Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
18
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 22:00link do post | comentar | ver comentários (2)
Frequentemente me pego repetindo em cochicho o que acabei de dizer em voz alta, se a pessoa a quem disse não continua por perto. Porque se ela estiver, então, costumo dizer a mesma coisa duas vezes, com poucos minutos de intervalo, para enfatizar o que estou dizendo. Geralmente uso uma frase para conectar, e então repito o que havia dito antes, com palavras ligeiramente diferentes, com poucos minutos de intervalo, só para enfatizar o que dizia.

Costumo ter animadas conversas comigo mesmo quando estou só. Estas conversas frequentemente se transformam em discussões, e já houve casos em que realmente fiquei de mal. Durante essas conversas é frequente que eu me diga coisas que não estava pensando ou encontre soluções miraculosamente para coisas que eu não estava sabendo resolver.

Quando estou escrevendo à mão, minha caligrafia muda o tempo todo. Sou incapaz de manter o mesmo padrão de tamanho de letra, comprimento de hastes, inclinação, separação silábica, formato das letras redondas, etc. Em uma mesma palavra costumo empregar dois tipos diferentes de “a”, “s” ou “r”.

Meus livros são ordenados na estante segundo um padrão de tamanhos e cores. Quanto mais alto o livro, mais para a beirada. Se dois livros forem de mesma altura, o de capa mais escura fica do lado “de fora” em relação ao centro da prateleira. Por sua vez, os meus discos são ordenados pela ordem cronológica em que foram lançados.

Devo ser o único bancário do Brasil que trabalha (frequentemente, mas não todo dia) de botinas. Gosto desse tipo de calçado desde que era adolescente e trabalhava na Cooperativa Agropecuária de Cataguases. Eu não tinha dinheiro para me vestir bem, então vivia com jeans velhos, botinas de couro e camisas brancas de algodão. Em meus sonhos eu me tornava um astro da música e esse tipo de indumentária se transformava na nova moda roqueira.

Todas estas pequenas excentricidades convivem com o fato de que sou incapaz de manter qualquer coisa organizada. Desde a minha estante de livros, que eu arrumo semestralmente, até a minha mesa de trabalho.

Esta desarrumação também é agravada pela dificuldade com que me livro de entulhos, bugigangas e velharias. Tenho ainda os carregadores de celulares que estragaram há anos, peças de computadores que nem possuo mais. Cabos e fios e caixas de aparelhos que nem lembro o que eram. Revistas que li uma vez e guardei pensando em deixar de herança para o futuro. Rascunhos de poemas e rabiscos genéricos sem nenhum sentido.

Cada vez que me mudo, tenho de rever esta desordem, e com grande dor no coração me desfaço de uma miríade de pequenas coisas — e me arrependo depois. Até hoje sonho em reencontrar nalguma caixa os dois retratos que fiz a lápis nos tempos de segundo grau, e que só sobrevivem na minha memória. Sem falar dos cadernos onde minhas amigas anotaram versos de Raul de Leôni, Vicente de Carvalho e Fernando Pessoa.

Sei, porém, que estas foram perdas irremediáveis, como as que só se pode ter na mudança. E não adianta ter saudade das casas em que não moro mais, dos livros que doei ou vendi, das palavras que disse e já não saboreio mais na boca, por mais que as cochiche. Por mais que eu lembre de manias antigas, não sou o mesmo que era, as coisas e as casas e as pessoas mudaram. Resta-me repetir palavras, fantasmas do que foi, e relembrar mentalmente  obras primas que não desenho mais.

15
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 15:48link do post | comentar | ver comentários (1)
O homem triste vinha caminhando pela rua, com seu pesado terno de dois mil reais ao mês e sua lista de responsabilidades para penar. Consultava mentalmente em qual próxima casa teria de incomodar quando ouviu as crianças sentadas na calçada, curtindo o vento fresco do fim de tarde:

— Aquela nuvem parece um prato de macarrão.

Olhou na direção apontada pelo dedinho sujo. Olhou fixamente para tentar ver. Outra pequena voz interferiu:

— Aquela outra parece uma cabeça de bode.

Não, definitivamente não parecia com nenhum tipo de cabeça.

— E olhem só aquela lá que está perto do prédio azul!

Todos olharam e caíram na gargalhada:

— É uma bunda com um furúnculo, a bunda do Pedro com o furúnculo.

O homem triste suspirou. Não conhecia a história do pobre Pedro e seu abscesso no traseiro, não reconhecia nenhum formato de nádegas na nuvem que estava perto do prédio que se tornava azul apenas por ter as janelas desta cor.

As crianças continuavam gargalhando ante a visão de uma forma que existia em suas imaginações, e o homem triste, ainda mais triste, com uma vontade louca de largar a mala, despir o terno e mergulhar no rio sujo, como fazia quando criança, lembrou-se da frase dita certa vez por um fantasma no fundo de sua memória:

— Você deixa de ser criança quando toda nuvem passa a ter formato de nuvem.

09
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 21:57link do post | comentar

…ou não andavam tão bem acompanhados. Era um mundo melhor, no qual você não se fazia ouvir nem na esquina, mas podia pelo menos desfrutar da doce sensação de que as suas ideias não seriam incompreendidas e ridicularizadas por idiotas.

O ser idiota é um ser coletivo, gregário, agremiado, associado, mesmo que informalmente. Ninguém consegue ser realmente um idiota quando está sozinho porque o eco das paredes nos dá a estranha sensação de que não somos geniais ou, ainda pior, de que nossa genialidade nunca será compreendida. Em ambos os casos poupamos o mundo de nossas palavras por tempo suficiente para que amadureçam, ou amadureçamos, ou emudeçamos, ou apodreçamos.

Um grupo de pessoas apenas moderadamente bobas pode transformar-se em uma turba vociferante de trogloditas. Um babaca não comprará uma briga contra o carinha que lhe «olhou torto» na rua, um grupo de babacas pode massacrar um mendigo pelo prazer de ouvir ossos quebrando. Coletivamente, a idiotice se potencializa. Mas remova cada um dos idiotas de seu bando e você terá um gatinho educado. Sem «amigos lá fora» para impor sua interpretação idiota do mundo, o gatinho aprenderá a negociar, a conversar. Esta é a grande virtude das prisões: as prisões deveriam ser o «cantinho pensamento» para os meninos maus da sociedade. Infelizmente, vivemos numa sociedade em que os castigos são vistos como manifestações autoritárias da tradição. Talvez sejam, mas negociar uma entrada honrosa no mundo adulto é algo que já saiu meio de moda. Todos querem entrar arrombando, pisoteando, idioteando.

O mundo era melhor no tempo em que não havia tantos bandos de valentes, no tempo em que os valentes se orgulhavam de resolver sozinhos. Hoje em dia, já que estamos ficando modernos, resolvemos redescobrir a Idade Média e trouxemos de lá o que os franceses chamavam de melée, a guerra bruta e desorganizada que só terminava quando os vivos começavam a tropeçar demais nos mortos. A guerra estúpida e bárbara contra a qual a civilização procurou impor códigos de cavalaria, tréguas dominicais, direitos de asilo, honra militar etc. Briga em porta de escola é um choque de bandos, ninguém ali possui individualidade, são idiotas que se entregam ao espírito do bando — e todo bando é necessariamente idiota, todo partido é utópico, toda associação é ingênua, todo grupo é meio besta. Houve um tempo em que afirmar-se como indivíduo era sinal de honra. Hoje, a folha de grama que se destaca é aparada.

Conformem-se, garotos que estão hoje nas escolas. Vocês não terão a permissão de viver com a liberdade que eu vivi. Eu vivi sob uma ditadura os meus tempos de escola, mas vivi mais livre do que vocês. Porque as correntes com que nos amarramos a nós mesmos são as mais difíceis de romper. Quem romperá a corrente de massificação, de idiotização? Experimente gostar de uma garota diferente, ouvir uma música diferente, passar por uma rua diferente, vestir-se com uma roupa diferente. Escárnio, no começo, xingamentos, pouco depois, talvez uma pedrada na testa ou, se for possível, um linchamento. Moral ou físico, já tanto faz. Não existe muita vida depois que você perde o direito de ser você mesmo. E passa a ser um dos idiotas do bando.


24
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 22:36link do post | comentar | ver comentários (1)

Quando terminei de contar as notas eu já estava com vontade de chorar. Faltavam dois mil e quinhentos no caixa e já estava atolado até o peito em dívidas. Contei, recontei, suspirei e, por fim, registrei penosamente a diferença no boletim de caixa, sacramentado pela rubrica rabiscada do supervisor. Com aquilo a minha vida de caixa acabava: até por uma questão de humanidade me “poupariam” de trabalhar mais no setor, o que significaria uma lamentável queda de quase quarenta por cento no contracheque. Algo lamentável, ainda que nos quatro meses anteriores eu tivesse perdido mais do que a comissão me pagava.

Saí do serviço derrotado. Tinha vontade de sentar num bar e beber até não conseguir mais engolir. Só o que me impedia era a lembrança de meu pai chegando entorpecido e fedendo a cachaça. Como contaria para a minha mulher? Mulheres são compreensivas com vários problemas, exceto os monetários. Não queria chegar em casa para enfrentar tudo de novo. Já tinha sido ruim das duas primeiras vezes, a terceira seria pior que os infernos. Retirei o carro da garagem e saí para o trânsito caótico ainda com o coração descompassado.

Havia um buzinaço em frente à Prefeitura, protesto de professores em greve. Um panelaço na avenida, protesto de flagelados desassistidos pela Prefeitura. Um palhaço vendendo ingressos na praça. Um ricaço em seu carrão humilhava com a buzina um pobre calhambeque enferrujado cujo motor morrera no cruzamento. Eu ainda tinha vinte quilômetros até em casa. Quando peguei o asfalto, a cabeça me latejava como seu ouvisse as batucadas de um samba satânico e eu nem tinha um comprimido. Mas eu suportaria aquilo. O carro escorria pela estrada quase arrependido de ter saído, não queria acelar como se antecipasse a cilada em casa. Eu nunca tivera o pé tão leve no acelerador, e nem pensava em economia de gasolina.

Já na metade do caminho, deu-me na telha que era cedo, ou que simplesmente precisava sair da estrada. Poderia ter dirigido por um abismo abaixo, mas preferi um caminho estreito e poeirento. Somente quando o carro estava embicado entre barrancos, tossindo o pó vermelho do inverno, dei-me conta de que tomara o caminho de casa. Não da casa mercenária que alugava para abrigar uma estranha que trouxera da cidade, mas da materna e morna que eu lembrava nos sonhos, o velho sítio no distrito pequeno, perdido detrás de montanhas e de poeira.

Agira por instinto e por ignorância. Não teria escolhido ir lá. Meu pai estava morto fazia dez anos. Minha mãe estava muda num quarto de hospital, esperando sua vez. O sítio estava arrendado para alguém que eu nem conhecia e o dinheiro, dividido entre três irmãos. Tanta coisa tinha mudado, nem lembrava mais quanto tempo ficara longe de Roseiral. Mas estava indo, e naquela estrada eu acelerava mais.

Era noitinha quando meu carro subitamente apontou na pracinha. O relógio da igreja estava parado como na lembrança, como se a vida estivesse também. Mas as casas, que aos olhos de um estranho pareceriam imutáveis, mostravam mudanças sutis, definitivas, quase todas para pior. Parei o carro na parte alta, desliguei, saí afrouxando a gravata e encostei na porta. Os homens que jogavam bisca no boteco notaram minha presença. De onde estava, supus que conversavam sobre mim.

Julho estava frio e seco. A respiração queimava o nariz e eu tinha uma vontade louca de entrar numa casinha daquelas, dormir e acordar em 1980, quando era moleque e uma nota de dez cruzeiros comprava dez pães. Mas nenhuma das casas era máquina do tempo, não adiantava entrar para tentar uma segunda chance de consertar as coisas. A vida só tem o rascunho.

Então vi o quintal de Dona Josefa, o muro alto e pintado de cal virgem ainda pichado com propaganda da eleição passada. Tinha passado tempo suficiente para as goiabeiras crescerem por cima do muro. As malditas goiabeiras. Eu saíra de Roseiral vinte anos antes para não ter de conviver com a sombra delas na vida.

“Quinzinho”. Conseguira bloquear o nome muito tempo, mas bastou ver a folhagem acima do muro para lembrar. Tínhamos sido amigos e fora eu que insistira no convite: ele nem gostava de goiabas. Eu gostava, e preferia as vermelhas, especialmente meio verdes, para morder com sal e sentir a boca salivar intensamente. Ele gostava do desafio: Dona Josefa era ciosa das goiabas com que fazia o doce famoso que vendia na feira de domingo em Santa Teresa. Completava a renda da viuvez porque a pensão do falecido não dava para muito. Era crueldade roubar goiabas dela, mas moleques de doze anos não sabem. Pulamos o muro dos fundos e escolhemos uma árvore longe da varanda. No calor da tarde a velha se deitava para descansar, era a hora certa para a arte. Hora em que os homens estariam trabalhando e as mulheres, ocupadas nas cozinhas barulhentas fazendo a janta.

Mas o diabo às vezes é justiceiro dos coitados. Dona Josefa amanhecera naquele dia com uma animação inesperada e até os ouvidos de lagarto estavam bons a ponto de ouvir goiaba caindo no chão. Saiu de casa brandindo uma ridícula vassoura, mas nós dois, nem sei porque, tivemos medo como se fosse uma serva de Satanás pronta para voar em nós com feitiços. Largamos as goiabas e subimos o muro do jeito que deu. Fui primeiro: era mais lerdo e Quinzinho ajudou de dentro para eu ajudá-lo de fora. Caí meio de mal jeito, fiquei manco e me arrastei a custo pela calçada. Ele saltou cegamente, confiando que eu estaria lá para segurá-lo. Eu não estava.

Nunca soube direito o que aconteceu. Desde essa época evitei estudar qualquer medicina. Tenho trauma de sangue a ponto de detestar me barbear. Por isso optei por Técnico em Contabilidade em vez do Científico quando fui para o segundo grau. Quinzinho quebrou a cabeça bem quebrada, isso sei. O socorro demorou, teve que vir ambulância de longe e os enfermeiros do posto de saúde nem sabiam o que fazer.

Passei a tarde chorando como um bezerro desmamado achando que ele estava morto. Meu pai teria me dado uma imensa sova se eu já não estivesse em choque de tanto sangue. Ou talvez meu berreiro tenha desarmado sua mão e poupado minha bunda de uma surra de relho. Ele voltou para casa muitas semanas depois, vestindo ainda roupa de hospital e de boné na cabeça. Não falava, tinha um olhar vidrado e movia-se devagar, sempre deitado. Diziam que tinha perdido “massa” e a esperança. Dona Juraci não se conformava, mas a Benina, enfermeira do posto, jurava que um tal Doutor Sebastião poderia consertar o Quinzinho, era só ter paciência.

Meus pais praticamente me obrigaram à visita. Foi como ver um morto, só que ele tomava soro, sopa e longos suspiros por uma feia abertura no pescoço. Mesmo meses depois eu ainda acordava de noite debatendo-me no colchão com os braços abertos para amparar a queda imaginária de alguém.

Quando formei do segundo grau, achei emprego na cidade e pedi a permissão de meu pai para cair no mundo. Só voltei para o enterro do velho e para buscar minha mãe para o asilo, meus irmãos é que me visitavam, nunca eu. Não pedia notícias de Quinzinho, e os que me encontravam tinham a decência de não dá-las. Mas eu estava diante da casa de Dona Josefa lembrando Quinzinho e a casa dele ficava a menos de duzentos metros, metros que valiam vinte anos.

Fui caminhando pela rua irregular, como um fantasma de cemitério. Os cachorros não rosnavam nem latiam, as pessoas me cumprimentavam com meneio de cabeça ou murmúrios inaudíveis. A casa não tinha campainha, era preciso bater na porta. Enquanto esperava, vi pregada no beiral, como se tivesse aparecido naquela hora, uma placa de latão com o logotipo de um refrigerante. A janela que se abriu, não a porta, e uma moça morena, formas fartas e sorriso de piano, apareceu dizendo que não estava pronto. Depois foi que me notou, ou melhor, notou que eu era um estranho.

Aproximei-me da janela e notei que ela estava cheia de borrões de farinha pelos braços e os cabelos iam presos em um boné apertado. Dentro da janela havia prateleiras de biscoitos e bolos, uma geladeira.

— O que é que não está pronto ainda?

— O pão da noite. Fica pronto em vinte minutos. Vai esperar?

Disse que sim e pedi um refrigerante para me distrair. Começaram a chegar os fregueses do pão da noite, todos conhecidos, poucos com dinheiro. Olhavam-me surpresos, sem o que dizer.

Exatos vinte minutos depois ouvi barulho de metal contra metal e adivinhei que retiravam a fornada. Então a porta abriu e Quinzinho veio, mancando e com o mesmo olhar mortiço que eu lembrava em pesadelos, mas de pé e cheio de farinha. Ele murmurou algo com a morena, que passou a ajudá-lo a entregar os pães e anotar nas cadernetas.

Comprei sete. Dizem que é conta de mentiroso, mas exatamente por isso foi o número que me veio quando a morena perguntou quantos queria. Paguei, agradeci e fui saindo. Não sei se ele me conheceu. Sei que o Doutor Sebastião parece que o consertou um pouco e ele hoje faz pão, um bom e respeitável pão. Talvez até tenha aquela bonita morena em sua cama à noite. Talvez ela tenha aprendido a decifrar o olhar dele.

Volto para casa com os pães, sentindo-me palerma. O que Quinzinho e eu teríamos sido sem aquele dia desastroso? Eu não estaria lamentando uma redução de quarenta por cento em um salário que é suficiente para pagar um bom aluguel e o leite para uma linda garota, filha de uma mulher que nunca conheceria em Roseiral. Quinzinho eu não sei aonde estaria, mas hoje dá para acreditar que está feliz, pelo menos sem o buraco feio abaixo do gogó.

Enquanto dirijo, ainda sem pressa, vou mordendo os pães ainda quentes. Pães que saíram das mãos do meu amigo, do amigo que estraguei e que o Doutor Sebastião consertou, ao menos um pouco. Fiquei todos esses anos fora de Roseiral, não vi o que aconteceu. Talvez Quinzinho tenha até me conhecido, mas por que razão ele gastaria comigo um boa noite? Escolhi este desterro, tenho é que voltar para casa e para a cama de uma mulher vinda de longe, que fala de outro jeito e que me acha um caipira estranho.

Conto apresentado ao Festival Cultural BB 2011.


02
Out 11
publicado por José Geraldo, às 19:47link do post | comentar

Hoje estive visitando o sítio de meu pai, em Itamarati de Minas. A viagem foi deprimente, não só porque meu velho não anda muito bem de saúde, mas também porque a natureza não está.

Dói-me ver tantos morros pelados, a terra exausta de sucessivos incêndios e descuido, revelando-se como derme escarificada, vermelha entre os tufos secos de capim. Dói-me ver tantos topos de morros calvos pela ação estúpida do homem, que hoje pensa em depredar rapidamente antes que o governo queira proteger, tal como o especulador que demole o prédio histórico antes que o IPHAN o consiga tombar.

A seca está forte, as estradas estão ardendo em poeira amarelenta. Os pastos parecem estepes de filme americano, o gado está magro. Marcas pretas de incêndios recentes aparecem aqui e ali. Dói-me andar pela roça e ouvir tão poucos pios de pássaros, tão pouco arrulho de riachos.

Volto triste e com sede, com a pele ardendo de sol e ressequida da poeira e do vento. Volto deprimido com os rumos desse mundo que parece caminhar rapidamente para a própria extinção da beleza.


25
Set 11
publicado por José Geraldo, às 20:13link do post | comentar
Apontamentos avulsos e incompletos encontrados datilografados sobre o verso de páginas contendo alguns poemas. Tanto os poemas quanto esses apontamentos haviam desaparecido de minha lembrança. A data (dos poemas) é 1994, a destes apontamentos deve ser um pouco depois (um ano, no máximo). Trata-se aqui do texto mais antigo cuja forma original não tem influência alguma de revisões posteriores. Uma verdadeira relíquia da época em que eu ainda estava aprendendo a tentar escrever. Mais do que isso, parecem ser apontamentos para um glossário que ficaria como apêndice de um romance que, sob certos aspectos, evoca muito o «Serra da Estrela». Por uma dessas estranhas coincidências que a vida tem, meu pai encontrou essas folhas soltas no meio de um monte de papel velho que ia queimar, e salvou para mim.
Benzinho
Planta rasteira cujas sementes são envoltas por uns espinhos terríveis que se curvam ao entrar na pele, tornando difícil e dolorosa a retirada. Talvez o sábio homem do campo tenha visto nesta adesão teimosa uma metáfora para o amor obstinado, que machuca a carne, é difícil de largar e deixa uma inflamação persistente depois que é arrancado.
Quinze Bandas
Em Minas Gerais as direções não coincidem com os pontos cardeais, não são as oito da rosa dos ventos: são quinze, que incluem acima, abaixo, para lá, para cá, desse lado, daquele, antes, depois etc. A semente do quinze bandas (um outro espinheiro da região) são recobertas de espinhos orientados para todos os lados (ou "bandas", como se diz por aqui).
Moça Velha
Trata-se de uma flor cujo traço peculiar é a falta de viço: as pétalas parecem um papel crepom sem brilho, áspero, o talo é grosso, mas tem uma consistência murcha e é recoberto de pelinhos. As folhas são escuras e molengonas. As flores, por sua vez, são de muitas cores possíveis: vermelhas, amarelas, alaranjadas, rosadas, violetas, brancas e acastanhadas. As pétalas são radiadas e algumas plantas têm flores com dupla camada
Coração da Índia
Não consegui apurar com certeza o motivo do nome poético dessa fruta, parecida com uma pinha. Sua polpa é delicada e doce, de cor branca semitransparente e consistência de geleia, mas o cheiro é forte e resinoso. O formato lembra vagamente um coração, mas casca é verde.
Chá da Meia Noite
Dito zombeteiro muito comum nas histórias de nossas avós, que relatavam histórias de esposas maltratadas por maridos violentos que encontraram a sua libertação fazendo-os beber o dito chá. Na língua do povo as mortes súbitas de pessoas relativamente jovens e aparentemente saudáveis eram atribuídas a feitiço, veneno ou “artes de mulher”, um termo obscuro que engloba principalmente a exaustão do parceiro no amor. Mas o chá da meia noite, por ser meio menos sacrificado, era o preferido. Muitas plantas nativas de Minas Gerais são venenosas, e algumas podem agir em doses relativamente pequenas.
Os Misteriosos Efeitos da Aparição do Diabo
Consta que o diabo era visitante regular de uma certa sede de fazenda, cujo antigo dono, sacrílego e assassino, morrera sem extrema unção. O fantasma do velho ainda se arrastava pelas ruínas da fazenda abandonada, tão apegado às suas posses que nem o diabo conseguia tirá-lo de lá e levar para o Inferno. As aparições do diabo eram saudadas por uma sucessão de eventos antinaturais: peixes que saíam da água para respirar, ratos caçando gatos, vacas montando nos bois, frutas subindo de volta para as árvores e… o mais extraordinário de todos: a troca de crias entre duas espécies inusitadas. Mesmo o fantasmas sendo invisível e o diabo não fazendo nenhuma questão de aparecer para mais ninguém, era fácil detectar a presença demoníaca pela visão de uma porca que dava de mamar a uma ninhada de pintinhos e de uma galinha que chocava uma ninhada de porquinhos. Ou vice-versa, isso depende de quem conta.

Além desses trechos, estou expandindo uma outra história contida no mesmo manuscrito, que postarei na quarta feira.


20
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 21:54link do post | comentar

Manézim era a maior preocupação dos pais. Já tinha quatro ano o moleque e não falava nada ainda, só ficava quieto no seu canto com os brinquedos. Mas ele tinha um jeito assim estranho de olhar. Mirava nas pessoas os seus oinhos e abria um pouco a boca, como se tivesse bebendo o que falavam. Mas naquele tempo a gente pobre da roça não tinha muito recurso de médico, então o tempo ia passando e Manézim não falava e a família só se preocupava.

Era um dia qualquer, nem feriado nem domingo. Tava todo mundo almoçando em volta da mesa, com se fazia antigamente, antes da televisão. Manézim comia distraído, olhando pros destroços da galinha frita na travessa, talvez pensando que um dia antes a coitada ciscava distraída no quintal. O irmão mais velho, guloso como ele só, já tinha terminado seu prato e pedia mais:

— Mãe, me dá mais dois ovo cozido.

Manézim então, pro espanto da família, interrompeu seu silêncio que vinha desde o nascimento para falar uma palavra solitária:

— “Ovos”.

O pai engasgou com a asa da galinha e a mãe deixou cair o garfo que espetava um ovo. Todo mundo levantou e foi pegar no menino, dizendo:

— Meu filho, ocê falou.

— Olha, Rosa, que o moleque não é retardado não.

— Esse bostinha começa a falar já me corrigindo!

Foi tanto falatório que Manézim foi se encolhendo na cadeira, com os olhinhos arregalados. Até que a mãe, percebendo que ele já tava demorando a falar outra palavra, tratou de provocar:

— Vai, meu filho, fala para mim!

Manézim olhou em volta a família toda reunida espiando o que ele fazia. Pensou e falou:

— Não falo mais.

E mais não falou. Por fim, cansado daquilo tudo, o pai resolveu tomar providências. Vendeu um novilho e foi à cidade levando o garoto para uma consulta com um pediatra. O doutor examinou o garoto durante um bom tempo, mas por fim declarou-se impotente para resolver o problema:

— Acredito que os senhores não tenham muito com que se preocupar. A capacidade cognitiva de seu filho não me parece afetada, ele apenas é lacônico.

— Isso tem cura, doutor.

O médico sorriu, e tentou tranquilizar o preocupado pai.

— Acredito que deve melhorar com o tempo, sem precisar de remédio. Mas ele parece não gostar muito mesmo de falar, embora entenda tudo que dizemos. De toda forma, volte daqui a alguns meses para acompanharmos como vai o menino.

Naquela tarde um arrasado pai chegou em casa, muito preocupado, e trancou-se no quarto com a esposa.

— E então, Manél, o que tem o moleque?

— Parece, Rosa, que nós temos um filho lacônico.

Rosa ficou mortificada. Vários fios de cabelo brancos devem ter nascido em sua cabeça naquela tarde.

— Ó meu Deus! O que vai ser de nosso meninim?

— Temos que ser fortes, Rosa. Pelo menos o doutor falou que melhora com o tempo.


28
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 23:01link do post | comentar

Gabriela era uma menina comum, filha de pais bem comuns, que morava numa casa bem comum numa cidade qualquer. Como quase todas as meninas ela gostava muito de histórias e não passava uma noite sem pedir que seu pai ou sua mãe lhe contassem uma antes de dormir.

Infelizmente os pais de Gabriela não sabiam muitas histórias. Eles eram pessoas ocupadas e sem paciência, passavam seus dias trabalhando e reclamando da vida — não tinham muito tempo para divertir-se e muito menos para ler livros e aprender histórias. Por causa disso foram muitas as noites em que Gabriela teve de dormir sem história, ouvindo história repetida, ou tendo de contentar-se com uma historinha sem graça qualquer.

Mas Gabriela era uma menina estudiosa e logo aprendeu a ler. Quando percebeu que já sabia juntar as letras e formar palavras ela ficou muito curiosa para saber o que havia escrito nos livros que enchiam as prateleiras da biblioteca da escola. Ah, eram tantos livros! com capas feias ou bonitas, com páginas branquinhas ou amareladas, cada um contendo uma ou muitas histórias!

A partir desse dia Gabriela começou a ler os livros da biblioteca. Todo dia ela voltava para casa com algum debaixo do braço e só o devolvida depois de ter lido tudo, tudinho. Começou com os livros fininhos, que tinham histórias curtinhas e muitas figuras. Depois começou a pegar livros mais grossos, que tinham menos espaço desperdiçado com figuras e muito mais história para ler. Quando Gabriela chegou na quinta série já tinha lido quase todos os livros da biblioteca.

Então ela já estava grandinha e foi transferida para outra escola. Nessa escola havia uma biblioteca maior, com muito mais livros. Gabriela andou por entre as imensas estantes de aço, cheias até não caber mais, e pensou: “vou ter que ler cada vez mais depressa para ter tempo de ler isso tudo até a oitava série”…

E assim ela começou. Todos os dias ela pegava dois livros, lia o mais grosso à tarde e deixava o outro para a noite, antes de dormir. Havia alguns que eram tão grossos que era preciso duas tardes de leitura, mas Gabriela não tinha problemas com isso: quando o livro era bom ela sempre ficava triste quando a história acabava, pois não tinha nenhuma graça ler de novo, cada livro ficava como uma alegre lembrança que nunca mais seria vivida.

Com o tempo ela percebeu que os melhores livros nem sempre eram os mais bonitos, percebeu também que não eram só os livros de histórias que eram bons de ler. Havia também livros de várias matérias que eram tão bem escritos que faziam o estudo virar um prazer: foi assim que ela aprendeu a História do Mundo, que descobriu como é o universo, como surgiu e evoluiu a vida, como funciona o corpo humano. Essas histórias eram tão boas quanto os romances de capa-e-espada e os contos de fadas.

Havia também alguns livros de histórias que eram diferentes dos outros, pois contavam histórias que haviam acontecido mesmo, alguns tinham até as fotos das pessoas que haviam vivido a história. Esses eram geralmente livros tristes, que nem sempre tinham um final feliz — mas Gabriela gostava de ler histórias que tinham acontecido, porque assim ela sentia que o mundo real também era interessante.

Um dia ela achou que não havia mais nada interessante na biblioteca para ler e ficou triste. Foi aí que ela percebeu, lá no alto e no cantinho da última prateleira, um livro que parecia ser muito velho, mas que ela nunca tinha visto antes. “Deve ser alguma doação” — ela pensou. E fez questão de ler.

O curioso é que o livro não tinha título na capa, e nem por dentro. Não tinha nome do autor, nem índice, nem endereço de editora. Também não tinha números nas páginas e nem estava dividido em capítulos. A história começava no alto da primeira página após a capa e continuava até o último espaço da última página. Ou pelo menos era o que parecia, pois Gabriela não deixou de pensar que poderiam estar faltando páginas, tanto no começo quanto no fim.

As letras eram letras grandes, maiores que os tipos dos outros livros, mas menores que as letras dos livros para crianças pequenas. Eram letras estranhas, que à primeira vista não pareciam diferentes das letras de livros comuns, mas cada vez que você olhava de novo era como se percebesse um detalhe diferente. Era como se cada letra fosse diferente da outra, faltando um ponto ou sobrando, com uma curva diferente, uma perna mais comprida ou algum defeito do papel deformando um canto. Parecia até que alguém havia caprichosamente desenhado à mão cada palavra daquele livro estranho e sem figuras.

Gabriela tentou folheá-lo para ver o que havia por dentro, mas não conseguiu. As páginas eram grossas, úmidas, meio mofadas ou afetadas pela poeira. Grudavam-se, eram pesadas, algumas pareciam definitivamente pregadas nas outras ou até com dobras não cortadas. Como se o livro nunca tivesse sido lido ou como se tivesse ficado fechado por muitos anos. “E como deve ser triste, quando se é um livro, ficar tanto tempo fechado, sem passar pelas mãos de ninguém, sem contar sua história a nenhum leitor”.

Gabriela foi até a entrada para registrar o empréstimo. A bibliotecária lhe sorriu e lhe deu boa-tarde e Gabriela foi embora feliz, levando o livro.

Em casa ela passou toda a tarde lendo. A história era do tipo que prendia mesmo. Cada página aparecia outro personagem — ou saía algum da história de alguma forma. Parecia que eram muitos os personagens principais, tantos que Gabriela logo começou a perder a conta de seus nomes. A história era cheia de voltas, idas e vindas. Diferentes histórias que se cruzavam a todo o momento e depois se separavam de novo. Falava de uma terra estranha onde havia uma rainha viúva e uma princesa solteira que não queria casar. De dragões que eram mansos e de fadas que eram más — e também do contrário. De tanta coisa que Gabriela tinha de parar para pensar e organizar-se.

Os dias seguintes foram dias de aventura. A história do livro ocupou sua mente quase que sem parar, era como ela nem tivesse mais tempo para a escola ou para amigos. Mas era tão bom ler aquela história, ouvir falar da língua estranha do povo Pt que só conhecia uma vogal e setenta e nove consoantes, ou do povo Ao, cuja língua só tinha vogais (trinta e duas). Haviam os príncipes ladrões e o elefante magro que ensinava o tigre a comer alface — e tantas outras coisas absurdas que faziam rir. Mas havia também coisas tristes demais, mortes e mistérios e separações.

Gabriela levou exatamente sete dias para ler o livro inteiro, a contar da hora exata em que saiu da biblioteca. No exato momento em que deram nove horas e quarenta minutos da manhã, durante os dez minutos de intervalo que ela aproveitara nos cinco dias anteriores para continuar a leitura, ela chegou à última palavra da última página.

Foi um momento de muita alegria, mas também de muita tristeza. Foi como terminar uma tarefa longa, mas foi também como parar de fazer a melhor coisa do mundo. O fim da história também era sem graça. Nada foi resolvido ou terminado. Era como se houvesse mais páginas no livro, muitas mais, mas somente aquelas tivessem sido encadernadas.

Então Gabriela se levantou, foi até a biblioteca, mostrou o livro à bibliotecária e o pôs de volta em seu lugar.

Nos dia seguintes ela continuou pensando naquele livro, naquelas histórias desencontradas — tristes e alegres ao mesmo tempo, naquelas lendas mal contadas. Então criou coragem e resolveu trocar idéias com os colegas. E foi aí que ela descobriu a coisa mais extraordinária de sua vida: ninguém nunca lera aquele livro. Ninguém nunca vira o livro na estante da biblioteca. A própria bibliotecária não soube dizer que livro era: “Quando vi aquela capa toda amassada eu pensei que fosse um dos livros velhos que foram doados, esses imprestáveis que a gente ia acabar jogando fora mesmo…”

Gabriela teve quase raiva — “nenhum livro é imprestável” — mas estava preocupada demais com o livro em si.

Uma colega lhe disse que o livro era obra do demônio, que ela devia orar e esquecer. Mas a professora de redação, que era uma mulher muito doce e que tinha uns olhos enormes e muito negros, muito bonitos, lhe disse algo bem diferente: “Minha querida, você não vê? Esse livro é você mesma? Esse livro são as histórias de que você gosta, as histórias que você queria que alguém tivesse contado. Mas eu vou te falar uma coisa muito bonita: ninguém pode contar as suas histórias a não ser você.”

Gabriela demorou alguns dias para entender. Ela só entendeu numa noite em que estava deitada na cama, sonhando com as histórias do estranho livro, quando de repente percebeu que algumas das histórias de que estava se lembrando eram diferentes das histórias do livro. “Sim, agora eu sei” — pensou Gabriela.

Então ela se levantou, escolheu um caderno bem grosso e uma caneta bem macia. Sentou-se na escrivaninha e começou, devagar e com muito carinho, a contar uma história nova, uma história sua. Uma história que ela queria que tivesse sido contada, mas que ela finalmente percebera que ninguém contaria — a não ser ela mesma.

Originalmente escrito em 14/05/2007


28
Mai 07
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar

Júlia era uma menina cheia de manias. Principalmente era cheia de manias ruins ou esquisitas. Manias que aprendia de seus colegas, parentes, vizinhos, etc. Recentemente Júlia aprendeu a chorar.

Nas primeiras vezes ela chorou naturalmente. O choro que as crianças choram quando perdem ou quando não acham, quando não têm ou quando quebram, quando querem e não podem ou quando não querem e têm que fazer.

Mas a mãe de Júlia não tinha paciência e tinha tanta pressa em se livrar logo do choro da menina que Júlia acabou percebendo que entre chorar e ganhar o que queria era muito pouco tempo. E menos tempo ainda entre chorar e deixar de ter que fazer algo que não queria. Assim foi que Júlia aprendeu a chorar.

Depois que aprendeu a chorar Júlia começou a tentar o controle sobre sua vida. Chorava para não comer cedo, depois chorava porque estava com fome. Chorava para não ter que comer tudo, depois chorava para poder comer biscoito. Chorava para não ter que dormir no escuro, depois acordava de noite chorando com dor de cabeça porque a luz estava acesa.

Os pobres pais de Júlia nem conseguiam mais dormir direito, pois toda noite ela chorava pelo menos duas vezes. E pelo menos duas vezes por noite lá vinha um pai ou uma mãe com cara de sono e pés pesadas pisando o chão. Vinha ver o que havia com a menina manhosa que chorava até encher.

E não adiantava eles ameaçarem com castigos, não adiantava dizerem que Papai do Céu não gostava, que Papai Noel não gostava, que o Coelhinho da Páscoa não gostava, nada funcionava. Por fim a mãe de Júlia se lembrou de uma antiga história de quando era criança, sobre monstrinhos que vêm morar no quarto das crianças que choram durante a noite, mas nem essa história adiantou: só fez a menina ficar com mais medo.

Havia duas coisas importantes que faziam Júlia chorar de noite. Primeiro era vontade de mamar outra vez — mas tinha noite que ela não conseguia acordar para pedir a mamadeira. Outra era quando ela tinha pesadelos e acordava com medo de tudo.

Os medos de Júlia eram de qualquer coisa que houvesse no escuro — ou que pudesse haver. Teve uma noite em que ela acordou, viu um vulto se mexendo no chão e acordou o prédio inteiro com berros desesperados de tanto medo. Mas era só a sombra de um galho de árvore à luz da lua. Tomou um castigo de ficar uma semana sem brincar com as coleguinhas e depois de muito tempo ficou com receio de seus pais.

Depois disso Júlia ficou com medo do armário de madeira em que guardava seus brinquedos. Muitas vezes ela acordava soluçando de muito medo, jurava que ouvia o barulho de unhas na madeira ou uma respiração barulhenta, respiração de monstro. Nunca tinha coragem de ir ver o que era. E também tinha medo de chamar os pais desde o castigo que levou por ter feito escândalo com a sombra da árvore.

Mas os pais de Júlia logo viram que havia alguma coisa errada com a menina. Ela acordava todas as manhãs com os olhos vermelhos, o rosto amassado de quem não dormiu. Nunca respondia às perguntas e isso começou a incomodar-lhes muito.

Uma noite a mamãe de Júlia acordou no meio da noite e foi à cozinha tomar um pouco de água. Ao voltar escutou uma respiraçãozinha medrosa dentro do quarto da menina e abriu a porta para ver o que era. Júlia estava sentada na cama, encostada à cabeceira. Tinha os olhos arregalados e o rosto cheio de lágrimas.

— Minha filha, o que está acontecendo?

— O monstro, mamãe. O monstro do armário — disse, apontando com o dedinho.

A mãe de Júlia abanou a cabeça:

— Filhinha, essa história de monstro morando no armário é só uma historinha…

— Mas foi a senhora que me disse.

A mãe de Júlia se sentia péssima por ter mentido à filha e, meio envergonhada, confessou:

— Filhinha, algumas coisas são só historinhas. As que são de verdade não têm monstros, não têm fadinhas, não têm nada que você não tenha visto.

E tendo dito isto foi dormir.

Júlia ainda ficou uma meia hora ou mais na mesma posição, olhando firmemente para o armário. Então levantou-se, foi até ele e, agitando o dedinho, falou através da greta entreaberta da porta do armário:

— Eu sei que você não existe. Mamãe me disse que você é só uma historinha. Então faça o favor de ir embora porque a historinha já acabou. Se você ficar aí eu vou dizer para a minha mãe que tem baratas no armário e ela vai te encher de veneno!

E dizendo isso, fazendo beicinho, ela deitou na cama e dormiu.

Algumas horas se passaram, a lua começou a baixar no céu e Júlia dormia calmamente. Havia um silêncio enorme no prédio, um silêncio do tipo que só há nas cidadezinhas. Então uma mãozinha peluda e verruguenta apareceu através da greta da porta entreaberta do armário de Júlia. Logo veio também um nariz comprido e brilhoso, que ficava na ponta de um focinho bigodudo e engraçado. Então apareceram dois olhinhos vermelhos, que pareciam muito ferozes no escuro.

O monstrinho farejou o ar, sentiu pelo cheiro da respiração e do suor que Júlia estava mesmo dormindo. Então criou coragem e pulou para fora do armário, tendo o cuidado de cair no tapete fofo e não no chão de ardósia dura.

Era uma criaturinha medonha, mas ridiculamente engraçada. Uma mistura de rato com gambá, gato e porco-espinho. Tinha mãozinhas de esquilo e orelhas que pareciam de coelho. Seu corpo era todo peludo, mas de um pelo que parecia muito sujo porque a cor variava entre diversos tons de marrom, de preto e de bege. Uma longa cauda que parecia um rabo de lagarto ficava o tempo todo se mexendo. Quem visse aquela coisinha de repente poderia bem pensar que era um bonequinho de plástico que caíra numa chapa quente e ficara todo deformado — ou então que eram pedaços de muitos bichinhos de pelúcia e de alguns animais mortos que haviam se juntado numa coisa só.

O monstrinho coçou a cabeça, depois a barriga, e resmungou com uma vozinha rouca e soluçando:

— Primeiro essa chatinha me chama lá da terra do escuro. Fica noites e noites chorando para eu vir. E agora me espanta assim! Isso não se faz.

Depois olhou para o armário de brinquedos e pequenas lágrimas cor-de-rosa se formaram nos seus olhinhos vermelhos:

— Adeus macaquinha do lacinho de fita, adeus ursão fofo. Vou sentir muitas saudades de você, bonequinha de pano.

Então ele retirou de dentro do armário uma trouxinha de trapos cheia de coisas impossivelmente nojentas. Suspirou e começou a usar uma cadeirinha para alcançar a janela.

Quando chegou à janela, olhou para trás, fez um gesto ofensivo em direção a Júlia e resmungou outra vez:

— Onde vou achar outro armário tão grande, tão escuro, tão quentinho e tão cheio de brinquedos velhos?!…

E dizendo isso, começou a desdobrar asinhas de morcego que logo bateram e o fizeram voar no resto de madrugada, de volta à Terra do Escuro, de onde os pesadelos e os monstrinhos de armário vêm.

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02
Mai 07
publicado por José Geraldo, às 15:00link do post | comentar

Teresa era uma menina de apartamento. Como toda criança ela gostava de bichinhos, não só dos de pelúcia mas dos de verdade também. Teresa gostava muito de passarinhos e de cavalos: seu grande sonho era um dia poder cavalgar um pônei pelo pasto afora, sentindo o vento nos cabelos e o sol no rosto.

Mas o apartamento é um lugar pequeno: ali não dá para ter um cavalo. Coitado do bichinho! Onde ele pastaria? Em que riacho poderia brincar?

Teresa até pensou em pedir que sua mamãe lhe desse uma gaiola de passarinho, mas pensou: que tristeza o pobrezinho ficar preso numa coisa tão pequenina como uma gaiola, logo ele que pode voar, que gosta de brincar por toda parte.

Quando Teresa pensava na tristeza do passarinho engaiolado ela pensava também um pouquinho em si mesma: como se sentia triste por ficar tanto tempo dentro de casa, longe das outras crianças, longe das flores, dos riachos e dos bichinhos. Por isso mesmo Teresa não queria ter um passarinho na gaiola.

Mas Teresa vivia triste e pensativa, sonhando em poder cavalgar pelo pasto no lombo de um cavalinho, poder colher flores, tomar banho de riacho, brincar na terra com outras crianças, longe das paredes cinzentas dos prédios da cidade, esses caixotes de guardar gente.

Um dia o pai de Teresa voltou da rua com uma caixa grande, toda colorida. Quando Teresa rasgou o embrulho não conseguia acreditar: seu papai tinha comprado um pônei de brinquedo, tão grande que ela podia montar nele! O pônei tinha também rodinhas nos pés, até dava para Teresa fingir que estava cavalgando pela casa.

Desde esse dia Teresa passou a ser um pouquinho mais feliz. Ainda não havia cavalgado pelo pasto no lombo de um cavalinho de verdade, mas pelo menos tinha seu pônei de brinquedo — e com ele ela podia fingir que estava pelas montanhas afora, andando entre flores e animaizinhos.

Mas o tempo foi passando e Teresa perdeu a graça de brincar com o pônei, ele foi ficando lá num canto do quarto e Teresa voltou a ficar pensativa.

Um dia ela estava tão triste de vontade de poder passear a cavalo que foi dormir chorando, baixinho para os seus pais não ouvirem.

Mas Deus ouviu e resolveu dar uma pequena alegria para Teresa. Ele mandou que um anjinho muito brincalhão fosse levar um sonho colorido para a menina. Só que o anjinho resolveu fazer diferente: em vez de dar um sonho bonito para Teresa ele a acordou de mansinho no meio da noite e lhe mostrou o cavalinho de brinquedo:

— Venha, Teresa. Porque essa noite você vai andar a cavalo, vai ver flores, vai ver os bichinhos…

Teresa, ainda meio com sono, montou no pônei de brinquedo, e então o anjinho deu um beijo na testa do cavalinho e ele começou a se mexer! Virou um pônei de verdade, com um longa crina negra e um par de imensas asas castanhas, escuras como seu pêlo.

Teresa nem teve tempo de se assustar: o pônei bateu as asas e saiu voando, voando, alto bem alto acima das luzes da cidade e das nuvens. Teresa olhou para baixo e teve até medo, de tão alto que estava: lá embaixo os carros pareciam baratinhas e as pessoas pareciam formigas.

O pônei voou para além das montanhas altas e foi até o mar. Lá ele baixou para que Teresa pudesse estender a mãozinha e tocar a água fria e salgada do mar. Teresa levou o dedinho a boca e viu que a água era salgada mesmo, como uma lágrima.

Depois o pônei voou de novo através das montanhas, parou num lugar muito alto, cheio de cachoeiras, onde cresciam muitas flores diferentes, com perfumes estranhos. Teresa colheu algumas e fez um lindo ramalhete para sua mamãe, então montou de novo e seguiu passeando.Para além das montanhas havia uma grande mancha escura no chão.

— Você sabe o que é aquilo? — perguntou o pônei.

— Não sei, mas tenho medo — disse Teresa.

— Não tenha medo, pois é lá naquele lugar escuro que existem as coisas mais bonitas.

E desceu até a escuridão. Quando chegou perto Teresa viu que era uma floresta enorme, onde ainda não havia ruas e nem prédios. Dentro dela passava uma fita brilhante que Teresa logo percebeu que era um riachinho.

O pônei pousou junto ao riacho, bem perto de onde havia um bichinho esquisito bebendo água. Teresa teve medo do bichinho, mas o pônei lhe disse para chegar perto:

— Não tenha medo.

— Mas eu não quero assustar. Ele é tão bonitinho. Parece um rato com cara de gato, ou será um porco com cara de rato?

— É uma capivara, Teresa — disse o pônei.

Teresa achou o nome do bicho muito engraçado e deu uma risada. Justo nesse momento ela lembrou de casa e disse ao pônei:

— Xi, temos que voltar! Se mamãe não me vê na cama ela vai ficar muito assustada!

Então o pônei a levou de volta para casa. Teresa escondeu os chinelos sujos de barro debaixo da cama e foi dormir de novo.

No dia seguinte quando acordou não havia sinais de barro nos chinelos e nem o ramalhete que trouxera para a mamãe estava em cima da escrivaninha, mas havia ainda um aroma delicioso que ela nem sabia direito do que era, pois não era de nenhum perfume.


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