Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
07
Set 12
publicado por José Geraldo, às 12:07link do post | comentar | ver comentários (3)

Apesar de identificado quase absolutamente com tudo quanto a esquerda representa, eu confesso que sou um coração que ainda se agita quando ouve o bater de um tarol. As comemorações da Independência evocam lembranças boas de minha infância, era uma ditadura, mas nós éramos felizes. Havia censura, mas o mundo era um pouco mais inocente, éramos meninos e tínhamos nossos ídolos. Meus amigos e eu sonhávamos em estudar no Colégio Cataguases só para podermos desfilar no Sete de Setembro envergando o uniforme de gala com colete de brim vermelho e gravata preta. Batíamos continência para a fanfarra do SENAI, vestida de dólmã e fazendo malabarismo com as baquetas.

Por tudo isso que vivi, pelos sentimentos de amor à Pátria que eu ainda tenho, e que não vou esquecer em troca de espelhos e tabaco, como muita gente que abana o rabinho, feliz, na frente de um gringo, por tudo isso eu hoje me senti injuriado como poucas vezes.

Minha filha estava escalada para o coral que cantaria o Hino Nacional Brasileiro diante da sede da Prefeitura. Pela manhã bem cedinho lá estava eu para vê-la em seu momento de brilho. Por um momento me afastei para ir ao banco comprar créditos para o celular e quando voltei, me vi diante de uma cena quase inacreditável. Enquanto as escolas faziam o aquecimento de suas fanfarras e as crianças se reuniam no palanquinho para o momento do Hino, começou um culto evangélico em alto volume em uma igrejola que funciona ali perto.

A falta de respeito demonstrada pelo (ir)responsável por aquele culto foi tão gritante que várias pessoas perceberam, não somente eu. As crianças dando as primeiras batucadas e os alto falantes ecoando a voz de narrador de futebol do pastor mastigando as sílabas e terminado, vez em quando, numa palavra reconhecível. Sequer percebi o momento em que o Hino Nacional foi cantado pelo coral infantil, porque aquele demente sem civilidade estava atrapalhando as solenidades com seu alto falante.

Não há absolutamente nenhuma desculpa para o que ele fez. Ele fez realmente com o objetivo de afrontar as festividades. Ele não pode alegar que não sabia que haveria solenidade porque todo mundo sabe que Sete de Setembro e feriado, e todo mundo sabe o que acontece nesse feriado. Esta é uma data que está loonge de ser «surpreendente». Não pode dizer que usou o alto falante porque as fanfarras estavam atrapalhando a reza porque lhe faltou o bom senso de antecipar ou adiar o culto, sabendo que era Sete de Setembro e haveria fanfarras. Em vez disso, o pastor preferiu o confronto, afrontando toda a comunidade ali reunida para o desfile e atrapalhando a solenidade do Hino Nacional.

Dirão que estou faltando com o devido respeito ao credo ou aos crentes representados naquela igreja. Pode ser. Mas que respeito aquela igreja mostrou para com a comunidade, as escolas, as fanfarras ensaiadas durante semanas, as crianças que cantariam o Hino, a Pátria representada naquela solenidade? Como podem querer respeito se não respeitam aos outros? Esta atitude, unilateral, grosseira, incivilizada e intolerante só serviu para mostrar quais são os valores ali cultivados. São os valores da imposição, do meu alto falante de milhares de watts gritando dentro do seu ouvido o que eu quero que você ouça, mesmo que você não queira. Jesus não merece seguidores assim, o Jesus que mandou pagar tributo a César e disse ao representante do Império Romano que seu reino não era deste mundo.

Minha revolta contra a afronta cometida por aquele pastor não é do tipo que será acalmada com um simples pedido de desculpas. Aliás, desculpas só servem para acalmar a consciência de quem errou. Para a vítima, só duas coisas servem: reparação e mudança. No caso é irreparável o dano, pois este Sete de Setembro foi irremediavelmente estragado naquela parte de sua solenidade. Mas seria bacana se no ano que vem os responsáveis por aquela igreja realizassem o seu culto um pouco mais cedo ou o adiassem para outro dia. Em respeito (que é bom e todo mundo gosta) não só à Pátria, mas às pessoas que acordam cedo para ver o desfile de seus filhos e para acompanhar o coral infantil cantando o Hino Nacional.

Os religiosos gostam de dizer que uma das importâncias da religião é ensinar «valores» aos fieis. Valores como respeito ao próximo, base de uma sociedade pacífica e estável. Respeito que os responsáveis pela organização daquele culto não manifestaram ter em relação a nós, que estávamos lá para ver os nossos filhos no desfile cívico. Alguns dirão que Jesus é mais importante do que isso. Mas nesse caso, se em nome de Jesus se pode abolir todas as regras de educação e civilidade, então o que impede que em nome dEle também se roube, se mate ou se cometa qualquer crime? E nesse caso, o amor de Jesus não fica reduzido ao mero do inferno, que gera uma obsessão egoísta de salvação, que não se importa com a sociedade? Que valores são esses? Qual a importância desta religião para a sociedade? Eis como uma religião se torna egoísta e monstruosa.

Não quero dizer que aquela religião em especial seja monstruosa, mas que os seus líderes não podem tolerar que floresçam nela atitudes egoístas e desrespeitosas para com o próximo, sob pena de se permitir que a monstruosidade medre. Se é verdade que Jesus quebrou as regras da sociedade ao curar no sábado, também é verdade que, além de tudo que disse sobre a convivência com o Estado (citado acima), ele também recomendou aos seus fieis que fossem mansos, «porque os mansos herdarão a terra».


20
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 18:00link do post | comentar

A Montanha pontificava sobre o vale como um farol no mar de morros do interior de Minas Gerais. Inexplicavelmente os Estranhos não haviam se ocupado dela. Era lá que ficava o refúgio que abandonáramos, era lá que… «Mas, que merda é essa?»

A menos de duzentos metros de nós, uma das coisas voadoras veio pousar, com uma levez realmente Estranha e dobrando-se e estalando sobre si mesma como um origami diabólico. Por fim aquela forma surreal, reduzida a um mero pacote do que fora, caiu pelo chão como uma concha de lesma e foi rapidamente conduzida para dentro de um galpão por alguns seres vestidos com albornozes negros. O ciclo se fechava ali: eu havia presenciado tudo o que precisava para entender muita coisa que me intrigara desde o alto do morro, minha aventura louca fora recompensada.

O sol continuou subindo, estalando nas folhas ressequidas da grama de inverno e nos dando a impressão de que poderia sanear aquela pústula que se abatera sobre o mundo, mas essa esperança vaga começou a morrer quando me dei conta de que nenhum carro passara pelo asfalto desde dias antes, e nenhum passava naquele momento.

Continuamos andando em uma direção qualquer, para longe da cidade, seguindo o caminho de menos esforço. Antes de virarmos a curva seguinte, tive tempo ainda para olhar para trás e ver, sendo rolada para forma do mesmo galpão, outra daquelas dobraduras loucas, que logo adquiriu asas e decolou, para amaldiçoar com sua sombra o que um dia fora um belo vale, sede de uma cidadezinha razoável.

Logo adiante percebemos que não seria fácil chegar a algum lugar: os fios de luz cortados, postes telefônicos tombados, os radares da polícia rodoviária explodidos e estranhas listras escuras marcadas na face dos morros, listras onde o pasto morrera e se transformara em pó, onde as árvores pareciam desesperados carvões acenando para um vento inútil.

Um carro estava parado exatamente sobre a ponte, parecia ter sido queimado. De perto vimos que não era bem isso: ele estava inteiro por dentro e por fora, apenas sua pintura esfarelenta denunciava algum tipo de acelerada corrupção. Os pneus rachados haviam deixado escapar todo ar, e se desfaziam aos cavacos, como a borracha estivesse irremediavelmente leprosa. Ao volante, um esqueleto limpo, com os ossos ligeiramente alaranjados.

Madalena não me perguntou nada sobre o carro. Pobre coitada, imagino como se sentia. Eu mesmo não conseguia falar coisa nenhuma. Em mim, porém, brotou naquele momento a constatação da raride de restos mortais, humanos ou não, desde que penetráramos a cidade. Era muito pouco tempo desde o aparecimento dos estranhos, pouco mais de uma semana, deveria haver uma fedentina insuportável de corpos em decomposição, mas não havia nada. O que poderia haver de mais sinistro nesta constatação eu nem tentei imaginar. Apenas respirei fundo, sentindo-me sortudo por ter conseguido atravessar o vale das sombras da morte como se o Senhor fosse o meu pastor.

Continuamos andando, porém, como se a própria vida dependesse disso. Apesar do peito ofegante, do corpo suado de medo que esquentava à medida em que o sol subia, apesar da alma carregada de dúvidas e das pernas doendo da caminhada de já quase sete quilômetros, traçada entre tantas interrupções, com calma e pavor. Deviam ser seis da manhã, ou menos ainda. No verão o sol nasce muito cedo.

Olhei para Madalena com curiosidade. Ela estava fitando o caminho à frente, com teimosia de quem quer viver. Seu cabelo estava tão empapado de suor que se transformar numa túnica negra que caia sobre as suas costas. O desodorante vencera dias antes e um cheiro forte saía de seu corpo, mas um cheiro que não me repelia totalmente, um cheiro de deserto, de idade da pedra. Fosse outra circunstância eu teria me sentido excitado, mas diante dos fatos o meu cérebro desligou esta emoção. Procriar seria inútil se não achássemos segurança.

O riacho corria preguiçoso e o mundo andava tão silencioso que eu conseguia ouvir o barulhinho da água. O mau cheiro que ele exalara dias antes estava quase inteiramente dissipado. Esta constatação me encheu de esperança, e eu acabei dizendo que era bom estar vivo, afinal, pois o mundo parecia ter sobrevivido.

Passada a curva seguinte encontramos o primeiro automóvel intacto. Ou quase. Estava cuidosamente estacionado em uma entrada que dava para um matagal, ponto conhecido de meus anos loucos de juventude: quando não tinha dinheiro eu estacionava ali para transar. Uma listra negra cruzava o asfalto alguns metros antes, a primeira que pisaríamos em vários dias. Sobre ela estava o que parecia ser outro resto incendiado de automóvel. Mas aquele, escondido entre as folhas ainda vivas daquela moita de beira de estrada, não fora tocado por nenhum fogo divino.

— Parece que tem alguém lá dentro — observou Madalena, que, obviamente, estava enxergando melhor do que eu, pois tinha olhos naturalmente bons enquanto eu lutava contra a gordura acumulada em minhas lentes.

Tentei limpar os óculos no lenço já ensebado de suor, só piorando a situação. Lambi-os em desespero, melhorando um pouco sua transparência, mas criando um cheiro horroroso de mau hálito em torno de meu nariz. E enquanto isso Madalena e eu nos aproximamos cuidadosamente do veículo para ver quem estava dentro.

Era um casal de namorados, obviamente, mas ambos mortos. Hediondamente mortos por balaços através da cabeça.

— Morte matada — novamente Madalena se adiantava, deixando transparecer a leve influência de seu falar.

Nunca lhe perguntara de onde viera. Não se pode conversar muito com putas, ou se corre o risco de descobrir sua humanidade, ou talvez até de brotar uma paixão vexaminosa dessas. Mas aquela expressão, aquele jeito diferente de rolar as vogais, tudo me sugeria que ela vinha de longe, bem longe, ou estivera por lá durante muito tempo. Isso, porém, já não fazia sentido algum. Ainda existiria o «longe»?

Madalena tapava o nariz, contrariada pelo cheiro e pelas moscas nojentas que voejavam em torno dos cadáveres, que já começavam a sorrir, expostos que estavam à umidade e aos vermes.

— Enterramos esses pobres diabos? — perguntei.

— Pelo amor de Deus, não!

— Não é nada humano deixar dois cadáveres assim sem socorro.

— Não se preocupe com esses, não se importam mais. Eles tiveram foi sorte.

Tive de concordar. A única sorte maior que a de estar vivo era ter morrido. Não sabíamos qual era a terceira alternativa, mas nossa passagem por dentro da cidade sugeria que pudesse ser algo bem pior.

Deixamos aquele carro servir de esquife para os dois, apenas tendo o cuidado de usar a gasolina para atear-lhe fogo. Foi um funeral limpo e puro no alto daquela elevação de beira de estrada, coberta por um ralo matagal. As chamas subiram feias e misturadas com a negra mancha do hidrocarboneto, mas o cheiro daquela combustão purificava o ar da putrefação daquelas pobres vidas.

Uma série de estalos graves vindos da direção da cidade me despertou para o perigo. Agarrei Madalena pelo braço e nos atiramos barranco abaixo, através dos galhos e cipós. Caímos estatelados e arranhados à sombra de uma goiabeira e olhamos para cima, apavorados. Duas enormes e negras sombras voejavam em círculos sobre o incêndio, como urubus. Nunca vira os Estranhos tão de perto, nem mesmo em nosso encontro ao amanhecer, na saída da cidade.

Ele voejou e voejou, como se perscrutasse a cena, mas não pareceu nos ver. Talvez o calor forte da queima de tanta gasolina o inebriasse, ou ofuscasse. Lembrei-me da cena na escola e tive esperanças de escapar. Estas esperanças me fizeram congelar de novo, sem dizer palavra. Mas quando Madalena sentiu o vento movido pelo farfalhar abjeto daquelas asas inomináveis ela surtou e se levantou e saiu correndo e chorando em direção ao córrego.

O Estanho logo abandonou seu movimento circular em torno do carro em chamas e soltou um longo assobio que me estalou nos ouvidos e confundiu totalmente os meus sentidos. Senti grogue, tive vontade de vomitar. Voltei o rosto para o lado, preparado para isto, e vi Madalena tropeçar e cair.

No instante a seguir eu acordei em uma poça de vômito. Não havia nenhum Estranho voejando por perto. Levantei-me do chão tão rápido quanto consegui e olhei na direção onde Madalena caíra. Havia algo lá.

A custo movi o primeiro passo. Minhas pernas estavam pesadas, embora me obedecessem. Levantar-me fora relativamente fácil, mas ficar de pé não era. Minha cabeça estava estranhamente confusa e eu não sabia exatamente o que deveria fazer a seguir. Sentia-me como se tivesse estado fortemente sedado, mas só me lembrava daquele longo assobio. E lembrar dele me fez ter novamente vontade de vomitar.

O que estava caído no chão era mesmo Madalena. Ela respirava. Embora tivesse o rosto imerso no próprio vômito, não sufocava porque caíra com metade do rosto sobre o barranco do córrego. Levantei-a daquela posição vexaminosa e atirei na água, para purificá-la do que tivesse acontecido. Desci junto, lembrando da mancha esverdeada entre a minha cara e o peito.

Madalena acordou com água fria e me olhou, soluçando.

— Perdão, perdão, eu não aguentava mais.

— Não tem problema, Madalena, não foi nada.

Na verdade não tinha nenhuma noção do que poderia ter sido. Difícil asseverar que não fora nada.

Apontei-lhe uma casa ali perto, oculta entre as folhagens densas de árvores frutíferas:

— Devemos nos esconder, eles podem voltar.

— Ali não — ela disse. Aquele carrou chamou a atenção deles, não duvido que procurem aqui em volta. Nossa única chance é conseguirmos sair daqui.

E assim, trôpegos e enfraquecidos pelo efeito sonoro inesperado e pelo vômito que provocara, nos levantamos e seguimos o leito do rio, fracos demais para escalar o barranco até o asfalto. Mais abaixo a estrada e a vargem se encontravam em uma ponte, ali seria mais fácil buscar a estrada de novo e tentar achar mais gente, talvez um carro funcionando. Com sorte um carro cujo ocupante tivera a educação de não se matar sentado ao volante para enlamear com sua carne putrescente o estofamento. Talvez de lá conseguíssemos fugir para mais longe, talvez encontrar um lugar onde houvesse mais gente como nós, onde fosse possível cultivar uma simples horta e resistir vivendo, apesar do Inesperado. Seria difícil conseguir isso. A vargem não era nenhuma mesa de bilhar, e não havia árvores que nos servissem de esconderijo.

Enquanto arrastava Madelana comigo — ela estava bem mais enfraquecida — eu olhei para o céu e notei as nuvens negras que se formavam:

— Tomara que seja chuva.

— O que será que nos pega primeiro — perguntou Madalena, algo cínica — a chuva ou os Estranhos?

— Tomara que seja a chuva.

Atrás de nós, na distância, ouvíamos os tétricos estalos daquelas asas malditas. Ao mesmo tempo em que o ar carregado anunciava um aguaceiro de verão a caminho.

— Se tivermos sorte, Madalena, a chuva vai confundir os Estranhos, e nos dará a chance de escapar. Se não chover, querida, essa vargem transformada em pasto não esconde nem um sapo.

— De qualquer forma, com chuva ou sem, vamos andando.

E continuamos andando, torcendo para vir logo a chuva.


18
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 11:00link do post | comentar

À medida em que nos aproximávamos da cidade, sentíamos o ar mais opressivo, mais parado, mais agônico no peito, como se uma mão forte pousasse sobre nossos corações, segurando o tórax em cada inspiração. O ar parecia partido em flocos, granulando nossa visão, ou seria apenas a ilusão que a penumbra traz aos olhos despreparados de quem, como nós, viveu uma vida inteira sob luzes artificiais?

Quando chegamos à primeira rua, pudemos ver a primeira alteração significativa da realidade: tudo parecia muito abandonado, como se as coisas novas não fizessem mais sentido. Como se o tempo estivesse avançando rápido, ou recuando, como se uma espécie de putrefação tivesse vindo com os Estranhos.

O primeiro edifício significativo por que passamos foi uma oficina mecânica. Vários veículos ali estavam abandonados, alguns com as entranhas extirpadas, como pacientes em meio a uma operação. Minha reação diante deles foi paradoxal: fiz-lhes um respeitoso aceno e balbuciei uma oração automática. Na ausência dos cadáveres de seus donos eu reverenciava aquelas máquinas, que podiam servir-lhes de cenotáfios.

Mais abaixo pela avenida chegávamos ao estranho monumento a que chamáramos de "Caldeirão da Bruxa" quando crianças. Normalmente uma rotatória movimentada, com todo tipo de veículo chegando e saindo da cidade por ali. Mas desde nossa entrada na cidade já esperávamos que estaria silencioso e calmo de podermos andar pelo meio da pista. Foi só um pouco mais adiante que começamos a ver sinais preocupantes de coisas que haviam realmente acontecido: ossadas, humanos, caídas pelo chão, incompletas, com sinais de justiça sumária. Aqui e ali fogueiras extintas. A brancura daqueles ossos, quase luminosa sob a rara luz de uma noite de lua nova, me fazia pensar em seres asquerosos que os teriam limpado de uma maneira horrível.

Porém, na avenida não parecia ser possível que ainda acontecesse violência alguma. Passamos diante de uma padaria saqueada, imaginei os ossos do padeiro caídos por detrás do balcão. Um avental azul ensanguentando me fez pensar na balconista vesga que tinha um namorado tatuado e sonhos de se tornar dentista fazendo uma faculdade que não teria nunca como pagar trabalhando ali. Uma pequena tragédia terminada, certamente, com a chegada deles.

Foi então que Madalena, falando com cuidado para que as palavras mal fossem audíveis, me fez perceber o que eu já pressentia, mas não aceitava:

— Não vamos achar nada útil nessa visita.

— A não ser o que pudermos aprender, não é?

— A morte não ensina nada a quem morre.

Não lhe respondi, continuei olhando à esquerda e à direita, tentando imaginar lugares de onde pudesse extrair suprimentos ou objetos úteis. Mas suspeitava que cada faca estivesse cega, que cada lanterna estivesse quebrada, que cada pilha estivesse sem carga.

Porque era incrível a rapidez com que a decrepitude se instalara. Havia erva crescendo sobre os prédios e casas, arrebentando por entre os paralelepípedos, as raízes das casas estavam crescidas medonhamente e sombras escuras corriam pelos cantos, de sombra a sombra.

— Ratos…

Não eram ainda nem nove da noite quando chegamos à praça ao pé do morro e miramos as árvores que ladeavam a Catedral.

— Ainda tem coragem? — perguntou-me Madalena.

Não lhe disse que sim nem que não. Estava ocupando percebendo como o mundo andava estranho. Amassando folhas de árvores para ver se estavam mais secas, pisando no chão com força para ver se não estava esfarelando sob meus pés.

— Ratos, morcegos, insetos…

— Também percebi — ela disse — que tudo que era cultivado está morrendo. Flores plantações, toda forma de cultura. Mas não é surpresa isso, não há ninguém mais cultivando.

— Só não quero que o dia nos surpreenda nessa cidade de pesadelo. Vamos logo ver o que viemos ver, e embora depois.

Subimos o Morro da Catedral mais cuidadosamente ainda. Com o resto da bateria da máquina fotográfica eu registrava tudo que pudesse ser interessante, mesmo sem saber se um dia encontraria fotógrafo onde revelar as imagens ou mesmo computador para descarregá-las. Também evitava vê-las pela tela para não gastar a bateria. Não me lembro quantos flashes foram: havia, de fato, muita coisa interessante para se fotografar. Mas Madalena me chamou à razão:

— Podem perceber-nos pelo flash.

Guardei a câmera em minha sacola, com muito pesar, e continuei trocando passos mecânicos e decidos pelos degraus da escadaria acima. Como se tivessem me hipnotizado.

Chegando à praça percebemos, então, que não estava deserta como o resto da cidade. Apesar de escura como uma cisterna, havia nela um contínuo movimento de sombras fúnebres, cada uma parecendo ter algo a fazer num maquinismo infernal. Dezenas ou centenas de Estranhos perambulavam como formigas, entrando e saindo das ruas laterais, carregando pequenas sacolas e caixas. Foi só então que percebi que eles, apesar de sua aparência diurna formidável, eram pequenos e tinham uma forma quase humana.

A imensa porta da Catedral estava escancarada, abria-se como uma boca monstruosa em direção à cidade, como se faminta por ela. De dentro vinham murmúrios e sopros que pareciam musicais. E pelas portas laterais entravam e saíam os Estranhos, leves sobre o chão, como se já não pertencessem a este mundo.

Tive medo de que pudessem ver-nos. Madalena me abraçou, já temendo o momento em que todos nos cercariam para um linchamento ou pior, mas logo até ela se acalmou: aquelas criaturas passavam por nós sem perceber-nos, pareciam passar até através de nossos corpos, cegas e insensíveis à nossa existência, pelo menos enquanto não dizíamos nada. Não, não tive a coragem de dizer coisa alguma, muito menos Madalena.

Ela me levou pela beira da praça até o muro do Colégio, onde nos escondemos na sombra para descansar, ainda sem coragem de dizer palavra alguma. Depois me arrastou até uma das janelas, cujo vidral se quebrara com alguma pedra ou violência parecida. Dentro estava uma algazarra de mantos, albornozes e vestidos. Faces idênticas, plácidas, pálidas, contritas em alguma forma de emoção incompreensível. Todos vestidos de cores escuras e misturadas, como se um acidente de tinturaria houvesse manchado de luto todas as cores floridas.

Mas os Estranhos eram, como eu pude então perceber, pelo menos parecidos com humanos. Talvez humanos até! Mas como?

Permancemos ali, olhando para eles por quase meia hora. Não havia sentido no que faziam, no que diziam. Aos poucos o medo de que nos vissem foi passando, substituído pela impressão de que não nos veriam nem se deixássemos uma bomba na Catedral. Por fim, enjoado daquilo, puxei Madalena pela mão e saímos da praça.

Descemos de novo pela longa escadaria e passamos em frente à Prefeitura, em cuja fachada, pendurada como um corte de carne no açougue, estava imóvel e úmida, sem oscilar um milímetro no ar parado da noite, uma rota e suja Bandeira Nacional. Saudei o sofrido Pavilhão Auriverde com saudades do que ele representara, mas o que ali estava era o cadáver de um ideal antigo.

Quando já nos sentíamos totalmente perdidos, vimos uma luz brilhar na escuridão. Era uma luz pequena e rútila, que mal conseguia se filtrar por cortinas escuras e gretas, uma luz presa num porão. Procuramos em torno do prédio até acharmos uma porta. Com certa facilidade Madalena a abriu usando alguma coisa que extraiu de sua cabeleira, demonstrando habilidades que eu não conhecia.

Entramos pisando com leveza, tentando não acordar nenhum espírito do local, mas foi uma precaução quase desnecessária diante do ruído incessante que perpassava os corredores daquele prédio. O local havia sido uma escola, conforme me lembrava vagamente. Longos corredores cheios de eco, ladeados de portas que se sucediam como as notas de uma flauta, terminando em uma sombra sinistra, onde nenhuma estava aberta, mas apenas gretas de luz filtravam por ao rés do chão. Em condições normais, teríamos medo. Mas a certeza da morte nos havia despido disso. Tínhamos apenas cuidado e curiosidade.

A porta da primeira sala estava aberta. A luz que víramos não era de nenhuma espécie de lâmpada ou artefato de intenção semelhante. Provinha do zumbido de uma complexa aparelhagem de vidro e metal, que era manipulada com uma vagareza terna por mãos pálidas e magras, que saíam de albornozes escuros.

Havia vários dos Estranhos naquela sala, cumprindo tarefas diversas, todas de alguma forma girando em torno do misterioso maquinismo. Todos estavam completamente cobertos pelas roupas negras, todos tinham pesadas máscaras cobrindo suas faces, como a proteger-se da toxicidade daquela luz que nos atraíra. Olhando melhor, tive a impressão de que a palidez daquelas mãos não era natural, era do material com que haviam feito luvas, também para guardar-se dos efeitos daquele aparelho.

Madalena me puxou pelo braço, sinalizando à frente. Obedeci sem perguntar. Quando tomei o primeiro passo, um dos Estranhos olhou exatamente em minha direção, como se alertado pelo meu movimento, ou por algum ruído meu, ou pela simples agitação do ar. Eu me plantei, apavorado, sem conseguir erguer o pé para continuar andando. Porém, a expressão no seu rosto, se possuía uma, ficava oculta por detrás de uma máscara negra e brilhante que obscenamente evocava traços humanóides, mas não exatamente humanos. Direcionei toda a minha vontade para congelar os meus músculos e impedir que eu fraquejasse. Naquele instante o juízo me voltou e eu percebi o quanto fora louco de buscar entrar no antro dos Estranhos. Maldita a minha curiosidade. Eu não temia pela minha vida, mas por algo muito pior que poderia acontecer.

Aos poucos, a fixidez da expressão do Estranho, isenta de qualquer menção a levantar-se ou a chamar algum dos outros, pelo menos de forma visível, me fez ver que ele não estava me vendo. Talvez estivesse ofuscado pelo excesso de luz que havia naquela sala, ou talvez fosse mesmo cego. Sei que me mantive ali imóvel, segurando a respiração devagar, torcendo para meu coração bater o mais baixo possível. Minhas pernas começaram a doer, mas aquele olhar gélido ainda me encarava, e eu o encarava de volta, como quem mergulha no abismo. «Maldito, está esperando acostumar-se à luz para poder me ver.»

Fui salvo pelo que, na hora, pensei ter sido um simples acaso feliz: a máquina, por alguma razão, pareceu desconcertar-se e começou a produzir fumaça e forte cheiro de ozônio penetrou o ar. Seguiu-se uma série de silvos baixos e ritmados, como sussurro muito apertados. O Estranho volveu os olhos para a aparelhagem que começava a piscar em muitas cores e eu aproveitei aquela nesga de instante para avançar os pés e chegar a Margarida, que estava paralisada na sombra providencial entre duas portas. Mas ela certamente sabia, tão bem quanto eu, que a sombra nada significava para os Estranhos. Foi a minha vez de puxá-la pelo braço. Arrastei-a pela porta de banheiro. Não sei o que foi que me levou à conclusão, que se mostrou correta, de que o banheiro não teria nenhuma serventia para eles.

Encostei a porta com muito cuidado e ficamos sozinhos na privacidade precária daquele banheiro escuro. Sem podermos sequer sonhar a possibilidade de acionar um interruptor de luz. Tateei pelas paredes de azulejos e levei-nos até uma das privadas, no canto oposto, suficientemente distantes da porta para podermos ofegar em paz relativa.

Nenhum de nós tinha coragem de falar. O medo retornara. Os Estranhos tinham deixado de ser figuras fantasmagóricas de crepom negro que voavam sobre o vale, ou fantasmas de pessoas partidas, ou aparições inexplicáveis. Haviam adquirido uma apavorante materialidade, uma maldade que era difícil negar. Uma maldade que não derivava de suas intenções desconhecidas, mas de sua mera e total Estranheza.

Após conseguirmos regular um pouco a força da respiração, tratamos de sair da arapuca em que nos metêramos. Subimos em um dos vasos e alcançamos a janela. Com dificuldade a abrimos, mais por não querermos fazer nenhum ruído do que por sua resistência. E então saímos para o jardim da escola, próximos ao muro.

Para saltar o muro não tivemos tanto cuidado, mas tivemos a sorte de a escada do zelador ainda estar funcional, apesar da grossa camada de ferrugem que a cobria. Pisamos de novo em liberdade, a horrível liberdade, no gramado fedorento das margens do córrego. Felizmente ele era estreito e pudemos saltar à outra margem, escalar o barranco até a rua e tomar o caminho mais rápido para fora daquele inferno de cidade.

Andávamos devagar, querendo muito evitar que nossos calçados fizessem ruído no chão. A partir daquele ponto percebemos que muitas das casas ainda eram «habitadas» — se é que os estranhos podem ser considerados habitantes de algum lugar. Em uma das casas, pudemos ver, pela janela escancarada, um grupo deles examinando um violino, torturando-o para que produzisse grunhidos horrendos, para aparente satisfação do grupo. Estavam tão absortos nisso que não nos notaram passando. Tinham por aquele pobre violino um interesse que me pareceu tão genuíno e humano que quase tive esperanças.

Havíamos chegado à parte mais plana do vale onde a cidade se erguera. Ali era uma antiga praça de comércio, transformada num apinhado estacionamento onde os automóveis pareciam caramujos abandonados por moluscos mortos. Passamos por eles sem reverência, buscando sair da cidade pelo caminho mais curto. Quando pisávamos o asfalto, enfim, olhamos para trás e vimos todo o vale negro, sem luz nenhuma que denunciasse o frêmito ininteligível dos Estranhos. Erguia-se um sol mortiço detrás da Montanha, filtrando raios magros através de nuvens lerdas e gordas que se amontoavam no horizonte. Atravessáramos a cidade, a pé e temerariamente, em uma única noite.


11
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 22:32link do post | comentar

As silhuetas deles poluem agora a visão do horizonte. Há dias que têm estado assim: patrulhando o céu de uma forma quase apática, mas voejando pelo vale como ilhas de escuridão, rutilantes, intangíveis, deitando sombras sobre casas e árvores, fazendo-nos tremer por dentro como se soubéssemos de algo. Mas não sabemos de nada.

Apareceram do nada, sem que estivéssemos preparados para qualquer uma reação. Cortaram-nos uns dos outros, como peças de um tabuleiro cujas casas apareceram subitamente muradas. Estamos presos onde estamos, cada um dentro de onde estava quando tudo aconteceu. Apenas acenos nos contam de quem há nas outras casas, todos trancados e em silêncio, à espera de que a sombra passe e o sol brilhe de novo no jardim.

Devo dizer que nós, cá nesta casa, tivemos sorte. Por estranho que possa parecer estávamos no fim de uma festa, perto do amanhecer. Quando percebemos o acontecido, aqui ficamos, contemplando. Os estranhos nadando na límpida atmosfera da manhã, insondáveis, indiferentes, e todos aqui imersos na poeira e na fumaça de um fim de festa, cansados, sonados, de hálito pesado na boca e suor pregado na roupa.

Ficamos porque tínhamos medo, claro. Não vou inventar nenhuma estratégia, nenhuma razão psicológica ou curiosidade científica. Ninguém aqui é desse tipo. Éramos apenas clientes de um clube de strippers isolado na segurança de uma montanha, fora dos limites da cidade. Lugar privilegiado para contemplá-la, para antecipar quando a polícia vem. Cá estamos nós, alguns homens perdidos, algumas mulheres perdidas. E como o mesmo adjetivo é diferente em cada sexo!

Os Estranhos chegaram, como eu disse, de uma forma tão súbita que nem mesmo os notamos. Tentamos entender algum propósito, algum plano, mas eles não parecem possuir nenhum. Agem de uma forma quase vegetal, flutuam preguiçosamente, como poças de estagnação transformadas em balões, em silêncio, com uma lentidão que apavora.

Madalena chegou à janela na terceira manhã, pela primeira vez. Tinha sido das mais assustadas, mais cheia de culpas, mais supersticiosa. Agarrara-se com seus ícones de bolso e suas figurinhas de gesso e balbuciara tantas palavras que ficara rouca. Tinha medo de demônios e de anjos, de morrer cedo ou de viver "daquele jeito". Seu profundo medo a purificou, deu-lhe uma forma estranha de pudor, de dignidade. Limpou-se de toda pintura e escovou os dentes até remover deles todo resto ou gosto de pecado. Depois pendurou um crucifixo no peito, por fora de uma camiseta de malha escura, e andou entre nós, de cabelos soltos e desgrenhados, quase como uma sacerdotisa.

Mas dizia que ela chegou à janela naquela terceira manhã e observou longamente os espasmos dos Estranhos, ouviu indiferentemente os estalos da estática no rádio, como um espectro irritante de um além tão próximo. E naquele momento, de seu peito socado de tanto choro e vela, brotou uma conversa coerente, finalmente:

— Desta distância é quase impossível saber quantos são.

O senhor grisalho a quem ela se dirigiu não pareceu compreender, preocupado que estava em engolir o máximo do uísque barato, como se esperasse pela redenção de um coma alcoólico antes que o destino o rendesse. Mas eu estava perto, compreendi o esforço que ela fazia para romper o casulo do medo, e lhe recebi com palavras tranquilas:

— Também tenho dificuldade para contar. Às vezes a gente fica com a impressão de que parecem enxamear pelo mundo, outras vezes, que são só alguns que ficam se revezando aqui em volta. Não sei, o que eu sei é que eles parecem dominar os dias, e não há nada que eu saiba que a gente possa fazer.

Os olhos dela continuaram vidrados na paisagem, enquanto a boca falava com uma coerência típica dos traumatizados:

— Parecem grandes pedaços de cartolina, ou de feltro fosco, ou de camurça negra, não sei. Parecem bater asas, contorcer-se, como se estivessem vivos, quase os escuto estalando, como morcegos voando na escuridão do meio dia.

No momento em que ela o disse, também tive, pela primeira vez, a impressão de que ouvia um estalo. E mais ainda:

— Mesmo eles sendo tão completamente negros, dá para sentir, bem de vez em quando, um leve brilho negro, como se o sol os afetasse.

Madalena não me ouvia, ou não dava sinais de me ouvir.

— Parecem bailando no ar, tão inocentes, tão sem maldade, num ritmo lento e seguro, até bonito, como se nem pudessem voar.

Interrompeu-nos um ruído de cadeira caindo. Madalena acordou de seu transe místico e eu finalmente consegui parar de encarar seus olhos negros. O farmacêutico se enforcara. Amarrara o currião na trave da mão francesa e em torno do pescoço, depois chutara a cadeira em que subira, e seu largo corpo, flácido e pálido, saco de vícios e vaidades, estendeu o couro até quase os seus pés tocarem o chão. Havia uma curiosa ironia em ver aquilo: mais três ou quatro milímetros e ponta de seu sapato poderia tocar o chão, se ele quisesse ainda tocar o chão.

Tentamos ainda socorrê-lo, mas não havia o que fazer: os cento e sessenta quilos desajeitados do suicida não eram fáceis de carregar, não depois de dois dias sem uma refeição de verdade, não pelas duas únicas mulheres que estavam na sala, junto comigo, o velho bêbado e o bibliotecário cego — homens inválidos e putas cansadas, reduzidos à feminilidade da espera enquanto os másculos heróis se divertiam com baralho e boquetes no andar de cima. Quando finalmente desceram para ver o que era, os dois olhos do farmacêutico já estavam esbugalhados e a sua língua, roxa e roliça como uma berinjela, mal cabia em sua boca.

— Mas que merda! Esse pacote de banha tinha que se matar bem aqui na sala, no meio do bar! — berrou o Tenente Marcelo, ainda se achando um digno militar, apesar das calças mal abotoadas e do bafo grosso de álcool que espalhava no ar.

Com gestos rápidos ele determinou: cortaram o cinto e deixaram o amontoado humano se estender no chão, sobre a poça de urina e fezes líquidas que descera no momento final. Depois enrolaram o tapete e o levaram para fora. Mas como era dia e as sombras haviam se agitado temporariamente, não ousaram muito mais que abandonarem-no diante da casa, no gramado próximo à piscina que ninguém mais tinha coragem de usar.

A experiência pareceu afetar a todos, pelo menos temporariamente, mesmo os mais empedernidos, os que ainda esperavam, usando o resto de seu dinheiro para pagar por favores sexuais, mesmo as mais alienadas, que ainda se vendiam esperando ter algo a fazer com as joias e as notas de cem. Ninguém subiu para o segundo andar naquela tarde, em vez disso gastaram longos banhos, como se o corpo do pobre farmacêutico obeso lhes houvesse contaminado com algo incompreensível.

Madalena, que voltara à janela para contemplar os Estranhos, atraiu-me até lá. O senhor grisalho, ainda preocupado em beber até a inconsciência, retomara seu assento junto à parede e encarava a garrafa de Orloff como um desafio. Mergulhava a cereja em calda, como se para adoçar a própria morte, e sorvia goles curtos.

Os outros foram vindo, depois de seus banhos, e se instalando no saguão para beber. O assoalho de madeira estava ligeiramente mais claro no lugar onde se estendera o tapete, restando como sinal da morte que ali pousara. Do lado de fora, o cadáver jazia enrolado, próximo à piscina.

Os Estranhos pareciam comportar-se de uma forma ligeiramente diferente. Com movimentos ligeiramente mais rápidos, com uma tendência incômoda de fazerem círculos que pareciam aproximar-se da montanha, como se ela, de repente, lhes atraísse algum interesse. Como se eles já não tivessem a antiga inocência, a indiferença que notáramos. Não sei se fui o primeiro a perceber isso, mas o disse a Madalena:

— Tenho a impressão de que estão querendo ocupar o vale inteiro. Estão circulando mais longe, como urubus procurando carniça.

— Não tenho certeza se sabem da carniça — ela me interrompeu — mas é bem claro que estão circulando uma área mais larga. Dá para ver que estão mais longe uns dos outros.

Naquele momento um grupo, em estratégica fila, como uma esquadrilha decolando para a guerra, subiu do chão junto a um galpão distante, ao lado de uma soturna igreja aonde eu, funcionário burguês, ateu e forasteiro, nunca pusera os pés. Vê-los sair de lá me fez ver, talvez pela primeira vez, que eles eram menores do que pareciam quando voavam pelo céu, tão desfraldados e escuros.

Subiam do chão se desdobrando, se espalhando, jogando vestes imateriais em torno de algum vácuo igualmente ralo. E quando chegavam à altura das nuvens, já pareciam pipas monstruosas que tapavam o sol, sem que sequer uma gota perfurasse sua seda.

Enervado com a movimentação dos Estranhos, que parecia ter se tornado ameaçadora, procurei outras coisas para olhar, seres em que pensar. Mas apenas encontrava o tapete enrolado perto da piscina. Enquanto engolia em seco e criava coragem para sair da janela e buscar água morna para aliviar a garganta irritada, percebi que alguém mais notara o morto: um grande tatu, de pernas peludas e orelhas frenéticas, correu do mato até ele, sem temer nenhuma presença de humanos, como se soubesse já que nós não sairíamos da casa por nada desse mundo. E ao aproximar-se do pacote fúnebre que enfeitava o jardim do bordel, ele encostou o seu focinho na fibra antiga, ansioso como quem entra num banquete, e foi se enfiando pelo túnel de tecido adentro, produzindo movimentos asquerosos, repetitivos, mastigatórios.

Madalena fez uma careta de horror, imaginando o que poderia estar acontecendo ali, quando, então, um horror maior aconteceu: o tapete, deixado numa posição quase precária do jardim, perturbado pelo fossar do animal, começou a girar lentamente sobre si, ganhando velocidade no declive, cada vez mais velocidade, aproximando-se da grande ribanceira, desenrolando-se inominavelmente enquanto se movia, até que o corpo volumoso do farmacêutico apareceu sob o sol, e ainda instável, rolou pela montanha abaixo, para espanto e tristeza do tatu, que o olhou caindo como quem vê meio pão com manteiga caído da mesa com o lado cortado para baixo.

Os Estranhos ficaram ainda mais agitados. Naquele momento eles definitivamente pareceram perceber a casa. Mas, para nossa sorte, era já uma tarde velha, que se carcomia em noite.

— Madalena, eu vou embora.

— Para onde?

— Dentro de duas horas terá anoitecido, e eu não quero ver outro dia aqui dentro nem por nada nesse mundo. Vou pegar o carro e seguir para Juiz de Fora.

— O que você espera ver em Juiz de Fora?

— Não sei, mas não vou ficar aqui esperando a morte chegar, porque é o que vai chegar amanhã.

— Será que ainda existe Juiz de Fora?

— Não sei, pode ser que os Estranhos estejam somente aqui.

— Nesse caso, você tem certa razão em querer ir. Faz sentido querer avisar o mundo.

— Mas o mundo não precisa de aviso. O mundo já deve saber. Quando começou, quem tinha internet mandou o seu recado. Quem tinha telefone, telefonou. Quem pôde fugir, fugiu.

— Pensando bem, a linha telefônica tem estado muda desde que aconteceu. Não tem eletricidade, não tem nada no rádio.

— Sem eletricidade não tem como saber se ainda existe televisão, se a internet está no ar, se o até mundo ainda existe. Mas, principalmente, não dá para saber se é só aqui, ou se foi no mundo inteiro.

— Gostaria de ter um binóculo.

— Já não viu o bastante?

— Nesta vida  já vi tudo que não queria, mas ainda tem muita coisa que eu queria ver.

— Uma saída daqui, por exemplo?

— Não, o que são as manchas brancas lá embaixo no asfalto.

Saí de perto dela para buscar água. Só mesmo muita sede me força a beber água morna. Mas estendi minha saída até a garagem, lá fora. Uma temeridade. Por alguma razão eu deixara de ter medo dos Estranhos. Entrei em meu carro, abri o porta-luvas e retirei de lá a minha câmera fotográfica. Não era um binóculo, mas tinha uma teleobjetiva bastante poderosa. Suficiente para satisfazer Madalena, ela, que tinha fama de se satisfazer com substitutos do que a maioria das mulheres quer. Minha barriga estava tão cheia d'água que a sentia sacolejar quando andava. Com dificuldade a água morna se agarrava em meu estômago, só a força de vontade a impedia de subir.

— Não é um binóculo, mas deve alcançar uma imagem boa lá de baixo no asfalto, Madalena.

Ela tomou a câmera de minhas mãos, eu me aproximei de seu rosto, para ensiná-la a manipular os maquinismos analógicos daquele monstro fora de moda, do tipo que ainda funcionava com filmes. De tão perto o perfume dela não parecia tão vulgar, havia algo de doce nele, cheiro de xampu barato, de suor de puta, mas cheiro que convidava.

Aos poucos as lentes foram perfeitamente ajustadas à distância, e as manchas brancas se discerniram em ossos limpos, humanos. O sol brilhava neles, como em flores de margaridas em um prado verde, o gramado da minha escolinha de infância, coalhado de florezinhas brancas, o gramado onde, um dia, uma outra Madalena, negrinha e bonita, mais velha e mais sabida, me agarra pelo pé, me derrubara como um bezerro de rodeio, e me roubara vinte beijos, para depois sair andando, rindo, dizendo que os havia roubado e não devolveria nunca. Tinha sido um dia divertido quando eu chegara em casa, ainda chorando, traumatizado, dizendo ao meu pai que ela me havia roubado tantos beijos, e não os queria devolver. A risada de meu pai ecoou na minha lembrança. Aumentou a tristeza de ver aqueles ossos. Haveria ainda um dia para as crianças correrem livres sobre os prados?

— Madalena, não vou passar outra noite aqui. Vem comigo?

— Vou. Aonde?

— Quero ir ao centro da cidade, descobrir o que fazem os Estranhos durante a noite.

— É loucura.

— E é exatamente por isso que eu vou fazer. De que adiante ficar aqui em companhia de tanta gente mentalmente sã?

Ao dizer-lhe isso nos viramos para ver os outros homens, quase estuporados de tanto beber. As outras prostitutas se injetavam coisas inomináveis nas veias.

— Eu quase poderia ir agora. Não quero morrer aqui dentro como um passarinho abandonado na gaiola pelo dono. Não sei se Juiz de Fora existe ainda, por isso eu não vou lá, vou ao centro da cidade ver o que fazem à noite esses Estranhos. Acho uma resposta ou uma morte rápida, qualquer coisa é melhor que isso aí.

Madalena fez que sim.

— O que levamos?

— Uma moeda de ouro sob a língua seria uma boa ideia.

Mas levamos mais do que isso: banhados e vestidos com adequadas roupas negras, saímos da casa tão logo a primeira estrela veio. Logo notamos como o fundo do vale, onde a cidade se deitava, parecia tão mais escuro do que deveria. Era a falta absoluta da iluminação.

Descemos, em silêncio e bem devagar, a mesma encosta que o farmacêutico descera com tanto estrépito. Cadáveres adiados são mais lentos que os cumpridos para certas coisas. Era difícil tentar falar: o ar tinha um peso, um cheiro de medo que embriagava. Apesar disso, escolhemos o caminho mais rápido, mesmo sendo o mais devassado. À luz do dia, qualquer coisa que tivesse olhos nos veria descendo pela encosta do morro e seríamos ossos no dia seguinte, mas era noitinha e eu não tinha medo de olhos.


24
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 22:36link do post | comentar | ver comentários (1)

Quando terminei de contar as notas eu já estava com vontade de chorar. Faltavam dois mil e quinhentos no caixa e já estava atolado até o peito em dívidas. Contei, recontei, suspirei e, por fim, registrei penosamente a diferença no boletim de caixa, sacramentado pela rubrica rabiscada do supervisor. Com aquilo a minha vida de caixa acabava: até por uma questão de humanidade me “poupariam” de trabalhar mais no setor, o que significaria uma lamentável queda de quase quarenta por cento no contracheque. Algo lamentável, ainda que nos quatro meses anteriores eu tivesse perdido mais do que a comissão me pagava.

Saí do serviço derrotado. Tinha vontade de sentar num bar e beber até não conseguir mais engolir. Só o que me impedia era a lembrança de meu pai chegando entorpecido e fedendo a cachaça. Como contaria para a minha mulher? Mulheres são compreensivas com vários problemas, exceto os monetários. Não queria chegar em casa para enfrentar tudo de novo. Já tinha sido ruim das duas primeiras vezes, a terceira seria pior que os infernos. Retirei o carro da garagem e saí para o trânsito caótico ainda com o coração descompassado.

Havia um buzinaço em frente à Prefeitura, protesto de professores em greve. Um panelaço na avenida, protesto de flagelados desassistidos pela Prefeitura. Um palhaço vendendo ingressos na praça. Um ricaço em seu carrão humilhava com a buzina um pobre calhambeque enferrujado cujo motor morrera no cruzamento. Eu ainda tinha vinte quilômetros até em casa. Quando peguei o asfalto, a cabeça me latejava como seu ouvisse as batucadas de um samba satânico e eu nem tinha um comprimido. Mas eu suportaria aquilo. O carro escorria pela estrada quase arrependido de ter saído, não queria acelar como se antecipasse a cilada em casa. Eu nunca tivera o pé tão leve no acelerador, e nem pensava em economia de gasolina.

Já na metade do caminho, deu-me na telha que era cedo, ou que simplesmente precisava sair da estrada. Poderia ter dirigido por um abismo abaixo, mas preferi um caminho estreito e poeirento. Somente quando o carro estava embicado entre barrancos, tossindo o pó vermelho do inverno, dei-me conta de que tomara o caminho de casa. Não da casa mercenária que alugava para abrigar uma estranha que trouxera da cidade, mas da materna e morna que eu lembrava nos sonhos, o velho sítio no distrito pequeno, perdido detrás de montanhas e de poeira.

Agira por instinto e por ignorância. Não teria escolhido ir lá. Meu pai estava morto fazia dez anos. Minha mãe estava muda num quarto de hospital, esperando sua vez. O sítio estava arrendado para alguém que eu nem conhecia e o dinheiro, dividido entre três irmãos. Tanta coisa tinha mudado, nem lembrava mais quanto tempo ficara longe de Roseiral. Mas estava indo, e naquela estrada eu acelerava mais.

Era noitinha quando meu carro subitamente apontou na pracinha. O relógio da igreja estava parado como na lembrança, como se a vida estivesse também. Mas as casas, que aos olhos de um estranho pareceriam imutáveis, mostravam mudanças sutis, definitivas, quase todas para pior. Parei o carro na parte alta, desliguei, saí afrouxando a gravata e encostei na porta. Os homens que jogavam bisca no boteco notaram minha presença. De onde estava, supus que conversavam sobre mim.

Julho estava frio e seco. A respiração queimava o nariz e eu tinha uma vontade louca de entrar numa casinha daquelas, dormir e acordar em 1980, quando era moleque e uma nota de dez cruzeiros comprava dez pães. Mas nenhuma das casas era máquina do tempo, não adiantava entrar para tentar uma segunda chance de consertar as coisas. A vida só tem o rascunho.

Então vi o quintal de Dona Josefa, o muro alto e pintado de cal virgem ainda pichado com propaganda da eleição passada. Tinha passado tempo suficiente para as goiabeiras crescerem por cima do muro. As malditas goiabeiras. Eu saíra de Roseiral vinte anos antes para não ter de conviver com a sombra delas na vida.

“Quinzinho”. Conseguira bloquear o nome muito tempo, mas bastou ver a folhagem acima do muro para lembrar. Tínhamos sido amigos e fora eu que insistira no convite: ele nem gostava de goiabas. Eu gostava, e preferia as vermelhas, especialmente meio verdes, para morder com sal e sentir a boca salivar intensamente. Ele gostava do desafio: Dona Josefa era ciosa das goiabas com que fazia o doce famoso que vendia na feira de domingo em Santa Teresa. Completava a renda da viuvez porque a pensão do falecido não dava para muito. Era crueldade roubar goiabas dela, mas moleques de doze anos não sabem. Pulamos o muro dos fundos e escolhemos uma árvore longe da varanda. No calor da tarde a velha se deitava para descansar, era a hora certa para a arte. Hora em que os homens estariam trabalhando e as mulheres, ocupadas nas cozinhas barulhentas fazendo a janta.

Mas o diabo às vezes é justiceiro dos coitados. Dona Josefa amanhecera naquele dia com uma animação inesperada e até os ouvidos de lagarto estavam bons a ponto de ouvir goiaba caindo no chão. Saiu de casa brandindo uma ridícula vassoura, mas nós dois, nem sei porque, tivemos medo como se fosse uma serva de Satanás pronta para voar em nós com feitiços. Largamos as goiabas e subimos o muro do jeito que deu. Fui primeiro: era mais lerdo e Quinzinho ajudou de dentro para eu ajudá-lo de fora. Caí meio de mal jeito, fiquei manco e me arrastei a custo pela calçada. Ele saltou cegamente, confiando que eu estaria lá para segurá-lo. Eu não estava.

Nunca soube direito o que aconteceu. Desde essa época evitei estudar qualquer medicina. Tenho trauma de sangue a ponto de detestar me barbear. Por isso optei por Técnico em Contabilidade em vez do Científico quando fui para o segundo grau. Quinzinho quebrou a cabeça bem quebrada, isso sei. O socorro demorou, teve que vir ambulância de longe e os enfermeiros do posto de saúde nem sabiam o que fazer.

Passei a tarde chorando como um bezerro desmamado achando que ele estava morto. Meu pai teria me dado uma imensa sova se eu já não estivesse em choque de tanto sangue. Ou talvez meu berreiro tenha desarmado sua mão e poupado minha bunda de uma surra de relho. Ele voltou para casa muitas semanas depois, vestindo ainda roupa de hospital e de boné na cabeça. Não falava, tinha um olhar vidrado e movia-se devagar, sempre deitado. Diziam que tinha perdido “massa” e a esperança. Dona Juraci não se conformava, mas a Benina, enfermeira do posto, jurava que um tal Doutor Sebastião poderia consertar o Quinzinho, era só ter paciência.

Meus pais praticamente me obrigaram à visita. Foi como ver um morto, só que ele tomava soro, sopa e longos suspiros por uma feia abertura no pescoço. Mesmo meses depois eu ainda acordava de noite debatendo-me no colchão com os braços abertos para amparar a queda imaginária de alguém.

Quando formei do segundo grau, achei emprego na cidade e pedi a permissão de meu pai para cair no mundo. Só voltei para o enterro do velho e para buscar minha mãe para o asilo, meus irmãos é que me visitavam, nunca eu. Não pedia notícias de Quinzinho, e os que me encontravam tinham a decência de não dá-las. Mas eu estava diante da casa de Dona Josefa lembrando Quinzinho e a casa dele ficava a menos de duzentos metros, metros que valiam vinte anos.

Fui caminhando pela rua irregular, como um fantasma de cemitério. Os cachorros não rosnavam nem latiam, as pessoas me cumprimentavam com meneio de cabeça ou murmúrios inaudíveis. A casa não tinha campainha, era preciso bater na porta. Enquanto esperava, vi pregada no beiral, como se tivesse aparecido naquela hora, uma placa de latão com o logotipo de um refrigerante. A janela que se abriu, não a porta, e uma moça morena, formas fartas e sorriso de piano, apareceu dizendo que não estava pronto. Depois foi que me notou, ou melhor, notou que eu era um estranho.

Aproximei-me da janela e notei que ela estava cheia de borrões de farinha pelos braços e os cabelos iam presos em um boné apertado. Dentro da janela havia prateleiras de biscoitos e bolos, uma geladeira.

— O que é que não está pronto ainda?

— O pão da noite. Fica pronto em vinte minutos. Vai esperar?

Disse que sim e pedi um refrigerante para me distrair. Começaram a chegar os fregueses do pão da noite, todos conhecidos, poucos com dinheiro. Olhavam-me surpresos, sem o que dizer.

Exatos vinte minutos depois ouvi barulho de metal contra metal e adivinhei que retiravam a fornada. Então a porta abriu e Quinzinho veio, mancando e com o mesmo olhar mortiço que eu lembrava em pesadelos, mas de pé e cheio de farinha. Ele murmurou algo com a morena, que passou a ajudá-lo a entregar os pães e anotar nas cadernetas.

Comprei sete. Dizem que é conta de mentiroso, mas exatamente por isso foi o número que me veio quando a morena perguntou quantos queria. Paguei, agradeci e fui saindo. Não sei se ele me conheceu. Sei que o Doutor Sebastião parece que o consertou um pouco e ele hoje faz pão, um bom e respeitável pão. Talvez até tenha aquela bonita morena em sua cama à noite. Talvez ela tenha aprendido a decifrar o olhar dele.

Volto para casa com os pães, sentindo-me palerma. O que Quinzinho e eu teríamos sido sem aquele dia desastroso? Eu não estaria lamentando uma redução de quarenta por cento em um salário que é suficiente para pagar um bom aluguel e o leite para uma linda garota, filha de uma mulher que nunca conheceria em Roseiral. Quinzinho eu não sei aonde estaria, mas hoje dá para acreditar que está feliz, pelo menos sem o buraco feio abaixo do gogó.

Enquanto dirijo, ainda sem pressa, vou mordendo os pães ainda quentes. Pães que saíram das mãos do meu amigo, do amigo que estraguei e que o Doutor Sebastião consertou, ao menos um pouco. Fiquei todos esses anos fora de Roseiral, não vi o que aconteceu. Talvez Quinzinho tenha até me conhecido, mas por que razão ele gastaria comigo um boa noite? Escolhi este desterro, tenho é que voltar para casa e para a cama de uma mulher vinda de longe, que fala de outro jeito e que me acha um caipira estranho.

Conto apresentado ao Festival Cultural BB 2011.


17
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 22:29link do post | comentar

No feriado saí para uma caminhada em companhia de mim mesmo e, como eu sempre faço nessas ocasiões, desfrutei de uma animada prosa que ninguém ouviu e cujo registro inicial, aliás, se perdeu graças aos desígnios arcanos dos arcanjos que regem a literatura. Hoje, aqui mais tranquilo, apesar de ainda sofrendo a perda daquelas palavras apagadas para sempre, sofrendo o aborto daquele texto como o de um filho aos oito meses e meio, relembro vagamente os raciocínios que me passaram pela mente.

Escrevia eu, antes de ser tão bruscamente interrompido pelo destino, que no dia me sentira tão à vontade para falar de poesia que até mesmo tivera ideias sobre isso. Ideias causadas pela sensação de conversar com o meu alter ego, cuidadosamente sem mover os lábios, para que as pessoas em volta não pensassem que, afinal, eu era mesmo louco como se diz que os poetas são.

Era como estar numa roda literária, dizendo todas estas coisas vazias e sem sentido que os intelectuais dizem quando não estão ocupados pronunciando os nomes de outros intelectuais estrangeiros ou dizendo como o mundo antigamente era melhor. Antigamente os intelectuais não eram tão metidos a bestas, como se pode ver nas obras de Foucault, Kierkgaard e Rímsky-Korsakov.

O meu interlocutor era poeta, ou assim se dizia.1 Estava falando sobre simplicidades muito complicadas que me faziam a cabeça doer e eu me sentia meio alheio àquele ninho tão culto, eu que bebi leite de vaca quando menino e sei qual é o cheiro que tem o capim gordura. Olhei em volta de mim mesmo, imaginariamente, vi a multidão de gente e de carros transformar-se na plateia classuda, mas rala, de um evento cheio de grife, e tive medo de não saber o que dizer. A minha sorte é que toda vez que o desconforto piorava eu abria os olhos, apertava o passo, suava mais e me confortava estar tentando atingir o quinto quilômetro, jogando as pernas em um forte passo lipolítico.

Quando meu deram a vez de falar eu já estava mais calmo e gentilmente pedi desculpas a todos por não mais fazer poesia. Contei que havia um vizinho nosso, nos meus tempos de infância na roça, que zombava de sua lustrosa careca e de seu peito preto de pelagem alta dizendo que na vida dera o azar de crescer demais e passar do cabelo. Ele não era tão alto, mas sempre completava dizendo que na sua família o cabelo também não era. E tendo arrancado alguns risos complacentes com esta história, contei-lhes que cresci demais e passei da poesia. Vinda de mim a frase soou pretensiosa, pois eu cresci até um metro e noventa, mas os poetas devem ter gostado, pois ficou implícito que a poesia não está ao alcance do cocuruto de qualquer um.

Mas sempre que um ser folclórico, como este ogro que aqui escreve, tem a chance de dizer alguma coisa, os presentes, mesmo que imaginários, se sentem à vontade para rir, pois ogros sempre são engraçados, em seu exotismo tão complacente e adequado. Tudo aquilo que eu dissera aos meus interlocutores inexistentes eu já dissera outras vezes, para diversos ouvidos atentos, mas as frases espedaçadas ao longo da vida, quando reunidas com uma pretensa coerência resultaram num atestado autenticado de óbito da poesia, da minha pelo menos.

Mas me perguntou então o meu alter ego se eu não poderia dar à plateia que eu não via, ou que não havia, o prazer de explicar como eu tivera a infelicidade, ou a felicidade, dependendo de quem diga, de ter crescido demais e ultrapassado a poesia. Lembro-me de ter, então, dito alguma coisa mais ou menos assim.

Tudo começou quando começou, eu tinha dezoito anos. Tinha também nenhum plano, doía na alma uma coisa que eu bem sabia o que, mas que poeticamente não convém dar um nome. Então, expulso da realidade, achei meu conforto no amor perfeito, o de uma morta, e escrevi-lhe trinta e nove versos cortantes que, se não eram afiados no romantismo, pelo menos continham lágrimas suficientes para lavar deles a tinta nova do século vinte e fazê-los parecidos com desbotados faqueiros de museu. Quando eu terminei estava quase chorando, todos os meus poemas tinham esse calor que só se tem quando ainda é cedo. Eram versos dispensáveis e melados, do tipo que nem a minha mãe leria, mas eu não tinha escrito uma Ilíada, apenas confessara meus pecados ao papel e para mim aqueles rabiscos tinham mais valor do que o Paraíso Perdido.

O poeta estremeceu-se ao me ouvir dizer um número tão grande. “Trinta e nove”, quase uma blasfêmia. Imagino que se eu estivesse em um debate de verdade haveria alguns vates que recuariam os seus troncos, pasmos, como eu exalasse uma pestilência.

— Trinta e nove versos! Eis aí um exagero! Não me admira que lhe tenha morrido a poesia. Você a afogou em uma torrente de vocabulário, como um padre que afoga a criança em um lago no dia do batizado, em vez de apenas molhar-lhe a cabeça.

Tive de explicar ao poeta que eu creio noutra poesia. Há muitos poetas que pretendem um poema vácuo, brevíssimo, relampejado. Eu porém, prefiro que seja intenso (mesmo que precise ser extenso) e sem nenhum pejo de uma voz que grite o que penso. Não deixo flor branco nas minhas paisagens, para que os leitores usem seus lápis de cores. Que o leitor recubra com sua tinta a cor que escolhi, gerando outro matiz, que encontre ele mesmo onde enfiar a sua flor, que arranque alguma minha se necessário.

Fazer a poesia é como sair pelo mundo a catar poedras. Eu não procuro poedregulhos. Há quem aceite até fezes secas, sementinhas secas. Eu procuro o que nunca foi úmido, porque o ressecado me entristece. Não importo de carregar um: não vou polir grãozinhos de granito para fazer um colar que ninguém use.

Pois nisso morreu minha poesia. Não morreu quando escrevi meus trinta e nove versos de amor à minha amada morta, mas quando terminei de lapidar a obra que lhe dedicava. Eu comecei com uma poedra generosa e tanto martelei e meditei que encontrei dentro dela, timidamente, a semente de outra poedra. E então descobri, na poedrinha ali oculta desde o início, não apenas uma coisa nova, mas a coisa original, perdida, eterna, que eu sempre quisera ter dito. Os versos que achei não apenas eram, e são, o resumo do conjunto de todos os outros mas, muito mais importante do que isto, são a expressão exata de tudo.2 Foi tão chocante a experiência disso que eu não tenho mais escrito nenhuma poesia desde o dia em que me acertou aquela poedra.

Meu interlocutor imaginário ficou tão surpreso quanto eu, exatamente tanto quanto eu. Porque de fato, naquele instante de um feriado cívico que eu nem tenho razão para comemorar, enquanto eu suava penosas calorias numa manhã que prometia chuva, eu descobri uma coisa que eu não sabia. Até segunda feira eu sabia que não escrevia poesia. Desde terça feira eu sei porque.

O que acontece é que, instintivamente, eu não tenho guardada em gaveta alguma a versão colhida, a versão comprida, a versão cheia, a versão original destes trinta e nove versos. Mas tenho duas versões mais completas, verdadeiramente poedras:

Minha morte, tua morte
Outras que virão.
O pássaro morre
Apesar da canção.

E uma versão ainda mais completa:

O pássaro morre
Apesar da canção.

Quando dei-me conta do processo inteiro, que tardou para extrair uma poedra de uma massa disforme de versos, morri com a minha poesia. Não havia como continuar tentando, ou estaria fadado a produzir um livreto de quarenta e nove páginas — e ele talvez fosse mais relevante do que os outros que ainda poderei escrever. Hoje prefiro usar o meu talento para erguer frases mais cheias. Gosto de poluir o mundo com muitas palavras, cresci demais, passei da poesia.

1 Dizemos que são poetas os escritores quando eles se ocupam em fazer livros fininhos, sem um assunto definido, muitas vezes tipograficamente compostos de uma forma estranha, cheios de desvios propositais de ortografia (que são sempre bons para fazer com que os involuntários se percam no meio) e com prefácios, dedicatórias, sumários e biografias que, juntos, perfazem mais palavras que todo o conteúdo.

2 Eu devo dizer que não acredito em resumos tanto quanto não acredito em beijos breves, em pequenas doses, em “rapidinhas” ou em livros que não parem de pé na estante.


27
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 17:40link do post | comentar

Amanheci com náuseas. Não é infrequente que isso aconteça comigo: mesmo depois de ter removida a vesícula eu ainda passo por esses perrengues ocasionais. Especialmente depois de comer chocolate, ou frituras. Mas quem disse que eu vou deixar de comer um belo pastel de queijo só por causa de um fígado? Pois é, rendi-me à gula e amanheci mareado como um marujo de primeira viagem.

Só não vomitei. Talvez tenha sido o meu azar: os males materiais, tanto quanto os espirituais, nos deixam de atormentar quanto “postos para fora”. Uma confissão de culpa, um pedido de perdão, uma diarreia ou um berro pelo Juca. Todas são formas de purificação.

Mas melhorei um pouco depois de tomar um sal de fruta e um comprimido para enjoo e fui trabalhar. Má ideia, má ideia. Passei a manhã com calafrios, uma ligeira dor de cabeça, dificuldade para ficar de pé sem tontear e uma vaga vontade de algo que eu não sabia o que poderia ser. Lá pelas onze e quarenta da manhã eu desisti. Antes de sair para almoçar comuniquei ao gerente que eu positivamente não estava bem e que estava indo ao médico.

Sexta-feira, puxa vida! Coisa mais difícil é achar médico hoje! A não ser pelos que estão nos plantões, os outros certamente já estão viajando ou então com consultórios lotados. Mas tudo bem, para isso existe o pronto socorro e eu não estou exatamente morrendo neste momento. Depois de me certificar que a carteirinha do plano de saúde estava no bolso, encarei a subida.

Disse “subida” porque o hospital é conveniente situado no alto de um morro bem alto. Quem não tem dinheiro para táxi só chega lá se for de ambulância ou a pé, subindo uma escadaria maior que a que Jacó sonhou que levava ao céu. Pelo menos é o que você sente quando está passando mal e tentando galgar aqueles malditos degraus. Eu poderia ter ido de táxi, mas meu orgulho macho me impedia de pagar oito reais para um deslocamento de apenas duzentos e vinte e metros, ainda que fosse praticamente na vertical.

Meu primeiro desafio foi adivinha onde deveria me apresentar para o atendimento. Cada vez que venho aqui me indicam uma porta diferente. São apenas duas entradas, mas eu consigo sempre escolher da primeira vez a porta errada. Não é curioso isso? Parece que, como a maioria dos humanos, eu só faço a coisa certa depois de esgotadas as outras possibilidades. Pensando bem o mundo seria um lugar melhor se não houvesse tantas opções…

Eu já mal conseguia falar quando entreguei meus documentos para a recepcionista. Por sorte ela conseguiu compreender os meus grunhidos. Ou talvez ela apenas tenha tido a inteligência de imaginar que eu estava ali procurando atendimento. Digo “inteligência” porque houve outras vezes e lugares em que eu não tive a sorte de ser compreendido com tanta facilidade.

Esperei cerca de duas revistas semanais inteiras. Duas vezes me apresentei de novo ao balcão, para espanto da recepcionista: “Mas você não foi atendido ainda? Aguarde só mais um momento que eu vou verificar se o Doutor já pode recebê-lo”. Mesmo com vontade de vomitar no saguão eu conseguia achar estranho que ela colocasse os pronomes com tanta competência.

Por fim me vi diante do médico. Imagino que ele deve encarar umas trinta pessoas por semana sentindo o mesmo que eu. Para um médico experiente certos males devem quase deixar uma etiqueta na testa do paciente. Pálido, esverdeado, reclamando dor de cabeça, querendo vomitar mas não conseguindo, zonzo.

— Muito bem, meu filho, você comeu alguma coisa estranha ontem?

— Lembro vagamente de ter comido um pastel de queijo, doutor.

Ele me recriminou com um olhar penetrante:

— Foi só isso?

Diante da argúcia quase sacerdotal daquele homem eu tive de confessar:

— Também uns biscoitos recheados de chocolate. Mea culpa, mea grandissima culpa.

— Você devia saber que não deve abusar. Seu fígado não aguenta tudo isso, meu filho.

Ele rabiscou seus hieróglifos nos formulários e me indicou a uma enfermeira. Ela, porém, se limitou a me instalar em uma cama na enfermaria. Deitei-me ainda calçado de sapatos, com a gravata afrouxada, a carteira no bolso da camisa, o relógio no braço, o celular no bolso esquerdo da calça e o chaveiro no direito.

Longos minutos depois apareceu um enfermeiro para me pôr no soro. Não gostei. De alguma forma sempre acho que as agulhadas dadas pelas enfermeiras doem menos. Ele até que tentou facilitar as coisas, contando umas piadinhas e tentando fingir que me conhecia de algum lugar, mas eu quase lhe mandei para aquele lugar quando ele enfiou a agulha no dorso da mão. Detesto agulhas, detesto injeção, detesto soro, detesto coleta de amostras, detesto tudo isso. E não detesto por frescura, mas por excessivo costume.

Ele queria também que eu mijasse num potinho para fazer o exame de urina. Confesso que nunca na minha vida mijei na frente de um homem. Deve ter tido uma vez ou duas em que fiz isso diante de uma mulher — e nem assim gostei. De qualquer forma eu não tinha nada na bexiga ainda, porque meu estômago andava tão embrulhado que até água me fazia enjoar. Ele então me disse que voltaria quinze minutos depois para colher sangue e eu teria uma segunda chance. Não me empolguei com essa perspectiva.

Não foi ele que voltou, foi um enfermeiro com cara de lutador de jiu-jitsu. O tamanho do braço do cara me fez tremer mais do que o meu fígado empesteado. Só de pensar que seria ele a colher amostra do meu sangue eu tive vontade de levantar da cama, dizer que já estava bom e rolar morro abaixo até em casa.

Meu braço esquerdo estava com o soro, por isso ele resolveu fazer a coleta no direito. Como a cama ficava encostada na parede e a posição ficava meio desajeitada, ele resolveu o problema simplesmente eguendo-a, comigo em cima, e deslocando um metro para o lado, sem sequer fazer careta. Depois disso pegou a seringa e se preparou para coletar o sangue. Eu devia estar passando mal a ponto de estar fora de meu juízo, pois nesse momento ao escrever eu tenho mais medo do que senti na cena ao vivo. Mas ele tinha uma mão surpreendentemente leve, e colheu o sangue sem que eu quase sentisse. Muita mocinha bonita de sorriso meigo me causou mais dor do que aquele homem que erguera uma cama de ferro com meus cem quilos em cima. Mesmo assim, quando ele me perguntou se eu já estava pronto para a amostra de urina eu disse que não. Jurei que não. Por nada nesse mundo admitiria que sim.

O soro estava previsto para vinte minutos. Durou quarenta e cinco. Em parte porque eu mesmo, prevendo que iam demorar a me visitar de novo, fui ajustando as gotas para diminuírem de ritmo. Mas acabei cochilando e quando acordei o meu sangue havia subido até a metade do tubo. Não havia campainha ali, nem qualquer meio para chamar socorro. Fechei rapidamente o torniquete e levantei da cama para buscar alguém. O corredor da enfermaria estava vazio, a não ser por dois pedreiros fazendo uma reforma. Alguns pacientes e seus acompanhantes murmuravam nos outros quartos.

Deitei de novo, por alguns minutos, e então a bexiga começou a me incomodar. Olhei no relógio, já eram quase duas horas da tarde, o soro tinha acabado quase quarenta minutos antes. Peguei o potinho de plástico e me arrastei até o banheiro carregando o poste do soro. Urinei uma amostra e tentei acertar o resto no vaso, mas molhei a mão, o pote, o tubo de soro e o meu sapato. E ainda sobrou um pouco para a cueca. Sempre sobra. Lavei as mãos na pia, tentei limpar a calça e não me incomodei nem com o inalcançável sapato e nem com o tubo do soro.

Então me dirigi ao balcão, onde a enfermeira distraída preenchia uma ficha. Eu tinha chamado tantas vezes e ela não me ouvira. Por sorte meu caso não era grave, ou ela só teria ouvido o choro da família no dia seguinte. Entreguei-lhe o pote todo molhado de urina, com a metade de um sorriso no rosto. Uma doce vingança. Ela me fuzilou com os olhos e eu comecei a ter dificuldades para segurar o resto do riso.

No meio do caminho até o quarto encontrei o primeiro enfermeiro, o que me pusera no soro. Ao ver minha situação ele me pediu calma e disse que iria logo me tirar daquela situação. O “logo” demorou quase um quarto de hora. Mas enfim ele tirou a agulha da minha mão, não sem outro xingamento abafado de minha parte.

O doutor estava ocupado. Me pediram que aguardasse, pois o exame de sangue ficaria logo pronto. Dentro de uma hora mais ou menos eu saberia se não estava com dengue ou alguma “virose” e poderia ir para casa. Ainda estava enjoado, bastante enjoado, e sentia uma forte dor de cabeça. Mas tudo isso acompanhado de uma sonolência intensa, e a cabeça não doía quando eu fechava os olhos. A consequência natural desse conjunto de sintomas foi eu dormir logo, tão logo me vi sem soro no braço para me incomodar. Aninhei-me no leito em posição fetal e dormi de babar na fronha do travesseiro.

Quando acordei a luz mortiça do entardecer entrava obliquamente pela janela. Pardais chilreavam nas árvores próximas à janela. Assustei-me com a hora. Será que me fariam passar a noite? Saí ao corredor em busca de respostas e fiquei ainda mais estupefato de saber que ninguém da turma que me atendera estava ainda por lá. O médico era outro, inclusive um velho conhecido meu, as enfermeiras eram outras. Eles me viram até com certa surpresa, como se eu fosse uma espécie de aparição. Por um momento eu tive a vaga impressão de que eles não sabiam quem eu era e o que eu estava fazendo ali. Se eu não estivesse amarrotado da soneca eles talvez achassem que eu estava chegando. Ou talvez ainda assim achassem, pois bêbados costumam chegar amarrotados.

Depois que me expliquei com o médico, quase pedindo desculpas, ele finalmente achou meu prontuário, mas não conseguiu saber o que fazer comigo. Não sei se foi porque não leu os hieróglifos do outro ou se os registros estavam incompletos. Os exames ainda não estavam prontos àquela hora, ou estavam, não sei. Ele tampouco. Chamou-me ao consultório, mediu-me a pressão e a temperatura e me fez algumas perguntas, sempre insistindo em perguntar se eu estava me sentindo bem, afinal. Respondi que sim em duas das três vezes e ele concluiu, então, que eu devia ir embora.

Saí pela porta da frente do hospital, cambaleando como quem sai de uma festa sozinho. Desci o morro com cuidado para não tropeçar e enfim cheguei em casa. Houve um tempo em que morar perto do hospital já foi considerado um conforto. Tomei um banho rápido, porque ainda me sentia tonto de ficar em pé, e caí na cama para dormir ainda mais. Quem me curou foi o tempo: amanheci melhor no dia seguinte.


19
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 23:45link do post | comentar

Não estou conseguindo dormir. Deve ser sexta ou sétima vez só nesse mês. Minha mãe diz que passo tempo demais correndo solto por aí, vendo coisas que não devia e conversando com espíritos-de-porco. Se eu fosse viver de acordo com a vontade dela, ficaria trancado no porão mais fundo, sem uma vez sequer sair para ver a lua. Porém eu não sou um bicho medroso, gosto do frio da noite, do cheiro do ar limpo, do calor das pessoas.

Quando não consigo dormir, como hoje, começa a me dar uma aflição imensa e fica difícil continuar deitado, olhando para nada. Deixo todo mundo em seus sonhos tranquilos e saio. Quando volto a minha mãe está desesperada como se fosse sempre a primeira vez: “ Você ainda não sabe o que acontece lá fora? É perigoso! ”

Pode ser verdade. Na verdade tenho certeza que é. Mas se ficar trancado também corro um perigo: o perigo de que passe a eternidade e eu não viva nada! Só queria saber de onde me vem toda essa insônia, que está ficando sempre mais frequente, a cada mês. Não há perigo maior que esse.

Hoje é a primeira vez que tenho coragem de lhe falar, moça. Custei muito para isso, porque não a entendo. Você é estrangeira aqui, sua língua soa diferente, distante, mas ainda assim eu a entendo, embora não saiba como repetir. Aliás, nem sei se está me entendo. Parece que sim, porque sente o ritmo da minha indecisão e reage aos pequenos desastres que eu cometo, sempre que tento ser cavalheiresco. Eu tento, moça, mas somos diferentes demais, talvez a minha educação lhe ofenda, talvez a minha agressividade lhe agrade.

Eu acho curioso que você não me conheça. Esse bairro é tão pequeno, os habitantes daqui se conhecem quase todos. O bairro lá de baixo, na cidade nova, está cheio de espírito cosmopolita e moderno, mas este lugar aqui é tranquilo e familiar. Tem dias que até parece que faz mil anos que nenhuma família nova muda, então todos estamos acostumados uns com os outros. Não sei se você sabe, mas algumas pessoas aqui têm medo de você, muito medo. Eles se incomodam quando você vem, mas eu gosto, não me importo.

Não, não ria. Nós somos desconfiados. Não somos amados, isso faz com que nos isolemos. Você não me reconhece, mas você eu já conheço, sua vida já faz parte da minha há meses. Você vem sempre, eu sempre a sigo pelas ruas aí, admirando sua beleza. Só nunca ousava falar.

Posso lhe dizer uma coisa? Acho que é por sua causa que não consigo mais dormir. Como me deitar e esquecer a vida, sabendo que uma moça linda que nem você está perambulando por aí, nesse bairro perigoso, exposta a tudo quanto é coisa ruim que a gente costuma fazer? Não sei se você sabe, mas eu já a livrei de uma ou duas coisas que lhe aconteceriam.

Não, não espero gratidão por isso. Gratidão é um sentimento vil, uma reação de covardes. Prefiro que você me pague de alguma forma e não me deva nada. Não lhe fiz pensando em nenhum grande benefício. Só você não ter fugido de mim hoje já foi um pagamento suficiente, me mostrou que existe alguma maneira de interagirmos, apesar dos dois mundos diferentes em que nós estamos.

Mas no fundo, bem no fundo, o que eu gostaria era que você, que aqui vem tantas vezes sem nunca nos pedir licença, me desse a licença de ir com você, entrar em sua casa, dormir um dia lá.

Oh, não! Não vá ainda embora, moça! A sua companhia dá vida a esse lugar. A sua presença me empresta calor, me faz ver um sentido, afinal, na minha existência vagorosa e vazia. Não, não se vá. E não vá rindo, porque sei que não é de alegria esse riso, mas de escárnio. Minha voz é a de um velho, moça, meu peito está cheio de idade e de trevas, mas não me julgue pela profundidade do escuro de meus olhos, deixe que eu lhe mostre o vigor que resta dentro de mim, porque no mundo em que eu vivo eu ainda sou um jovem, como você!

Não, perdoe-me! Fui afoito demais, minhas mãos às vezes são brutas e bruscas demais para tua carne tão delicada. Não, não se deixe ainda, é do seu calor que eu mais preciso! Oh, desastrado que sou! Não voltarás! Oh, desastrado que sou, talvez não chegues! Tome pelo menos esta ficha, procure um orelhão, chame alguém que lhe socorra, antes que o sangue se desate todo e você morra! Oh, claro! Fichas! Pobre diabo que sou! Apenas fuja, haverá um carro de aluguel ao pé do morro! Vá, não voltes! Oh, desastrado que sou! Não a mereço.

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31
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 12:04link do post | comentar

Cheguei de viagem cansado, ansioso por dormir. Deixei meu carro na garagem e saí pela noite anódina e sem lua. O ar estava profanado pela chuva ainda recente, exalando uma catinga de morrinha de cachorro molhado e os meus pés chapinhavam nas poças de água barrenta que salpicavam as calçadas. No céu parcialmente limpo algumas estrelas, nenhuma vencendo de todo a iluminação artificial.

Havia uma mulher sentada num banco de praça no meio do meu caminho, uma mulher vestida roupas negras e longos cabelos, com o rosto afundado entre as mãos. Estava imóvel como uma morta e meio apoiada, de um lado, sobre algo escuro e disforme. Observei que curvava a cabeça sobre os antebraços e as mãos ficavam perdidas entre as madeixas escuras, que a brisa da noite discretamente agitava.

Poderia ser uma mendiga, ou qualquer imagem sobrenatural, ou talvez apenas uma jovem drogada. Alguma coisa me fez simpatizar com sua solidão no vazio daquela madrugada perigosa. Por isso, contrariando o senso que sempre me mandava, de noite ou de madrugada, ignorar tudo que tivesse duas pernas e estivesse fora de mim, cheguei mais perto e lhe dei boa noite.

Foi como se rasgassem a mortalha de um féretro antigo. Ela ergueu o rosto pálido e macerado de lágrimas contra a luz apática das lâmpadas elétricas, mirou nos meus com uma devastadora expressão de luto em sua boca e uma potente tristeza torcendo seu cenho. Dava para ver que ela havia chorado recentemente. Não! Chorava ainda: um brilho perolado aparecia na pele ao redor dos olhos, pondo um apelo ainda mais puro aos misturados sentimentos que me acometiam. Percebi, surpreso, que seu rosto não levava maquiagem, que seus dedos não portavam aneis e que havia suspenso em seu pescoço somente um rústico pingente prateado em forma de luar.

A voz que respondeu ao cumprimento foi quase inaudível, como o sussurro de uma profecia em um sonho. Não, eu não poderia ajudar-lhe em nada. Sua expressão desolada certificou-me disso tão logo eu pensei perguntar se precisava de alguma coisa. Mas depois de refletir por um momento, talvez temendo que eu seguisse meu caminho, abordou-me com uma audácia ignorante:

— Tu me amas?

Aquelas palavras ventaram como uma vertigem em meus ouvidos. Como poderia pensar que alguém pudesse amar a quem nem sabe quem é? Disse-lhe isso: “Não a conheço”. Ela não gastou nenhum segundo antes de tentar de outra forma:

— Então me odeias?

Suas palavras saíam como se fossem antigas, com poeira de idades imemoriais, incineradas pela inclemência dos séculos. Achei graça nesse anacronismo e também joguei da mesma forma:

— Como odiaria a quem não pude ainda conhecer?

Ela deixou descer outra gota solitária de seus olhos e afirmou, como quem arranca o próprio fígado:

— Se me conheces, me odeias.

Esta afirmação de futuro usando o presente me parece fatalista além da conta. Mas eu era tolo e suficientemente ousado para uma noite só. Disse-lhe que ninguém odiaria uma mulher tão bela, não sem um motivo muito justo, não sem um ódio anterior da parte dela.

Essas palavras saíram de minha boca tão inesperadas que meus dentes se assustaram com elas e morderam minha língua. Ela então se levantou do banco da praça e disse, de uma forma infantilmente curiosa que não me odiava. Seu corpo exalava um perfume de gaveta, ou de casa abandonada, misturado talvez a ervas mortas. Mas quando ela se aproximou de mim esse cheiro de séculos e tumbas não me pareceu ruim. Era em vez disso um perfume de rosas secas, de sabonetes em gavetas.

Mas ela se movia como um fantasma, sua roupa imensamente negra revoava como as asas de uma alma penada. Havia algo muito estranho naqueles lábios roxos, uma doçura cadavérica e pecaminosa naquela palidez helênica. Ela me tocou o rosto com a mão direita, dizendo:

— Como é possível odiar a inocência? Eu não entendo! Eu apenas existo!

No fundo de minha mente alguma coisa começava a agitar-se, sinalizando às minhas pernas que corressem, enquanto outra parte de mim dizia que já era tarde para isso. Mas eu retribuí o toque, levando meus dedos à sua face. Era lisa como uma lápide de mármore, era fria como a água de um lago à noite, e era dura também, mas sua lisura era boa de tocar, meus dedos gostaram de correr por aquela pele que parecia não ter pelo nenhum. Naquele momento, vencendo meus instintos, eu a achei terrivelmente bela e quis amá-la.

— Por que está sozinha esta noite, nesta praça vazia e perigosa?

— Sozinha eu sempre estou, e certamente esta praça não me oferece nenhum perigo.

Algumas pessoas passaram pelo outro lado da praça, bêbadas, ruidosas, cantando obscenamente, uma felicidade ofensiva. Como era possível estarem felizes. Havia guerra, havia peste. Odiei aquelas pessoas. Como se tivesse lido os meus lábios imóveis, a mulher de negro me aconselhou:

— Ah, não os odeies. Eles apenas sentem a tensão dos últimos dias. Eles dançam e cantam porque em sua ignorância eles sabem que se aproxima o dia em que já não poderão. Felizes aqueles que dançam e cantam, porque os dias de cantar e dançar são muito poucos.

— Então venha beber comigo, cantar e dançar. Como todo mundo, você merece essa pouca felicidade que há.

— Então beija-me agora, se tens esta coragem.

Toquei seus lábios duros com os meus, beijamo-nos brevemente. Ela então aceitou que eu lhe tomasse a mão e a levasse da praça. Mas ao sairmos da sombra onde ela estivera, notei que trazia consigo um saco escuro e uma longa foice de lâmina curva. Naquele momento eu teria entrado em pânico, mas eu a beijara e ela era uma mulher tão linda. Então a beijei suavemente uma segunda vez, tentando envolver seu corpo magro em meus braços. Quando nossos lábios se afastaram ela quase sorriu, tentando talvez ser má, encarou-me de novo e disse:

— Eu sou a tua morte. Odeia-me agora!?

Contemplei-a novamente, ainda lutando com o medo inútil que ruflava no interior de minhas crenças e descrenças. Mas concluí que mesmo assim eu não conseguia.

— Não posso odiá-la. Como posso odiar a morte que nasci sabendo que um dia encontraria. Só não sabia que haveria de ser numa praça tão feia, na forma de uma alma tão linda. Mas não a odeio, nunca a odiei, na verdade fiz versos para ti por muitos anos.

— E não sentes medo?

— Tenho medo e desespero, mas não posso odiar a uma lei da natureza. Sobretudo não tenho ódio, tenho é pena de ti, que odeias a vida.

Ela me tomou a mão, como se uma geleira me tocasse, e disse numa voz dançante e cristalina:

— Na verdade, eis a monstruosidade de tudo, não sou eu quem odeia a vida, eu de fato a amo, talvez bem mais que vós que viveis. Eu amo a vida, esta coisa precária e bela que se destrói e se perpetua. Eu existo para destruir, destruo para existir, mas minha destruição abre caminhos, areja a existência para os que ainda vão nascer. Mas mesmo assim, mesmo sabendo que faço algo que é bom, ainda levo na alma uma culpa que não sei bem do que. E um cansaço nas mãos que já carregaram demais esta foice infernal que me deram.

— Tenho pena, então, por isso.

— Acima de tudo, estou cansada de destruir àquilo e a quem gostaria de amar.

— Mas é possível amar sem destruir? Se não ao objeto, ao amor em si?

— Não sei todas as coisas, sou apenas um anjo caído que tem uma missão.

— Tu tens a eternidade, então por que não podes ter algumas décadas?

Ela me olhou com esperança, um sentimento que talvez não tenha sido nunca pensado para os corações dos anjos. Uma esperança tão súbita que quase evaporou o resto da lágrima que ainda pendia.

— Eu pressinto verdade no que a tua boca diz. Teus olhos confessam, não posso negar.

— Então não posso dar-lhe boa noite e ir para casa, como antes. Vem comigo.

— Eu vou contigo. E vou ficar contigo até que me odeies, até que te destruas, até que a Ira dEle nos obrigue.

Seguimos para minha casa como se fôssemos qualquer casal de namorados. A morte me acompanhava, mas eu não tinha medo. Dormi um sono pesado, sofri com pesadelos e com sede. Quando amanheceu, havia um sol estranhamente silencioso atravessando a janela, uma quietude de se ouvir pássaros; mas não havia pássaros.

Preparei meu café da manhã ainda chocado pelas imagens bárbaras de um mundo que se acabava em trevas. Terminei minhas fatias com manteiga e meu café com leite vendo o relógio gotejar minutos como uma hemorragia. Então saí de casa para o trabalho.

Os meus passos ressoavam na escada como os de uma múmia num museu. Havia teias de aranha nas paredes que poderiam ser de semanas ou de meses. Havia um silêncio no ar que evocava os porões de uma pirâmide.

A rua estava deserta, cheia de árvores enferrujadas e redemoinhos de poeira que assobiavam como em antigos filmes americanos. As lojas estavam lacradas, silenciosas, como se seus donos tivessem morrido na cama, de madrugada, e nunca viessem mais para abrir suas portas corrediças. Nenhum cão percorria aquela avenida desolada, nenhum ruído ou música que evocasse vida.

Temi estar louco. Continuei pelo caminho até o meu serviço, sorvendo um ar estranhamente ácido. As vidraças de alguns estabelecimentos estavam deformadas, com marcas estranhas que pareciam mãos, mas não podiam ser. Na praça onde deixara a mulher de negro imperava a mesma mágica de amortecimento que embalara o mundo naquele sono estúpido.

Uma frase dita por detrás de minha orelha me arrepiou cada cabelo de meu corpo: “Tu me amas?” Repeti as perguntas comuns que todos os perdidos fazem nessas horas, era como se eu tivesse incorporado um roteiro de cinema de horror e todos os seus clichês. Quando voltei o rosto, ela estava lá e me olhava com aquela expressão gélida no rosto, brilhando sob o sol como uma blasfêmia.

— V-você. Eu pensei que tinha sido só um sonho.

— E me amas?

— Talvez, mas ainda tenho muito medo.

— Amor e medo se misturam bem, eu sei de prazeres que ninguém jamais lembrou nem aprendeu.

— Não gosto desses verbos, tenho muito que esquecer e muito medo de nunca aprender.

Ela se aproximou de mim, sem que seus pés sequer soassem no chão, apesar de todo o silêncio da rua inteira.

— Tu me amarias aqui, se eu tivesse a coragem de me despir?

Olhei em torno, novamente assustado. Não havia alma viva nem voz que aventasse testemunhas.

— Isso seria algo de meter mais medo ainda.

Então ela o fez, e nos amamos em pecado, ali mesmo.


28
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 16:12link do post | comentar

Eram tempos bicudos na vida, eu tive de vender meu carro. Já não era grande coisa: um fusca 1976 amarelo-ovo que eu detestava. Mesmo assim, vendê-lo doeu na alma. Doeu porque era um gesto simbólico da profunda decadência em que estava. Tinha sido quase rico, tinha comprado carro do ano, mas andaria a pé. Como dizia uma música do Leoni: “Já tive carro e grana e um monte de convites para qualquer lugar”. Tal como o infeliz personagem da canção, eu passaria a só andar a pé, a diferença era que andar passava a ser um sacrifício.

Foram três anos sem carro, muita sola de sapato gasta e muitas horas de solidão e estudo. Projetos que não vingavam, sonhos que morriam. Por fim consegui outro emprego e algum tempo depois pude comprar outra vez um automóvel. Nada de extraordinário, um Ford DelRey 89 a álcool que me daria um prejuízo de mais de R$3.500,00 no total, entre consertos, alto consumo de combustível, pneus novos, lanternagem e uma “manta” de R$ 1.200,00 quando tive de vendê-lo, quase dois anos depois. Desse carro guardo lembranças agridoces. Bons e maus momentos, frustrações e risadas. Uma dessas histórias teve a ver com os adesivos que o antigo dono tinha fixado no vidro traseiro e na lataria da tampa do porta-malas. 

Provavelmente o DelRey tinha sido de alguém muito religioso, talvez até um pastor. Ele tinha nada menos que três adesivos proeminentes (um deles era até fluorescente) com mensagens tipicamente evangélicas. O primeiro, do lado superior do vidro, em letras grandes e berrantes, dizia “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”. Faltava, porém, visibilidade, porque este adesivo tapava boa parte da visão do motorista. Isto talvez explicasse as várias marcas de batida que o DelRey tinha na traseira: dar marcha a ré olhando para um salmo não é tão seguro quanto fazê-lo olhando para o que há por detrás do carro. Desse adesivo eu mesmo me livrei logo, usando álcool isopropílico e uma espuma de cozinha. O segundo adesivo, localizado ao lado do logotipo da Ford, dizia que o veículo era “Propriedade do Senhor Jesus”. Não sei se fora o Senhor Jesus que o vendera para a loja de carros usados, mas tratei de me livrar também daquele adesivo quando o lanterneiro remendou as batidas da traseira. O terceiro adesivo, o mais colorido de todos, corria sobre a parte inferior do vidro, ajudando a estreitar ainda mais a visão para a marcha à ré, e dizia “Pode seguir-me, pois Jesus me guia”. Este adesivo era o mais problemático, pois tinha sido aplicado sobre um outro, mais antigo e já corroído pelo tempo. Eu tentara retirá-lo, mas logo de início percebera que seria um trabalho complicado e eu não tinha álcool suficiente para terminar. Então deixei o adesivo e acabei rodando com ele durante algumas semanas.

Tive então uma reunião de trabalho em Juiz de Fora, cidade aonde já tinha ido dúzias de vezes e que eu dizia conhecer “como a palma de minha mão”. Pela primeira vez em muito tempo eu tive a oportunidade de ir em meu próprio carro, e não poderia viajar de outra maneira. Até ficava mais caro ir em meu carro, mas era um prazer que eu quase esquecera. Entrei na cidade cuidadosamente, depois de quase cinco anos, temendo até ter esquecido onde ficava a Rua Halfeld. Passei pela entrada de Caeté, atravessei o trevo e tomei o “caminho do morro”, chegando à Avenida Brasil, no Poço Rico. Ao chegar ali eu tive uma “sensação estranha” de que havia “algo errado” com o carro que vinha atrás de mim: um Gol branco modelo quadrado, talvez ano 89 ou 91.

Tentei lembrar dos filmes de espionagem que assistia quando menino (sempre fora fã de James Bond e mesmo aos trinta e tantos anos eu ainda lembrava sequencias inteiras quase de cor) e comecei a pensar o que 007 faria se desconfiasse que alguém o estava seguindo. Obviamente o passo inicial era certificar-me de que estava mesmo sendo seguido. Para isso não havia maneira melhor que sair ligeiramente da rota esperada: o perseguidor teria de seguir, denunciando suas intenções, ou eu escaparia. Tomei a entrada da direita em vez de seguir pela avenida, à margem do Paraibuna. O Gol branco entrou comigo. Tomei uma rua à direita, depois outra à esquerda, depois de novo à esquerda. Eu tinha plena confiança de onde estava, não havia nenhum receio. O Gol branco me seguia fosse qual fosse o caminho.

Receoso, tomei uma rua que subia em direção a um morro. Caramba! Nem sei que rua era aquela. Subi acelerando, mas o velho motor CHT do DelRey começou a engasgar e a tossir, até finalmente travar num soluço lânguido e fazer o bicho parar no meio da ladeira. Estranho, porque nem na subida íngreme da chegada da cidade o carro sofrera tanto.

Um pavor sobrenatural tomou conta de mim. Meu coração parecia uma artilharia antiaérea. Minhas mãos estavam tão firmes no volante que meus músculos do braço doíam de retesados. Foi preciso praticamente uma torção de chave inglesa para eu girar o pescoço e olhar para trás.

Um homem usando óculos escuros, vestido de um terno branco riscado de cinza desceu. Ele tinha algo preto na mão. Meu Deus! Um revólver! O que será que eu fiz para mandarem um assassino profissional atrás de mim? Larguei o volante, abri a porta do carro com muito cuidado e fui descendo praticamente com as mãos ao alto, na esperança vã de que fosse somente um assalto.

Mas no que fazia isso notei que o volume escuro na mão do homem fora ilusão de minha mente. Os óculos escuros eram apenas por causa de lentes fotocromáticas: ele era tão míope quanto eu. Abaixei as mãos antes mesmo de ter chegado a levantá-las e tentei desfazer a expressão rígida do rosto.

O homem falou, com uma voz calma e pastoral, estilo e vocabulário típico de religiosos evangélicos:

— O irmão está com problemas?

Admiti que sim, com um simples aceno de cabeça.

— Eu o estava seguindo… — a honestidade do homem era comovente, talvez ele nem fosse me assaltar.

— S… seguindo?

— Notei que o irmão vem de Leopoldina, eu estou vivendo lá desde há uns cinco meses.

— Mas, por que estava me seguindo?

— O senhor dirigia como quem conhecia a cidade: eu estava perdido.

A súbita queda do nível de tensão teve um efeito tão relaxante sobre o meu estado de espírito que eu desgracei a rir sem parar, dobrando os joelhos e gargalhando até babar.

— O que foi, irmão?

Eu não conseguia parar de rir mais. O pobre pastor me seguia sem nenhuma outra intenção que achar o caminho para o hipermercado, e eu surtara achando que estava num filme do 007. Tive pena do pobre homem, que só queria fazer as compras de mês. Caramba! Ele estava com a família dentro do carro: mulher na frente e três crianças no banco de trás. Decidira seguir-me, talvez, porque o adesivo dizia que Jesus me guiava.

— Meu amigo — respondi-lhe — lamento dizer, mas se o senhor me seguiu até aqui porque estava perdido, então nós temos um problema. Não encare isso como uma blasfêmia, mas agora eu estou perdido e sem a mínima idéia de onde estou. Eu me perdi quando decidi não acompanhar a Avenida Brasil, justamente porque estava tentando saber se você estava me seguindo…

O pastor pareceu desolado:

— Realmente, irmão, todos nos perdemos quando saímos do caminho traçado por Jesus.

Ele disse isso com a metade de um sorriso no rosto. Parecia ser um bom homem.

— Mas no fim de contas, irmão, parece que Jesus realmente nos guiará.

Ele fez um gesto com o queixo, que me fez olhar para trás: um policial militar descia do alto do morro, uniformizado, a caminho do trabalho. Tomei a iniciativa de chamar-lhe e pedir ajuda. Ofereci-lhe carona até o centro em troca de orientações. Ele aceitou, claro. Uma passagem de ônibus pode ser pouca coisa para economizar, mas quem desperdiça centavos não economiza milhões. Enquanto ele entrava no meu carro, casualmente notei uma coincidência curiosa: na etiqueta pregada no bolso direito da farda estava escrito “Cb. Jesus O+”.


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