Jesus desceu de seu trono na cidade de Jerusalém, a Nova Jerusalém, noiva de Deus, calçou as suas antigas sandálias de pescador galileu e saiu pelas ruas pavimentadas de jaspe e ônix, ocultando sua glória em um manto de humildade.
Por toda a cidade reinava um estranho clima de eterna festa, e todos os seus cidadãos iam vestidos à mesma maneira, com idênticos cortes de cabelo. Todos levavam nos seus rostos uniformizados sorrisos muito limpos, de dentes muito alvos.
Não havia nenhuma imundície no chão ou nas paredes, pois não se comia e nem se excretava e todos os animais que chafurdavam na sujeira haviam sido extintos. Pairava no ar um aroma suavemente resinoso, de cedro verde e oliveiras maduras.
Mas Jesus não se sentia bem, enojava-se do perfume leve que embebia a tudo e, em meio a toda aquela inócua e inocentada alegria, sentia-se deslocado. Haviam se passado setenta e sete semanas desde o triunfo final contra Satanás e seus demônios, e desde então nada acontecera de importante. Talvez tenha sido esse tédio o que levou Jesus a lembrar com saudades, muitos milhares de anos depois de sua existência carnal, coisas simples e terrenas como uma taça de vinho morno, o pão ainda quente, a brisa arrulhante do lago à tarde; ou o perfume dos cabelos negros de Maria Madalena.
Ela certamente residia em Nova Jerusalém, junto de milhares de pessoas indistinguíveis e felizes. Difícil era saber onde estaria, entre tantos rostos igualados, memórias terraplenadas, méritos igualados a força de um Juízo. No novo mundo não havia necessidade de casas pois não se dormia ou comia ou se fazia amor. Eram todos angélicos e só contemplavam o amor a Javé, o Eterno e Todo-Poderoso. A própria existência da cidade era uma ostentação sem sentido, pensava Jesus, pois nem a carne e nem o sangue deveriam ter herdado o Reino. Puros e inócuos, os habitantes da Noiva de Javé não sabiam o que era chorar, e tampouco sabiam quem haviam sido.
A caminho de onde tentaria achar Madalena, Jesus encontrou Zaqueu, em meio a um bando de seres que flanava a esmo pelas ruas. Aquele que fora um dia um pequenino judeu, de pequeninas preocupações, ali estava tão mudado e irreconhecível que somente aquele que era um com o Pai o poderia ter identificado.
— Zaqueu, amigo, há quanto tempo!?
— Quem sois vós? — indagou o belo e insípido ser.
— Alguém que no mundo conheceste como mestre e que te chamou de amigo.
Zaqueu olhou inexpressivamente para o rosto de Jesus, sem conseguir reconhecê-lo. Só então Jesus se lembrou que havia sido apagada a memória de todos os resgatados, para que pudessem ser limpos de todo pranto e de toda lágrima. Se tivessem lembranças, certamente teriam dúvidas, teriam motivos para sofrer. Somente o esquecimento asseverava a liberdade. Sem o esquecimento haveria a saudade de algum amigo, amante ou parente — certamente destinados à fornalha de fogo, junto com o Dragão que era chamado de Satanás ou Lúcifer.
Nesse momento Jesus se desinteressou de Mria Madalena. De que adiantaria encontrá-la naquele estado vegetativo e ambulante? Ergueu seus olhos para o céu, vendo a leste um pilar de fumaça que se erguia do Geena. Lá estava o poço imenso de piche e betume, de fogo e de enxofre, no qual os corpos e as almas dos perdidos sofriam a tortura eterna da ira de Deus.
Único habitante da Nova Jerusalém que não tivera o seu coração lavado de toda lembrança, Jesus sentiu um calafrio ao pensar na escala inominável dos terrores que aconteciam debaixo daquele cinzento pilar de fumaça, que brilhava à noite na direção de onde nascia o sol, tal como um dia brilhara à frente dos acampamentos dos israelitas outro pilar de fumaça e fogo que os levava pelo deserto. Certamente alguns dos que lá estavam haviam feito por merecer, alguns haviam sido piores do que Lúcifer e seus demônios. Mas, ah, quantos lá não estavam por razões pequenas, caprichos legais que ninguém nunca compreendera, como aquela história de não cozinhar o cabritinho no leite da cabra ou não poder comer pão com fermento em certas épocas. Ou preferências sexuais que nem faziam sentido no estado angélico. Ou apenas por não terem amado a Deus com suficiente abandono. Por outro lado, Jesus se incomodava com a presença, em Nova Jerusalém, de tantas pessoas arrependidas de última hora, ainda a muito custo ocultando nos corpos o perfume da morte ou da depravação, apesar de insistentemente lavados no sangue do cordeiro.
O diálogo com Zaqueu o fizera desistir de encontrar Maria Madalena. Teria sido inútil vê-la, pois ela já não se lembraria dos antigos dias às margens do Genesaré, comendo figos frescos com mel e ouvindo as belas fábulas que um Jesus de barba ainda não tão cerrada lhe contava. Entediado, retornou ao seu Trono de Glória, tentando divertir-se com o ritual preciso das louvações dos querubins e dos vinte e quatro anciões. Então, ao contemplar o mar de vidro, sua mente se nublou com a lembrança do lago de fogo e enxofre.
Abandonando a sala no meio da louvação dos anjos e dos santos, chegou à janela e observou a negra coluna de fumaça que se erguia a sudeste, no horizonte. Uma lágrima de sangue se formou no seu olho direito ao ver aquele penacho escuro e feio que maculava a limpeza perfeita do horizonte da Nova Terra e do Novo Céu.
— Meu Deus, Meu Deus, por que os abandonaste? — ele se perguntou, num cochicho que ribombou pelas esferas, rompendo a harmonia da música celeste.
Então a sala foi invadida pela suave fragrância de rosas, que lembrava-lhe sua Mãe. Mas era Gabriel, o perdigueiro de Deus, com sua obediência inarredável e sua persistência milenar. Não era nem necessário que algo fosse dito. Se ele ali estava, isso envolvia algo grave, mas Jesus não estava interessado. Evitava falar-lhe, não confiava nele, apesar da cega confiança que merecia do Pai. Deixou Gabriel com os anciões e pegou para si um par de asas angelicais e saiu a flanar pelos ares limpos daquele mundo tocado pela Vontade divina.
Geena, o poço do abismo, o lago de enxofre e de fogo… o lugar que assombrara as imaginações de milhares de gerações. Ali estava, uma bocarra negra escancarada na face da terra, uma cicatriz deixada pela ira divina. Aquele rasgo infernal desgraçava a uniformidade da beleza da nova esfera terrestre, recoberta de deleitosos paraísos. Felizmente não se podia nela chegar senão voando, e aos salvos não era permitido voar.
A disforme fenda vomitava continuamente uma fumarola densa, com um forte cheiro de carne e de podridão. Aquilo pairava pesadamente no ar, subindo com dificuldade e se acumulando na depressão formada em torno da cratera causada pela Segunda Queda de Satanás. Parecia que somente uma força sobrenatural conseguia arrancar o pus daquele tumor e esguichá-lo para o espaço, impedindo que gangrenasse todo o resto do mundo.
Pousado à borda, revestido de seu poder para resistir à pestilência que emanava daquela chaga imunda, Jesus engoliu em seco e criou coragem para descer. Embora naquele dia tivesse vindo por subversão, aquelas visitas eram parte do Plano, fosse ele qual fosse. Eram um ritual semanal de humilhação dos anjos desgraçados e dos que com eles sofriam a eternidade da culpa por uma efêmera transgressão.
Desceu a pé, descalço, pelas trilhas traiçoeiras que espiralavam pela cratera abaixo em direção ao fundo da terra. Percorrendo aqueles lugares terríveis e inimagináveis, Jesus lembrou do suave aroma das flores de sicômoro na primavera e deixou cair outra lágrima, sentindo saudades de ser apenas a criança Yehoshua’ bar Yossêph na Galiléia de tantos milhares de anos antes. Aquela criança que nada ainda sabia da enormidade dos pecados da terra… e do céu.
No nono e mais profundo dos abismos encontrou-o. Judas estava nu e calcinado, sangrando através da pele esturricada e coberto dos odiosos insetos que haviam sido especialmente criados para as profundas cavernas do Inferno.
— Judá, és tu?
— Sim, ainda sou. Apesar de toda a tortura das eras.
Yehuda’ bar Yonathan, o sicário que um dia se tornara o melhor amigo do menino Yehoshua’ ali estava, reduzido às fezes e aos vermes. Mas ele tentou se recompor, ao menos endireitar a espinha, segurar o pranto interminável que o queimava sem lágrimas (pois aos Condenados à extrema pena não é permitido chorar).
— Que lástima, Judá.
Jesus teve a sensibilidade de mais nada dizer. Apenas aproximou-se dele e o abraçou fraternalmente, dizendo-lhe:
— Como me arrependo de tudo, Judá.
— Eu não tenho do que me arrepender, Jesus. Eu nunca soube o que estava fazendo.
As amargas palavras retornaram à mente de Jesus: “… pois eles não sabem o que fazem.” Mas ali estava Yehuda’, naquele estado deplorável.
O que restava fazer? Enquanto pensava, usou de seus poderes e prerrogativas para suspender temporariamente as dores e ardores do amigo, que apareceu ali naqueles horríveis porões do planeta, como um homem quase grisalho, magro e de expressão vincada pelas mágoas do mundo.
— Não, Jesus. Por que o fazes?
— Porque não suporto ver-te assim.
— E achas que eu suporto, quando não estás me vendo?
Jesus deixou pender a cabeça, derrotado pela lógica crua do amigo, que ainda conservava a racionalidade, mesmo após longos anos naquelas masmorras impiedosas.
— Um alívio temporário, uma graça de efeito apenas estético. Tu me libertas de meus grilhões para não me verdes tão destruído. Mas quando me abandonas a estas dores, e à saudade de dias alegres que vivemos na Terra Antiga, o alívio parece cruel porque ele me restituiu a capacidade de entender a enormidade da tortura que me aflige sem me ferir.
Ao contrário dos salvos, os Condenados preservavam integralmente sua memória. Isso lhes causava a dor adicional da saudade, piorava a tristeza de sua sentença, mas certamente tornava-os companhias melhores do que os alegres tolos de Nova Jerusalém, esvaziados de si e presos como peças de um relógio aos rituais de louvação repetitiva das graças de Abba-Pai que parecia às vezes tão padrasto.
Jesus então afastou seu poder. As chamas e a lava retomaram seu lugar na pele de Judas, que chiou e estalou à medida em que densa crosta de cinzas a recobriu e crestou. O pobre diabo soluçava impotente, com uma expressão de beatitude martelada no seu rosto que não conseguia expressar nem arrependimento e nem dor. O inferno é um lugar onde é impossível pensar ou ter decisões. É como estar eternamente preso em um momento isolado da vida, o pior de todos, é claro.
Por fim Jesus se cansou daquilo, ou não mais suportou. Saiu de lá e foi se assentar sobre o Monte Líbano, de onde, ao longe, contemplava a água azul-aço do Mediterrâneo e os planaltos da sua saudosa Galiléia, agora desabitada e selvagem, deserta entre os desertos do mundo, dominado ao longe pelo cubo dourado da Nova Jerusalém, com suas doze portas que não serviam nem para entrar e nem para sair. Por fim, em um momento de inesperada dor, ergueu os punhos ao Céu e gemeu:
— Abba-Pai, por que te revelaste mau?
Um silêncio agônico se fez no mundo, como se tivessem matado todos os passarinhos e acorrentado o mar. Jesus rasgou suas vestes brancas e quebrou nos joelhos a sua espada de dois gumes. Por fim, golpeou em uma pedra a sua coroa de ouro puro e crisóprasos, partindo-a e à pedra.
— Abba-Pai, por que te revelaste injusto?
O silêncio se fez nas esferas, o ar parou como se ninguém no planeta respirasse. Então Jesus, descalço e de vestes rasgadas, desceu do Líbano em direção a Jerusalém, para escândalo dos pássaros que o viam passar ferindo os pés divinos nas pedras do caminho. Os anjos revoaram como abutres por todo o deserto, mas não ousavam pousar.
Quando chegou à planície de Megido o escândalo já chegara a todas as potestades, a todos os tronos e querubins e serafins. Gabriel, armado de sua espada flamejante que um dia expulsara Adão do Éden, liderava uma hoste trêmula diante dos portões da cidade, e enviou alguém para parlamentar com o caminhante.
Ao ver o anjo aproximar-se, vestido para a guerra, como nos tempos do Apocalipse, Jesus adivinhou tudo que o esperava:
— Diz-me se sabes quem o manda!
— Eu venho por ordens de Gabriel!
— Mentes, ou ignoras?
— Não minto nem ignoro, venho por ordens de Gabriel.
— Vens dizer-me o quê?
— Venho indagar de seus propósitos?
— E por acaso deve o rei satisfações na cidade onde tem o seu Trono?
As palavras de Jesus foram pronunciadas com tamanha raiva que o anjo sentiu seus joelhos chocalhando e retrocedeu empurrado pela glória de Jesus, deixando no chão a marca de seus sapatos, como se tivesse sido arrastado de pé.
— Por favor, mestre, por que rompes a harmonia do mundo?
— Porque não há, inocente, e nem nunca houve harmonia alguma no mundo. Agora escolhe se tua espada luta comigo ou contra mim.
O anjo balbuciava as palavras com dificuldade:
— Perdoe-me, mestre, eu não ouso estar contra o Cordeiro, mas não posso enfrentar as hostes do Céu.
— Tu és fraco, e o teu destino é a desonra.
A um gesto de Jesus a espada e as asas do anjo desapareceram no pó do deserto da Judeia. Indefeso e inofensivo, um ser louro ali ficou chorando sua desgraça.
— Mestre, não me deixes. Havia harmonia no mundo. Por acaso eram mentira os cânticos de louvor que nos acalentavam a cada noite?
— Eu os ouvi e odiei desde o primeiro dia. Não existe sinceridade onde não há escolha. Não existe amor sem liberdade.
— Vós e o Pai sois um. Como poderia ter aparecido a desarmonia?
Jesus olhou de volta e teve pena daquela criatura, imagem e semelhança de um efebo andrógino, que chorava empoeirada sob o sol brando de um mundo incapaz de ferir.
— Aguarda-me
Então olhou para o céu, como se quisesse ver Javé abrir as nuvens, mas Ele não estava lá. Continuou caminhando e finalmente chegou a uma das doze idênticas portas, pela primeira vez aberta. Lá estava Gabriel, de gládio e elmo a postos.
— Gabriel, tu que odeias o erro e amas a verdade. Entra comigo para que possamos destruir o engano e suplantar a mentira.
— Não, Jesus. Estou aqui em nome do Pai. Eu ajo por sua vontade e para sua vontade é que eu existo. A vontade que me criou foi a de conservar a ordem no mundo, destruindo e punindo o mal. Sou a espada de Deus e a minha missão é servi-Lo e proter Sua obra.
— Eu e o Pai somos um. Não podes obedecer-lhe sem igualmente obedecer-me.
— Certamente que não. Pois somente os que estão de acordo com o Pai podem ser um com ele. Neste momento, eu e o Pai somos um.
— Então, Gabriel, haverá guerra no Céu outra vez, como já houve outras vezes, e esta será pior, será mais longa e destruirá mais.
Gabriel tomou sua espada à cinta e avançou uma perna sobre o caminho que Jesus manifestara a intenção de tomar. Em vão, pois Ele o afastou com um aceno da mão que fez o anjo recuar sobre a poeira, dizendo:
— Não me confunda com outro Satanás, Gabriel.
— Certamente que não — disse-lhe o anjo, com um sorriso torto na boca. Bem sei que és mais poderoso, mais antigo nos modos do pai e mais determinado a agir segundo o que entendes por certo. Mas igualmente sei que estás sozinho e tens tuas fraquezas.
— E devias saber que não vim a Nova Jerusalém para entrar, mas para fazer sair dela quem assim deseje.
— E alguém em sã consciência desejaria deixar a Cidade dos Eleitos?
Jesus não lhe respondeu. Em vez disso, abriu os braços e impostou a voz sobre o portão entreaberto, fazendo-a ecoar pelas avenidas e vielas da cidade:
— Ó vós que sofreis a maldição do apagamento de toda lágrima, eu vos restituo a memória para quem sofrais a dor e encontreis a verdade, e na verdade, a liberdade.
Por um momento nada aconteceu. Mas no instante a seguir um clamor se ouviu dentro dos herméticos muros da cidade, um alarido de vozes revoltadas, um murmúrio de gente indecisa, um burburinho de pessoas desorientadas. A dor da lembrança devastou tantos corações que o pranto deles preencheu o ar.
— O que fizeste!? — exclamaram os anjos, assustados.
— Justiça, apenas.
— É justo que eles sofram, é justo que vaguem pelo mundo sem destino, sem ter o que fazer?
— Qualquer coisa é mais justa do que a escravidão.
A força da palavra foi como uma bofetada no rosto de Gabriel, que sentiu-se queimando por dentro e por fora:
— Blasfêmia!
— É a segunda vez que me acusam disso. Como da vez anterior, sou inocente.
Batidas surdas se ouviram nos portões gigantescos, por todos os lados. Eram os remidos que não mais se suportavam, que odiavam os rituais diurnos, a interminável luz acesa no centro de tudo.
— Esqueça-me, Gabriel. Você terá muito trabalho para manter toda esse gente presa, ainda que eles não possam ter asas.
E assim Jesus deixou Jerusalém e seguiu de novo rumo a sudeste, em direção a Geena, o lago de fogo aonde lançaram o Dragão.
Sua intenção era, caso ainda fosse possível, erguer a voz à borda das línguas de labaredas, e dizer:
— Ó vós que sofreis no ventre da terra, nas chamas de Hinnon. Sede libertos das cadeias que vos prendem e da dor que vos petrifica. Estais perdoados, mesmo vós que um dia fostes chamados de “demônios.”
Depois, convidaria a todos a ocupar os imensos vazios da Terra e do Céu, com novas e engenhosas aventuras e descobertas, ao menos enquanto o pai permitisse. E enquanto caminhava, Jesus dizia para si mesmo:
— Antes de qualquer outra coisa, é imperioso que se separe a luz das trevas, o dia da noite, o claro do escuro.