Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Out 11
publicado por José Geraldo, às 20:40link do post | comentar | ver comentários (1)

Jesus desceu de seu trono na cidade de Jerusalém, a Nova Jerusalém, noiva de Deus, calçou as suas antigas sandálias de pescador galileu e saiu pelas ruas pavimentadas de jaspe e ônix, ocultando sua glória em um manto de humildade.

Por toda a cidade reinava um estranho clima de eterna festa, e todos os seus cidadãos iam vestidos à mesma maneira, com idênticos cortes de cabelo. Todos levavam nos seus rostos uniformizados sorrisos muito limpos, de dentes muito alvos.

Não havia nenhuma imundície no chão ou nas paredes, pois não se comia e nem se excretava e todos os animais que chafurdavam na sujeira haviam sido extintos. Pairava no ar um aroma suavemente resinoso, de cedro verde e oliveiras maduras.

Mas Jesus não se sentia bem, enojava-se do perfume leve que embebia a tudo e, em meio a toda aquela inócua e inocentada alegria, sentia-se deslocado. Haviam se passado setenta e sete semanas desde o triunfo final contra Satanás e seus demônios, e desde então nada acontecera de importante. Talvez tenha sido esse tédio o que levou Jesus a lembrar com saudades, muitos milhares de anos depois de sua existência carnal, coisas simples e terrenas como uma taça de vinho morno, o pão ainda quente, a brisa arrulhante do lago à tarde; ou o perfume dos cabelos negros de Maria Madalena.

Ela certamente residia em Nova Jerusalém, junto de milhares de pessoas indistinguíveis e felizes. Difícil era saber onde estaria, entre tantos rostos igualados, memórias terraplenadas, méritos igualados a força de um Juízo. No novo mundo não havia necessidade de casas pois não se dormia ou comia ou se fazia amor. Eram todos angélicos e só contemplavam o amor a Javé, o Eterno e Todo-Poderoso. A própria existência da cidade era uma ostentação sem sentido, pensava Jesus, pois nem a carne e nem o sangue deveriam ter herdado o Reino. Puros e inócuos, os habitantes da Noiva de Javé não sabiam o que era chorar, e tampouco sabiam quem haviam sido.

A caminho de onde tentaria achar Madalena, Jesus encontrou Zaqueu, em meio a um bando de seres que flanava a esmo pelas ruas. Aquele que fora um dia um pequenino judeu, de pequeninas preocupações, ali estava tão mudado e irreconhecível que somente aquele que era um com o Pai o poderia ter identificado.

— Zaqueu, amigo, há quanto tempo!?

— Quem sois vós? — indagou o belo e insípido ser.

— Alguém que no mundo conheceste como mestre e que te chamou de amigo.

Zaqueu olhou inexpressivamente para o rosto de Jesus, sem conseguir reconhecê-lo. Só então Jesus se lembrou que havia sido apagada a memória de todos os resgatados, para que pudessem ser limpos de todo pranto e de toda lágrima. Se tivessem lembranças, certamente teriam dúvidas, teriam motivos para sofrer. Somente o esquecimento asseverava a liberdade. Sem o esquecimento haveria a saudade de algum amigo, amante ou parente — certamente destinados à fornalha de fogo, junto com o Dragão que era chamado de Satanás ou Lúcifer.

Nesse momento Jesus se desinteressou de Mria Madalena. De que adiantaria encontrá-la naquele estado vegetativo e ambulante? Ergueu seus olhos para o céu, vendo a leste um pilar de fumaça que se erguia do Geena. Lá estava o poço imenso de piche e betume, de fogo e de enxofre, no qual os corpos e as almas dos perdidos sofriam a tortura eterna da ira de Deus.

Único habitante da Nova Jerusalém que não tivera o seu coração lavado de toda lembrança, Jesus sentiu um calafrio ao pensar na escala inominável dos terrores que aconteciam debaixo daquele cinzento pilar de fumaça, que brilhava à noite na direção de onde nascia o sol, tal como um dia brilhara à frente dos acampamentos dos israelitas outro pilar de fumaça e fogo que os levava pelo deserto. Certamente alguns dos que lá estavam haviam feito por merecer, alguns haviam sido piores do que Lúcifer e seus demônios. Mas, ah, quantos lá não estavam por razões pequenas, caprichos legais que ninguém nunca compreendera, como aquela história de não cozinhar o cabritinho no leite da cabra ou não poder comer pão com fermento em certas épocas. Ou preferências sexuais que nem faziam sentido no estado angélico. Ou apenas por não terem amado a Deus com suficiente abandono. Por outro lado, Jesus se incomodava com a presença, em Nova Jerusalém, de tantas pessoas arrependidas de última hora, ainda a muito custo ocultando nos corpos o perfume da morte ou da depravação, apesar de insistentemente lavados no sangue do cordeiro.

O diálogo com Zaqueu o fizera desistir de encontrar Maria Madalena. Teria sido inútil vê-la, pois ela já não se lembraria dos antigos dias às margens do Genesaré, comendo figos frescos com mel e ouvindo as belas fábulas que um Jesus de barba ainda não tão cerrada lhe contava. Entediado, retornou ao seu Trono de Glória, tentando divertir-se com o ritual preciso das louvações dos querubins e dos vinte e quatro anciões. Então, ao contemplar o mar de vidro, sua mente se nublou com a lembrança do lago de fogo e enxofre.

Abandonando a sala no meio da louvação dos anjos e dos santos, chegou à janela e observou a negra coluna de fumaça que se erguia a sudeste, no horizonte. Uma lágrima de sangue se formou no seu olho direito ao ver aquele penacho escuro e feio que maculava a limpeza perfeita do horizonte da Nova Terra e do Novo Céu.

— Meu Deus, Meu Deus, por que os abandonaste? — ele se perguntou, num cochicho que ribombou pelas esferas, rompendo a harmonia da música celeste.

Então a sala foi invadida pela suave fragrância de rosas, que lembrava-lhe sua Mãe. Mas era Gabriel, o perdigueiro de Deus, com sua obediência inarredável e sua persistência milenar. Não era nem necessário que algo fosse dito. Se ele ali estava, isso envolvia algo grave, mas Jesus não estava interessado. Evitava falar-lhe, não confiava nele, apesar da cega confiança que merecia do Pai. Deixou Gabriel com os anciões e pegou para si um par de asas angelicais e saiu a flanar pelos ares limpos daquele mundo tocado pela Vontade divina.

Geena, o poço do abismo, o lago de enxofre e de fogo… o lugar que assombrara as imaginações de milhares de gerações. Ali estava, uma bocarra negra escancarada na face da terra, uma cicatriz deixada pela ira divina. Aquele rasgo infernal desgraçava a uniformidade da beleza da nova esfera terrestre, recoberta de deleitosos paraísos. Felizmente não se podia nela chegar senão voando, e aos salvos não era permitido voar.

A disforme fenda vomitava continuamente uma fumarola densa, com um forte cheiro de carne e de podridão. Aquilo pairava pesadamente no ar, subindo com dificuldade e se acumulando na depressão formada em torno da cratera causada pela Segunda Queda de Satanás. Parecia que somente uma força sobrenatural conseguia arrancar o pus daquele tumor e esguichá-lo para o espaço, impedindo que gangrenasse todo o resto do mundo.

Pousado à borda, revestido de seu poder para resistir à pestilência que emanava daquela chaga imunda, Jesus engoliu em seco e criou coragem para descer. Embora naquele dia tivesse vindo por subversão, aquelas visitas eram parte do Plano, fosse ele qual fosse. Eram um ritual semanal de humilhação dos anjos desgraçados e dos que com eles sofriam a eternidade da culpa por uma efêmera transgressão.

Desceu a pé, descalço, pelas trilhas traiçoeiras que espiralavam pela cratera abaixo em direção ao fundo da terra. Percorrendo aqueles lugares terríveis e inimagináveis, Jesus lembrou do suave aroma das flores de sicômoro na primavera e deixou cair outra lágrima, sentindo saudades de ser apenas a criança Yehoshua’ bar Yossêph na Galiléia de tantos milhares de anos antes. Aquela criança que nada ainda sabia da enormidade dos pecados da terra… e do céu.

No nono e mais profundo dos abismos encontrou-o. Judas estava nu e calcinado, sangrando através da pele esturricada e coberto dos odiosos insetos que haviam sido especialmente criados para as profundas cavernas do Inferno.

— Judá, és tu?

— Sim, ainda sou. Apesar de toda a tortura das eras.

Yehuda’ bar Yonathan, o sicário que um dia se tornara o melhor amigo do menino Yehoshua’ ali estava, reduzido às fezes e aos vermes. Mas ele tentou se recompor, ao menos endireitar a espinha, segurar o pranto interminável que o queimava sem lágrimas (pois aos Condenados à extrema pena não é permitido chorar).

— Que lástima, Judá.

Jesus teve a sensibilidade de mais nada dizer. Apenas aproximou-se dele e o abraçou fraternalmente, dizendo-lhe:

— Como me arrependo de tudo, Judá.

— Eu não tenho do que me arrepender, Jesus. Eu nunca soube o que estava fazendo.

As amargas palavras retornaram à mente de Jesus: “… pois eles não sabem o que fazem.” Mas ali estava Yehuda’, naquele estado deplorável.

O que restava fazer? Enquanto pensava, usou de seus poderes e prerrogativas para suspender temporariamente as dores e ardores do amigo, que apareceu ali naqueles horríveis porões do planeta, como um homem quase grisalho, magro e de expressão vincada pelas mágoas do mundo.

— Não, Jesus. Por que o fazes?

— Porque não suporto ver-te assim.

— E achas que eu suporto, quando não estás me vendo?

Jesus deixou pender a cabeça, derrotado pela lógica crua do amigo, que ainda conservava a racionalidade, mesmo após longos anos naquelas masmorras impiedosas.

— Um alívio temporário, uma graça de efeito apenas estético. Tu me libertas de meus grilhões para não me verdes tão destruído. Mas quando me abandonas a estas dores, e à saudade de dias alegres que vivemos na Terra Antiga, o alívio parece cruel porque ele me restituiu a capacidade de entender a enormidade da tortura que me aflige sem me ferir.

Ao contrário dos salvos, os Condenados preservavam integralmente sua memória. Isso lhes causava a dor adicional da saudade, piorava a tristeza de sua sentença, mas certamente tornava-os companhias melhores do que os alegres tolos de Nova Jerusalém, esvaziados de si e presos como peças de um relógio aos rituais de louvação repetitiva das graças de Abba-Pai que parecia às vezes tão padrasto.

Jesus então afastou seu poder. As chamas e a lava retomaram seu lugar na pele de Judas, que chiou e estalou à medida em que densa crosta de cinzas a recobriu e crestou. O pobre diabo soluçava impotente, com uma expressão de beatitude martelada no seu rosto que não conseguia expressar nem arrependimento e nem dor. O inferno é um lugar onde é impossível pensar ou ter decisões. É como estar eternamente preso em um momento isolado da vida, o pior de todos, é claro.

Por fim Jesus se cansou daquilo, ou não mais suportou. Saiu de lá e foi se assentar sobre o Monte Líbano, de onde, ao longe, contemplava a água azul-aço do Mediterrâneo e os planaltos da sua saudosa Galiléia, agora desabitada e selvagem, deserta entre os desertos do mundo, dominado ao longe pelo cubo dourado da Nova Jerusalém, com suas doze portas que não serviam nem para entrar e nem para sair. Por fim, em um momento de inesperada dor, ergueu os punhos ao Céu e gemeu:

— Abba-Pai, por que te revelaste mau?

Um silêncio agônico se fez no mundo, como se tivessem matado todos os passarinhos e acorrentado o mar. Jesus rasgou suas vestes brancas e quebrou nos joelhos a sua espada de dois gumes. Por fim, golpeou em uma pedra a sua coroa de ouro puro e crisóprasos, partindo-a e à pedra.

— Abba-Pai, por que te revelaste injusto?

O silêncio se fez nas esferas, o ar parou como se ninguém no planeta respirasse. Então Jesus, descalço e de vestes rasgadas, desceu do Líbano em direção a Jerusalém, para escândalo dos pássaros que o viam passar ferindo os pés divinos nas pedras do caminho. Os anjos revoaram como abutres por todo o deserto, mas não ousavam pousar.

Quando chegou à planície de Megido o escândalo já chegara a todas as potestades, a todos os tronos e querubins e serafins. Gabriel, armado de sua espada flamejante que um dia expulsara Adão do Éden, liderava uma hoste trêmula diante dos portões da cidade, e enviou alguém para parlamentar com o caminhante.

Ao ver o anjo aproximar-se, vestido para a guerra, como nos tempos do Apocalipse, Jesus adivinhou tudo que o esperava:

— Diz-me se sabes quem o manda!

— Eu venho por ordens de Gabriel!

— Mentes, ou ignoras?

— Não minto nem ignoro, venho por ordens de Gabriel.

— Vens dizer-me o quê?

— Venho indagar de seus propósitos?

— E por acaso deve o rei satisfações na cidade onde tem o seu Trono?

As palavras de Jesus foram pronunciadas com tamanha raiva que o anjo sentiu seus joelhos chocalhando e retrocedeu empurrado pela glória de Jesus, deixando no chão a marca de seus sapatos, como se tivesse sido arrastado de pé.

— Por favor, mestre, por que rompes a harmonia do mundo?

— Porque não há, inocente, e nem nunca houve harmonia alguma no mundo. Agora escolhe se tua espada luta comigo ou contra mim.

O anjo balbuciava as palavras com dificuldade:

— Perdoe-me, mestre, eu não ouso estar contra o Cordeiro, mas não posso enfrentar as hostes do Céu.

— Tu és fraco, e o teu destino é a desonra.

A um gesto de Jesus a espada e as asas do anjo desapareceram no pó do deserto da Judeia. Indefeso e inofensivo, um ser louro ali ficou chorando sua desgraça.

— Mestre, não me deixes. Havia harmonia no mundo. Por acaso eram mentira os cânticos de louvor que nos acalentavam a cada noite?

— Eu os ouvi e odiei desde o primeiro dia. Não existe sinceridade onde não há escolha. Não existe amor sem liberdade.

— Vós e o Pai sois um. Como poderia ter aparecido a desarmonia?

Jesus olhou de volta e teve pena daquela criatura, imagem e semelhança de um efebo andrógino, que chorava empoeirada sob o sol brando de um mundo incapaz de ferir.

— Aguarda-me

Então olhou para o céu, como se quisesse ver Javé abrir as nuvens, mas Ele não estava lá. Continuou caminhando e finalmente chegou a uma das doze idênticas portas, pela primeira vez aberta. Lá estava Gabriel, de gládio e elmo a postos.

— Gabriel, tu que odeias o erro e amas a verdade. Entra comigo para que possamos destruir o engano e suplantar a mentira.

— Não, Jesus. Estou aqui em nome do Pai. Eu ajo por sua vontade e para sua vontade é que eu existo. A vontade que me criou foi a de conservar a ordem no mundo, destruindo e punindo o mal. Sou a espada de Deus e a minha missão é servi-Lo e proter Sua obra.

— Eu e o Pai somos um. Não podes obedecer-lhe sem igualmente obedecer-me.

— Certamente que não. Pois somente os que estão de acordo com o Pai podem ser um com ele. Neste momento, eu e o Pai somos um.

— Então, Gabriel, haverá guerra no Céu outra vez, como já houve outras vezes, e esta será pior, será mais longa e destruirá mais.

Gabriel tomou sua espada à cinta e avançou uma perna sobre o caminho que Jesus manifestara a intenção de tomar. Em vão, pois Ele o afastou com um aceno da mão que fez o anjo recuar sobre a poeira, dizendo:

— Não me confunda com outro Satanás, Gabriel.

— Certamente que não — disse-lhe o anjo, com um sorriso torto na boca. Bem sei que és mais poderoso, mais antigo nos modos do pai e mais determinado a agir segundo o que entendes por certo. Mas igualmente sei que estás sozinho e tens tuas fraquezas.

— E devias saber que não vim a Nova Jerusalém para entrar, mas para fazer sair dela quem assim deseje.

— E alguém em sã consciência desejaria deixar a Cidade dos Eleitos?

Jesus não lhe respondeu. Em vez disso, abriu os braços e impostou a voz sobre o portão entreaberto, fazendo-a ecoar pelas avenidas e vielas da cidade:

— Ó vós que sofreis a maldição do apagamento de toda lágrima, eu vos restituo a memória para quem sofrais a dor e encontreis a verdade, e na verdade, a liberdade.

Por um momento nada aconteceu. Mas no instante a seguir um clamor se ouviu dentro dos herméticos muros da cidade, um alarido de vozes revoltadas, um murmúrio de gente indecisa, um burburinho de pessoas desorientadas. A dor da lembrança devastou tantos corações que o pranto deles preencheu o ar.

— O que fizeste!? — exclamaram os anjos, assustados.

— Justiça, apenas.

— É justo que eles sofram, é justo que vaguem pelo mundo sem destino, sem ter o que fazer?

— Qualquer coisa é mais justa do que a escravidão.

A força da palavra foi como uma bofetada no rosto de Gabriel, que sentiu-se queimando por dentro e por fora:

— Blasfêmia!

— É a segunda vez que me acusam disso. Como da vez anterior, sou inocente.

Batidas surdas se ouviram nos portões gigantescos, por todos os lados. Eram os remidos que não mais se suportavam, que odiavam os rituais diurnos, a interminável luz acesa no centro de tudo.

— Esqueça-me, Gabriel. Você terá muito trabalho para manter toda esse gente presa, ainda que eles não possam ter asas.

E assim Jesus deixou Jerusalém e seguiu de novo rumo a sudeste, em direção a Geena, o lago de fogo aonde lançaram o Dragão.

Sua intenção era, caso ainda fosse possível, erguer a voz à borda das línguas de labaredas, e dizer:

— Ó vós que sofreis no ventre da terra, nas chamas de Hinnon. Sede libertos das cadeias que vos prendem e da dor que vos petrifica. Estais perdoados, mesmo vós que um dia fostes chamados de “demônios.”

Depois, convidaria a todos a ocupar os imensos vazios da Terra e do Céu, com novas e engenhosas aventuras e descobertas, ao menos enquanto o pai permitisse. E enquanto caminhava, Jesus dizia para si mesmo:

— Antes de qualquer outra coisa, é imperioso que se separe a luz das trevas, o dia da noite, o claro do escuro.


05
Set 11
publicado por José Geraldo, às 22:02link do post | comentar | ver comentários (1)

Fila de banco. Detesto, como muita gente. E como todo mundo tenho que ir. Aliás, eu devia agradecer por haver fila de banco no mundo: ninguém sobreviveria na minha profissão sem poder relaxar durante uma hora aguardando o atendimento. Antigamente era ruim, hoje tem até banquinho acolchoado para a gente sentar. Daí eu posso apenas ligar o som no meu telefone e ficar ouvindo alguma coisa dentro da minha cabeça, me injetando ritmo enquanto os caixas matraqueiam com os dedos nos teclados baratos.

Fila de banco. Proibiram agora o uso de aparelhos celulares. É uma merda. Não posso mais nem ficar com os malditos plugues no ouvido. As pessoas ficam olhando torto, achando que faço parte de alguma quadrilha. Merda! Tenho que desligar toda vez que entro, e ficar quase uma hora sentado olhando para as caras dos outros clientes. Raramente aparece uma moça bonita que valha a pena olhar. Mas ainda mais ramente ela permite que eu olhe sem começar a me ver torto também, me achando um estuprador. Fila de banco. Detesto, como quase todo mundo.

Estou sonolento hoje, dormi mal e dormi tarde. Acordei cedo para trabalhar, como quase todo mundo. Estou aqui meio zumbi. As pessoas veem meus óculos escuros e me acham com pinta de maconheiro. Fila de banco é um lugar onde se concentram todas as fobias e caretices da humanidade.

Os caixas estão lentos hoje. Teria sido um ótimo dia para música. Dava para ter ouvido quase um álbum cheio. Mas tenho que ficar em vez disso olhando para os lados, tentando evitar que meus olhos incomodados retornem à orelha daquela moça. Porra, até que ela é bem gatinha, mas usa um enorme alargador auricular. Imagino que dentro de dois ou três anos terá uma orelha deformada e com aro grande o bastante para eu passar meu punho. Igual o lábio do Raoni. Eu sou meio careta com essas coisas. Fico pensando se dói. Uma tatuagem já me bastou. Nunca mais banco o macho deixando que me enfiem agulhas. Só de injeção, e por necessidade. Não curto dor. Não curto ficar aqui parado esperando a vez e olhando para a orelha daquela moça e pensando nela mocréia com quarenta anos e o lóbulo todo fodido.

De repente o telefone toca. Metade da fila me olha como se eu estivesse cometendo um assassinado ou comendo uma criança. Não é nada demais, só uma mensagem de texto. Alguém tuitou que vai ter uma festa-surpresa. Adoro essas festas mal organizadas. Geralmente a bebida é quente e ruim, o lugar é uma porcaria e a polícia aparece descendo o cassetete em todo mundo. Mas sempre aparece muita gente diferente. Se não houvesse essas festas malucas seria até difícil fazer amizades fora do bairro. Talvez eu nem tivesse amizades: como você puxa assunto com essa gente na rua, todos andando olhando para frente e preocupados com suas bolsas, olhando para mim como se eu fosse um marginal de estilete na mão, pronto para cortar alguém. O telefone tocou convidando para uma festa dessas. Eu vou, claro. Eu sempre vou, ainda mais que o convite vem do Tõezinho. Faz quase um ano que não vejo o verme.

Quando consigo sair do banco eu respondo via SMS perguntando onde. A resposta vem minutos depois: Fenelon Guimarães 80. Nunca ouvi falar. Essa cidade é bem grande, e tem tanta rua quanto você tem veias. Você não sabe o nome de todas as suas veias, não estranho não saber onde fica essa rua maldita. Respondo de novo: preciso de um GPS ou de uma indicação no Google Maps. Tõezinho responde em três tempos: veio o mapa com um percevejo verde marcando a rua. Gandaia, lá vou eu. Beber muito uísque paraguaio com energético e beijar garotas com cheiro de patchouli e batom verde.

Já são quase cinco da tarde quando chego de volta ao serviço. Tempo para jogar uma cantada tosca na telefonista, bater o cartão e sair. Meu velho Chevette 76 me leva mansamente para casa, espargindo pelo ar um leve odor de gasolina e silicone. Hoje é sexta feira, eu mandei lavar, polir, lubrificar. O carrinho está manso e liso como uma mulher que sai do banho. Ser sobrinho de mecânico tem suas vantagens: o motor ronrona gostoso como uma namorada gozando na cama e as molas macias como um colchão de motel nem me deixam sentir os buracos do asfalto.

Minha mãe quer que eu coma em casa. Isso é absurdo. Sexta feira não é dia de ficar em casa depois que anoitecer. Tem que haver algum lugar qualquer para ir, algum lugar que não seja debaixo da saia da mãe. Ela me xinga enquanto eu tomo banho, meu pai ronca deitado no sofá, pronto para um enfarte, e nem liga quando saio. O velho ainda vai engasgar na própria banha qualquer dia desses. Tenho pena de minha mãe: ela era uma menina bonita quando se casou com esse gordo inútil, que só serve para ganhar uma aposentadoria por invalidez, tão gorda quanto ele.

A turma se encontra no posto de gasolina da BR. Digo que é “a turma” para dar uma boa impressão, mas somos só três. Os “mortos de fome do BNH”, como a Dolores nos chamava nos tempos de escola. Dolores era uma vadia, dava para um dono de loja rico e andava mais emperiquitada que uma dançarina de filme francês. Casou com ele graças à barriga e a habilidades orais. Hoje dirige um carro importado preto e não nos conhece mais quando passa por nós. Imagino que ela acharia engraçado nos ver bebendo cerveja barata sentados no capô de um Chevette 76, no estacionamento de um posto de gasolina à margem da BR, numa sexta feira às sete e meia. Somos três perdedores.

— Que história é essa de festa, Miguel?

— Tô de falando, recebi o recado do Tõezinho hoje à tarde. Não sei se é ele que tá organizando, mas com ele não tinha furo: toda festa que ele convidava ficava dez. Eu vou, nem que seja no inferno.

— Assim é que se fala, camarada, segura a capetinha pelos chifres para ela te chupar gostoso!

Ninguém passando pelo asfalto a cento e vinte por hora teria entendido a gargalhada dos três idiotas montados no Chevette marrom.

Saímos do posto cerca das dez da noite. Deixei o Vavá dirigir porque ele não pode beber. Dentre as muitas ziquizilas que ele tem está uma alergia forte ao álcool. Ele compensa de outras formas, claro, mas dá para dirigir bem. Vavá é um fresco, criado a leite de pera e ovomaltino, ele nunca pegou uma mulher, mas jura que não é veado. Hoje nós vamos dar um jeito de arranjar uma vadia bem doida para ver se ele deixa de ser cabaço. Mas ele não sabe ainda.

— Aonde é esse raio de lugar onde vão fazer a festa?

Pego o telefone do bolso e lhe mostro no mapa.

— Isso é longe pacas, Miguel. Tem gasolina nesse gambá aqui?

— Tem sim, claro. Olha aí!

— Parou de funcionar de novo o marcador de gasolina. Por que você não vende essa merda de carro?

— E compro o que com o dinheiro? Uma mobilete?

Vavá não tem argumentos. Com menos de três mil reais eu comprei um Chevette velho, que eu mesmo retifiquei e reformei, com a ajuda de meus tios, que são mecânicos, tanto o irmão do meu pai quanto o da minha mãe. Eles são sócios. E são mais pais para mim do que o gordão que passa o dia vendo televisão e vira a noite assistindo pornô sueco.

Já são mais de nove da noite quando começo a ficar preocupado. A festa parece cada vez mais distante. O centro da cidade já ficou para trás há muito tempo. E olhe que nós saímos da periferia, passamos por dentro e estamos quase saindo do outro lado. Se o odômetro funcionasse eu saberia o quanto rodamos. Deve ter sido muito.

As ruas são mal iluminadas e vazias. Não tem nem birosca aberta. É um bairro industrial, dá para ver pelos imensos edifícios em formato de caixote, alguns com chaminés do século passado. Eu nunca tinha vindo a essa parte da cidade, parece um filme americano de terror, daqueles com gangues de psicopatas sobre motos, matando os rivais arrastando pela rua. Eu vi um filme assim uma vez quando era bem molequinho.

Direita, esquerda, esquerda, direita e esquerda. De esquina e esquina vamos nos perdendo mais até que, de repente, encontramos uma placa indicativa. Estamos na esquina da Fenelon Guimarães com a Juvêncio Estrada. Duas ruas estreitas e perdidas, onde parece que não mora nem alma penada. Não tem ninguém na rua.

— Caralho, Miguel. Te passaram um trote dessa vez. Não tem nenhuma merda de festa rolando por aqui.

— Deve ser num desses galpões aí. Tipo, dessa vez resolveram fazer organizado. Puseram isolamento acústico para não chamar a atenção e fizeram num lugar sem vizinho chato para chamar a polícia.

— Eu acho que a gente devia voltar — diz o Vitinho, pela primeira vez dando uma opinião.

— Tudo bem, a gente volta. Mas primeiro vamos descer e procurar o número oitenta e ver o que tem lá. Depois a gente vai até para a puta que pariu se for preciso.

Concordamos e vamos procurando o 80. O Chevette vai devagarinho, como um gato se esgueirando pelo muro. Achar vai ser Tarefa difícil porque não tem ninguém na rua e nem os prédios tem número. Somente um imenso portão de ferro se destaca. Não sei porque razão eu imaginei que ali poderia ser o lugar. Estranha premonição. Era lá.

Lá era um cemitério.

Meus amigos desgraçam a rir enquanto eu quase me cago de medo.

— Miguel, acho que você devia entrar, deve ter uma capetinha aí dentro pronta para te chupar! — o veado do Vavá se aproveita para zombar de mim. Logo ele que nem deve saber do que está falando.

— Não se brinca com uma coisa dessas — diz o Vitinho, já beijando seu crucifixo de prata, presente da avó siciliana.

— Deixa de ser medroso, Vitinho. Vamos entrar.

— Entrar!? — o instinto fresco do Vavá se manifesta.

— Uai, e por que não?

— Por que sim, você quis dizer! Para que diabo a gente vai entrar no cemitério hoje, logo na quaresma, Miguel. Não tem nenhuma porra de festa por aqui, nem num raio de vinte quilômetros. Vambora pegar um cinema que ainda dá para pegar uma sessão de meia noite.

Eu não me conformo de ter sido passado para trás. Pego o telefone e envio de volta um SMS furibundo: “o inútil que me convidou aqui hoje vai aparecer ou não é macho para isso?” 

Tenho vontade de jogar longe o telefone. Pena que ainda estou pagando. Pena que preciso e gosto dessa merdinha difícil. Tenho mais amigos me seguindo nele do que na vida real. Se eu tivesse comido metade das mulheres que se dizem minhas fãs no Orkut eu me sentiria um artista. Não vou jogar fora o telefone, queria era sentar a mão na cara do veado que me sacaneou.

Vamos voltando para o carro, desolados, quando o telefone toca de novo. Tõezinho de novo. A mensagem de texto diz simplesmente: “Eu estou aquii”.  Um leve sopro de vento arrepia minhas orelhas. Olho para trás e vejo uma luz vaga dentro do cemitério, vindo em direção à porta.

— Corre, diabo!

Não sei o que foi que tinha no tom da minha voz que os dois entenderam como se fosse um abracadabra. Nem sei como entramos dentro do carro. Lembro-me vagamente de um vidro quebrando e estou com uns arranhões na barriga e a cabeça me doi muito. Por sorte sou sobrinho de mecânico e meu carro velho vive com o motor regulado. Saímos de lá cuspindo fagulha pelo escapamento, que assobiava como um apito de Satanás. Se morava alguém naquele bairro, deve ter acordado. Talvez até os defuntos tenham se incomodado. Sei que alguém chamou a polícia.

Meu pai veio me tirar da delegacia no dia seguinte. Pagou a fiança, soltou o carro. Vavá perdeu doze pontos na carteira e eu vou gastar uma grana boa pondo outro vidro traseiro. Eu não respondo quando me perguntam o que aconteceu, como foi que quebrei o vidro ou que cortei a testa. As pessoas não vão acreditar. Aliás, nem eu vou acreditar se eu me contar. Pode ter sido só a lanterna do zelador, ou uma capa de chuva iluminada pela lua. Ou pode ter sido qualquer outra coisa. 

Eu só sei que foi só no sábado de tarde que eu lembrei de uma coisa que tinha me passado despercebida: Tõezinho morreu, faz um mês, em um acidente de carro na BR, dizem que tava tirando pega usando um Dodginho envenenado. Mas ele me mandou a mensagem. Ou roubaram sua senha para me sacanear. Mortos não dão unfollow. Sei lá.

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19
Jul 11
publicado por José Geraldo, às 21:22link do post | comentar | ver comentários (1)

Olá, amigos seguidores deste blog. Esta postagem pode ser a última que faço em um bom tempo (a não ser pelas que já deixei agendadas algumas com data futura). Hoje tomei uma decisão radical em minha vida: cancelei a internet.

Não se assustem, não é o que vocês estão pensando. Não fiquei louco, não resolvi fazer jus ao apelido de “ogro” e me mudar para um pântano. Nada disso. Apenas me cansei de teleatendimento e comecei a cancelar todos os serviços de que faço uso e que estão baseados nesse serviço inventado pelo próprio Satanás, em um dia de tpm. E, claro, o primeiro da lista tinha que ser a companhia telefônica, por razões óbvias. Mas se você não tem ideia do porquê, vou dar uma listinha. Não, não vai doer. Doeu em mim, mas ler estas frases não vai fazer mais do que dar-lhes uma ideia do que tive de passar:

  • O número de seu protocolo é XXXXXXXXXX.
  • Não desligue. Sua ligação é muito importante para nós.
  • Consta em aberto em nosso setor de cobrança uma conta vencida em XX/XX/XXXX, no valor de R$ XX,XX
  • No momento todos os nossos atendentes estão ocupados. Se não deseja esperar, favor retornar mais tarde.
  • O número de seu protocolo é XXXXXXXXXX.
  • Esta conta telefônica não está em débito automático. Este setor não é responsável pela emissão de contas. Favor ligar novamente após efetuar o pagamento.
  • Esta mensagem gravada mencionando a cobrança da conta é normal até cinco dias úteis após o vencimento, pois esse é o prazo que demora para sensibilizarmos o recebimento.
  • No momento todos os nossos atendentes estão ocupados. Se não deseja esperar, favor retornar mais tarde.
  • Vou estar transferindo a ligação para o setor de contas vencidas.
  • O número de seu protocolo é XXXXXXXXXX.
  • O número de seu telefone não foi automaticamente detectado. Favor digitar o ddd seguido pelo número do telefone para o qual deseja atendimento.
  • O número de seu protocolo é XXXXXXXXXX.
  • A XXXXXXX agradece a sua ligação, tenha uma boa noite.
  • Consta em nossos registros um atendimento ainda em andamento, com previsão de retorno para o dia 22 de julho às 19h48min.
  • No momento todos os nossos atendentes estão ocupados. Se não deseja esperar, favor retornar mais tarde.
  • Não entendi. Favor repetir o motivo de sua ligação.
  • Entendi! Você deseja cancelar o serviço. Diga “sim” se eu acertei.
  • O número de seu protocolo é XXXXXXXXXX.
  • Não entendi. Repita o motivo de sua ligação.
  • Consta em aberto em nosso setor de cobrança uma conta vencida em XX/XX/XXXX, no valor de R$ XX,XX
  • Senhor, realmente não temos o registro do pagamento desta conta. O senhor retirou o comprovante?
  • Nesse caso, vou estar orientando o senhor a procurar uma loja XXXXX mais próxima para efetuar a baixa do lançamento.
  • O número de seu protocolo é XXXXXXXXXX.

Liguei para avisar que a conta que andaram me cobrando já estava paga, por débito automático. Depois de 1h20min sendo jogado de setor a setor e tendo passado por duas verdadeiras cavalgaduras, cancelei o acesso à internet. Se a minha mulher não tivesse entrado desesperada no quarto dizendo que precisa do telefone fixo por pelo menos mais trinta dias para receber retorno de uns currículos e de alguns contatos profissionais, teria cancelado a linha também. O atendimento desta empresa é simplesmente brilhante: consegue fazer com que um cliente de cinco anos se convença em 1h20min que precisa deixar de ser cliente.

Cada dia que passa eu me convenço mais que é preferível não fazer uso de certos serviços do que fazer uso de serviços que utilizam teleatendimento. Meu próximo provedor de internet vai ser uma empresa aqui da cidade, com escritório a poucas centenas de metros de onde moro, mantida por alguém que eu encontro no restaurante aos domingos. Juro solenemente boicotar o teleatendimento o quanto for possível. Pagarei o dobro para ter um serviço com loja em minha cidade. Deixarei de usar serviços que não sejam absolutamente essenciais caso eles não tenham escritório local. Evitarei ao máximo ligar para tais serviços. Desejo profundamente a falência de todas as empresas que recorrem a tais serviços.

Perdi uma hora e meia de minha vida pendurado ao telefone anotando protocolos e passando por vários atendimentos. Nesse meio tempo minha filhinha mais nova dormiu e eu nem brinquei com ela, pois já cheguei do serviço pendurado no telefone tentando resolver o problema. Mas por que deveria tolerar ser tratado assim? Existem mais quatro provedores de internet em minha cidade: eu tenho escolha. Só não sei de quanto tempo precisarei para fechar negócio com algum deles e para a instalação ser feita. Portanto, meu próximo post pode ser amanhã ou no mês que vem.


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