Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Mar 13
publicado por José Geraldo, às 17:55link do post | comentar
Provando que eu já era meio ardoroso na defesa de minhas opiniões em 1999, vai uma correspondência por mim enviada à Prefeitura de um município do interior mineiro — com cópia para conhecido jornal de ampla circulação na região — após ter conhecimento do gabarito final de um concurso para provimento de vagas no magistério municipal, no meu caso para lecionar História. O concurso acabou anulado e eu, que havia sido reprovado por uma questão, tive a chance de fazer a prova de novo, mas da segunda vez o concurso estava em um nível no qual provavelmente nem o Eduardo Bueno, nem o Jacques Soustelle e nem o próprio Hobsbawn passariam — mas um número suficiente de candidatos obteve a pontuação necessária, claro.

Esta versão não é idêntica à que foi enviada à Prefeitura pois, além de remover todo dado que pudesse servir para identificar o município (e assim me precavenho contra um processo por calúnia e difamação), também removi alguns parágrafos que não tinham informação suficiente para que alguém sem acesso ao texto da prova pudesse entender do que eu estava falando. Removi também o endereçamento e o fecho.

Tendo me inscrito no último Concurso Público realizado pela Prefeitura para preenchimento de vagas de Professor de História, venho por meio desta pedir a V. Sª. providências referentes ao mesmo, cujas provas tiveram lugar no último domingo dia 16/06 do corrente ano. Faço-o nesta data pois, tendo sido o gabarito definitivo divulgado no dia 19/06, ainda me está facultado o direito de recurso.< Faço uso desta prerrogativa por julgar que o referido concurso sofreu de imperfeições de variada espécie, as quais prejudicaram-me (e acredito que também a inúmeras outras pessoas, embora eu me restrinja a abordar os aspectos referentes ao meu caso particular). Entre essas destacam-se o descuido na elaboração das provas e a existência de diversas incorreções tanto no enunciado quanto nas alternativas em várias questões.

Prova de Conhecimentos Específicos (História)


Em relação à esta parte, a primeira, e talvez a mais grave, das imperfeições foi ter exigido matéria diversa da originalmente definida no programa. O Manual do Concurso Público «Área de Educação, Nível Superior», cita em sua página 9 os «Conteúdos Programáticos» (sic) da Área de História:
  • Construindo o pensamento histórico: reflexões sobre os papéis do professor de História e do Historiador e sobre as suas relações com as grandes correntes da produção do conhecimento histórico;
  • Brasil contemporâneo: República Brasileira: aspectos da vida política; desenvolvimento de políticas públicas; momento atual;
  • Economia e sociedade no Brasil: O Brasil no contexto da globalização mundial; as políticas neoliberais e seus reflexos na economia e no desenvolvimento social (...); meios de comunicação e cultura de massa;
  • A questão agrária e o meio ambiente: uma visão histórica do processo: ocupação da terra e a questão indígena; concentração da propriedade rural, política agrária, (...) agricultura e degradação ambiental;
  • O ambiente urbano e a industrialização do Brasil: industrialização e crescimento urbano; (...) atividades econômicas e meio ambiente, educação e saúde.
A partir desta lista se pode supor que a prova seria centrada na realidade brasileira de hoje. O fato de ser justamente este o conteúdo do currículo do Ensino Fundamental dá sólidas bases a esta suposição. É importante ressaltar isto porque, ao delimitar desta maneira o conteúdo programático, não se está meramente dispensando o candidato do estudo de outras áreas, mas também condicionando-o a desenvolver todo um raciocínio histórico invertido a partir do presente e baseado na demanda do aluno. Não é apenas uma delimitação de conteúdo; é a afirmação de uma maneira de pensar e de ensinar a História. Não se está apenas pedindo do candidato que conheça os temas propostos, mas também que estruture seu raciocínio e o seu método em torno de um paradigma.

Analisemos agora os temas das questões da prova de conhecimentos específicos.
  • Questão 31: Feudalismo (no imaginário popular e na cultura de massas).
  • Questão 32: Absolutismo (características).
  • Questão 33: Significado da vinda da família real portuguesa ao Brasil.
  • Questão 34: O Século XIX na história dos Estados Unidos da América.
  • Questão 35: Contexto histórico do Brasil no pós-guerra.
  • Questão 36: Questão Palestina.
  • Questão 37: Transição do Mito à Razão na Grécia Antiga.
  • Questão 38: Características do Período Regencial.
  • Questão 39: Causas da Segunda Guerra Mundial.
  • Questão 40: Contexto histórico do Brasil nos anos 60.
Como se vê, nenhuma das questões está compreendida nos «conteúdos programáticos» enunciados no manual e poucas, de acordo com o currículo do Ensino Fundamental. Vale ressaltar que no Ensino Fundamental a História Universal é ensinada apenas como complemento à do Brasil.

Ainda que se possa argumentar que ao professor de História cabe conhecer todo o espectro da História Universal (uma afirmação discutível sob certos aspectos*), ao divulgar que o concurso exigiria certos setores da História e não outros, os organizadores do concurso inculcaram nos candidatos a percepção de que deveriam dirigir seus estudos exclusivamene às áreas que seriam tema da avaliação. Os que confiaram nas orientações oferecidas pela organização do concurso ficaram, portanto, em desvantagem em relação aos que, por quaisquer motivos, tenham desconfiado delas. É moralmente aceitável que seja prejudicado quem confia no poder público e recompensado quem dele desconfia?

Faço questão de ressaltar que não me furto a ser avaliado em qualquer área da História. Não tenho medo de submeter a prova os meus conhecimentos. Mas, por uma questão de honestidade, acredito que os candidatos a um concurso têm o direito de saber em que quesitos serão avaliados para que possam todos preparar-se em igualdade de condições. Um concurso deve avaliar os conhecimentos do candidato, não sua capacidade de prever o futuro.

No entanto, ainda que protestando veementemente contra o fato lamentável ocorrido, não deixo de analisar friamente as questões da prova de História, pois iludir as expectativas dos candidatos não foi o maior dos erros cometidos pela organização: na maioria das questões houve problemas em relação ao enunciado ou às alternativas.

Na questão 31, por exemplo, temos um texto que, segundo o enunciado, devemos tomar por base ao analisar as quatro afirmativas propostas. Ocorre que nenhuma das opções oferecidas alude ao texto. A título de ilustração, cito o enunciado da questão:
«Para o homem comum, não especialista, a expressão feudalismo possui um peso fortemente negativo, provocando associações imediatas com imagens colhidas em velhos manuais ou em romances mais ou menos ambientados numa vaga região do passado denominada 'Idade Média' ou 'Tempos Medievais'. Para as gerações mais novas, do cinema de massa e da TV, feudalismo remete para filmes 'de capa e espada', onde a violência, o fanatismo religioso, a fome e 'a peste' encontram-se lado a lado, com figuras melancólicas e românticas de 'cavaleiros e miladies'».*
Dentre as afirmativas que devemos analisar e assinalar a «correta» temos (os grifos são meus):
  1. a abordagem da época medieval pelo cinema e pela televisão, destaca a mobilidade e a flexibilização dos papéis sociais, característicos do feudalismo;
  2. O (sic) clero consolidou o prestígio da Igreja Medieval (sic), apoiando os movimentos heréticos religiosos;
  3. A (sic) intensificação da exploração sobre os camponeses, as crises de fome e a chamada 'peste' estavam associadas às rápidas transformações socioeconômicas (sic) em curso na sociedade européia medieval;
  4. A escravização (sic) dos camponeses nos temos medievais determinou a visão negativa sobre este período da História»
Ocorre que nenhuma das quatro afirmativas é verdadeira em razão de conterem, todas, palavras inadequadas que invalidam qualquer veracidade que ostentem.

A alternativa A menciona uma suposta «mobilidade» e uma «flexibilização dos papéis sociais», quando a Idade Média foi justamente um período caracterizado pela rigidez da estrutura social. A alternativa B incorre em falsidade ao declarar que a Igreja apoiava as heresias, quando ela as combatia a ferro e fogo. A alternativa C, tida como correta, alude a supostas «rápidas transformações socioeconômicas (sic) em curso na sociedade européia medieval», quando a época foi justamente caracterizada pela lentidão das transformações. Embora ao longo do período medieval a sociedade se tenha transformado profundamente, este processo foi tudo, menos rápido, já que levou mil anos! A alternativa D utiliza inadequadamente o termo escravização para referir-se à situação dos camponeses medievais e afirma que foi isso que determinou a visão negativa sobre este período da História, quando a visão negativa sobre a Idade Média foi determinada pela concepção Renascentista de que o período teria sido uma longa «noite» em que a cultura antiga esteve esquecida. Diante do fato de que todas as alternativas estão incorretas, reconheço que assinalei aleatoriamente uma delas na prova, já sabendo que haveria de polemizar depois.

A questão 36 mostra que o seu formulador tem uma concepção bastante superficial dos eventos internacionais contemporâneos. Depois de ter citado fragmentos de uma reportagem de jornal sobre a questão palestina, o enunciado indaga qual alternativa é correta, «sobre o tema» (não sobre o texto, portanto, o enunciado nos instrui a não considerar o texto ao analisar as alternativas. Ao afirmar que «A chamada Questão Palestina refere-se atualmente à situação dos cerca de quatro milhões de refugiados em áreas vizinhas ao estado de Israel;» o formulador mostra não compreender a magnitude do problema. Qualquer pessoa bem informada sabe que a Questão Palestina não é um problema de refugiados, mas uma questão nacional não resolvida. Talvez o erro se deva ao fato de a questão ter sido formulada com base em um artigo de jornal do ano passado mas, há quanto tempo foi formulada esta prova? Ainda que eu tenha assinalado esta alternativa como correta, eu o fiz pela mesma razão que na questão 31: as quatro contêm falsidades evidentes.

A questão 37 incorre num erro digno de um Erich von Däniken, pseudo-historiador célebre por misturar os fatos históricos e freqüentemente se perder no emaranhado de sua própria confusão ao tentar defender suas mirabolantes teorias. O enunciado da questão remete à passagem do Mito à Razão na Grécia Antiga, evento que teria ocorrido, segundo o formulador da questão, entre os séculos VII e VI a.C.* e que teria sido possibilitado, segundo a alternativa dada como correta, pelo surgimento da Filosofia e pelas invasões dos dórios. Em termos lógicos a afirmativa é um absurdo! Ora, é concebível que exista Filosofia sem que exista pensamento racional? Como pode a Filosofia preceder a razão, sendo ela o mais nobre fruto da mais nobre das faculdades humanas? Em termos cronológicos o desastre é ainda maior: como pode a invasão dos dórios haver sido um fato decisivo em um processo ocorrido entre os séculos VII e VI a.C. se ela ocorreu por volta do século XII a.C., 600 anos antes? A invasão dos dórios foi responsável, isto sim, pela destruição da civilização egeano-micênica (os «Tempos Homéricos») e lançou a Grécia em um período de confusão política que é conhecido como a «Época Arcaica» (séculos XI a VI a.C.) ao longo do qual surgiram e se consolidaram os elementos da posterior «Época Clássica». O surgimento da razão não foi fruto de outra coisa senão da urbanização grega, com o surgimento da pólis; motivo pelo qual eu assinalei a alternativa B, a única que menciona o fato mais notável ocorrido entre os séculos VII e VI, único evento capaz de produzir uma transformação radical, evento este que é semente de inúmeros outros. A colonização grega e a expansão da cultura helenística (mencionadas na alternativa C) também têm pontos de contato com a passagem do Mito à Razão. A primeira por ser contemporânea à última fase da «Época Arcaica» e a segunda por representar a «exportação» da cultura grega para o resto da área do mediterrâneo (mas em uma fase posterior ao período citado). Desta análise se conclui que a única alternativa correta é B, não C.

A questão 38 induz o aluno ao erro pois a alternativa tida como «correta» (D) afirma que os partidos surgidos no Período Regencial eram «democráticos». Ou o formulador tem um muito peculiar conceito de democracia, flexível a ponto de considerar democrático um sistema que excluía 99% da população brasileira da época, ou houve erro na correção desta questão. De resto, nenhuma menciona aquela que é, realmente, a principal característica do período regencial: o fato de o governo ter sido exercido por líderes eleitos. Esse é o motivo pelo qual a época foi conhecida como «experiência republicana», como aliás está mencionado no enunciado da questão!

A questão 39, em sua alternativa «correta» identifica como causa da Segunda Guerra Mundial a «ameaça expansionista da União Soviética, pretendendo a difusão da revolução socialista». Aceito que o formulador acredite que comunistas comem criancinhas, mas não aceito que agrida o fato histórico. No período anterior à Segunda Guerra a antiga União Soviética estava passando por um processo de reestruturação social e econômica. Ocorriam crises periódicas de fome, perseguições políticas e escassez de gêneros. O país ainda estava construindo uma infra-estrutura básica e a expansão da revolução era a última de suas preocupações. Não foi por outro motivo a célebre disputa entre Trotsky e Stalin pela primazia no PCUS. Enquanto este defendia a necessidade de uma pausa no ímpeto revolucionário para «consolidar as conquistas da revolução», aquele defendia uma «revolução permanente».

A vitória de Stalin representa o triunfo do pragmatismo e do isolacionismo sobre o idealismo revolucionário. A maior prova de que não havia uma política expansionista russa está no pacto Ribbentrop-Molotov (1939), em que a URSS cedeu territórios e áreas de influência à Alemanha nazista para evitar confrontar-se militarmente com ela: Stalin sabia que, em 1939, a União Soviética ainda não tinha condições de lutar. Pretender que um país que cede ao limite da covardia para evitar um confronto militar está em uma «política expansionista» é mais do que minha pouca inteligência consegue alcançar.

Duas alternativas aludem a fatos históricos coerentes com a origem da Segunda Guerra Mundial: B e D. A letra B, ao mencionar «as rígidas cláusulas dos tratados de paz da Primeira Guerra e a geração espontânea de novos países europeus surgidos com a fragmentação do Império Austro-Húngaro» (ainda que o termo geração espontânea seja inapropriado e o fato em si, de discutível importância na esteira de eventos que conduzem à Guerra). A alternativa B reúne as mais sólidas afirmações, ao aludir à «Política expansionista de regimes fascistas na Ásia e na Europa e à diplomacia do apaziguamento». Atribui, portanto, a culpa aos verdadeiros culpados: Alemanha, Itália e Japão (os tais regimes expansionistas) e Inglaterra, URSS e Estados Unidos (os que assinavam tratados com Hitler achando que ele um dia ficaria satisfeito e a guerra não aconteceria).

Mas é a questão 40 que mais suscita revolta contra os organizadores. O enunciado afirma que:
«No início da década de 1960, a grande novidade no mundo do cinema era a revelação da produção cinematográfica do Terceiro Mundo (do Oriente, da África e da América Latina), que expressava as condições internas dos países destas regiões e o contexto da conjuntura (sic) internacional. No Brasil, o Cinema Novo começava a ganhar expressão e voltar-se para as bases populares de nossa cultura. Como características no plano interno e externo do período, podem ser apresentadas, respectivamente:»
A alternativa correta, segundo os organizadores é a B, em que se lê: «o nacional desenvolvimentismo (sic) e o surgimento do realismo socialista no cinema». Ou seja, a questão afirma que, no Brasil, vivíamos um período «nacional desenvolvimentista» e que, no plano, externo, assistia-se ao surgimento do «realismo socialista». Claro, não?

Bem claro que quem acha que isto está certo deve ter tomado pau em História da Arte na faculdade e deveria voltar para ela para aprender de novo. Protesto contra a afirmação de que o realismo socialista no cinema surgiu nos anos 60. Querem que eu rasgue todos os livros de História da Arte e confie no que algum incompetente desconhecido acha que está certo? «Realismo Socialista» foi o estilo artístico característico da União Soviética -- e de alguns de seus satélites -- entre a década de 1930 e o final da década de 1970. O «Realismo Socialista», na literatura foi criado por escritores como Vladmir Maiakóvski (morto em 1925) e no cinema, por Sergei Eisenstein (cujas produções vão de 1923 a 1941).

Transcrevo a seguir o verbete «Realismo Socialista» da Enciclopédia Larousse:
«O princípio fundamental do Realismo Socialista é a captação da realidade com a visão partidarista, objetivando uma tomada de posição explícita a favor da construção do socialismo. (...) Salientou-se o «herói positivo» (do qual o próprio Stalin seria um arquétipo); adotaram-se as formas simplificadas, a exuberãncia decorativa e a comunicação fácil com o público leitor ou espectador. Foi justificado ideologicamente nos informes de Andrei Jdanov sobre a arte e a literatura e (...) foi a doutrina artística oficial na antiga URSS e em outros países socialistas.»
Note bem a menção a Stalin. Ainda que se discuta a época exata em que surgiu o «Realismo Socialista», é evidente que ele já existia enquanto Stalin e Jdanov ainda eram vivos. Como Stalin morreu em 1953 e Jdanov em 1948, ele não poderia estar surgindo nos anos 60, caramba! Para informar ao ignorante formulador desta questão, o movimento inspirador de nosso Cinema Novo foi o «Neo-Realismo» italiano e o seu protótipo foi «Roma, Cidade Aberta», de Roberto Rosselini (1948).

Prova de Português

Tendo expressada minha posição a respeito da Prova de História, passo a analisar a Prova de Português, a qual, ainda que em grau menor, também apresenta sérios problemas.

Logo na segunda questão temos uma grave razão para controvérsia. Tudo porque o enunciado da questão, citando parcialmente uma frase do texto, indaga o significado da oposição entre sermos «seres no mundo» e sermos «seres do mundo», segundo a ótica do autor. Vejamos o que diz a frase inteira no texto (os grifos são meus):
«A modernidade, com a influência cartesiana e também da física de Newton, nos legou a falsa ideia de que somos seres destacados da natureza, que somos seres no mundo. Quando somos, de fato, seres do mundo.»
A primeira parte da citação é evidente: o pensamento materialista nos apresenta como dominadores da natureza, dissociados dela. Ao afirmar que, na verdade, somos seres do mundo, Frei Betto está apenas querendo afirmar o contrário: nós também pertencemos ao mundo, somos parte de um sistema.

O gabarito apresenta como correta a afirmativa C, onde se lê: «Fomos feitos para habitar este mundo/somos apenas parte deste mundo». É uma afirmativa bastante semelhante à letra A, que afirma: «fomos feitos para reger o mundo/somos parte da natureza». Na verdade nenhuma das duas afirmativas está de acordo com o texto citado: a afirmativa C perde ênfase e coerência ao usar a palavra «apenas» pois o objetivo da exposição de Frei Betto é ressaltar o fato de que somos mais que simplesmente «habitantes» deste mundo. Concordo que trata-se de uma questão de estilo mas, o estilo deve estar a favor da clareza. A afirmativa A também está errada porque Frei Betto não afirma que devemos reger o mundo.

Prova de Conhecimentos Didático-Pedagógicos


Em relação à questão 23 fico perplexo pela possibilidade de a afirmativa D estar correta, uma vez que as três últimas afirmativas tangenciam pelo mesmo ângulo o trecho citado. Se uma delas está correta, todas as três obrigatoriamente estarão. Consequentemente a única afirmativa que as contradiz deve estar correta. Isso, é claro, numa análise simplista e a priori, sem ler com atenção o enunciado.

Quando Veiga afirma que «As novas formas têm que ser pensadas em um contexto de luta, de correlação de forças — às vezes favoráveis, às vezes desfavoráveis. Terão que nascer do próprio chão da escola, com apoio de professores e pesquisadores. Não poderão ser inventadas por alguém longe da escola e da luta de classes» estará ele pregando que deve haver «divisão entre ensinar e aprender»? Estará querendo dizer que deve haver «desvinculação entre sentir e agir»? Estará angariando adeptos para a necessidade de separar o pensar do fazer quando justamente afirma que aqueles que fazem (professores e pesquisadores) devem ser os responsáveis pela elaboração das teorias que os guiarão?! A única afirmativa que concorda com Veiga é A: «unidade entre teoria e prática», por eliminação através da lógica abstrata, mas também por evidente semelhança de idéias.

Na questão 26, creio haver um problema de natureza lógica na formulação da questão. O enunciado nos pede para considerar os «critérios para a verificação do rendimento escolar apresentados a seguir:» Acontece que as frases mencionadas não se referem todas a «critérios para a verificação do rendimento escolar», como se verá.

Ocorre que a afirmativa II declara: «obrigatoriedade de estudos de recuperação, de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo rendimento escolar» enquanto a afirmativa III alude a «possibilidade de avanço nos cursos e nas séries, mediante verificação do aprendizado».

Ora, salta aos olhos do observador que as afirmativas II e III se referem, ambas, a eventos posteriores à verificação do rendimento: II define a possibilidade de recuperação em caso de sub-aproveitamento e III fala do avanço nos cursos e nas séries, «mediante verificação do aprendizado». O próprio enunciado de III já admite que a verificação do rendimento escolar é outra coisa, e uma coisa anterior.

Portanto a única alternativa que define critérios para avaliação do rendimento escolar é I: «avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais.» Estes são critérios, os outros são atitudes a tomar diante dos resultados da aplicação destes critérios.

Ainda que a LDB mencione conjuntamente as três afirmativas, é evidente que a redação do enunciado está capenga e o torna obscuro e inverossímil. Parece ter faltado à mão do redator desta questão um pouco de amor à clareza.

Sumário

Do anteriormente exposto conclui-se que, entre as alternativas que «errei» no concurso, em várias o meu erro foi induzido pela existência de múltiplas alternativas corretas; pela má construção do enunciado, resultando em afirmações absurdas em seus próprios termos; ou pura e simplesmente porque se considerou certo o que está errado.

Causa-me profundo espanto que um concurso organizado por um órgão público incorra em tantas imperfeições. Que exames que levam o nome de «provas objetivas» contenham subjetividades. Que uma tarefa de grande responsabilidade, como a elaboração de um concurso público, seja levada a efeito de forma tão descuidada, temerária até. Que diante do alto valor da taxa de inscrição não se tenha providenciado um sistema de alta qualidade e à prova de falhas.

Não espero que meus protestos resultem em providências, pois estas deveriam incluir a anulação de muitas questões ou, preferencialmente, o próprio cancelamento deste fiasco em que se transformou o concurso; mas faço uso de minha liberdade de expressão para declarar meu repúdio a este. Diante da qualidade dos exames infere-se a qualidade dos que foram responsáveis pela sua elaboração e duvida-se da qualidade das pessoas que serão por tais critérios selecionadas para o serviço público.

Eu não aceito a nota que obtive neste concurso como a medida justa de meu valor, quer sob o aspecto meramente acadêmico, quer sob o aspecto profissional. Justa medida ele é da seriedade e da competência daqueles que o conduziram.

Há que se ter mais respeito pelo dinheiro alheio. Não se pode cobrar R$59,00 de taxa de inscrição e brindar os candidatos com folhas de respostas fotocopiadas. Não se pode ter duas versões do gabarito em uma mesma semana e não depõe a favor da lisura do processo seletivo a limitação do prazo para recursos a 48 horas, especialmente se levamos em conta o restrito horário em que atende o serviço público municipal. Tudo parece conspirar para dificultar uma análise minuciosa das questões e a elaboração de uma contestação efetiva em tempo hábil, para que os candidatos acabem sendo forçados a aceitar o resultado.

Uma administração comprometida com o bem comum não pode tolerar este tipo de falhas, especialmente quando o processo foi alvo de suspeita desde o início, com maldosos comentários à boca pequena aludindo ao seu caráter de mero «arrecadador de fundos para as eleições». Diante de tão graves suspeitas que o populacho levantou, rigorosas providencias de seriedade deveriam ter sido tomadas. Sua ausência decepciona os que, como eu, hipotecaram suas esperanças votando na atual administração e permitem suspeitar da veracidade dos comentários que o zé-povinho fez circular.

Espero que minha indignação motive correções futuras, que instigue os canais competentes a agirem em defesa da cidadania, uma vez mais ferida. Sinto-me ferido em minha dignidade, insultado em meu profissionalismo ao ser ele medido por critérios amadores.

25
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 23:10link do post | comentar

O amigo leitor que se pergunta o porquê dessa postagem saiba que se trata de uma descoberta notável, que me salvou do ostracismo um dos melhores contos (quase uma noveleta) que eu jamais escrevi. Terminada a história, maravilhosamente ambientada nos «sertões do leste» de Minas Gerais, em um momento indefinido do Segundo Império (vários elementos na história indicam que se trata de um contexto pós-regencial), eis que me dei conta de um imperdoável e imenso anacronismo: o desfecho da história só fazia sentido mediante a atuação de uma força policial reconhecível como tal, do uniforme ao cavalo branco. Só que várias fontes consultadas me disseram que não havia tal força de segurança disponível naquela época e lugar. Fiquei muito chateado com essa descoberta, pus de lado a versão inicial da história, sem sequer fazer a revisão gramatical, e fui seguir com a vida. Hoje, porém, durante uma lida casual na Wikipédia, seguida de uma consulta ao Pai Google da Califórnia (que traz a informação desejada em 0,03 segundos), descobri que de fato havia.

A sensação que tive foi a melhor possível. Foi como descobrir que um velho amigo morto está de fato vivo. Agora posso concluir a história tendo a certeza de que o conto não ficará anacrônico. Ainda bem que não segui as dicas de um famoso blogueiro, que me sugeriu transformar a ação policial em algum tipo de evento sobrenatural (sei lá, com anjos ou demônios solucionando o conflito) ou realocar a história para o século XX. No primeiro caso eu teria criado um brutal deus ex machina (um dos cinco maiores defeitos que, em minha opinião, podem vitimar uma boa história) e no segundo caso teria que reescrever praticamente tudo — e muita coisa não faria sentido em outro momento de nossa história.

Conforme minhas fontes, citadas abaixo, havia uma polícia permanente na província de Minas Gerais, à parte as guardas municipais (subservientes aos políticos locais e, portanto, inúteis para os fins da história) e a Guarda Nacional (basicamente desmobilizada e inepta), apenas era uma força pouco numerosa e de ação limitada à capital e seus arredores (Batitucci, 2010). Tal força, porém, cujo efetivo sempre ficou em torno de 400 a 600 homens (entre praças e oficiais), serve perfeitamente para os fins da história que eu contei. Principalmente porque, em casos de necessidade, poderia incorporar oficiais do exército (Uruguai, 1865) e alistar voluntários temporários, os chamados «pedestres».

Embora tal força nunca tenha estado estacionada em qualquer parte de Minas Gerais a mais de vinte ou trinta quilômetros do Palácio Provincial, então localizado em Ouro Preto, não é descabido imaginar que ela pudesse ser destacada para missões excepcionais, sob o comando de um pequeno grupo de oficiais do exército de linha e aumentada, se necessário, por alguns voluntários — mas nunca por membros das guardas municipais de outros municípios, que por lei nunca podiam ser mandados em missão fora da localidade em que residiam (Vellasco, 2005). Apenas não houve, durante o Segundo Império, nenhum fato que justificasse tal medida excepcional. Ora, como a minha história é uma obra de ficção, eu tenho toda permissão para imaginar um tal evento.

Ademais, existe uma outra possibilidade: a do deslocamento de um corpo de Voluntários da Pátria, rumo ao porto do Rio de Janeiro e à Guerra do Paraguai. Tal corpo de voluntários, sob o comando de um oficial do exército, poderia ser tentado a interferir em um caso tão extraordinário quanto o que ocorre em minha história.

No primeiro caso a força policial seria enviada para resolver uma grave violação da paz civil. No segundo, policiais militares de passagem seriam envolvidos nos eventos. A segunda hipótese é historicamente muito mais verossímil do que a primeira, mas eu ainda estou considerando a possibilidade de mitificar um pouco a história mineira e imaginar uma força policial provincial combatendo o mal nos rincões do estado.

Nos próximos dias estarei revisando o conto, para publicação aqui no blogue. Se você tiver alguma sugestão a fazer sobre qual opção seria melhor, ou se tiver mais dados sobre a história da segurança pública em Minas Gerais, por favor deixe um comentário.

Para terminar brindo meus leitores com um parágrafo da obra do Visconde do Uruguai, exibindo a ortographia etymologica e também uma série de características coloquiais do português brasileiro, hoje proibidas pela gramática (e tem gente que nega que os nossos gramáticos sejam reacionários).

Posto que o acto addicional não se referisse a um typo determinado, nem declarasse o que se devia entender por força policial, comtudo pela significação da palavra, e idéa do tempo, parece que os seus autores tinhão em mente, uma força cidadôa e paisana do que militar propriamente e por isso mais propria para a policia, como é a força policial Ingleza e Franceza que não é militar, e formada e estabelecida em cada Municipio, para auxiliar suas autoridades policiaes.

Em lugar dessa força civil, quasi paisana, tem muitas Assembléas provinciaes criado exercitozinhos, e Corpos policiaes nas Capitaes das provincias, apparatosos, com Estados maiores, musicas, reformas, e muito dispendiosos apezar de serem os Soldados mesquinhamente pagos.

Grande parte da força desses Corpos é conservada nas Capitaes, ás vezes para apparato e falta em muitos Municipios a indispensavel para a guarda das cadêas, prisão de criminosos, serviço que vem a recahir sobre a Guarda Nacional.

A força publica destinada a defender o Imperio de seus inimigos, a manter a segurança e ordem publica, a fazer executar as leis e as ordens das autoridades compõe-se entre nós:

  • Do Exercito ou tropa de linha
  • Dos Corpos policiaes da Côrte e provincias
  • Da Guarda nacional
  • De Corpos de Pedestres em alguns lugares

A tropa de linha é evidentemente impropria para a policia das localidades, e para a execução das ordens das autoridades civis no descobrimento, perseguição e prisão de criminosos. Demais todas as vezes que é muito fraccionada, perde a instrução, a disciplina e desmoralisa-se.

Pela sua composição, principalmente quando são recrutados, dá-se o mesmo inconveniente nos Corpos policiaes, que são hoje uma especie de tropa de linha.

Salvo raras excepções, por motivos cuja exposição seria mui longa, pouco serve a força de linha entre nós para manter a policia nas localidades e executar ordens das autoridades. A força policial pelo modo por que está composta e organisada é insufficiente.

Em muitos lugares a maior parte do serviço policial vem a recahir sobre a Guarda nacional, isto é, sobre aquella parte da Guarda nacional que pela sua pobreza e posição não encontra meios de esquivar-se a um serviço desigual, irregular e frequentemente arbitrario, muitas vezes extremamente vexatorio, e por isso feito de má vontade e mal.

É demais o serviço policial um terrivel instrumento eleitoral para constranger a população desvalida a votar no sentido que convém aos prepotentes do lugar, que ordinariamente são os chefes da Guarda nacional.

Não tive tempo para fazer o cálculo exacto, mas creio que se juntarmos á despeza annual  que se faz com o Exercito, aquella que exigem o Corpo policial da Côrte e o das provincias, a Guarda nacional, etc. veremos subir a somma a a mais de 46 ou 47 mil contos. Veremos mais apparato que serviços reaes. É enorme a despeza e o vexame, e não temos nem Exercito, nem Guarda nacional e nem Policia que mereção esse nome. Temos apparato. Quanto á mim a organisação da força policial nas provincias é viciosa. Em lugar de centralisal-a toda nas Capitaes, conviria localisal-a.

Como se depreende dos parágrafos acima, muita coisa pode ter mudado nesse país, porém não a atração de nossos governantes pelo «apparato» em vez dos «serviços reaes». Tampouco mudou a estrutura das polícias estaduais, esses «exercitozinhos», como as chamou o Visconde do Uruguai. Moldadas a partir do Exército nacional, essas forças tinham mais papel cerimonial, para satisfazer o ego dos presidentes de províncias, do que efetivo. Podem ter ganhado mais poder com o tempo, mas continuam esse ser híbrido entre o exército e o serviço público de segurança. Militares a soldo do estado, mas teoricamente sob o comando do Exército nacional. Um verdadeiro monstro de Frankenstein.

O que o Visconde do Uruguai não diz, possivelmente porque não conseguiu ter esse discernimento, é que o estacionamento da forças policiais nas capitais, e a sua própria falta de efetivos, refletem os resultados da concentração de poder em torno dos «prepotentes dos lugares». Os coronéis da Guarda Nacional, chefes políticos e militares de seus municípios, não desejam uma força policial que não esteja sob seu comando e, por isso, repelem as iniciativas de policiamento mesmo quando necessárias. Em 1847 a província de Minas Gerais tentou estacionar trinta praças no vale do Rio Mucuri, para garantir a segurança das embarcações que utilizavam esta importante hidrovia, por causa da ocorrência de roubos numerosos na região. Os coronéis locais, incomodados com a ingerência provincial, denunciaram a iniciativa ao Conselho de Estado do Império, que eventualmente a julgou inconstitucional (Uruguai, 1865:175).

Nesse ponto o leitor deve estar a se perguntar: como tal força poderia ser decisiva nos graves eventos que meu conto narra se ela não era tolerada pelos coronéis nem para prender piratas fluviais no vale do Rio Mucuri? A resposta é simples: ela seria tolerada se os próprios coronéis a pedissem. Esse é o contexto de minha história: um grupo de coronéis, incomodado com os eventos que formam o pano de fundo do conto, solicita ao presidente da província um destacamento de praças profissionais, para auxiliar seus próprios voluntários civis na tarefa de exterminar o mal. E pronto, eis que temos um belo oficial em seu cavalo branco, portando um uniforme com quepe e dragonas.

A única coisa que me falta é descobrir como seria o uniforme de tais soldados. O conto sai quando eu deslindar isso. Por enquanto, por tudo que li, imagino esses homens vestindo dólmãs azuis com golas pretas e punhos da mesma cor, dragonas douradas nos ombros, calças azuis de brim com risca preta acompanhando o lado externo, botas de cano alto, cintura envolvida por uma faixa verde e amarela e vermelha (cores do brasão imperial). Os soldados usam quepes simples, de bico reto. Os oficiais usam quepes altos com penachos. Quepes sempre azuis, com detalhes em preto ou dourado. O comandante, e talvez algum capitão ou tenente, usa uma faixa diagonal sobre o peito, portanto insígnias de comando. O armamento seriam espingardas para os praças, fuzis para os oficiais. Todos teriam garruchas (pistolas antiquadas). Os praças teriam punhais de lâmina comprida (dois palmos ou mais) e os oficiais teriam espadas cerimoniais. Os voluntários da Guarda nacional seriam sem uniforme e seus oficiais também usariam azul, só que seus uniformes seriam mais elaborados: casacos azuis (não dólmãs) e calças brancas. Polainas em vez de botas. Quepes e dragonas mais elaborados. Imagino interessantíssimas interações entre essas duas forças tão antagônicas e de forças políticas tão díspares. Quem comandaria. Obviamente teria de ser um oficial do Exército, ou os oficiais da Guarda nacional não obedeceriam. Mas este oficial estaria a soldo da província (ganhando menos) e usando um uniforme menos vistoso e de menor prestígio. Acho que isso não vai acabar bem…

Referências

BATITUCCI, Eduardo Cerqueira. “A evolução institucional da Polícia no século XIX: Inglaterra, Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada”. Revista Brasileira de Segurança Pública. Ano 4, número 7, Ago/Set 2010.

LINO, Cássia Renata Scherer. “O Império das Polícias: Federalismo e Estado Unitário no Império do Brasil – 1831-1850. S.l., S.d.

SOUZA, Paulino José Soares de (Visconde do Uruguai). Estudos Práticos Sobre a Administração das Províncias no Brasil, Primeira Parte, Tomo II. Rio de Janeiro: Garnier, 1865.

VELLASCO, Ivan de Andrade. “A Polícia Imperial: Notas Sobre a Construção e a Ação da Força Policial (1831 –1850)”. In: XXIII Simpósio Nacional de História. Londrina:2005.


02
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 11:28link do post | comentar

A Zona da Mata Mineira vive hoje uma crise – humana, econômica e ecológica. Por toda parte onde se vá, encontramos a descaracterização cultural, a perda das tradições orais, o esquecimento do artesanato (e da própria história) e, mais grave que tudo, uma absurda destruição da natureza que, de tão arraigada, deixou de significar apenas a remoção da vegetação nativa e agora está chegando à remoção do próprio solo e das montanhas: percorrendo a região vemos morros pelados, terra aparente, erosões, cursos d'água assoreados. A Zona da Mata deixou de merecer esse nome: hoje é uma região em processo incipiente de desertificação.

“No começo isso aqui era só mato, bicho e índio. Mas nós limpamos a terra e a fizemos produzir.” A frase foi dita, de verdade, por um proprietário de terras da Zona da Mata Mineira, em algum momento nublado de minha infância. Ele certamente não se lembrava de quando chegaram os primeiros colonos, procedentes do norte do estado do Rio de Janeiro ou dos Campos das Vertentes, mas a presença dos três elementos definidores – mato, bicho e índio – perdurou durante décadas depois, permaneceu no imaginário do povo até bem há pouco tempo. E eu sempre achei curioso como a gente de minha terra contava sua história.

Conheci pessoas que diziam que um ou outro de seus antepassados havia sido “índio pego a laço no mato” – uma referência oblíqua a indivíduos sobreviventes dos massacres dos grupos isolados de tapuias, puris, goitacazes e outros povos ameríndios que aqui viviam. Quando os colonos brancos vieram, trazendo seus escravos e seus machados, a presença dos índios foi sendo extirpada, junto com o mato e com os bichos. As três palavras foram sempre empregadas em um tom pejorativo.

“Mato” era, no português coloquial de antigamente, uma palavra carregada de negatividade. Dizer que algo “era mato” era como dizer que era vulgar, que era encontrado em qualquer lugar. O “mato” era, também, o lugar desorganizado, o caos primevo. “Bola para o mato, que o jogo é de campeonato” e “fugir para o mato” são expressões que mencionam esse sentido. Joga-se a bola para onde ela desaparecerá, para retardar o jogo. Foge-se para longe do alcance do braço da lei. No meu tempo de criança ainda corriam histórias de pessoas que fugiam das cidades e vinham “para o mato” trabalhar em terras de coronéis, e que não eram presas se esses não deixassem, porque a polícia não entrava nas propriedades. Remover o “mato” era um processo civilizatório. Lembro-me de como a professora leiga, de minha escolinha rural, me contou, embevecida, como seus antepassados “desbravaram” a terra. “Desbravar” é cognato de “bravio”. Envolve um sentido de “doma”. Desbravar é amansar a terra. É tirar o mato, o bicho e o índio. E eu me lembro até hoje do desenho que fiz, de um colono enxugando o suor da testa, apoiado em seu machado, no meio da lida hercúlea de derrubar árvores em um campo imenso.

Meus antepassados odiavam árvores. Tanto que construíam suas casas em clareiras lisas, os “terreiros”. O tamanho do terreiro estava vinculado ao poder do proprietário. Viver em uma casa isolada no meio de um terreiro imenso era para os coronéis, ou quem tinha dinheiro equivalente. Manter o terreiro limpo envolvia o trabalho de muitos homens, para remover as folhas do mato, arrancar as ervas que teimavam em nascer. O terreiro era também uma proteção natural contra emboscadas. À noite, mesmo sem lua, era mais fácil ver alguém tentando atravessá-lo para atacar a casa. Mais fácil do que seria se em vez de terreiro a casa fosse cercada de árvores.

“Bicho” tinha um sentido ainda mais forte. A palavra “animal” era reservada para as bestas domesticadas: cavalos, mulas, vacas, jumentos, cabras, ovelhas. Pequenos animais domesticados, ou que viviam próximos à casa – como gatos, ratos e lagartixas – eram chamados de “bichos”, assim como os insetos (bicho-de-pé, por exemplo). Os outros eram os “bichos do mato”, vistos como “invasores” e predestinados à caça ou ao mero extermínio porque interferiam na economia. E o colono sabia muito bem que remover o mato era uma maneira eficiente de afastar o bicho, sem ter que matar cada um, correndo risco. Por isso as grandes queimadas, por isso “desbravar” até mesmo encostas de ângulo impossível para a agricultura e a pecuária. Era preciso “limpar” a terra, para que o bicho não ficasse perto. A onça, o quati, o piriá, a jaguatirica, o guará, o guaxinim, o maracajá, o mão pelada, o caboclo d'água, a lontra – todos bichos que, embora fossem bonitos alguns, tinham o infeliz hábito de ver nas galinhas das fazendas uma caça mais gorda e mais fácil do que os magros e velozes pássaros “do mato”.

E o “índio”, por fim, era o “bicho” por excelência. Dotado de uma inteligência “quase humana”, reunia a ferocidade e a matreirice. Por isso o ódio que despertava no colono, de forma espontânea e natural. Se algum era capturado e trazido à fazenda, era para ser simplesmente morto ou escravizado. Poucos comentam, mas os antepassados pegos a laço eram, em geral, mulheres. Estuprar a índia e fazer filhos nela era uma forma de subjugar este animal estranhamente humano que vivia em torno das regiões de colonização incipiente. Mas uma vez trazido à civilização, se “aprendesse a falar” (o que geralmente só acontecia com crianças) e conseguisse aprender uma profissão, o índio não era mais um inimigo, apenas outro elemento subjugado, na estrutura de poder da grande fazenda.

Não podemos esquecer essa mentalidade se quisermos entender o desastre. Os colonos removeram a mata para afastar o bicho e para exterminar o índio. Removeram a mata até mesmo nos lugares onde isso nem era necessário, como encostas de pedreiras com ângulo de sessenta graus. No lugar da mata plantaram monoculturas que não ofereceram cobertura ao solo, as mais recentes são o eucalipto e a brachiaria. O uso frequente da queimada enfraqueceu a terra, salinizou-a, acidificou-a. Queimada proposital, ou queimada acidental, causada por balões, raios, acidentes domésticos ou, em dias excepcionalmente quentes, pedaços de vidro perdidos em moitas secas. Nos lugares mais queimados já não cresce mais nada: a terra está pelada, mostrando sua derme, vermelha ou amarela. Sem cobertura a chuva arranca e arrasta: surgem erosões imensas. A terra solta vai para os riachos, que ficam rasos e largos. As nascentes são sufocadas, riachos secam na estiagem, coisa que nunca se imaginou acontecer por aqui.

E este desastre acontece aos poucos, sem que ninguém proteste. Os jornais não comentam. A televisão não fala. O cadáver vai apodrecendo e é como se ninguém sentisse o cheiro. As pessoas dirigem pelas estradas olhando exclusivamente para o asfalto, sem ver as feias marcas de destruição que perfilam ao redor. Tal como, nas cidades, ignoram os mendigos, ao sair delas ignoram a destruição.

Ninguém quer ver, porque ninguém quer admitir que tem alguma responsabilidade. Não fomos nós, foram nossos pais, avós e bisavós. Nossos netos e bisnetos também dirão que não foram eles, mas que fomos nós – mas nós estaremos mortos então, o que significa que não veremos seus dedos apontados em nossas caras, e não precisaremos ter vergonha da acusação. Por isso podemos ficar inertes, sem nada fazer, sem nada dizer.

Nascemos em uma cultura violenta, uma cultura de genocídio, estupro, desmatamento, queimada e depredação. Matamos ou “pegamos a laço” os índios, arrancamos as árvores, secamos os brejos, queimamos os montes, destruímos os sinais de tudo que houve antes de nós. Tomamos posse da terra através da terraplenagem e da espólio. Esfolamos a terra, tiramos sua pele, para que crescesse outra, nova, nossa. Agora vemos essa pele que nasceu, ressecada, feia, cicatrizada, e não a queremos. Eis o fruto da ira e da cobiça de nossos antepassados. Até quando os desculparemos, até quando nos desculparemos?

Eu poderia também estar quieto, mas me dói cada vez que vejo uma nova erosão, que noto que esqueci outra cantiga que fez parte de minha infância. Dói quando vejo que a colonização continua, sempre em novas vagas, cada uma determinada a suplantar a que havia antes, sob camadas sucessivas de esquecimento. Rompendo a continuidade, para que tenhamos a ilusão de que o mal lá fora não é fruto nosso: queremos ser novos, fingimos ser outros, porque não queremos saber que matamos os bichos, que laçamos os índios e que limpamos o mato.

Eu não estou quieto porque todo escritor é consciência de sua era. Eu sei muito bem que a perfeição, possível ou não, é apenas um ideal vazio, apenas outra forma de não olhar lá para fora e ver o vazio, de árvores, de bichos e de índios, que o nosso passado produziu. Se eu ficasse obcecado apenas em contar, do melhor modo possível, as histórias e os sentimentos que agradam aos outros, eu estaria sendo apenas outro colono, que vive aqui, mas tem a cabeça no Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar. A mentalidade do colono é transitória. Ele não ama a terra, ela não tem família: seu coração está em outro lugar, para onde quer ir ou voltar, quando arrancar da terra o que seja preciso para viver lá como patrão, ele que veio como ladrão. O colono não é um cidadão.

Então eu começo, aos poucos, a falar disso, e de outras coisas que sinto, da raiva que sinto. Posso estar escrevendo mal, mas cada dia que passa tenho mais definida esta sensação de que é preciso vocalizar esta frustração. Falar em nome das árvores, dos bichos e dos índios. Falar em nome do que esta terra foi antes de ter sido reduzida ao que é.


06
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 18:30link do post | comentar

Incluído nos «Livros de Linhagens» da nobreza lusitana está um breve relato sobre a família de Diego Lopes, que inclui uma personagem que ficou célebre: a misteriosa mulher montanhesa com pés de cabra. Tata-se de uma história interessante por envolver profundamente as fantasias populares lusitanas (e estas fantasias, claro, ecoam na nossa própria cultura).


Aspectos culturais

Como se verá, a deficiência física (um pé deformado) era um sinal de deficiência moral. A Dama Pé de Cabra é apresentada como uma espécie de bruxa, e o seu pé deforme é uma grave advertência disso. Algumas histórias mais exageradas não apenas mencionam a deficiência como falam de uma mulher literalmente dotada de pés de cabra — mas nesse caso o casamento não ocorre pelo afeto espontâneo de Diego Lopes pela dama misteriosa, mas pela promessa que ela lhe faz de honras e glórias caso ele a desposasse e lhe fizesse mãe.

Interessante notar que a Dama Pé de Cabra nunca é mencionada por seu nome nas versões mais antigas da história (e esta que transcrevo parece ser a mais antiga). Tampouco sua filha. Afinal, os livros de linhagens se preocupavam apenas em registrar a linhagem patriarcal da nobreza. Nascer mulher era apenas um acidente, e a Dama, mesmo protagonista da história, não leva um nome.

A história está ambientada no tempo da guerra contra os mouros, antes da tomada de Toledo pelos cristãos (que foi em 1085). Isso significa que a história deve ter se passado por volta do século X ou XI (mas, é claro, sabemos que «ter se passado» é boa vontade deste que escreve, o caso é certamente lendário, ou muito modificado para tender a lenda).

Não consigo perceber muitos elementos semelhantes com contos de fada/bruxaria/cavalaria de outras culturas, e nisso reside justamente a originalidade e a beleza deste pequeno texto, que eu em breve modernizarei, para desgraça dos descendentes de Diego Lopes e da memória de Alexandre Herculano (que certamente romanceou o caso bem melhor). A diferença é que a minha Dama Pé de Cabra viverá no círculo mágico da Serra da Estrela, e não sei ainda como lhe apresentarei um Diego Lopes.

Elementos linguísticos

Saltam à vista as semelhanças com o espanhol. Inúmeros vocábulos do português arcaico (século XIII) se escrevem de forma parecida à castelhana: «muy», «ella» etc. Isto se explica porque, de fato, as duas línguas eram muito mais próximas naquela época.

Em seguida temos variações de ortografia de uma mesma palavra, «el foi», «ell lhe disse», «elle lho outorgou». Três formas diferentes do mesmo pronome e nenhum critério aparente de escolha. É algo parecido com o que acontece na escrita de uma pessoa mal alfabetizada, que erra de várias maneiras diferentes uma mesma palavra. Na Idade Média não havia gramáticas e nem academias, as pessoas escreviam como achavam que deviam e só o costume ditava alguma norma.

Você também notará palavras começadas com «cê-cedilha»: «em çima de huuma pena». Isto é porque no português antigo os grupos «ce» e «ci», bem como o «ç» eram lidos ainda com um resquício do «t» latino original: dependendo do dialeto a pronúncia deste «c» poderia ser lido como «ts» ou «θ» (o «theta» grego simboliza um «t» interdental parecido com o «th» inglês em «them»). A palavra «cima», porém, deriva de um original latino que era pronunciado como «k» (e não de um «t»), o que confunde a cabeça do falante e o leva a usar cedilha. Esta confusão secular fez com que a pronúncia do «c» como «ts» se tornasse pedante e desaparecesse por fim. Em espanhol europeu ainda existe esta pronúncia (também do «z») e pronunciar «Cima» como homófono de «sima» é considerado um vício de linguagem.

Os pronomes oblíquos não ficam separados do verbo por hífen, simplesmente porque o hífen ainda não fora inventado. Assim temos «vioa» (viu-a), «namorousse». A duplicação do «s» (nesse e em outros casos, já indica que o «s» intervocálico estava sendo sonorizado, tornando necessário deixar claros os casos em que fosse lido como «s» mesmo.

No primeiro parágrafo nota-se a menção a «muy alto linhagem». Em português medieval, tal como em espanhol ainda hoje, estas palavras terminadas em «agem» eram todas masculinas.

O pronome «que» escrevia-se «ca», o que confere com a tendência portuguesa a pronunciar o «a» átono como um «e». O «Ll» indica o fonema que hoje se escreve com «lh» e o «lh» era outra coisa, porque o «h» entre uma consoante e uma vogal indicava uma breve semivogal. Alguns autores escreviam «mha» em vez de «mia».

Usa-se o «y» em todo lugar onde a pronúncia seja de semivogal, mas também em monossílabos tônicos («ssy»), como se verá no segundo trecho. Isso parece indicar que a letra «y» não era usada necessariamente para indicar a duração menor do fonema «i», mas para indicar que em certos contextos o «i» seria pronunciado diferente. Os dialetos portugueses preservam esse «i» mais fechado (nem sempre nos mesmos contextos do português medieval), mas nós não o temos mais.

Usa-se «h» no começo de algumas palavras começadas com o fonema «u» para indicar que ele deve ser pronunciado como vogal. Ocorre que a letra «u» ainda não fora inventada e se usava a mesma letra para a vogal «u» e para a consoante «v». Quando o «u» foi inventado, criou-se uma maiúscula redonda para combinar com ele, e essa variação redonda ficou sendo a vogal. Inventaram também uma minúscula «quebrada» para combinar com o «V» e esta ficou sendo a consoante. Em português medieval segue-se a convenção latina: usa-se «u» sempre, inclusive quando a pronúncia é de consoante: «ouuyo» é «ouviu». Mas no início da palavra, especialmente maiúscula, usava-se uma variação do «u» bastante parecida com o «v», razão pela qual em alguns parágrafos você verá a letra «v».

Por fim, além da ausência da distinção entre «V» e «u», já explicada, notem que não se usa nenhum «J», nenhum «X», nenhum «W» e raríssimos «Q».

Mas não se usava o «h» inicial nos contextos em que ele era usado em latim. O verbo «auia» (havia) deriva do latim «habere». O emprego do «h» inicial atendia a uma necessidade fonética, não etimológica.

Um caso à parte é a palavra «pee», derivada do latim «pede». Evidentemente a pronúncia desse duplo «ee» tinha um significado. É provável que as palavras com «ee» final fossem pronunciadas de forma análoga ao que fazemos hoje com as terminadas em «oo».

O verbo «ter» ainda não era muito usado. Era muito recente a lembrança de seu sentido de posse material. Em vez disso usava-se mais o verbo «haver». Diego e a misteriosa dama «ouueram» (houveram) dois filhos.

Usa-se muito a conjunção «e», à maneira bíblica, para introduzir novas frases, evitando-se o ponto final. O que era fácil de fazer, pois a pontuação atual e suas regras ainda não fora inventada. Usava-se muito os dois pontos, para indicar que uma sequencia de frases segue um mesmo raciocínio (formando o que hoje nós agrupamos em parágrafos).

Notem bem que os nossos famosos ditongos nasais ainda não existem: «prisom» (em vez de prisão). Tampouco existem quaisquer acentos, somente o til, mas ele tinha um significado diferente. Não eram necessários porque não havia proparoxítonos (já que não havia latinismos e nem helenismos, apenas palavras devidamente moldadas pela boca do povo) e nem oxítonos (a não ser as palavras terminadas em consoante, inclusive verbos terminados em «s», como «tiraras», que deve ser lido «tirarás»).

Voltando ao til, ele não é usado para indicar a nasalização de uma vogal, mas que uma consoante nasal estava em processo de perda. A palavra «alaão» não contém um ditongo, mas um hiato ao final, provocado pela perda do «n» que havia entre o «a» e o «o».

Transcrição do original

Este dom Diego Lopez era muy boo monteyro, e estando huum dia em sa armada e atemdemdo quamdo verria o porco ouuyo cantar muyta alta voz huuma molher em çima de huuma pena: e el foy pera la e vioa seer muy fermosa e muy bem vistida, e namorousse logo della muy fortemente e preguntoulhe quem era: e ella lhe disse que era huuma molher de muito alto linhagem, e ell lhe disse que pois era molher d'alto linhagem que casaria com ella se ella quisesse, ca elle era senhor naquella terra toda: e ella lhe disse que o faria se lhe prometesse que numca sse santificasse, e elle lho outorgou, e ella foisse logo com elle.

E esta dona era muy fermosa e muy bem feita em todo seu corpo saluamdo que auia huum pee forcado como pee de cabra. E viuerom gram tempo e ouueram dous filhos, e huum ouue nome Enheguez Guerra, e a outra foy molher e ouue nome dona. E quando comiam de suum dom Diego Lopez e sa molher assemtaua ell apar de ssy o filho, e ella assemtaua apar de ssy a filha da outra parte.

E huum dia foy elle a seu monte e matou huum porco muy gramde e trouxeo pera sa casa, e poseo ante ssy hu sia comemdo com ssa molher e seus filhos: e lamçarom huum osso da mesa e veerom a pellejar huum alaão e huuma podemga sobrelle em tall maneyra que a podenga trauou ao alaão em a garganta e matouo.

E dom Diego Lopes quamdo esto uyo teueo por millagre e synousse e disse «samta Maria vall, quem vio numca tall cousa!» E ssa molher quamdo o vyo assy sinar lamçou maão na filha e no filho, e dom Diego Lopez trauou do filho e nom lho quis leixar filhar: e ella rrecudio com a filha por huuma freesta do paaço e foysse pera as montanhas em guisa que a nom virom mais nem a filha.

Depois a cabo de tempo foy este dom Diego Lopez a fazer mall aos mouros, e premderomno e leuaromno pera Tolledo preso. E a seu filho Enheguez Guerra pesaua muito de ssa prisom, e veo fallar com os da terra per que maneyra o poderiam auer fora da prisom. E elles disserom que nom sabiam maneyra por que o podessem aver, saluamdo sse fosse aas montanhas e achasse sa madre, e que ella lhe daria como o tirasse. E ell foy alaa soo em çima de seu cauallo, e achoua em çima de huuma pena: e ella lhe disse «filho Enheguez Guerra, vem a mym ca bem sey eu ao que ueens:» e ell foy pera ella e ella lhe disse «veens a preguntar como tiraras teu padre da prisom.» Emtom chamou huum cauallo que amdaua solto pello momte que avia nome Pardallo e chamouo per seu nome: e ella meteo huum freo ao cauallo que tiinha, e disselhe que nom fezesse força pollo dessellar nem pollo desemfrear nem por lhe dar de comer nem de beuer nem de ferrar: e disselhe que este cauallo lhe duraria em toda sa vida, e que nunca emtraria em lide que nom vemçesse delle. E disselhe que caualgasse em elle e que o poria em Tolledo ante a porta hu jazia seu padre logo em esse dia, e que ante a porta hu o caualo o posesse que alli deçesse e que acharia seu padre estar em huum curral, e que o filhasse pella maão e fezesse que queria fallar com elle, que o fosse tirando comtra a porta hu estaua ho cauallo, e que desque alli fosse que cauallgasse em o cauallo e que posesse seu padre ante ssy e que ante noite seria em sa terra com seu padre: e assy foy. E depois a cabo de tempo morreo dom Diego Lopez e ficou a terra a seu filho dom Enheguez Guerra.

Aspectos léxicos

Conforme prometido, vamos às palavras de sentido peculiar. «Monteyro» significa caçador. Deriva de «monte», porque já na Idade Média as terras baixas estavam ocupadas pela agricultura e as florestas estavam cada vez mais reduzidas às regiões montanhosas. «Atemder» significa «esperar». A «pena» sobre a qual a mulher estava sentada a cantar é uma que você não gostaria que caísse sobre sua cabeça. É cognata do espanhol «peña», que significa «rochedo». Não pensem que dom Diego desrespeitou a moça: «namorarse» significa apenas afeiçoar-se, é o antepassado de «enamorar-se». «Pois» significa «já que» ou «uma vez que», no contexto empregado.

«Alaão» e «podemga» são raças de cães. Era costume, mesmo entre os nobres, comer com cães para jogar-lhes os ossos e, eventualmente, deixar que lambessem a gordura de suas mãos. O inesperado do acontecimento é que o podengo, um cão de caça muito manso, apesar de arisco, tenha ataco e matado um cão de guarda «alano» O verbo «filhar» (cognato do nosso atual «filar») quer dizer «tomar» ou «levar» (que é o que os filadores fazem com o que nos filam, ou «filham»). «Recudir» é «recuar» e «freesta» (do latim «fenestra») é «janela». Imagino que você já saiba que «paço» é a forma popular de «palácio» (esta palavra foi reinjetada no português depois, como um novo aportuguesamento erudito de «palatium»). «Em guisa que» significa «de modo que».

«Pesar» significa «ficar triste». O nome do cavalo significa «pardal» e a misteriosa palavra «hu» significa «onde». Por fim, não imaginemos que os mouros mantinham dom Diego em um «curral» com o sentido que hoje a palavra tem, mas sim meramente em um cercado ou paliçada (esqueçam essa história de masmorra, castelos eram caros de construir e a maioria das prisões medievais eram simples paliçadas). Dom Diego «jazia» lá mas não estava morto, visto que a palavra não tinha ainda o sentido fúnebre de hoje.

Uma observação importante diz respeito aos sobrenomes. Notem que eles não existiam. O pai se chama «Diego Lopes» (provavelmente porque seu pai era um tal Lopo), mas o filho se chama «Enheguez Guerra» (provavelmente por ser famoso no combate). Os «sobrenomes» medievais são apelidos, não tem conotação familiar ainda. As famílias nobres ainda não haviam adotado o costume de identificar-se pelo nome da vila ou feudo onde tinham propriedade, e as famílias plebeias não tinham grande necessidade de identificar-se.

Conclusão

A análise deste texto nos mostra que, se não tivesse acontecido a contaminação etimológica ocorrida entre os séculos XVII e XIX e nem o influxo de latinismos eruditos e helenismos científicos, o português seria uma língua dominada por proparoxítonos, com poucos acentos gráficos, relativamente simples de se escrever e muito mais bonita.


08
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 07:45link do post | comentar

Neste Dia Internacional da Mulher, reservo este post para fazer uma homenagem a uma senhora alemã chamada Bertha, que causou uma tremenda comoção em seu país no ano de 1888. Bertha era a mulher do inventor Karl Benz, construtor de alguns dos primeiros automóveis, entre eles o primeiro movido por motor à explosão, chamado “Benz Patent Motorwagen”.

Esta senhora, em uma época em que ainda era cientificamente aceito que a mulher era menos inteligente e menos dotada de iniciativa que o homem, praticou um ato que é impressionante, quando visto em perspectiva.

No dia 5 de agosto de 1888 ela pegou o veículo construído pelo marido e viajou com os dois filhos pequenos, de Manheim, onde ficava a fábrica de Benz, a Pforzheim, onde residiam seus pais.

Não foi uma viagem fácil. O veículo tinha três rodas e era instável em estradas esburacadas. Tinha apenas uma marcha, que não era bastante forte para subir os morros mais íngremes levando mais de um passageiro. As pessoas por toda parte fugiam amedrontadas com o barulho e a fumaça produzidos pelo veículo e algumas foram agressivas.

Houve problemas mecânicos também. O motor ainda não estava plenamente testado e teve vários defeitos no meio do caminho, que a própria Senhora Benz teve de consertar, já que não havia mecânicos naquela época. O único defeito que ela não consertou pessoalmente foi a ruptura da corrente de tração, que foi solucionada por um ferreiro, que soldou a peça. Entre os defeitos que ela mesma consertou, um entupimento da válvula de alimentação de combustível, que ela solucionou usando um grampo de cabelo, e o desgaste prematuro das lonas de freio, que ela trocou usando um par reserva trazido de casa.

Outro problema foi conseguir combustível, já que o tanque do veículo era muito pequeno e o motor, pouco econômico. Ela resolveu isto comprando os ingredientes em empórios de produtos químicos e fazendo ela mesma a mistura, seguindo a receita que vira o marido tantas vezes preparar.

A viagem da Senhora Benz foi a primeira viagem da História feita em um veículo movido por motor a explosão. Antes dela ninguém andar mais do que algumas centenas de metros, sempre em recintos fechados. E não foi qualquer viagem, foram 106 quilômetros (mais ou menos dois terços da distância do Rio de Janeiro a Juiz de Fora).

Por incrível que pareça, ela não fez isso por mero capricho: ela tinha um objetivo: além de visitar os pais, divulgar a invenção do marido.

Nisso ela foi extremamente bem sucedida: o escândalo que ela causou, as notícias de jornal, tudo contribuiu para popularizar o conceito de automóvel. Bertha Benz não foi a primeira mulher motorista, foi a primeira motorista.


04
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 21:56link do post | comentar

Um curto ensaio (de apenas 13 páginas) contendo uma série de ideias absolutamente desconexas, irrelevantes e ressentidas sobre porque considero Academias em geral como uma perda de tempo. Mas se você tiver a pachorra de ler talvez descubra que concorda comigo.

Introdução

Houve uma época, há não muitos séculos, em que o termo “academia” tinha um prestígio inabalável. Era, também, um tempo no qual as pessoas se sentiam muito identificadas com a monarquia, por razões as mais diversas, principalmente religiosas.1 Eram tempos brutos, nos quais a fogueira ou os instrumentos de tortura (quando não ambos) eram o destino de pessoas que não pensavam de acordo com a regra dominante. Eram tempos nos quais uma pessoa poderia passar a vida inteira em uma prisão para doentes mentais2 apenas por ter um comportamento ligeiramente divergente. A menos, é claro, que tivesse dinheiro e títulos de nobreza, nesse caso você poderia degolar mocinhas virgens para banhar-se em sangue na busca da eterna juventude durante décadas antes de alguém se incomodar em lhe condenar a uma “prisão domiciliar”.

Não quero, com isso, sugerir que acadêmicos são sanguinários, mas que a academia é um fóssil de uma época cujo fim, iniciado penosamente com a Revolução Francesa de 1789, é um dos grandes progressos da História. Este texto pretende explicar porque eu penso assim, e convencê-lo, leitor, a pensar de forma semelhante.

Origem do Termo

Para quem não sabe — e é possível que muita gente não saiba — a palavra “academia” remonta aos antigos gregos. Deriva do nome de um dos montes de Atenas, o Akademos, que, por sua vez, tinha sido transformado em um bosque sagrado, plantado em homenagem à deusa.3 Mas esta academia original era apenas o apelativo informal para o conjunto dos filósofos que se reuniam para discutir sophia à sombra de árvores célebres. Esta academia original seria algo inócuo, quase benigno.

Ocorre que esta palavra passou à posteridade como lembrança de nomes ilustres que por lá discutiram: Sócrates, Platão e Aristóteles entre eles, gigantes que deixaram indeléveis marcas na cultura humana por milênios a seguir. Era questão de tempo que alguém, interessado em comparar-se com S.P.&A. tivesse a brilhante ideia de chamar ao seu grupo local de discussões pelo mesmo nome antigo, mesmo que não houvesse o envolvimento de nenhum bosque, nenhuma deusa e nenhuma sophia.

É sintomático que o uso do termo tenha sido reconsiderado, quase um milênio depois que o zelo cristão dispersou a academia original, por um tirano florentino, legítimo representante dos ilustres regimes renascentistas italianos que, vistos por nossos olhos democráticos, seria o equivalente a um Muammar Kadhafi, um Benito Mussolini ou um ditador de republiqueta latinoamericana: militar, cruel e obcecado pelo poder. O que diferenciava os tiranetes florentinos dos ditadores do século XX era uma preocupação com a cultura: afinal, vivia-se numa época em que ser culto era chique, ao contrário de hoje, em que uma frase como “nemli e nemlerey” se torna um meme nas redes sociais. Nada era mais chique para um tiranete renascentista do que ter seu grego domesticado ensinando filosofia para a juventude. Algo assim como os milionários chineses devem sentir com seus ingleses de estimação ensinando língua e modos ocidentais aos estudantes: os náufragos de uma grande civilização decaída servindo de semente para a grande civilização nascente, ainda chamada de bárbara.

Academias e Absolutismo

Se a motivação original dos tiranetes florentinos ao criar “academias” fora dar um lustro de cultura nas suas armaduras sujas do sangue dos cidadãos,4 da vez seguinte que a ideia entrou em uso a preocupação com a cultura era menor, mas havia uma necessidade maior de definir a coisa. Muito depois que fossem esquecidas as academias renascentistas, com seus característicos nomes engraçados,5 os monarcas europeus se apropriaram da ideia. As primeira academias formais surgiram onde os monarcas asseguraram o poder absoluto ou onde os tiranetes conseguiram estabilizar-se no poder. Contrariamente às academias informais, com seus nomes tolos, estas tinham nomes pomposos e oficialescos.

Em Florença, Médici fundaram a Academia das Belas Artes de Florença, responsável, entre outras coisas, por hoje ainda chamarmos as artes visuais de “Belas Artes” e não simplesmente de “Artes Visuais”. Esta academia pretendeu (e conseguiu) substituir as inúmeras guildas de artistas e artesãos herdadas da noite dos tempos e unificar o ensino de pintura, escultura e outras artes ditas “belas”. Desta “unificação” surgiu um estilo padronizado, logo chamado de “acadêmico”, e cuja grande contribuição à história da arte pode ser medida pelo fato de ele ter surgido já no fim do Renascimento, ou de o fim do Renascimento ter já começado tão logo ele surgiu. A academia florentina teve uma acolhida tão boa (não necessariamente entre os artistas e artesãos anteriormente estabelecidos em Florença) que logo outros tiranos italianos (entre eles o Papa) trataram de criar suas academias. Pipocaram instituições semelhantes por toda a Bota: em Bolonha, em Siena, em Roma, em Nápoles. E com a difusão de tanta academia, o velho Renascimento começou a transformar-se em outra coisa, que hoje é chamada, retrospectivamente, de “barroco”.6

A Função da Academia no Contexto Absolutista

Obviamente os reis não fundavam academias apenas porque precisavam de um “ar culto”. A partir da segunda metade do século XVI a situação política já tinha mudado tanto que os reis não mais precisavam de subterfúgios. Mesmo os condottieri italianos haviam adquirido um ar de nobreza, que inicialmente não tinham, e podiam contar com legiões de imitadores e puxa-sacos. Confortavelmente sentados nos seus tronos, ao menos em comparação com a precariedade do poder de seus antecessores e antepassados, esses líderes puderam estabelecer estruturas para exercício de seu poder.

E as academias surgem nesse contexto: a função principal delas passou a ser, desde então, a de controlar a produção e a difusão do que se convencionou a chamar de “cultura”. Em suma: uma Academia é apenas um nome pomposo para os departamentos de censura dos estados absolutistas europeus. Senão, vejamos:

Uma das funções da academia era justamente a de centralizar a educação artística. A Academia de Belas Artes de Florença foi criada justamente para substituir todas as guildas de artistas e artesãos da cidade, colocando a formação dos futuros artistas integralmente sob a égide dos Médici, tiranos hereditários da cidade a ponto de se “enobrecerem”. Ein Volk, Ein Reich, Ein Akademie. Isto se consolidou com o surgimento das chamadas “Academias Nacionais”, das quais a Académie Française foi o modelo.

Outra importante função era manter a tal da “tradição”. O ensino de artes nas academias era baseado na cópia dos modelos antigos e o aluno só estava autorizado a desenhar suas próprias ideias depois de atingir certo grau de perfeccionismo na imitação dos mestres do passado, altura na qual já tinham, provavelmente, substituído suas ideias originais pelos ideais infundidos pela academia.

Por fim, uma academia também funcionava como instrumento para controlar quem estava autorizado a “fazer arte”. Sem um diploma da academia o sujeito não era considerado um artista formado e o seu trabalho ficava relegado a uma segunda categoria: ganhava menos, era menos prestigiado e não tinha nenhuma proteção se, de repente, alguém resolvesse se ofender com o conteúdo. Em Portugal, no fim do século XVIII, ser membro de uma academia, a Arcádia Lusitana, adiou consideravelmente a perseguição ao poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage, cujo sobrenome passou à História como sinônimo de palavrão.

Da conjunção destes três objetivos, resultava que a Academia desestimulava a originalidade, propiciava a estagnação e dificultava o acesso do povo em geral à arte. Ao mesmo tempo, era um instrumento eficaz de neutralização da arte como um catalisador do sentimento nacional: os governos criavam academias justamente pensando em utilizar os nomes dos grandes artistas para legitimar o regime. Com o tempo a condição de “acadêmico” passou a ser praticamente sinônima de alguém comprometido com o sistema, ou por ele cooptado.

No caso específico da literatura, a academia sempre pretendeu estabelecer um padrão linguístico de prestígio, não apenas opondo-se a inovações linguísticas mas também procurando deliberadamente arcaizar o idioma, como aconteceu com a língua portuguesa, que, sob a influência do academicismo, progressivamente adotou um sistema ortográfico etimológico que llevouse mais de dous seculos para revogarse, a pesar de toda a difficuldade que offerecia aos estudantes, com innumeras lettras dobradas, digraphos inexplicaveis, e variantes orthographicas esdrúxulas.7

O Ataque Modernista ao Academicismo

Entre nós existe um marco definido de reação ao academicismo: a Semana de Arte Moderna de 1922. Em outros países o marco é menos definitivo e a transição foi mais lenta. Para nós fica parecendo que, da noite para o dia, alguns jovens iluminados resolveram atacar o status quo, criando do nada uma nova arte, livre das amarras do famigerado academicismo. A verdade é menos romântica, os ataques vinham sendo arquitetados desde a Revolução Francesa e àquela altura, na maior parte do mundo, o quo já não tinha mais nenhum status, como diria Millôr Fernandes.

A reação ao academicismo se deu, inicialmente, pela criação de academias rivais, como a Academia Prussiana, que se impôs a tarefa de fazer a independência cultural da Prússia em relação ao Sacro Império Romano-Germânico, mas com o tempo começou-se a perceber que o ideal nacional da Academia era diligentemente contrário às culturas minoritárias, o que era particularmente grave nos estados multiculturais, como a Espanha, a Áustria-Hungria e o Reino Unido. Na Espanha, por exemplo, o academicismo redundou em obscurantismo e em fascismo, chegando alguns acadêmicos a endossarem a supressão de todas as culturas não-castelhanas do país, ainda que tivessem, como no caso do catalão e do galego, uma tradição mais antiga e venerável que a do próprio castelhano e que se reflete até mesmo na confusão entre “castelhano” (a língua do Reino de Castela) e “espanhol” (que seria a língua do reino unificado da Espanha, que incluía Castela, Aragão, Leão, Astúrias, Galícia e Navarra).

O que aconteceu, de fato, foi que, no Brasil, tal como por vezes anteriores, o ingresso na modernidade somente ocorreu depois de esgotadas todas as demais popularidades. Somente entramos no Romantismo a partir da décade de 1830, meio século depois de países como Inglaterra e Alemanha o inventarem. Somente abolimos inteiramente a escravidão em 1889, e depois de nós só faltaram os países muçulmanos (tal como nós, muito a contragosto) e as colônias europeias na África (incluindo o notável exemplo sul-africano). Da mesma forma, somente contestamos o academicismo mais de sessenta anos depois do surgimento das primeiras correntes artísticas francesas (impressionismo, pontilhismo, simbolismo).

Pior ainda: escolhemos aderir ao modernismo justamente a reboque de sua versão mais degenerada, o futurismo italiano. Ninguém estranhe haver tantos sobrenomes assim entre os modernistas de 22: Del Picchia, Malfatti, Bo Bardi etc. Não que o futurismo italiano fosse artisticamente nulo, mas nós tivéramos sessenta anos de ideais artísticos antecipadores do modernismo, tínhamos que pular no barco justamente com os futuristas, adoradores do fascismo. Faz pensar que não houve, de fato, revolução alguma em 1922 (tanto que Del Picchia acabou eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1943, enquanto outros modernistas de muito melhor quilate, mas não ligados ao futurismo ou à Semana de Arte Moderna, como Drummond e Quintana, jamais puseram os pés naquela Casa).

A Continuidade como Característica dos Movimentos Políticos e Culturais Brasileiros

Nada do que foi escrito, dito, feito, pintado ou esculpido a partir de 1922 conseguiu efetivamente mudar a relação de poder no cenário cultural brasileiro. Algumas coisas mudam apenas para que possa tudo continuar igual, como na célebre frase de Malaparte. Os modernistas fizeram e aconteceram, mas foram sendo encampados pelo academicismo à medida em que foram ficando velhinhos e os velhinhos de 1922, ofendidos então, foram morrendo.

Você pode achar que estou sendo excessivamente cruel com os modernistas de 1922 (os quais, confesso, nunca exatamente admirei, por razões que somente muito tardiamente eu consegui articular), mas pare um pouco e pense sobre o contexto em que tudo aconteceu: será mesmo que foi da noite para o dia que um grupo de intrépidos jovens paulistanos sacou do bolso a ideia mirabolante de demolir o academicismo e forjar uma arte genuinamente nacional? Dificilmente, ainda que alguns livros de História possam dizer isso. Sabemos, e sabemos muito bem, que todos os eventos históricos são produto de tensões acumuladas, de condições preexistentes, de enganos e acertos de seus atores. Imaginar que a Semana de 1922 tenha sido uma súbita ruptura é algo ingênuo demais, até para mim que sou tão ingênuo.

Uma característica da História do Brasil é que, até hoje, não houve em momento algum qualquer revolta contra o status quo que fosse ao mesmo tempo inequívoca e vencedora. As vitórias obtidas são o produto apenas de movimentos toleráveis, e estes assim se tornam pelo recuo em seus ideais, pela cooptação do status quo ou então por se tornarem “póstumos” às mudanças que deveriam causar. Vê-se isso de uma forma muito evidente na maneira como certas mudanças culturais aconteceram no país.

A independência brasileira, por exemplo, não aconteceu como consequência de nenhum dos vários processos de ruptura que foram tentados, entre os quais dois de respeitável inspiração (as Conjurações de Minas Gerais e Bahia), teve que esperar até que as elites brasileiras cooptassem o processo, mais para livrar-se do entrave de uma metrópole que se mostrara frágil demais até para extorquir os impostos da colônia.

Da mesma forma, a superação da hegemonia portuguesa na cultura só ocorreu de forma gradual. Na educação, as faculdades nacionais foram sendo criadas devagar, provavelmente para não se por a perder o prestígio dos diplomas de Coimbra ostentados pela elite brasileira. Na literatura, o modelo acadêmico herdado de Portugal (e que lá já se encontrava superado) só foi encontrar contestação a partir da década de 1830, quando um honorável político (mas sofrível poeta) chamado Domingos José Gonçalves de Magalhães8 resolveu beijar a viúva e decretar o nascimento de uma nova literatura.

A tendência nacional era a de sermos mais conservadores do que os portugueses em quase tudo. Enquanto eles já abraçavam o romantismo na década de 1820 e os ingleses e alemães já o brandiam desde antes de 1810, nós só fomos fazê-lo a partir de 1836. Enquanto os portugueses já superavam a hedionda ortografia etimológica em 1910, nós ainda nos mantivemos aferrados a ela até 1946. É verdade que a República Portuguesa se inspirou grandemente na brasileira, inclusive na escolha da efígie que a representou na moeda e nos selos, e que nada mais era que a mesma Marianne dos franceses. Porém, quando no Brasil um homem como Olavo Bilac ainda detinha notável influência e o realismo-parnasianismo tinha força suficiente para sufocar todo um movimento literário renovador (o simbolismo), fazendo-o dissover-se numa mistura acéfala de estilos, transicional entre o antigo e o novo, e que entre nós foi chamada de “pré-modernismo” (fenômeno único na literatura mundial), enquanto isso Portugal já estava nas “dores do parto” da modernidade e a década de 1910 já via surgir as primeiras revistas modernistas.

A Semana de 1922 como um Movimento Reacionário de Direita

O que estou querendo dizer aqui é que 1922 não foi ruptura alguma: o parnasianismo caiu de podre, tanto quanto o classicismo caíra em 1836. Nada tendo de relevante a acrescentar,9 o parnasianismo se contentava em sufocar o que poderia surgir como novidade, tornando-se uma influência nefasta sobre nossa cultura.10 Sobre os ombros de seus próceres, inclusive Olavo Bilac, repousa responsabilidade indireta pelas mortes prematuras de Augusto dos Anjos (“não se perde grande coisa”, disse Bilac celebremente) e Lima Barreto (acometido de depressão no fim da vida), por exemplo, e pelas dificuldades enfrentadas por Monteiro Lobato, até ser vingado pelos modernistas, a quem ele, de forma paradoxal, tanto criticou. Desta forma, quando a Semana de 1922 aconteceu, dificilmente uma pessoa não comprometida com o status quo cultural poderia ver nela uma ruptura súbita. Vozes se antecipavam a essa ruptura desde pelo menos 1909, mas eram caladas pela atuação e pelo prestígio de cadáveres literários insepultos, como Raimundo Correia e Olavo Bilac. Em 1922 estas vozes encontraram patrocínio entre as elites paulistas, que tinham suas razões (até políticas) para se insurgirem contra o Rio de Janeiro, sua Academia e sua pretensão de hegemonia.

A Semana de 1922 aconteceu com pelo menos sessenta de atraso, se você quiser que ela tenha sido revolucionária. Aconteceu com pelo menos dez anos de atraso, se você quiser que ela tenha sido contemporânea aos fatos relevantes da literatura internacional. Mas aconteceu bem a tempo de aderir justamente ao futurismo, a forma radical e extremista de estética literária, originária da Itália, principalmente, que ansiava e celebrava o Fascismo. A Semana aconteceu no mesmo ano da Marcha Sobre Roma (ainda que sete meses antes), sintonizando-se com o momento em que Mussolini, já então político relevante e carismático, conseguiu acumular influência suficiente para chegar ao poder. E entre os grandes nomes de 1922 você não deixará de encontrar vários sobrenomes italianos, como os de Menotti del Picchia, Anita Malfatti, Victor Brecheret e Di Cavalcanti. É verdade que já havia alguns movimentos e eventos não acadêmicos desde 1916, e Manuel Bandeira já estreara o verso livre em 1919, no seu Carnaval, mas nada disso era motivo de escândalo: mais uma vez a mudança se fazia gradualmente, e com atraso. A Semana pretendeu romper, chutar o balde, abrir uma clareira na mata fechada do obscurantismo. Mas conseguiu?

Em primeiro lugar precisamos pensar em quem estava nessa vanguarda, inspirada grandemente em futurismo. Alguns dos mais significativos nomes de nossa literatura modernista notavelmente não estavam, ainda que apenas por causa de sua tuberculose. Mas Graça Aranha lá estava. Monteiro Lobato, uma das personalidades mais importantes da cultura brasileira pós-parnasiana não aderiu, mas o acadêmico Graça Aranha estava lá. Sem a bênção de um acadêmico, e as portas franqueadas do Theatro Municipal, a Semana não teria existido, ou não teria atingido seu objetivo. Portanto, analisando o contexto, percebe-se claramente que ela foi um de artistas integrantes da elite econômica emergente, de um estado economicamente emergente (que pretendia tomar do Rio a hegemonia cultural) e não necessariamente à revelia da Academia, embora tenha havido alguma animosidade entre os mais radicais de ambas as partes e certas mudanças (como a da orthographia) tivessem de esperar até morrer a maior parte dos fundadores da ABL (o mais resistente deles durou até 1963).

A Academia Como Instrumento Político da Direita

A Semana de 1922 ficou longe de ser a lápide da influência classicista no Brasil, em parte graças à inacreditável sobrevivência do academicismo no imaginário popular, através de um “pós-parnasianismo”11 encontrado na produção de poetas populares, muitos de orientação mística-católica. Mas marcou definitivamente o início de uma “troca de guarda” na literatura nacional, concluída por dois fatos relevantes: a eleição de Getúlio Vargas em 1941, marcando definitivamente a politização fascista da Casa, e a adoção da Reforma Ortográfica, sacramentada pelo modestamente intitulado “Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa”, através do qual a Academia, já então abrigando nomes notáveis do Modernismo, como Menotti del Picchia e Manuel Bandeira, consolidou sua ascendência sobre a língua nacional.

E assim, “nas calhas de roda”, seguiu girando, “a entreter a razão”, essa estrutura conservadora (por princípio e por definição), que se pinta, qual camaleão, com as cores sucessivas do progresso, de forma a sobreviver, mantendo-se relevante. Eleger membro o próprio presidente da República foi uma jogada de mestre, que infelizmente se revelou temerária com a redemocratização. Mas não faltaram nas décadas seguintes provas de fidelidade da Academia aos seus objetivos originais e aos seus verdadeiros patrões: os donos do poder.

Esta é a única conclusão a que se pode chegar, quando analisamos que vários políticos da direita. Como o próprio Vargas, e posteriormente Aurélio de Lyra Tavares (quão conveniente eleger um general de exército recém-saído da Junta Militar!). Como José Sarney e Marco Maciel. Mas não procure nela qualquer nome que em qualquer momento tenha sido de esquerda, flertado com movimentos populares ou mesmo simplesmente se oposto de alguma forma (qualquer forma) ao status quo.

A Academia tem entre seus princípios abrigar apenas escritores:

O estatuto da Academia Brasileira de Letras estabelece que para alguém candidatar-se é preciso ser brasileiro nato e ter publicado, em qualquer gênero da literatura, obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livros de valor literário.

Mas isto não impede que ela tenha tido ou tenha em seus quadros um cineasta que jamais escreveu um livro (Nélson Pereira dos Santos), um político que somente escreveu discursos (Marco Maciel), um político autor de obras universalmente tidas como horríveis (José Sarney), um cirurgião plástico que somente publicou obras de cunho técnico (Ivo Pitanguy), um ditador fascistóide que não escrevia livros (Getúlio Vargas), um jornalista que somente escreveu sozinho um livro e um prestidigitador literário que sequer tem o domínio pleno da norma culta (não nomeados por aconselhamento jurídico). Uma análise mais profunda revelará vários nomes irrelevantes em seus quadros. Porém, conhece-se mais o caráter de uma instituição sabendo quem nela nunca esteve. Por isso, em vez de enumerar aqueles que em minha opinião lá não mereciam estar, prefiro enumerar aqueles que, na opinião da Academia, lá não mereceram figurar. E deixo ao leitor o julgamento:

  • Carlos Drummond de Andrade
  • Mário Quintana
  • Vinícius de Moraes
  • Adélia Prado
  • Rubem Braga
  • Paulo Mendes Campos
  • Mário de Andrade
  • João Simões Lopes Neto
  • Monteiro Lobato
  • Júlio César de Mello e Souza (Malba Tahan)
  • Lúcia Machado de Almeida
  • Fernando Sabino
  • Pedro Bloch
  • Murilo Rubião
  • Caio Prado Júnior
  • Gilberto Freyre
  • Florestan Fernandes
  • Maria Clara Machado
  • Oswald de Andrade
  • Bruno Tolentino
  • Cecília Meirelles
  • Henriqueta Lisboa
  • Murilo Mendes
  • Clarice Lispector
  • Graciliano Ramos
  • Lúcio Cardoso
  • Roberto Drummond
  • Pedro Nava
  • Wilson Martins

Não considero que todos eles são contestadores do sistema, mas tenho absoluta certeza de que qualquer dos citados estaria acima, literariamente falando, de um grande número de nomes que foram eleitos para a ABL. Considero, por exemplo, um acinte que a Academia não tenha nunca eleito Graciliano, um dos maiores prosadores da língua portuguesa, mas tenha aceito (sem sequer ter escrito livros) o presidente da república que o mandou prender e torturar (Getúlio Vargas, ditador fascistóide e nome de praça ou avenida em quase toda cidade do Brasil).

No Fim das Contas

Todos estes tortuosos raciocínios objetivavam concluir que, no seu todo, a Academia é uma instituição não apenas conservadora (na maior parte do tempo) mas retrógrada (algumas vezes). Que se caracteriza por manter a influência de grandes escritores depois que eles a perderam no contexto real da literatura, tornando-os guardiões de alguma coisa a que chamam de tradição literária, mas que, na maioria das vezes, confere tal posição a escritores medíocres e até a não escritores — e não por falta de opções, porque, não custa lembrar, Getúlio entrou no lugar de Graciliano, o que seria mais ou menos como indenizar o perpetrador do crime e condenar a vítima.

Muitos escritores sonham com a legitimação que ela pode conferir, em parte porque ela ainda detém certo poder e prestígio, mas se tal legitimação um dia acontecer com a minha obra, terei o dissabor de passar o resto de meus dias meditando se, de fato, a obra que sonhei fazer contestadora se revelou reacionária ou se, em algum momento, transitei da esquerda para a direita sem perceber.

Porque não acredito que a Academia transite na direção contrária.

1 Aprendi, a duras penas, que não se deve mencionar religião em um artigo a não ser quando religião for o tema principal deste, pois fanáticos idiotas sempre aparecem para desvirtuar a discussão com pregações ou ameaças de inferno. Mas, como esse blog é um espaço pessoal meu, reservo-me ao direito de somente aceitar comentários que se atenham ao assunto. Portanto, se você for terrivelmente ofendido por algo que eu diga, sugiro que faça um artigo em seu próprio blog (de preferência com um link para cá…) e direcione para lá toda a diatribe.

2 Ainda que com desculpas nobres, era isso, na prática, o que se fazia com quem era tachado de louco: botar a ferros e esperar que Deus matasse, de doença ou de idade.

3 Troféu “joinha” para quem perguntou “que deusa?”.

4Além da atratividade de ter um grego de plantão, que era o equivalente renascentista a ter um personal assistant.

5 Uma breve lista de nomes de academias surgidas nesta época: Academia dos Intrusos, Academia dos Vinhateiros, Academia da Virtude, Academia dos Intrépidos, Academia dos Iluminados, Academia dos Animados, Academia das Noites Vaticanas, Academia dos Ordenados, Academia dos Fantásticos, Academia dos Imóveis, Academia dos Diabos, Academia dos Aborígines, Academia dos Infecundos, Academia dos Ocultos, Academia dos Incultos e Academia dos Revoltados.

6 Se algum dia você tiver acesso a uma máquina do tempo e retornar à Europa entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século XVIII, jamais questione os artistas (e seus patrões) quanto ao que tinham como “fato”: a continuidade do renascimento. Não importava a mudança da orientação, de humanismo para misticismo, de sobriedade para ornamentação, de substância para forma, de leveza para riqueza etc. Duvidar do caráter renascentista do mais barroco dos barrocos era como não chamar de “Revolução” o nosso putsch se você voltasse a 1967 e estivesse diante de um milico.

7 Não pretendo que este breve trecho esteja correto segundo a ortografia etimológica, pré-1910, apenas escrevi desta forma para dar uma ideia geral de como teríamos que escrever se as academias nunca tivessem sido desafiadas.

8 Talvez por não conseguir nenhuma crítica favorável aos seus poemas de inspiração classicista.

9 É fato notável que todas as obras literárias relevantes produzidas no Brasil entre a virada do século e a Semana de Arte Moderna tenham sido produzidas exatamente por aqueles que o academicismo realista-parnasiano mais combatia: os simbolistas (“decadentes”, “loucos”) e os pré-modernos. Homens como Lima Barreto, Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa e Pedro Kilkerry poderiam ter dado uma contribuição muito maior à cultura nacional se não tivessem enfrentado em vida a pilha de preconceitos de classe e de cor que se somava ao preconceito linguístico e cultural da academia, que via com desconfiança sua literatura espontânea e sintonizada com o povo.

10Boa parte da culpa pelos trinta e seis anos de atraso que o Brasil levou, com grande prejuízo de nossa educação, para aderir à reforma ortográfica deve ser atribuída à forte influência da Academia, que contava com nomes como Olavo Bilac (m. 1918), Alberto de Oliveira (m. 1937), Afonso “Porque me Ufano de meu País” Celso (m. 1938), Carlos de Laet (m. 1925), Luís Murat (m. 1920), Filinto de Almeida (m. 1945), Carlos de Azeredo (m. 1963) e Clóvis Bevilacqua (m. 1944).

11Na verdade o termo “neo-parnasianismo” (que não é de uso corrente ou frequente em crítica literária) é mais usado para a segunda geração modernista, que buscou recuperar o apuro formal, ou mais propriamente usado para os autores da segunda geração realista-parnasiana (atuantes nas primeiras duas décadas do século XX), por isso aqui preferi o termo “pós-parnasianos”, no sentido dos praticantes tardios desta escola literária, numa época em que ela perdera a hegemonia. No caso destes autores, a permanência de tal influência reflete, geralmente, um atraso em relação às mudanças sociais e culturais pelas quais o Brasil passava.


10
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 08:30link do post | comentar | ver comentários (1)

Se as editoras conseguirem o que querem, implantarão suas “equipes cocriadoras” e tentarão amestrar todo jovem autor que as procurar querendo divulgação. Muitos talentos serão castrados. Para os corajosos, como a porta da rua é serventia da casa, restarão os desertos da independência. Meu Deus, a horrível liberdade.

Uma “equipe cocriadora”, no contexto da literatura, é um conceito tão monstruoso que foi preciso mais de um século para ele tomar corpo, desde que as editoras começaram a contratar revisores que iam além dos erros tipográficos. Tratamos aqui da suprema alienação da humanidade.

Com a Revolução Industrial o artesão se viu alienado do controle da produção, tornando-se proletário. As “equipes cocriadoras”, tomarão do autor o controle de sua obra e tornarão as editoras fábricas de livros, transformando os escritores em “proletários das letras”, produzindo obras sobre as quais não possuem voz definitiva, e cujos direitos são difusos por causa das muitas mãos envolvidas.

É possível até que surjam, na literatura, tal como já existem na música, “marcas” que não representam indivíduos, mas “equipes de criação”. Na música tivemos casos como o Technotronic e o C&C Music Factory, grupos cujos “intérpretes” eram contratados por “produtores”. Quando os músicos tentaram sair fora do esquema perderam o direito de interpretar “suas” músicas, porque estavam sob o controle das “equipes cocriadoras”. Para tais equipes, o esquecimento daquelas músicas não era um prejuízo: bastava criar outro sucesso no mês seguinte. Para os intérpretes, significava que eles não tinham um repertório.

Eu digo que é possível que esta excrescência se transmita à literatura porque, a partir do momento em que estiver estabelecido o conceito de que o escritor não sabe escrever e é preciso que a “equipe cocriadora” o ensine, nada impedirá que as editoras simplesmente produzam através destas equipes o conteúdo de que precisam. Isso já aconteceu com a música: não há mais ninguém procurando descobrir artistas, pois eles podem ser hoje produzidos em série.

Mas quem se importará em escrever livros se não tiver nem ao menos a expectativa da fama? Todos sabemos que é muito difícil ganhar dinheiro escrevendo livros, a maioria o faz pelo orgulho de fazê-lo, e de pôr o nome na capa. Coloque o autor em uma “equipe cocriadora” que desindividualizará o seu trabalho e justamente aqueles que mais desejam fazer trabalhos criativos e inovadores ficarão desestimulados.

Eu vou mais longe, correndo o perigo de ir reiterando o que disse em outros parágrafos. Já sabemos muito bem que muitas obras são rejeitadas por polêmicas ou por “não são comerciais”. Mas pelo menos elas são rejeitadas “in totum”, o que é melhor do que serem aceitas e mutiladas pelo trabalho de tal “equipe cocriadora”, de tal forma desfigurando o original que o autor nem mais tenha orgulho dele. Sim, as crianças iludidas que sonham em “escrever um livro” não se importarão, mas os autores mais maduros e com mais ambições do que mostrar para os amiguinhos, esses ficarão de pelos eriçados, como eu.

E eu ainda estou supondo que as crianças iludidas ainda terão o direito de ter seu nome na capa, mas para que a editora precisará da figura difícil e cheia de ego, um autor estranho, se já tem a seu serviço pago uma “equipe cocriadora” capaz de “melhorar” as obras que recebe? Para que correr o risco de investir no novo se a “prata da casa” já faz o trabalho? O resultado disso: algo semelhante ao que houve com as gravadoras. Artistas fabricados, cantando obras compostas por profissionais, tocadas por músicos de estúdio. Artistas que não têm controle algum sobre o que cantam, de forma que quando perdem o contrato com a gravadora eles sequer podem continuar a carreira cantando seus sucessos.

Não estou aqui discutindo se isso vai acontecer ou não. Sei muito bem que os que ficam no caminho do “futuro” encontam a Paz Celestial. Mas se tem algo que devo lhe dizer é que eu sou um desses, senhor motorista do tanque. É melhor ser derrotado na luta em defesa de nossos ideais, do que viver rendido aos objetivos alheios.


08
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 08:30link do post | comentar | ver comentários (1)

A era eletrônica, o paraíso do editor. Ou melhor, do censor. Antigamente se poderia bem dizer que “livro é como passarinho”, depois que saiu da prateleira da livraria ninguém mais controla. Hoje em dia é possível revogar a publicação do livro, apagar do dispositivo chique o arquivo ofensivo que não deveria ter saído. Mas, acima de tudo, hoje em dia é possível fazer as “correções” na redação do escritor-aluno até que seja aceitável no contexto da edição-escola. Onde foi que esqueceram pelo caminho a ideia de que o escritor é um adulto livre para ousar, diante de quem a sociedade reverente espera? Ah, bem.

Os editores celebram no livro eletrônico justamente isso que ele tem de monstruoso: a facilidade de um trabalho colaborativo. Trabalho colaborativo é o meu … de óculos. O nome dessa colaboração é censura prévia: você só chega a ser aceito se você se tornar do jeito que o “mercado” quer. Vimos isso ao vivo na televisão, em um programa chamado “Fama”. Cantores de diversos estilos e personalidades foram amestrados durante semanas até que todos passassem a cantar de forma curiosamente parecida. O mercado quer produtos em série, embalados a vácuo, todos de formato igual. Parabéns a você que tem o formato certo ou que é maleável o suficiente para entrar na forma e ficar parecido. Eu pretendo endurecer aqui de meu lado.

As mutilações digitais não deixam marcas. Os originais nunca existiram mesmo! São apenas arquivos vagos, nuvens de elétrons circulando por circuitos. Esse trabalho colaborativo é uma ferramenta quase stalinista, mas está usada pelo capitalismo. No fundo, os totalitarismos se servem dos mesmos instrumentos, variando a dose, ou a maneira como são consorciados.

Não me acusem de estar preso ao século XX, de ser um arauto do passado. Prefiro ser arauto de coisas que entendo, do que papagaio de palavras vagas, cujo impacto ainda está além de minha ideia. Oh, não, lamento dizer que vocês talvez não entendam o que acham que entendem. Hoje em dia as pessoas são muito curtas e superficiais. Hoje em dia os intelectos são pontos. Ninguém faz análises de longo prazo, afinal o ano fiscal termina em dezembro. Com o tempo começam a achar que o mundo começou em janeiro.

O novo não é sempre bom. Certas coisas horríveis que aconteceram no passado foram novidade quando apareceram: o amianto, a sífilis, o comunismo, a peste negra, os aditivos à base de chumbo para a gasolina. Precisamos ser críticos em relação ao novo, talvez mais até do que em relação ao velho. Ser profeta do passado é muito fácil: esticar um longo dedo para os erros de nossos pais e avós é algo que não custa muita ousadia, pois os resultados, muitas vezes, são conhecidos. Difícil é ser cético em relação ao canto da sereia do futuro. Todos temos a ingenuidade de crer que o nosso futuro é a redenção de todos os nossos pecados.

Mas o futuro é perigoso.

Hoje existem tecnologias fantásticas, inimagináveis há quarenta anos. Ferramentas fantásticas, mas com dois gumes. Certamente fazem coisas inimagináveis em 1971, mas temo que nem todas estas coisas sejam, além de inimagináveis, desejáveis. Ferramentas que nos dão a impressão de que no futuro não haverá nenhuma forma de arte, e muito menos de artista, um futuro que me parece desinteressante. Um futuro de informação precarizada, controlada e impessoal. Nesse futuro tampouco haverá liberdade de informação.

Hoje, se algum autor deseja ser dono exclusivo de sua obra, tem ferramentas para publicação independente — dizem os editores, sugerindo que somente os que topam abrir mão de parte de sua autoria poderão deixar de ser “independentes”. Os editores querem matar o autor, ao que parece.

Acontece que a publicação independente sempre foi a exceção na história da literatura. Relegar a ela todos os que não aceitem conformar-se significa fechar as portas do grande mercado aos que não desejam submeter-se a imposição do coletivo. E pensar que houve uma época em que as pessoas achavam a URSS monstruosa porque impunha a coletivização de fazendas, a serviço "do povo". Hoje as editoras, que desejam coletivizar a criação literária, a serviço do lucro, são “cool”. Sabemos, mas, porém, no entanto e todavia, que o mercado é ditador. Portanto, “a porta da rua é serventia da casa” para quem acha que pode escrever o que quer. Tal como é serventia da casa para o repórter que não quer difundir a agenda do patrão, para o político que se filia na legenda sem querer se render às “práticas normais” do meio.

Se você quer ser um autor “muderno” precisa “reconhecer que faz parte de uma equipe cocriadora, na qual cada um contribui com o que sabe fazer melhor e trabalha em consenso com os demais”. Imagino que reação teriam os membros de uma “equipe cocriadora” dessas diante dos ícones de nossa literatura. “Consenso”, teu nome é “censura”. Estes conceitos revelam que para a maioria das editoras, livro é como pão de forma, cortado e ensacado e vendido a peso exato. O pão do espírito em formato adequado para armazenar em prateleira, e com prazo de validade compatível.

E é por causa disso que nós, os criadores de conteúdo, não podemos ter ilusões quanto às intenções de quem capitaneia esse barco avariado. Eles chamam aos outros de piratas apenas porque eles têm cartas de corso. É por isso que nós, os criadores de conteúdo, devemos ansiar e até trabalhar, para que vá abaixo todo esse edifício, que se destrua toda a atual estrutura de comando e controle do conteúdo, com seu arcabouço legal e suas práticas corriqueiras. Somente destruindo essas empresas de forma definitiva e irreparável haverá possibilidade de salvar o futuro. Certamente não conseguiremos salvar um futuro parecido com o passado que havia, quarenta anos atrás, mas numa hora dessas não podemos ser egoístas: se pensarmos apenas em nossos direitos autorais podemos terminar com uma sociedade na qual não teremos quase direitos.


06
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 08:30link do post | comentar | ver comentários (1)

Vocês devem estar imaginando, então, que eu sou mais um que celebra o futuro esfuziante que vem aí. Que sou contra as ferramentas de controle do conteúdo, mas que abraço entusiasticamente o mundo eletrônico. Nem tão depressa assim, motorista, pare o ônibus do futuro, pois quero descer.

Quero voltar para minha casa, achar meu próprio armário debaixo da escada, ali me esconder, com minha velha máquina de escrever, e então, de dentro da escuridão desse meu canto, oferecer-lhes meu vislumbre desse futuro. Uma resposta algo poética demais (e hoje em dia a poesia se tornou algo pejorativo), porém somente com poesia se atinge a contundência. Não me acusem de dramalhão, falo em nome de valores que muita gente não entende, falo do ponto de vista de quem está acuado no quarto debaixo da escada. O que para vocês pode parecer casca, para mim é a medula.

Eu sou o ego. Eu sou a ambição do ego. Eu falo em nome dos desejos do ego. Eu não acho que o ego seja ruim.

É errado supor que o ego seja egoísta. O egoísmo é uma perversão tão grande quanto a total ausência de amor por si. Eu não sou egoísta, apenas aprecio ser quem sou, apenas aprecio a ideia de poder ser quem quero ser. Sei que muitas coisas que eu sou, ou sei, resultam do amálgama de coisas que foram ditas, ou feitas, por outras pessoas. Resultam de coisas que vi, ouvi, e copiei. Mas todas as coisas que fazem parte de mim, quando não foram simplesmente se instalando, como mofo numa toalha, são escolhas que eu fiz. Ninguém me impôs que eu escrevesse, por exemplo, ninguém conscientemente me fez ver que há mais beleza na mulher morena do que na loura.

O Ego é bom. Penso, logo existo — ele diz. “Penso” não é um fenômeno coletivo. “Penso” é uma ilusão de individualidade que nos torna saudáveis. “Penso” é a felicidade.

No mundo eletrônico, o ego está sob ataque. Movem guerra nuclear contra ele. Uma guerra cuja primeira batalha foi travada, décadas antes do primeiro chip de computador, quando alguém teve a ideia de que os livros escritos pelos autores não eram bons o bastante, que era necessário haver um “profissional” capaz de ensinar o escritor a escrever.

O nome desta profissão é “censura” e o seu fruto é a negação do ego. O autor não tem a “permição” de escrever com cê-cedilha, a não ser em contextos muito limitados. Tal como atores de novelas não podem falar com outro sotaque que não o de Capacabana, a não ser em contextos muito limitados, como novelas regionais caricatas. O nome desta profissão é “censura” e a sua marca é a soberba.

Houve um tempo em que escritores escreviam, revisores revisavam e editores editavam. Hoje escritores escrevem, revisores reescrevem, editores mandam reescrever. No fim do processo “interativo” a obra que chega a ser publicada já foi expurgada dos defeitos do autor. Todo autor tem defeitos, os únicos perfeitos são os editores e os revisores.

Mas esse tema é tão complexo que tenho que deixar para semana que vem.


04
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 20:30link do post | comentar

Na postagem passada eu argumentei que o “livro eletrônico” entre aspas (marketeado como “e-book”) não é um produto novo, mas uma tentativa de mercantilizar algo que já existe. E que o objetivo do “e-book” não é oferecer conteúdo, mas controlá-lo.

O livro é uma ferramenta muito poderosa. Tão poderosa que ele, praticamente sozinho, acabou com a Idade Média e produziu esta sociedade em que você vive, este Admirável Mundo Novo, cheio de tantas pessoas adoráveis. Não acredite nos historiadores tradicionais: o mundo que nós conhecemos não é fruto das contradições do feudalismo e nem de uma fase de grandes navegações, mas de uma mudança de mentalidade produzida por uma invenção que rapidamente revolucionou a transmissão do conhecimento pelo mundo: a imprensa.

Antes da imprensa o conceito de autoria era difuso porque o próprio livro era algo inexistente. Os manuscritos antigos e medievais eram reproduzidos por copistas, que muitas vezes alteravam, adulteravam ou abreviavam o original. Certos tipos de obras, especialmente poesia e música, tinham um caráter efêmero, não eram vistas como “obras de arte” no sentido em que hoje as vemos.

Com a imprensa o livro se difunde e com ele se difunde o nome de seu autor, criando a vaidade da originalidade, da autoria. Não se passaram dois séculos até começarem a surgir as primeiras leis regulando os direitos do autor. Estas leis eram, em essência, justas. Procuravam remunerar o criador do conteúdo, em vez de deixar todo o lucro nas mãos do dono da impressora. Permitiram que homens de classes pobres ganhassem a vida sem ser de forma braçal: surgiu a figura do “intelectual” este ser abjeto e detestado hoje em dia. Junto com ele surgiram profissões, como o jornalismo, a literatura de ficção, a crônica. O ápice das leis do direito autoral se consubstanciou na Convenção de Berna, que assegurou que cada país respeitasse os direitos dos autores nascidos em outros, permitindo assim que o mercado de traduções funcionasse, e aumentando os ganhos dos autores.

Quando o autor se tornou profissional, foi necessário que ele passasse a ter proteção para continuar profissional. Se a proteção do direito autoral se extinguisse com a sua morte, haveria sérios riscos e inconvenientes. Pelo lado do editor/impressor, havia a possibilidade de que a morte súbita do escritor lançasse em domínio público uma obra de que se fizera há pouco uma grande tiragem, causando prejuízo a quem investira nela. Pelo lado do autor, havia a perspectiva de se tornar impublicável à medida em que envelhecesse, pois os editores simplesmente esperariam que ele morresse, para poderem ter acesso gratuito à sua obra. Por isso foi criada a extensão póstuma do direito autoral.

Porém, tal como as pensões das filhas de militares, nisso também se criou uma situação escabrosa. Muitas vezes o autor morria e deixava de herança uma renda expressiva em forma de “royalties” para parentes que em vida o haviam desprezado, abandonado, tachado de louco etc. Imagine, por exemplo, se Bruna Surfistinha, que até hoje não foi perdoada pelos pais, for casada em regime de separação de bens (não sei se é ou não e isso não me interessa, a não ser teoricamente, para fins de argumentação). Em caso de sua morte agora, os direitos de suas obras escandalosas ficaria sob o controle deles. Como nem os loucos rasgam dinheiro, o mais certo é imaginar que eles aproveitariam muito bem esse dinheiro. Usei um caso famoso e próximo de nós, mas casos análogos existiram às pencas pelo mundo. Tudo graças a extensão póstuma do direito autoral, que em alguns países chega a absurdos noventa anos!

Eu escrevi tudo isso sobre o direito autoral porque somente entendendo o alcance que ele tem, e a ideologia que existe por detrás dele, é possível ver porque os “livros eletrônicos” buscam controlar o fluxo de conhecimento e de informação. Existem empresas interessadas em manter em seu lugar a atual estrutura de poder — que não é de todo injusta, como já disse, embora longe de perfeita. Para chegar a esse fim quimérico, posto que na contramão do rumo indicado pela tecnologia, esses interesses estão atacando e solapando a democracia.

Imagine um mundo no qual leis impostas pelos fabricantes de carruagens tentassem impedir os automóveis de andar a velocidade maior que a de um cavalo em trote (15 km por hora). Imagine um mundo no qual leis impostas pelos pintores tentassem impedir que os fotógrafos tirassem mais de uma fotografia por dia, e que fizessem mais de uma cópia de cada negativo. Imagine um mundo no qual leis impostas pelos copistas impedissem edições de livros acima de vinte exemplares. Agora imagine um mundo no qual leis impostas pelos antigos controladores do conteúdo (editores e gravadoras) tentam impedir que os arquivos digitais (por sua própria natureza transmissíveis, copiáveis e alteráveis) sejam justamente transmitidos, copiados e alterados.

A introdução de novas tecnologias deve ensejar a criação de novas estruturas de poder e marcos regulatórios, adaptados aos novos tempos. Tentar continuar com as mesmas leis e paradigmas de antes é um obstáculo ao curso da natureza. E toda lei que tenta impedir a natureza de seguir seu curso produz violência. Pois somente com violência é possível “tentar” resistir à natureza. E sempre que a violência vence a natureza, o resultado é uma terra arrasada.

Na próxima postagem, apesar desta defesa apaixonada do futuro, lhes explicarei porque tenho fascínio pelo passado e medo do que está por vir.


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