido que tem de «aprender afalar» na escola, ele é um indivíduo que fala o dialeto peculiar àsua região, na variante correspondente aos grupos sociais quefrequenta. Terceiro porque reconhe­cer a realidade tal como éserá o primeiro passo para buscar influenciá-la no sentidodesejado.

Tendoem vista estes objetivos, não é nenhum absurdo que um livrodidático contenha a frase «nós pega o peixe» (aliás, napronúncia de meu dialeto é «nóis péga o pêxe»), se ela forusada para ilustrar a diferença entre o coloquial e o formal.Absurdo é escrever um livro didático que fica de costas para arealidade do aluno e seguir culpando-o pela própria dificuldade deaprender algo que lhe é ensinado errado. Absurdo é não ter acompetência de ensinar e dizer que a culpa é do português, por seruma língua difícil. Difícil é abrir a cabeça de gentepreconceituosa, que se acha detentora de alguma migalha de saber.

1 Então se desenvolveu a «ortografia etimológica» (na verdade pseudoetimológica), em que as palavras eram grafadas de forma a lembrar sua origem, às vezes em desacordo com a pronúncia: pharmacia, machina, mysterio, hybrido, orthographia, sceptico, asthma, physico, Hespanha, bahia, propheta, photographia, diccionario, eschola e choro.

2 Apesar da ideologia racista predominante na África do Sul de então, o africâner é um idioma de base fonética e léxica holandesa, com grande influência inglesa na gramática e significativa contribuição de vocabulário de línguas africanas.


24
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 23:16link do post | comentar
«A língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo» —Marcos Bagno

Na semana passada comecei a falar sobre opreconceito linguístico que grassa em nosso país de uma formaparticularmente intensa. Lembrei que a Linguística é uma ciênciaestabelecida solidamente há mais de duzentos anos, com copiosaprodução de conhecimento, mas que persiste uma profunda ignorânciasobre seus aspectos mais básicos, ignorância alimentada pelos meiosde comunicação, que somente dão espaço ao discurso retrógrado epseudocientífico daqueles que rejeitam o conhecimento científicopor razões ideológicas. Perguntei também por que razão pessoasque são céticas de várias outras formas, e têm tanto a criticarna postura, por exemplo, dos criacionistas, não percebem que suaposição em relação à Linguística é idêntica à daqueles emrelação à Biologia: rejeição irrefletida e a priori motivadapor preconceitos e razões de foro íntimo.

Hoje pretendo explicar melhor em que consiste o famoso «preconceito linguístico»que é tão ou mais negado que o preconceito racial.1Para isso tomarei como guia a obra Preconceito Linguístico:O Que É, Como Se Faz , de MarcosBagno. Sei que alguns leitores torcerão o nariz, pois o autor temuma reputação de «comunista» entre o baixo clero da direitahidrofóbica que cola esta acusação coringa na testa de quem aincomoda, para não ter que discutir suas ideias.2Mas eu reajo com a mesma resposta que os debatedores «céticos»mais afoito costumam dar aos criacionistas mais folclóricos quandovêm com histórias de «hidroplacas» e «baramins» em algumadiscussão sobre Biologia ou Geologia: vão estudar parapelo menos entenderem onde estão errando.

O preconceitolinguístico é ligado à confusão criada entre a língua em si e agramática normativa. Mas uma receita de bolo não é um bolo, ummolde de roupa não é uma roupa e uma gramática não é uma língua.Esta confusão, alimentada pela mídia e por uma série de mitos quefazem parte da autoimagem (muito negativa) que o brasileiro tem desi, resulta em uma percepção distorcida de nossa cultura e nossopapel no seio dela. Os mitos a que Bagno se refere são os seguintes:

A línguaportuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente

Este mito foi o primeiro a ser contestado pela ciência, existindopesquisas etnográficas e linguísticas datadas desde o início doséculo XX que comprovaram que: a) existem dialetos regionais noBrasil, b) os dialetos regionais se diferenciaram bastante cedo emnossa história, com base nas origens diversas dos imigrantes que seestabeleceram nas diferentes regiões e c) apesar da forçahomogeneizante da televisão e do rádio, tais dialetos seguem sediferenciando.

É um mito prejudicial porque, ao não reconhecer a variedade regional doportuguês falado, oferece um diagnóstico incorreto da situaçãosociolinguística dos alunos, criando mais uma dificuldade paratrabalhar eficientemente o ensino da língua padrão. Na cabeça dospreconceituosos, reconhecer a existência dos dialetos é um «perigo»porque legitimaria o «falar errado» em detrimento do «falar certo»(conforme o entendem). Trata-se de uma concepção anticientíficapor duas razões: 1) a realidade não precisa ser “reconhecida”para existir e 2) o diagnóstico incorreto do problema cria novosproblemas em vez de preveni-los ou solucionar os existentes.

Brasileiro não sabe falar português.

A ideia de que não sabemos falar a nossa própria língua geralmentevem associada à de que em Portugal, sim, se fala direito. Não épreciso mencionar que essa concepção é fruto de uma mentalidadecolonizada, que imagina que um povo «mestiço» ou, dito de umaforma menos evidentemente racista, «tropical», não seria incapazde falar direito nem a «sua» própria língua.3Obviamente ninguém diz abertamente a razão pela qual o brasileiro«não sabe falar português» porque envolveria a sugestão de que obrasileiro é uma espécie de bípede implume que só apreende afalar se for amestrado na escola. Muitas das pessoas que têm talconcepção nunca visitaram outros países para ver como seushabitantes também «não sabem falar» suas respectivas línguas,4outros aderem ao preconceito para vender livros.

Este preconceito não resiste à comparação com nenhum paísde mais de um milhão de habitantes: italianos de diversas regiõesquase não se entendem em dialeto, franceses tampouco, os falaresalemães chegam a ser agrupados em duas línguas diferentes (alto ebaixo alemão). O árabe da Arábia Saudita é ininteligível por umegípcio, que, por sua vez, quase nada entende da fala de ummarroquino, que, por sua vez, sofre para entender um sírio. E nem sefale da salada de dialetos que cruza os Bálcãs, da Ístria à costado Mar Negro. Por que, então, diferentemente da maioria dos paísesdo mundo, o Brasil teria uma «uniformidade surpreendente» de sualíngua? Se existe tal uniformidade, como tanta gente «não sabefalar»?

Em todos esses países, a solução para o problema da comunicação é a difusão de umalíngua padrão, a norma culta, geralmente baseada em um dialeto deprestígio. Em nenhum desses países se aceita que idiotas apareçamna televisão dizendo que o povo não sabe falar. Ai de quem o diga,pois as pessoas consideram os dialetos parte da sua identidade e nãoaprendem a língua padrão porque «não sabem falar» direito, massim porque desejam integrar-se ao conjunto da nação.

Português é muito difícil.

«A desculpa do preguiçoso é a dificuldade», dizia o ditado popular. Adificuldade pode ser uma ilusão, causada pela abordagem incorreta doproblema. Quem tentar carregar água na peneira terá muito maisdificuldade do que quem usar uma caneca.

A ideia de que o português é muito difícil resulta do fato de o ensino de portuguêsno Brasil partir de um diagnóstico errado da situação do aluno, deuma apresentação incorreta da matéria e da apresen­tação damatéria errada. Imagina-se que o aluno, mesmo «não sabendo falar»,fala uma língua que tem «surpreendente unidade». Esta língua lheserá então ensinada através de um sistema educa­cionalprecário, por profissionais mal treinados e mal remunerados. Porfim, a língua que se ten­tará ensinar é uma versãoarcaizante, desconectada da realidade do aluno. Então, quando osalunos falham em massa no aprendizado, a culpa é da língua. Dapobre língua, única que não pode se defender. Gramáticos epedagogos discursam bonito. Políticos, que fazem escolas e definemcurrículos, podem defender-se. A língua, porém, é um ser abstratoe leva a culpa calada.

Nota-se o quanto esse mito está equivocado quando analisamos a percepção que os outrospovos têm de nossa língua. Numerosos levantamentos feitosinternacionalmente com estudantes de diversas partes do mundo colocamem «2» o nível de dificuldade do português, numa escala de «1»a «5». No nível «1» ficam as línguas de gramática mais simplese regular (como esperanto e indonésio) e no nível «5» línguascomo coreano, mandarim, japonês, cantonês, sânscrito e árabe.Sempre em tais levantamentos o português é colocado no mesmo nívelde dificuldade do inglês, do espanhol e do italiano, e um nívelmais fácil que francês, alemão, ou holandês.

As pessoas sem instrução falam tudo errado.

Aqui o preconceito fica um pouco mais claro. A falta de instruçãoestá associada à falta de contato com a língua propagada atravésdo sistema educacional que, obviamente, é a língua da elite. Existeuma estigmatização do falar das classes populares, não por causade suas características, mas por serem populares. Todos os «erros»do português coloquial também são encontráveis em textos degrandes escritores do passado, evidenciando que tais «erros»”nada mais são do que fenômenos linguísticos que já aconteceramantes e podem acontecer de novo. A troca do «L» por «R», porexemplo, considerada a «marca da besta» entre os «erros» deportuguês, pode ser lida abundantemente nos poetas portugueses ebrasileiros entre os séculos XV e XVIII: «frecha», «pranta» e«frauta» se encontram aos montes em Camões, Bocage, Sá deMiranda, Gregório de Matos e Guerra e numerosos outros, provando queestas pronúncias eram correntes na época. Tanto isso é verdade quese você as digitar no seu programa de edição de textos sesurpreenderá ao constatar que elas não são marcadas como erros!Ora, se é válido admitir variações como «flauta/frauta»,«flecha/frecha», «planta/pranta» e outras, por que não admitir«plano/prano», «claro/craro» e outras? Trata-se do mesmo fenômenolinguístico, operando da mesmíssima forma.

A única diferença é que as palavras do primeiro grupo foram legitimadaspela elite através de sua literatura, enquanto as do segundo gruposão estigmatizadas por serem encontradas somente nas variantespopulares do português. Mas os preconceituosos, em vez de imaginarque estamos diante da persistência, no seio do povo, de um fenômenolinguístico que existe há séculos, prefere pensar que quem fala«craro» possui algum tipo de atraso mental. Talvez se ospreconceituosos lessem mais, aprenderiam sobre a própria língua esua história, em vez de confiar em preconceitos alimentados pelaignorância.

Onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão.

Parte do complexo de inferioridade do brasileiro em relação à sualíngua se baseia em sempre deslocar geograficamente o lugar onde sefala o português ideal. Muitas pessoas dizem que é o Maranhão,afinal ele é suficientemente remoto. Em Minas Gerais muitosacreditam que os cariocas falam melhor. No Rio de Janeiro existe essacrendice sobre o Maranhão, mas também sobre o Rio Grande do Sul. Ospaulistanos estigmatizam os «caipiras» do interior, enquantoreverenciam os gaúchos.

Em geral se acredita que onde se fala ainda o «tu» o português é melhor(tanto cariocas quanto gaúchos e maranhenses o empregam ainda,embora raramente conjuguem o verbo de acordo). Esta fixação com opronome da segunda pessoa é mais um reflexo da subserviência aPortugal, que se manifesta no persistente luto de nossos gramáticospela morte do sistema pronominal clássico, que ocorreu no Brasilainda durante o século XIX, mas ainda hoje não foi assimilada.

É preciso falar como se escreve.

Se estivéssemos apenas falando de padronizar a pronúncia da normaculta para facilitar a comunicação inter-regional, seria aceitávelpreconizar a pronúncia baseada na ortografia, ainda que de formalimitada. Mas ocorre que nem mesmo norma culta padrão segue talregra. A abolição dos acentos diferenciais tornou ainda mais vaga arelação entre a letra e a leitura, a ponto de termos pares depalavras que se distinguem pelo timbre, mas têm a mesma grafia(«olho» e «olho», «molho» e «molho», «porto» e «porto»,«pelo» e «pelo»). Como então cobrar que um mineiro leia «móínho»em vez de «mũe» citando que é preciso falar como se escreve?Obviamente esta é uma desculpa para negar voz aos dialetos regionaise forçar a homogeneização a partir de uma norma culta ideal quenão é falada nem mesmo pelos cariocas e paulistas em cujos dialetosela supostamente se baseou.

Ocorre que a escrita é representação da fala, tal como o desenho é uma representaçãodo objeto. A função da escrita é nos lembrar dos elementos queempregamos na fala, tal como o desenho nos relembra o objeto.Subordinar a fala à escrita é como querer que as coisas reaispassem a parecer com os desenhos que são feitos delas. Imagine se umerro de impressão faz com que o desenho de uma galinha saia semcrista. Quem sairá pelo mundo amputando cristas das penosas? Existeum erro na avaliação da função da escrita em relação à língua,e certa categoria de gramáticos «pop» e professores seus fãsparece querer andar pelo mundo, de estilete à mão.

É preciso saber gramática para falar e escrever bem.

Se o bom conhecimento da gramática fosse requisito para falar eescrever bem, todos os bons escritores seriam exímios gramáticos, eum bom número de gramáticos teria talento literário. Ocorre quenenhum gramático jamais escreveu coisa que preste em termos deliteratura e os grandes escritores costumam ser unânimes críticosdeles. A lista de escritores que destilaram veneno contra osgramáticos é extensa e notável, com nomes como Rubem Braga,Vinícius de Morais, Leon Eliachar, Carlos Drummond de Andrade,Machado de Assis, Monteiro Lobato, entre outros. Todos, sem exceção,viam a gramática mais como obstáculo do que como ferramenta de seutrabalho. Machado de Assis escreveu uma crônica sobre suaincapacidade para ajudar um sobrinho a fazer seus deveres deportuguês, por exemplo. Se nem o Bruxo conseguia se dar bem com asabsurdidades da gramática, como podemos esperar que um aluno comum oconsiga?

Mesmo assim, existe uma«propaganda enganosa» de que os alunos passarão a falar e aescrever melhor se aprenderem gramática. Esta propaganda esconde queas gramáticas foram inventadas muito depois da literatura (e estamuito depois da escrita). A gramática não é a base de coisanenhuma, apenas um guia para os que desejam dominar uma determinadavariedade linguística. A primeira gramática grega surgiu somente noséculo II a.C., séculos após Homero, Xenofonte, Safo, Platão,Aristóteles, Eurípides, Aristófanes, Ésquilo, Anacreonte, Hesíodoe outros. As primeiras gramáticas do português surgiram no séculoXVIII, séculos após Sá de Miranda, Camões, Dom Dinis e outros.Como explicar que tantas obras de tão alta qualidade tivessem sidoproduzidas antes da existência de gramáticas? Inspiração peloEspírito Santo?

O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social.

Este mito retorna ao primeiro e ao segundo, aqui se considerando uma«boa ação» dar uma língua aos «sem língua» para permitir queeles superem sua condição de pobreza e marginalização. Existecerta verdade na ideia de que a educação é transformadora dasociedade, para melhor, mas não se deve levar isso a ferro e fogo.Se dominar a norma culta fosse um instrumento eficaz de ascensãosocial, professores de português (e gramáticos, principalmente)seriam pessoas extremamente poderosas e prestigiadas.

A verdade fica muito longe disso, com pessoas de pouca ou nenhuma instruçãoadquirindo ou conservando popularidade e poder por vários meios.Mais do que isso: ninguém corrige o falar de um político poderoso,por mais que cometa solecismos e «erros de concordância». Nãodominar a norma culta não lhe impediu de galgar o poder e não oexpõe à crítica. Portanto, quando criticamos o falar de uma pessoado povo, não estamos criticando o falar propriamente dito, mas a suacondição social.

É fato que a profusão de «erros» está relacionada ao posicionamentodo falante na estrutura da sociedade: quanto mais baixo mais «erra».Não somente por falta de acesso à «cultura», mas também porqueas classes dominantes não aceitam como legítima a cultura dasclasses subalternizadas, a não ser quando apropriada na forma defolclore ou artesanato.

O preconceito linguístico é uma ferramenta de exclusão e de humilhaçãodaqueles que se encontram na base da pirâmide: para eles oreconhecimento só pode vir através do domínio de uma norma cultaque lhes é imposta, domínio que não lhes garante ascensão sociale não os isola de serem ridicularizados ainda assim, por sua«correção pedante», quando se defrontam com pessoas dotadas depoder, que não precisam se preocupar com todos os «esses e erres».

Estes oito mitos do preconceito linguístico se sustentam em um tripé perverso: agramática tradicional, o ensino tradicional e o livro didático. Agramática tradicional (normativa, intolerante, preconceituosa,arcaizante e lusófila) inspira um sistema educacional tradicional(excludente, intolerante, unilateral, colonizado), que alimenta aindústria do livro didático (instrumental, unilateral, alienante,superficial) que, por sua vez, recorre à gramática tradicional parafonte de sua ideologia e de seus métodos. Fecha-se um círculovicioso difícil de romper, pois livros que tentem desviar da normaserão combatidos pela mídia (que está associada à indústria dolivro didático e ao ensino particular instrumental) e ignoradospelas escolas (que são cobradas pela mídia, pelos pais e pelo“mercado” de acordo com a sua fidelidade ao ensino tradicional).Escolas que tentem inovar terão dificuldade para conseguir livrosdidáticos e sofrerão ataques da mídia e boicote dos pais dealunos, especialmente se tal escola for particular. E assim seperpetua a concepção de que o povo não sabe falar, uma situaçãona qual a escola não sabe ensinar e um resultado de que o povo nuncasaberá o que precisaria saber: o domínio suficiente da norma culta.

1 Eu digo que é até pode ser mais negado, porque a prática de tal forma de preconceito é uma maneira menos rude de discriminar as pessoas sem evidenciar uma posição abertamente racista.

2 Uma reputação evidentemente absurda, pois Bagno não é um político, mas um cientista, e quase tudo que ele escreve é corroborado por pesquisas feitas no mundo todo. Chamá-lo “comunista” ou termo que o valha é como acusar todo o estabelecimento universitário da maior parte do planeta de estar envolvido em uma conspiração.

3 O pronome possessivo vem entre aspas porque nesta série estamos justamente discutindo «de quem» é a língua que a escola pretende ensinar.

4 Para os que consideram a Argentina uma espécie de ilha de cultura nesta América Latina mestiça e chucra, sugiro fortemente que pesquisem sobre o voseo, um fenômeno linguístico característico do espanhol portenho (comum à Argentina, ao Uruguai, ao Paraguai e ao sul da Bolívia) que consiste na substituição do «tú» e do «vosotros» por um «vos» que se comporta de forma análoga ao «vous» francês e ao «você» brasileiro.


17
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 11:28link do post | comentar | ver comentários (2)

Nos últimos anos tem estado muito em evidência o debate sobre o “preconceito linguístico”, notadamente desde que um homem do povo (e por isso xingado de “apedeuta” por uma mídia preconceituosa e elitista) chegou ao poder. Tal debate é, porém, feito por leigos e para leigos, nunca, jamais, em hipótese alguma permitindo que os especialistas tenham o mesmo destaque que os palpiteiros. Fala-se sobre a língua, sem nunca sequer mencionar que existem linguistas. O que é mais ou menos como conversar sobre doenças sem mencionar que existem médicos. Fala-se sobre gramáticos, políticos, escritores e professores de português, é verdade, o que equivale a, mesmo esquecendo os médicos, lembrar de uma série de outras profissões relacionadas à saúde, algumas sérias, outras não.

Quando um apologista cristão diz não crer na Evolução e enfileira uma série de comentários deturpados e desconexos, que evidenciam desconhecimento completo ou muito grande das coisas mais básicas de Biologia, as reações jocosas no meio do “movimento ateu” são quase instantâneas. Há quem chegue a recomendar à criatura que “vá estudar”, há quem lhe aponte as “falácias” de seu raciocínio ou até o fato de argumentar desconhecendo coisas básicas e imediatas, que deveriam ser evidentes no quotidiano. É unânime entre os que não são fundamentalistas religiosos que um criacionista é uma pessoa que tem um sério problema intelectual (dissonância cognitiva), uma profunda ignorância científica ou então é um manipulador que desconsidera fatos a fim de ter apelo junto às pessoas que não os conhecem ou compreendem. Em uma linguagem mais direta, criacionista só pode ser burro, ignorante ou desonesto.

Este estado de coisas não tem a ver, necessariamente, com religião. O criacionismo não é causado pela necessidade de crer em Deus, visto que muitas pessoas creem nEle sem serem criacionistas. Na verdade o criacionismo reflete o apego a um conjunto de explicações que — mesmo obsoleto e em contradição com aquilo que se observa na ciência (e até no quotidiano, em alguns casos) — continua tendo apelo porque oferece uma visão de mundo mais simples, imediata e inteligível. “Deus fez” é uma explicação que não exige muito raciocínio, não humilha quem não tem tempo de estudar e tem, na cabeça de muita gente, o salutar efeito de diminuir a distância entre um diploma de primário e um de doutorado. Em simples palavras: o criacionismo é uma reação anti-intelectual, que procura restaurar um mundo ideal que homens eram homens e sabiam consertar os motores de seus carros.1

Existe, porém, uma ciência que sofre um ataque muito mais cerrado da pseudociência, um ataque muito mais cruel e eficiente. Esta ciência foi estabelecida há mais de duzentos anos e; mesmo mostrando notável capacidade de produção de conhecimento, inclusive com modelos que permitem fazer predições; é praticamente ignorada fora dos meios acadêmicos, enquanto seus detratores têm acesso fácil à mídia para propagar seus panfletos reacionários. E de tal forma isso, que o discurso pseudocientífico se tornou a norma e os pesquisadores precisam enfrentar o ceticismo e o descrédito quando apresentam seus trabalhos. Ceticismo e descrédito que chegam, inclusive, entre os pesquisadores de outras áreas do conhecimento.

A ciência de que estamos falando é a Linguística. Fora dos círculos acadêmicos pouca gente ouve falar dela, embora seja frequente que os conhecimentos por ela produzidos se difundam, sem crédito, por uma variedade de meios. A Linguística permitiu a tradução de textos em línguas perdidas e a reconstrução da autoria da Bíblia; provou a múltipla autoria do Pentateuco e do Alcorão; determinou as relações étnicas entre os povos da Europa, do Oriente Médio, da Ásia Central e do Subcontinente Indiano; permite detectar fraudes documentos históricos; é parte da análise que busca determinar a validade de uma inteligência artificial; ajudou a desconstruir o discurso totalitário etc. As descobertas da Linguística são incríveis, para uma ciência tão recente e que estuda um fenômeno tão complexo quanto as linguagens humanas.

Porém a Linguística desperta sua quota de reações entre aqueles que sonham com um mundo ideal, que homens eram homens e tudo que se precisava aprender era o trivium e o quadrivium.2

Ocorre que a Linguística se insurge contra um dos últimos bastiões do preconceito nossa sociedade. Não é mais aceitável discriminar os indivíduos por fatores como a cor de sua pele ou a religião, resta apenas como última distinção do elitismo a afirmação de um sistema de castas linguísticas, que perpetua e justifica a exclusão de uns favor de outros. Ao demonstrar a cientificamente a falsidade dos paradigmas em que se assenta tal divisão, a Linguística atrai a ira dos que se aproveitam deles para exercer privilégios ou para ganhar uns trocados. E ganha-se muito dinheiro vendendo dicionário e gramática, e cursinho e concurso e manual de redação.

Refiro-me, obviamente, à cultura de gramática e dicionário, herdeira dos sistemas medievais de ensino. Tal cultura se baseia na crença de que certas línguas são superiores a outras,3 que “as pessoas” (aqui geralmente entendidas como “as pessoas das classes inferiores”) pertencem a uma espécie de bípede pelado e estúpido que não saberá se comunicar a menos que a escola ensine. Se não for ensinadas direitinho pelo “sistema educacional”, crescerão falando “errado”, do jeito que puderam aprender com outros ignorantes, como seus pais, por exemplo.

Colocando a coisa nestas palavras ela soa um pouco ofensiva. Talvez algumas pessoas que estejam lendo este texto ouçam soar o alarme: “Ei, eu não penso assim!” Será mesmo? Façamos um exame de consciência, às vezes só conseguimos enxergar certos detalhes quando exagerados na caricatura. E a caricatura dessa visão de mundo é o gramático normativo conservador, figura já satirizada com força por Monteiro Lobato, em Emília no País da Gramática, escrito incrivelmente em 1934. Entre esses há um gramático famoso hoje em dia, que tem por sobrenome a marca de um remédio que causa abortos, que tem espaço até na televisão para difundir “regrinhas” de uma gramática que reflete uma língua falada no século XVIII e que nem mesmo a elite fala mais.

Um cético não pode compactuar com essa visão de mundo. Já falei anteriormente sobre como o ceticismo tem sido abastardado pela convivência com preconceitos, a ponto de arengas céticas incluírem injúria racista contra um povo historicamente discriminado. Aqui estou indo além: a cultura da gramática e do dicionário é preconceituosa, embora não da forma grosseira como se manifesta o preconceito racial contra negros, judeus ou ciganos.

O preconceito a que me refiro é reflexo de uma sociedade de classes, na qual os valores e experiências do povo são desconsiderados e os valores e experiências das classes dominantes são impostos através de sistemas ideológicos. A elite é que sabe falar, e vai ensinar o povo a falar. O “não saber falar” significa que, para a elite, o que quer que o povo esteja falando é uma “não língua”. A História está repleta de exemplos de situações nas quais a imposição da língua dominante refletiu um processo de dominação política.

Ao ser entrevistado para a Veja, o professor foi introduzido pelo seguinte comentário: … professor de português — idioma que, de tão maltratado no dia a dia dos brasileiros, precisa ser divulgado e explicado para os milhões que o têm por língua materna. Não houve contestação desta definição por parte do professor, certamente porque ele gosta de se ver assim, como uma espécie de missionário entre os primitivos. Será realmente necessário “divulgar e explicar” o português para pessoas que o têm por língua materna?

Ocorre que, conforme demonstra a Linguística, os dialetos populares não são uma “corrupção” da língua nacional pela ignorância do povo: eles têm uma origem, uma história e uma lógica interna. Os dialetos regionais já existiam no Brasil Colônia, como reflexo das origens geográficas diferentes dos imigrantes de cada região do país,4 como se percebe facilmente estudando episódios como a “Guerra dos Emboabas”, no qual o falar definia a identidade das pessoas, da mesma forma que seu vestir. Ora, se sabemos que os dialetos têm uma história, como seguir afirmando que nada mais são do que fruto da ignorância de um povo que “não sabe falar”? Não podemos, eis porque segue existindo, entre os que se beneficiam dos métodos de “ensinar a falar”, uma barragem contínua de críticas e desqualificações contra a ciência da Linguística.

Infelizmente, porém, quando uma ciência começa a detectar as estruturas de dominação ideológica que mantêm as coisas “em seu lugar” ela começa a ser associada com movimentos revolucionários que procuraram ou ainda procuram colocar outras coisas no mesmo lugar. Esse discurso da Linguística, que explicita como as elites estabelecem-se como portadoras da “língua certa” e se arrogam a missão de ensinar o povo, passa então a ser visto como perigosamente “comunista” por pessoas que não sabem o que é Linguística e, muitas vezes, não sabem o que é comunismo.

Você já deve ter ouvido falar esse tipo de coisa por aí. É muito frequente entre os adeptos de ciências exatas a depreciação das ciências humanas, como se elas fossem coisa de “maconheiros comunistas gays”. Não percebem os que dizem estas bobagens que adotam um discurso análogo ao dos criacionistas, que rejeitam a priori e em bloco todo um ramo do conhecimento que não estudaram, apenas porque as teses se chocam com as suas opiniões leigas.

Gostaria de enfatizar esta última palavra. Debatedores como o Franciso Quiumento — mas não somente ele — adoram esfregar esse termo na cara de criacionistas para descartar suas opiniões. Acho justo: ninguém confia na opinião de um “leigo medicina” para tratar-se ou de um “leigo engenharia” para construir uma ponte. Natural, portanto, que o bom senso rejeite o que um “leigo biologia” tenha a dizer. Mas será que tipo de reações que eu provocarei se disser que os vociferantes críticos da Linguística são “leigos” que não sabem o que estão falando? Será que essas pessoas terão a racionalidade de reconhecerem que agem como o apologista de Bíblia à mão que grita que “A Evolução É Só Uma Teoria”? Tenho certeza de que a maioria não. Tal como é impossível demover o criacionista, ao menos não subitamente, é impossível demover os críticos da Linguística, porque do alto de sua ignorância eles acham que estão “certos”, que as ciências humanas não são ciências “de verdade”, enquanto eles têm à mão a régua exata para medir o mundo.

Cabe perguntar qual a razão do preconceito contra as Ciências Humanas por parte das pessoas que cursam Exatas ou Biológicas. Talvez tal preconceito seja agravado pelo reflexo das distorções de nosso mercado de trabalho, que tornam mais financeiramente bem sucedido um médico ou engenheiro do que um professor, mas o fenômeno é encontrado também outros lugares do mundo, o que nos sugere uma causa mais profunda do que as imperfeições de nossa sociedade tropical. Se eu quisesse cometer um comentário tão abusivo quanto os que já me foram dirigidos por pessoas de Exatas ou Biológicas eu diria que aqueles que são instrumentalizados pelo sistema serão por ele pregados como peões na luta contra o conhecimento que ameaça a atual estrutura do mesmo sistema. Não creio, porém, que esses comentários sejam deliberados, mas fruto de irreflexão e, portanto, não é justo que eu reaja com um ataque desse tipo. Justo é, porém, que eu convide as pessoas que desqualificam as Ciências Humanas a examinar não as motivações de tais críticas, pois tal pedido seria falacioso, mas a validade delas.

Na próxima semana volto ao tema, para falar especificamente sobre as formas como se manifesta tal preconceito.

1 Uma das provas de que o criacionismo não é um monstrengo isolado, nem a Biologia a Geni das ciências, é que existem vários outros fenômenos análogos afetando outras ciências, exatas, humanas e biológicas. A pseudociência existe em todos os ramos do conhecimento, sempre acompanhada de uma pregação panfletária contra o “elitismo” da ciência estabelecida e seus controles e apresentando-se com uma humildade cativante que fala ao coração do leigo com o conforto da sugestão de que o esforço de estudar é uma vaidade sem sentido. Exemplos de fenômenos tais podem ser encontrados na História (revisionismo do Holocausto, deuses astronautas, fenícios cariocas), na Geografia (Amazônia pulmão do mundo), na Medicina (homeopatia, osteopatia, auras, cura pela fé), na Geologia (terra oca, terra jovem), na Astronomia (Nibiru/Hercólubus) etc. Talvez os outros tipos de pseudociência não consigam ter a mesma projeção do criacionismo por não contar com o púlpito para divulgá-los (inclusive o púlpito eletrônico), mas epistemologicamente falando não há uma grande diferença entre crer Adão e Eva ou crer crianças índigo.

2 O currículo das escolas mantidas pela Igreja na Idade Média se baseava no estudo de dois grupos de matérias. As básicas correspondiam ao trivium, de que deriva o adjetivo “trivial”, e as demais eram consideradas avançadas. O trivium era composto de gramática, lógica e retórica; enquanto o quadrivium tinha de aritmética, geometria, música e astronomia. Este currículo correspondia às “artes liberais”, enquanto outros cursos ensinavam as “artes práticas” (como a medicina e a arquitetura).

3 Os anglófonos, por exemplo, julgam o inglês a língua “mais própria à civilização” por possuir o maior conjunto de vocábulos (ainda que os dicionários de inglês sejam inflados por todo e qualquer termo estrangeiro que adquira certo uso corrente e que as diferentes acepções de uma mesma palavra sejam frequentemente postas verbetes separados). Os francófonos consideram o francês superior porque possui “o sistema de conjugação verbal mais preciso entre as línguas latinas”, entre outras bobagens. Para cada língua há um meio de demonstrar sua “superioridade” segundo algum critério arbitrário: o alemão e sua incrível capacidade de derivação morfológica, o italiano e sua plasticidade sonora, o espanhol e sua estabilidade ortográfica e gramatical de quase oito séculos, o grego e sua tradição de dois mil e quinhentos anos etc.

4 A influência açoriana nos dialetos do extremo sul, por exemplo, ou da língua tupi sobre os dialetos do centro-oeste e de São Paulo.


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