Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
03
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 15:03link do post | comentar

Não é preciso explicar a piada, se você tenta é porque ela é ruim, ou então quem ouviu é um idiota. E não se esqueça que contar uma piada boa para um idiota é prova de idiotice também: o bom piadista adequa o chiste à capacidade do ouvinte, pois uma piada sobre queijos exóticos e filósofos alemães não funciona se você contar para o frentista do posto de gasolina enquanto ele calibra o pneu do seu carro.

Dito isto, é preciso acrescentar que, se não precisa de explicação, a piada também não precisa de desculpas. Se o seu ouvinte se ofendeu com a piada, então é porque você não soube adequar-se ao público. Antes de xingar o ouvinte de intolerante, infantil ou revoltado profissional, lembre-se que o incompetente foi você: se a função do humor é fazer rir, e você ofendeu em vez de alegrar, então os xingamentos todos são para você que contou para uma beata uma piada sobre Jesus e os apóstolos jogando pôquer.

Ambas estas coisas, por fim, devem ser ditas para que as pessoas pensem, porque parece que hoje em dia o humor perdeu um pouco o rumo. Antigamente a gente julgava a piada, e o piadista, pela capacidade de fazer rir. Se a piada fazia rir, então era uma piada. Se eventualmente ofendia alguém, pelo menos a piada era boa. Hoje em dia isso mudou, ninguém nem liga se a piada tem graça ou não, mas se você se ofende, mesmo que não se ofenda sozinho, mas acompanhado de uma multidão, mesmo assim ninguém culpa o piadista de ser incompetente: querem culpar o público, por supostamente ser «intolerante» ou levar o humor a sério demais. A essa gente que parece que pegou procuração para defender o humor idiota do Zorra Total ou piadistas preconceituosos como os «proibidões» do humor, um conselho: vão aprender o que é humor de verdade antes de saírem ofendendo o público. Humorista é artista, humorista cativa seu público porque precisa dele. Humorista se adapta aos tempos, porque se o povo não acha graça ele fica com cara de babaca em cima do palco, rindo da própria piada e tentando explicar. E não há xingamento que resolva, não adianta chamar o público de burro, de intolerante, de carola, de politicamente correto, de nada. Se ninguém acha graça é porque a piada é ruim. Se além de ninguém achar graça você ainda coleciona um monte de gente ofendida, além de contar piadas ruins você ainda é um mala, do tipo que ofende os outros. E não adianta se esconder atrás da desculpa do humor para continuar destilando sua intolerância, seu racismo, sua idiotice genérica.

Piada não é escudo para babaquice. Tanto quanto a licença poética não desculpa péssimos versos. Se você conta boas piadas, ou faz boa poesia, adquire um crédito que lhe permite ofender algumas pessoas, ou quebrar algumas regras. Mas se a sua piada é um saco, se o seu verso é uma porcaria, então você não tem porra de crédito nenhum, tem mais é que aguentar calado as críticas. E sabe por que? Por que os bons humoristas e os bons poetas AGUENTAM. Eles aguentam as críticas calados porque sabem que seu trabalho os redime. Se milhões de pessoas riem de uma ótima piada, então os dez ou vinte que se ofenderam ficam com vergonha de criticar. Você não precisa defender uma boa piada: se está precisando defendê-la, ou defender-se, é porque a piada é ruim e você é um péssimo humorista.

Tendo dito isto, encerro recomendando a esses molequinhos criados com leite de pera e ovomaltine que acham que são engraçados porque ofendem aos outros: vocês precisam assistir muito humor de qualidade. Monty Python, Trapalhões, Três Patetas, Hermes e Renato, Jô Soares (do tempo do «Viva o Gordo»), George Carlin, Chris Tucker, Bill Cosby e muita gente mais (até o TV Pirata, o Dóris Para Maiores e o Casseta e Planeta dos primeiros anos).

Achar que as piadas fazem rir quando ofendem é como achar que as pessoas riem mais quando as piadas são contadas aos berros e relinchos, como fazem os atores do Zorra Total, que atuam gritando, como se assim pudessem forçar as pessoas a rir. É como achar que acrescentando palavrões ao texto ele fica mais humorístico, como fazia o Ary Toledo em seus shows dos anos 80, em que cada piada era pontuada por um palavrão cabeludo. Mas isso não é verdade: palavrões, gritos e ofensas são apenas instrumentos, que podem estar presentes, mas que, por si só, não fazem rir, a menos que sejam usados com economia.

E tendo dito tudo isso, finalmente peço que pensem um pouco (se bem que «pensar dói») e redefinam suas prioridades. Porque vocês não estão defendendo o humor, estão defendendo a ofensa e a vulgaridade usando o humor como desculpa. Ao fazerem isso, abrem caminho para justamente que se ataque o humor, usando a ofensa e a vulgaridade como justificativa. Não reduzam o humor à estatura de sua cultura e de sua inteligência.


23
Set 12
publicado por José Geraldo, às 21:31link do post | comentar
Um poema satírico inspirado por uma postagem de minha amiga Ana Feijó da Cruz no Facebook.

Eu juro
Sou de um tempo passado,
em que cupcake se chamava bolinho,
blush se chamava ruge,
van era furgão
sale era liquidação.

Nunca me ocorreu
chamar meu amor de love,
nem referência de benchmark,
nem interessado em stakeholder,
nem artigo de paper
e nem discurso de keynote.

Hoje vivo perdido
comendo cigarrette em vez de enroladinho.
Nunca mais vi jogarem bola ao cesto
e nem futebol de salão.

Acho estranho quando chamam
stickers de adesivos e
entrega em domicílio de delivery.
Especialmente se houver alguma coisa free
nos cookies que compro no shopping.

05
Set 12
publicado por José Geraldo, às 00:53link do post | comentar
Tolkien dizia ter um «prazer secreto», verdadeira motivação por trás da escrita do «Senhor dos Aneis»: inventar línguas. É um passatempo muito antigo, diversão de grandes QIs. Nos seus primórdios, ainda não elevado ao estado de arte, produziu línguas pensadas para serem veículos neutros de comunicação internacional, como o esperanto. Posteriormente, constatada a inviabilidade de tal projeto (pois todos detestam unanimemente o esperanto), os fazedores de línguas passaram a ousar, e surgiram coisas diferentes.

Um linguista chamado Benjamin Whorf teorizou que as línguas poderiam condicionar o pensamento. Ele estava errado de várias formas, mas muita gente tentou experimentar isso criando línguas destinadas a mudar o mundo. Línguas feministas, línguas belicistas, línguas com semântica complexa, com gramática assim ou assado. Em geras estas línguas têm muito pouca inovação em relação à imensa riqueza das línguas reais que o mundo produziu, mas elas revelam o grau de cultura e o tipo de personalidade que o indivíduo que as criou possuiu.

Este foi, aliás, o ponto de partida segundo o qual um semiólogo atestou que J. R. R. Tolkien era racista. Como se não bastasse os seus heróis élficos serem «fair haired» (um termo inglês ambíguo que associa cabelos claros a cabelos bons) e o líder das forças do Bem ser o Mago Branco, ainda havia a «Fala Negra» (o «esperanto» das forças de Mordor). A língua dos elfos se caracteriza por sua pureza, enquanto as línguas dos homens, seres decadentes e transitórios, se contaminam com influências as mais diversas. Tanto o Quenya quanto o Sindarim (as duas principais línguas dos elfos) se baseiam em idiomas europeus (finlandês/latim/lituano e galês/holandês, respectivamente), mas a língua das forças do mal se inspira em dialetos do Oriente Médio.

Não chego a concordar que Tolkien fosse ativamente racista, apenas que ele não estava isento do racismo latente em sua época (nascido na África do Sul e contemporâneo da eugenia, do nazismo e da Ku Klux Klan).  Prefiro pensar que a «pureza» a que ele se refere é um tipo de coerência interna que muitas línguas parecem não ter, notadamente o inglês, que é tão esquisito que há uma corrente da linguística que o classifica como um «dialeto crioulo» do francês medieval, com substrato anglo-saxão, que passou por um processo de intensa eruditização por influxo do latim e de reempréstimos de termos anglo-saxões esquecidos. Pena que Tolkien se enganou quanto ao finlandês: hoje se sabe que menos de 10% do vocabulário desta língua de família fino-úgrica é autóctene, os outros 90% foram emprestados do alemão, do russo, do lituano e do sueco.

Bastaram esses poucos parágrafos para lhe sugerir o quanto é rico e interessante o tema das línguas imaginárias (conlangs, ou «línguas construídas», em inglês). Eu mesmo já me aventurei com uma, que se chamaria «nódico» e seria parte do cenário de um romance meu de ficção científica. Nos próximos dias vou compartilhar com vocês um pouco das características desse projeto.

06
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 18:30link do post | comentar

Incluído nos «Livros de Linhagens» da nobreza lusitana está um breve relato sobre a família de Diego Lopes, que inclui uma personagem que ficou célebre: a misteriosa mulher montanhesa com pés de cabra. Tata-se de uma história interessante por envolver profundamente as fantasias populares lusitanas (e estas fantasias, claro, ecoam na nossa própria cultura).


Aspectos culturais

Como se verá, a deficiência física (um pé deformado) era um sinal de deficiência moral. A Dama Pé de Cabra é apresentada como uma espécie de bruxa, e o seu pé deforme é uma grave advertência disso. Algumas histórias mais exageradas não apenas mencionam a deficiência como falam de uma mulher literalmente dotada de pés de cabra — mas nesse caso o casamento não ocorre pelo afeto espontâneo de Diego Lopes pela dama misteriosa, mas pela promessa que ela lhe faz de honras e glórias caso ele a desposasse e lhe fizesse mãe.

Interessante notar que a Dama Pé de Cabra nunca é mencionada por seu nome nas versões mais antigas da história (e esta que transcrevo parece ser a mais antiga). Tampouco sua filha. Afinal, os livros de linhagens se preocupavam apenas em registrar a linhagem patriarcal da nobreza. Nascer mulher era apenas um acidente, e a Dama, mesmo protagonista da história, não leva um nome.

A história está ambientada no tempo da guerra contra os mouros, antes da tomada de Toledo pelos cristãos (que foi em 1085). Isso significa que a história deve ter se passado por volta do século X ou XI (mas, é claro, sabemos que «ter se passado» é boa vontade deste que escreve, o caso é certamente lendário, ou muito modificado para tender a lenda).

Não consigo perceber muitos elementos semelhantes com contos de fada/bruxaria/cavalaria de outras culturas, e nisso reside justamente a originalidade e a beleza deste pequeno texto, que eu em breve modernizarei, para desgraça dos descendentes de Diego Lopes e da memória de Alexandre Herculano (que certamente romanceou o caso bem melhor). A diferença é que a minha Dama Pé de Cabra viverá no círculo mágico da Serra da Estrela, e não sei ainda como lhe apresentarei um Diego Lopes.

Elementos linguísticos

Saltam à vista as semelhanças com o espanhol. Inúmeros vocábulos do português arcaico (século XIII) se escrevem de forma parecida à castelhana: «muy», «ella» etc. Isto se explica porque, de fato, as duas línguas eram muito mais próximas naquela época.

Em seguida temos variações de ortografia de uma mesma palavra, «el foi», «ell lhe disse», «elle lho outorgou». Três formas diferentes do mesmo pronome e nenhum critério aparente de escolha. É algo parecido com o que acontece na escrita de uma pessoa mal alfabetizada, que erra de várias maneiras diferentes uma mesma palavra. Na Idade Média não havia gramáticas e nem academias, as pessoas escreviam como achavam que deviam e só o costume ditava alguma norma.

Você também notará palavras começadas com «cê-cedilha»: «em çima de huuma pena». Isto é porque no português antigo os grupos «ce» e «ci», bem como o «ç» eram lidos ainda com um resquício do «t» latino original: dependendo do dialeto a pronúncia deste «c» poderia ser lido como «ts» ou «θ» (o «theta» grego simboliza um «t» interdental parecido com o «th» inglês em «them»). A palavra «cima», porém, deriva de um original latino que era pronunciado como «k» (e não de um «t»), o que confunde a cabeça do falante e o leva a usar cedilha. Esta confusão secular fez com que a pronúncia do «c» como «ts» se tornasse pedante e desaparecesse por fim. Em espanhol europeu ainda existe esta pronúncia (também do «z») e pronunciar «Cima» como homófono de «sima» é considerado um vício de linguagem.

Os pronomes oblíquos não ficam separados do verbo por hífen, simplesmente porque o hífen ainda não fora inventado. Assim temos «vioa» (viu-a), «namorousse». A duplicação do «s» (nesse e em outros casos, já indica que o «s» intervocálico estava sendo sonorizado, tornando necessário deixar claros os casos em que fosse lido como «s» mesmo.

No primeiro parágrafo nota-se a menção a «muy alto linhagem». Em português medieval, tal como em espanhol ainda hoje, estas palavras terminadas em «agem» eram todas masculinas.

O pronome «que» escrevia-se «ca», o que confere com a tendência portuguesa a pronunciar o «a» átono como um «e». O «Ll» indica o fonema que hoje se escreve com «lh» e o «lh» era outra coisa, porque o «h» entre uma consoante e uma vogal indicava uma breve semivogal. Alguns autores escreviam «mha» em vez de «mia».

Usa-se o «y» em todo lugar onde a pronúncia seja de semivogal, mas também em monossílabos tônicos («ssy»), como se verá no segundo trecho. Isso parece indicar que a letra «y» não era usada necessariamente para indicar a duração menor do fonema «i», mas para indicar que em certos contextos o «i» seria pronunciado diferente. Os dialetos portugueses preservam esse «i» mais fechado (nem sempre nos mesmos contextos do português medieval), mas nós não o temos mais.

Usa-se «h» no começo de algumas palavras começadas com o fonema «u» para indicar que ele deve ser pronunciado como vogal. Ocorre que a letra «u» ainda não fora inventada e se usava a mesma letra para a vogal «u» e para a consoante «v». Quando o «u» foi inventado, criou-se uma maiúscula redonda para combinar com ele, e essa variação redonda ficou sendo a vogal. Inventaram também uma minúscula «quebrada» para combinar com o «V» e esta ficou sendo a consoante. Em português medieval segue-se a convenção latina: usa-se «u» sempre, inclusive quando a pronúncia é de consoante: «ouuyo» é «ouviu». Mas no início da palavra, especialmente maiúscula, usava-se uma variação do «u» bastante parecida com o «v», razão pela qual em alguns parágrafos você verá a letra «v».

Por fim, além da ausência da distinção entre «V» e «u», já explicada, notem que não se usa nenhum «J», nenhum «X», nenhum «W» e raríssimos «Q».

Mas não se usava o «h» inicial nos contextos em que ele era usado em latim. O verbo «auia» (havia) deriva do latim «habere». O emprego do «h» inicial atendia a uma necessidade fonética, não etimológica.

Um caso à parte é a palavra «pee», derivada do latim «pede». Evidentemente a pronúncia desse duplo «ee» tinha um significado. É provável que as palavras com «ee» final fossem pronunciadas de forma análoga ao que fazemos hoje com as terminadas em «oo».

O verbo «ter» ainda não era muito usado. Era muito recente a lembrança de seu sentido de posse material. Em vez disso usava-se mais o verbo «haver». Diego e a misteriosa dama «ouueram» (houveram) dois filhos.

Usa-se muito a conjunção «e», à maneira bíblica, para introduzir novas frases, evitando-se o ponto final. O que era fácil de fazer, pois a pontuação atual e suas regras ainda não fora inventada. Usava-se muito os dois pontos, para indicar que uma sequencia de frases segue um mesmo raciocínio (formando o que hoje nós agrupamos em parágrafos).

Notem bem que os nossos famosos ditongos nasais ainda não existem: «prisom» (em vez de prisão). Tampouco existem quaisquer acentos, somente o til, mas ele tinha um significado diferente. Não eram necessários porque não havia proparoxítonos (já que não havia latinismos e nem helenismos, apenas palavras devidamente moldadas pela boca do povo) e nem oxítonos (a não ser as palavras terminadas em consoante, inclusive verbos terminados em «s», como «tiraras», que deve ser lido «tirarás»).

Voltando ao til, ele não é usado para indicar a nasalização de uma vogal, mas que uma consoante nasal estava em processo de perda. A palavra «alaão» não contém um ditongo, mas um hiato ao final, provocado pela perda do «n» que havia entre o «a» e o «o».

Transcrição do original

Este dom Diego Lopez era muy boo monteyro, e estando huum dia em sa armada e atemdemdo quamdo verria o porco ouuyo cantar muyta alta voz huuma molher em çima de huuma pena: e el foy pera la e vioa seer muy fermosa e muy bem vistida, e namorousse logo della muy fortemente e preguntoulhe quem era: e ella lhe disse que era huuma molher de muito alto linhagem, e ell lhe disse que pois era molher d'alto linhagem que casaria com ella se ella quisesse, ca elle era senhor naquella terra toda: e ella lhe disse que o faria se lhe prometesse que numca sse santificasse, e elle lho outorgou, e ella foisse logo com elle.

E esta dona era muy fermosa e muy bem feita em todo seu corpo saluamdo que auia huum pee forcado como pee de cabra. E viuerom gram tempo e ouueram dous filhos, e huum ouue nome Enheguez Guerra, e a outra foy molher e ouue nome dona. E quando comiam de suum dom Diego Lopez e sa molher assemtaua ell apar de ssy o filho, e ella assemtaua apar de ssy a filha da outra parte.

E huum dia foy elle a seu monte e matou huum porco muy gramde e trouxeo pera sa casa, e poseo ante ssy hu sia comemdo com ssa molher e seus filhos: e lamçarom huum osso da mesa e veerom a pellejar huum alaão e huuma podemga sobrelle em tall maneyra que a podenga trauou ao alaão em a garganta e matouo.

E dom Diego Lopes quamdo esto uyo teueo por millagre e synousse e disse «samta Maria vall, quem vio numca tall cousa!» E ssa molher quamdo o vyo assy sinar lamçou maão na filha e no filho, e dom Diego Lopez trauou do filho e nom lho quis leixar filhar: e ella rrecudio com a filha por huuma freesta do paaço e foysse pera as montanhas em guisa que a nom virom mais nem a filha.

Depois a cabo de tempo foy este dom Diego Lopez a fazer mall aos mouros, e premderomno e leuaromno pera Tolledo preso. E a seu filho Enheguez Guerra pesaua muito de ssa prisom, e veo fallar com os da terra per que maneyra o poderiam auer fora da prisom. E elles disserom que nom sabiam maneyra por que o podessem aver, saluamdo sse fosse aas montanhas e achasse sa madre, e que ella lhe daria como o tirasse. E ell foy alaa soo em çima de seu cauallo, e achoua em çima de huuma pena: e ella lhe disse «filho Enheguez Guerra, vem a mym ca bem sey eu ao que ueens:» e ell foy pera ella e ella lhe disse «veens a preguntar como tiraras teu padre da prisom.» Emtom chamou huum cauallo que amdaua solto pello momte que avia nome Pardallo e chamouo per seu nome: e ella meteo huum freo ao cauallo que tiinha, e disselhe que nom fezesse força pollo dessellar nem pollo desemfrear nem por lhe dar de comer nem de beuer nem de ferrar: e disselhe que este cauallo lhe duraria em toda sa vida, e que nunca emtraria em lide que nom vemçesse delle. E disselhe que caualgasse em elle e que o poria em Tolledo ante a porta hu jazia seu padre logo em esse dia, e que ante a porta hu o caualo o posesse que alli deçesse e que acharia seu padre estar em huum curral, e que o filhasse pella maão e fezesse que queria fallar com elle, que o fosse tirando comtra a porta hu estaua ho cauallo, e que desque alli fosse que cauallgasse em o cauallo e que posesse seu padre ante ssy e que ante noite seria em sa terra com seu padre: e assy foy. E depois a cabo de tempo morreo dom Diego Lopez e ficou a terra a seu filho dom Enheguez Guerra.

Aspectos léxicos

Conforme prometido, vamos às palavras de sentido peculiar. «Monteyro» significa caçador. Deriva de «monte», porque já na Idade Média as terras baixas estavam ocupadas pela agricultura e as florestas estavam cada vez mais reduzidas às regiões montanhosas. «Atemder» significa «esperar». A «pena» sobre a qual a mulher estava sentada a cantar é uma que você não gostaria que caísse sobre sua cabeça. É cognata do espanhol «peña», que significa «rochedo». Não pensem que dom Diego desrespeitou a moça: «namorarse» significa apenas afeiçoar-se, é o antepassado de «enamorar-se». «Pois» significa «já que» ou «uma vez que», no contexto empregado.

«Alaão» e «podemga» são raças de cães. Era costume, mesmo entre os nobres, comer com cães para jogar-lhes os ossos e, eventualmente, deixar que lambessem a gordura de suas mãos. O inesperado do acontecimento é que o podengo, um cão de caça muito manso, apesar de arisco, tenha ataco e matado um cão de guarda «alano» O verbo «filhar» (cognato do nosso atual «filar») quer dizer «tomar» ou «levar» (que é o que os filadores fazem com o que nos filam, ou «filham»). «Recudir» é «recuar» e «freesta» (do latim «fenestra») é «janela». Imagino que você já saiba que «paço» é a forma popular de «palácio» (esta palavra foi reinjetada no português depois, como um novo aportuguesamento erudito de «palatium»). «Em guisa que» significa «de modo que».

«Pesar» significa «ficar triste». O nome do cavalo significa «pardal» e a misteriosa palavra «hu» significa «onde». Por fim, não imaginemos que os mouros mantinham dom Diego em um «curral» com o sentido que hoje a palavra tem, mas sim meramente em um cercado ou paliçada (esqueçam essa história de masmorra, castelos eram caros de construir e a maioria das prisões medievais eram simples paliçadas). Dom Diego «jazia» lá mas não estava morto, visto que a palavra não tinha ainda o sentido fúnebre de hoje.

Uma observação importante diz respeito aos sobrenomes. Notem que eles não existiam. O pai se chama «Diego Lopes» (provavelmente porque seu pai era um tal Lopo), mas o filho se chama «Enheguez Guerra» (provavelmente por ser famoso no combate). Os «sobrenomes» medievais são apelidos, não tem conotação familiar ainda. As famílias nobres ainda não haviam adotado o costume de identificar-se pelo nome da vila ou feudo onde tinham propriedade, e as famílias plebeias não tinham grande necessidade de identificar-se.

Conclusão

A análise deste texto nos mostra que, se não tivesse acontecido a contaminação etimológica ocorrida entre os séculos XVII e XIX e nem o influxo de latinismos eruditos e helenismos científicos, o português seria uma língua dominada por proparoxítonos, com poucos acentos gráficos, relativamente simples de se escrever e muito mais bonita.


31
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar | ver comentários (1)

É difícil compreender as razões pelas quais tantas pessoas rejeitamde forma tão ríspida um ensino progressista do português, baseadonas descobertas da Linguística e da Pedagogia. Certa­mente asrazões disto envolvem ideologia, pois um ensino que não discrimineos falares populares ameaça uma estrutura de humilhação dasclasses oprimidas. Então, por se oporem à inclusão social e aoprogresso do ensino, erguem bandeira de guerra contra qualquerindício de que se está buscando uma abordagem não preconceituosado fenômeno linguístico.

O casorecente do livro de português que ensinava «nós pega o peixe» foium exemplo emblemático de como a ideologia e o preconceito deram asmãos para desqualificar uma obra que, com todos os seus defeitos,tinha o mérito de seguir o que é consenso no mundo científico emrelação ao ensino de línguas.

As vozesque se ergueram, porém, foram todas de leigos. Ninguémremotamente dotado de alguma formação na área manifestou-se. Asvozes ouvidas foram, em primeiro lugar, de jornalistas — queaprendem a escrever segundo «manuais de redação» impositivos esão ensinados por fonoaudiólogas a falar com uma pronúnciaartificial, que busca ser neutra mas emula a da Zona Sul do Rio deJaneiro e os melhores quarteirões da Paulicéia. Muitos blogueirosse manifestaram, em geral pessoas das áreas de Exatas e Biológicas,que entendem muito de planta, de bicho e de números, mas não deinterações entre pessoas, ou pessoas educadas em colégiosrigorosos, em geral mantidos por entidades religiosas. Gente do tipoque acha que o pessoal de Humanas é um bando de maconheiros que seformou paquerando a professora, lendo o Manifesto Comunista ebeijando a bunda de um bode nas sextas-feiras. Nenhuma destas pessoasparou para analisar seria­mente o livro citado, muito menos paratentar entender o que é Linguística. Linguística é uma dessasciências «esquerdistas», não é mesmo?

Mas apedagogia moderna propõe ensinar um «vale tudo» linguístico?

Óbvioque não. Seria uma insanidade derrubar a ideia de uma línguapadrão. O fim do ensino desta é algo que normalmente só ocorre como fim de uma civilização, quando o estado falido não é mais capazde difundir sua cultura. Foi o que aconteceu com o Império Romano,levando os dialetos regionais a se dividirem em protolínguas, os«romances», e dando origem às dez línguas nacionais neolatinas:português, espanhol, catalão, galego, francês, provençal,italiano, dálmata (hoje extinto), romanche e romeno. Não se querque num futuro próximo o Brasil esteja dividido em dezenas deregiões independentes, cada qual com sua língua neo-portuguesa.

Tudo oque a Linguística procura ensinar aos professores de português (masuma minoria deles está disposta a aceitar isso, ou é capaz deaprender isso) é que a situação da língua padrão em relaçãoaos falares populares requer uma abordagem diferente da que vem sendoadotada em nossas escolas. Especialmente em países como o Brasil,nos quais a divergência entre a língua culta e a coloquial jáse tornou tão grande que podemos afirmar que existe, ou estápróxima de existir, uma situação de «diglossia», ou seja, acoexistência de duas línguas.

Hávários tipos de diglossia, mas o que nos interessa é aquelasituação na qual a norma padrão é conservadora em relação àevolução do falar do povo. A do português é intencionalmentearcaizante, tendo sido definida no século XVIII, sob o paradigma daimitação do latim e do grego.1Ao longo do século XX, começando com a reforma ortográficaportuguesa de 1910 (à qual o Brasil só começou a aderir em 1946),livramo-nos do ranço desta ortografia, mas não do ranço dagramática criada pelos mesmos perpetradores da ortografiaetimológica. Isto faz com que a língua que se pretende ensinar naescola seja diferente da língua que as pessoas estão acostumadas aempregar no seu dia a dia. Este tipo de situação não é único noportuguês. Isto já aconteceu antes em outros países e osresultados foram sempre os mesmos: é inútil opor-se à língua dopovo. Vamos analisar quatro casos bem emblemáticos deste tipo dediglossia.

NaGrécia, até bem recentemente, a língua ensinada nas escolas erapraticamente idêntica ao grego comum antigo, o koiné hellenikós.Esta língua, o katharevousa («língua purificada») eramuito diferente do grego falado, a ponto de as pessoas terem queestudá-lo como se fosse outra língua. Esta situação se mantevegraças ao conservadorismo do Estado, muito mais voltado para aherança histórica do que para as necessidades presentes do país.Com a democratização, esta situação foi resolvida e os gregospassaram a estudar a norma padrão baseada no grego moderno.

NaAlemanha e na Itália, a existência de uma grande variedade defalares regionais, alguns muito diferentes entre si, resultado daunificação tardia dos dois países. Em ambos os casos, porém,havia uma «norma padrão» anterior. Para o alemão foi o dialetoturíngio, usado por Lutero para traduzir a Bíblia. Posteriormenteesta norma, até então usada somente pelos escritores e, de formalimitada, pelo teatro, foi difundida, com a pronúncia prussiana,como a língua nacional da Alemanha unificada. O italiano padrão foio dialeto toscano, utilizado por Dante Aligheri para a famosa DivinaComédia. Em ambos os casos o padrão é conservador, embora oitaliano moderno seja mais conservador, em relação ao italianomedieval, que o alemão. Italianos de hoje não têm grandesproblemas para ler Dante, caso dominem o italiano padrão, mas têmproblema para conseguir dominá-lo porque, para os habitantes deregiões mais afastadas, especialmente no sul do país, trata-sequase de uma língua estrangeira. Os alemães permitiram que sualíngua padrão evoluísse um pouco mais, especialmente após a IIGuerra Mundial, quando os movimentos migratórios apagaram um poucoas diferenças dialetais milenares.

Na Rússiaaté a época da Revolução Bolchevique a norma padrão eraextremamente arcaizante, influenciada por uma língua falada mil anosantes, o «eslavo eclesiástico», «velho búlgaro» ou«eslavônico». O alfabeto tinha letras desnecessárias, algumas sóusadas para escrever palavras de origem grega, por exemplo. Quando oscomunistas assumiram o poder, uma das primeiras coisas que fizeramfoi simplificar a norma padrão, reduzindo o alfabeto a 36 letras(eram 40) e mudando a ortografia de milhares de palavras por causa daeliminação de duas vogais. Sob o domínio soviético a línguapadrão se aproximou do uso comum, eliminando arcaísmos. A reformalinguís­tica do russo talvez seja o grande motivo pelo qual osconservadores se opõem à modernização da norma culta. Esquecem-sede que movimentos semelhantes ocorreram sob regimes de direita, comoa África do Sul dos tempos do apartheid, quando o holandêsque se falava no país foi alçado à posição de línguaindependente, o africâner.2

Nosquatro casos apresentados a situação de diglossia era resultante defatores diferentes. No caso do grego, houve o desenvolvimentointencional de uma norma arcaizante, algo parecido com o doportuguês. Nos casos de Alemanha e Itália a diglossia resultou daformação tardia da identidade nacional a partir de povos quefalavam dialetos muito diferentes. Alguns dialetos «italianos», porexemplo, estão mais relacionados com os falares do sul da França(occitânico, provençal) do que com o italiano padrão, enquantooutros, como o sardo, são de fato línguas independentes. No caso doRusso a diglossia resultava da contínua influência de um padrãoconservador, o eslavo eclesiástico, travando a atualização danorma culta, o que também tem certas semelhanças com o caso dalíngua portuguesa.

Quando setem uma situação de diglossia, como nos casos apresentados, osestudantes precisam passar, no aprendizado da norma padrão, por umprocesso de aprendizagem que tem semelhanças com o do ensino delínguas estrangeiras. Em uma situação de diglossia, a norma cultaé, para fins práticos, uma outra língua. O «problema» daaprendizagem de português no Brasil, denunciado por gramáticos«pop» — como Pasquale Cipro Neto, Sérgio Nogueira Duarte e LuizAntônio Sacconi — reflete apenas esta situação: a língua que oestudante fala é tão divergente da norma padrão que não podemossimplesmente assumir a «Língua Portuguesa» enquanto disciplinacomo sendo «sua» língua, tanto quanto o inglês ou o espanhol nãoo são, com a única diferença que o contato com a línguaportuguesa é mais frequente do que com estas.

Ignoraresta situação é ignorar a verdadeira causa do problema. Ignorar averdadeira causa do problema significa que todas as estratégiaspropostas para solucioná-lo estarão erradas, salvo um lance desorte improvável. É como trocar peças aleatórias de um carrodefeituoso esperando que ele funcione em algum momento. Se de fatoele vier a funcionar, será somente por sorte e depois de muitotempo. De outra forma, sabendo qual peça trocar o carro funcionarámuito mais rápido e sem o desperdício de tantas peças.

O que aLinguística propõe é a abordagem científica do problema, parasaber «qual peça trocar». As reações que aconteceram aosrecentes casos de livros didáticos «que ensinam o erro» foramhistéricas, injustificadas e obscurantistas. Foram reações deleigos, de pessoas que não sabem do que estão falando e que seacham no direito de desqualificar uma ciência que não conhecem, nãoentendem ou que rejeitam por razões ideológicas ou por meropreconceito.

Arejeição da reforma do ensino da língua portuguesa em nossasescolas é muito parecida com a rejeição do ensino da Teoria daEvolução pelos criacionistas. Em ambos os casos temos pessoas malinformadas ou mal intencionadas, que difundem concepçõesretrógradas, pseudocientíficas, reacionárias, preconceituosas eincorretas, que fazem isso porque estão condicionadas a rejeitareste conhecimento científico específico por causa ideologia sob aqual foram criadas. O criacionista rejeita o ensino da TE porque elalhe causa insegurança quanto à validade do texto sagrado de suareligião. O «gramatiquista» rejeita o ensino moderno do portuguêsporque ele próprio se vê detentor de um conhecimento sobre alíngua, que será obsoleto com a reforma. Em ambos os casos serecorre à «culpa por associação» para desqualificar aquilo quese rejeita por preconceito. O criacionista associa a TE às crendiceseugênicas do início do século XX, incluindo o nazismo. O«gramatiquista» associa reformas ortográficas ou mudanças nalíngua padrão ao «comunismo». No fundo, ambos sentam-se em cimade um grande rabo, que não admitem ter: sua rejeição aoconhecimento se deve a uma confissão implícita da própriaimpotência. O criacionista depende da validade plena de seu textosagrado. O «gramatiquista», tendo sofrido tanto para aprender o quesabe de português, teme ter de aprender de novo. Quando foi feita aprimeira reforma ortográfica do alemão, em 1911, adicionou-se àlei um artigo que autorizava o kaiser a continuar utilizando anorma antiga enquanto vivesse.

Mas agrande pergunta que precisa ser respondida para que possamos fecharesta humilde série de reflexões sobre o tema «preconceitolinguístico» é: de que forma reconhecer uma situação dediglossia resolve o problema da falta de domínio da língua cultapelos nossos estudantes?

Na raizdesta dúvida há o medo de que o reconhecimento da diglossia sejauma espécie de Caixa de Pandora, que levará à degeneração danorma culta, ao esquecimento da literatura e a uma série de malesterríveis e inomináveis. Como vimos nos exemplos da Grécia e daRússia, as atualizações da norma culta não produziram nenhumefeito negativo. No caso da língua grega, os estudantes seguemincapazes de ler Homero diretamente, tal qual já não conseguiamantes. Mas hoje conseguem ler e escrever melhor a língua que usam nodia a dia. Para quem queira ler Homero, as universidades oferecemedições críticas contendo o texto original e uma versãomodernizada. No caso do russo, os livros apenas tiveram que serreimpressos na nova ortografia e os russos não leem menos hoje doque liam nos tempos do czar.

Ambosos povos saíram de uma situação que era de fato diglossia (casogrego) ou caminhava para tornar-se (caso russo) e a literatura deambas as línguas só teve a ganhar com isso. Não houve degeneraçãoda norma culta porque a língua já havia de fato mudado, só faltavaaceitar que isso ocorrera. Não houve o esquecimento da literatura,porque o que faz os jovens lerem não é o arcaísmo da norma padrão,mas uma tradição (inclusive familiar) de valorização da leitura —que existia tanto na Grécia quanto na Rússia, mas não seconsolidou ainda entre nós. No entanto, a solução da diglossiapode não ser desejável nos casos, como o nosso, emque a língua sofreu e está sofrendo um processo de dialetaçãoimportante. Em tal situação, análoga às de Itália e Alemanha,ensinar uma norma culta útil para a comunicação entre as diversasregiões e estratos sociais é uma forma de manter a unidadenacional.

Oque vem sendo proposto já há alguns anos pelos autores antenadoscom a Linguística, para grande ira dos gramáticos normativoscarranças, não é a substituição da norma culta por alguma outraforma linguística, mas, sim, a adoção de uma estratégia de ensinodo português empregando técnicas normalmente empregadas no ensinode línguas estrangeiras — entre elas a separa­ção conceitualentre a língua que o aluno fala e aquela que a escola pretendeensinar, conscientizando desde cedo o estudante da dicotomiaexistente entre o universo coloquial e o universo da língua formalpadrão nacional.

Faz-seisto por várias razões. Primeiro porque se é possível ensinaringlês ao estudante brasileiro, tem de ser possível ensinar-lheportuguês, que é uma língua muito mais parecida com o que eleemprega no seu dia a dia. Segundo porque é uma questão de respeito:o aluno não é um animal estú­pido que tem de «aprender afalar» na escola, ele é um indivíduo que fala o dialeto peculiar àsua região, na variante correspondente aos grupos sociais quefrequenta. Terceiro porque reconhe­cer a realidade tal como éserá o primeiro passo para buscar influenciá-la no sentidodesejado.

Tendoem vista estes objetivos, não é nenhum absurdo que um livrodidático contenha a frase «nós pega o peixe» (aliás, napronúncia de meu dialeto é «nóis péga o pêxe»), se ela forusada para ilustrar a diferença entre o coloquial e o formal.Absurdo é escrever um livro didático que fica de costas para arealidade do aluno e seguir culpando-o pela própria dificuldade deaprender algo que lhe é ensinado errado. Absurdo é não ter acompetência de ensinar e dizer que a culpa é do português, por seruma língua difícil. Difícil é abrir a cabeça de gentepreconceituosa, que se acha detentora de alguma migalha de saber.

1 Então se desenvolveu a «ortografia etimológica» (na verdade pseudoetimológica), em que as palavras eram grafadas de forma a lembrar sua origem, às vezes em desacordo com a pronúncia: pharmacia, machina, mysterio, hybrido, orthographia, sceptico, asthma, physico, Hespanha, bahia, propheta, photographia, diccionario, eschola e choro.

2 Apesar da ideologia racista predominante na África do Sul de então, o africâner é um idioma de base fonética e léxica holandesa, com grande influência inglesa na gramática e significativa contribuição de vocabulário de línguas africanas.


24
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 23:16link do post | comentar
«A língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo» —Marcos Bagno

Na semana passada comecei a falar sobre opreconceito linguístico que grassa em nosso país de uma formaparticularmente intensa. Lembrei que a Linguística é uma ciênciaestabelecida solidamente há mais de duzentos anos, com copiosaprodução de conhecimento, mas que persiste uma profunda ignorânciasobre seus aspectos mais básicos, ignorância alimentada pelos meiosde comunicação, que somente dão espaço ao discurso retrógrado epseudocientífico daqueles que rejeitam o conhecimento científicopor razões ideológicas. Perguntei também por que razão pessoasque são céticas de várias outras formas, e têm tanto a criticarna postura, por exemplo, dos criacionistas, não percebem que suaposição em relação à Linguística é idêntica à daqueles emrelação à Biologia: rejeição irrefletida e a priori motivadapor preconceitos e razões de foro íntimo.

Hoje pretendo explicar melhor em que consiste o famoso «preconceito linguístico»que é tão ou mais negado que o preconceito racial.1Para isso tomarei como guia a obra Preconceito Linguístico:O Que É, Como Se Faz , de MarcosBagno. Sei que alguns leitores torcerão o nariz, pois o autor temuma reputação de «comunista» entre o baixo clero da direitahidrofóbica que cola esta acusação coringa na testa de quem aincomoda, para não ter que discutir suas ideias.2Mas eu reajo com a mesma resposta que os debatedores «céticos»mais afoito costumam dar aos criacionistas mais folclóricos quandovêm com histórias de «hidroplacas» e «baramins» em algumadiscussão sobre Biologia ou Geologia: vão estudar parapelo menos entenderem onde estão errando.

O preconceitolinguístico é ligado à confusão criada entre a língua em si e agramática normativa. Mas uma receita de bolo não é um bolo, ummolde de roupa não é uma roupa e uma gramática não é uma língua.Esta confusão, alimentada pela mídia e por uma série de mitos quefazem parte da autoimagem (muito negativa) que o brasileiro tem desi, resulta em uma percepção distorcida de nossa cultura e nossopapel no seio dela. Os mitos a que Bagno se refere são os seguintes:

A línguaportuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente

Este mito foi o primeiro a ser contestado pela ciência, existindopesquisas etnográficas e linguísticas datadas desde o início doséculo XX que comprovaram que: a) existem dialetos regionais noBrasil, b) os dialetos regionais se diferenciaram bastante cedo emnossa história, com base nas origens diversas dos imigrantes que seestabeleceram nas diferentes regiões e c) apesar da forçahomogeneizante da televisão e do rádio, tais dialetos seguem sediferenciando.

É um mito prejudicial porque, ao não reconhecer a variedade regional doportuguês falado, oferece um diagnóstico incorreto da situaçãosociolinguística dos alunos, criando mais uma dificuldade paratrabalhar eficientemente o ensino da língua padrão. Na cabeça dospreconceituosos, reconhecer a existência dos dialetos é um «perigo»porque legitimaria o «falar errado» em detrimento do «falar certo»(conforme o entendem). Trata-se de uma concepção anticientíficapor duas razões: 1) a realidade não precisa ser “reconhecida”para existir e 2) o diagnóstico incorreto do problema cria novosproblemas em vez de preveni-los ou solucionar os existentes.

Brasileiro não sabe falar português.

A ideia de que não sabemos falar a nossa própria língua geralmentevem associada à de que em Portugal, sim, se fala direito. Não épreciso mencionar que essa concepção é fruto de uma mentalidadecolonizada, que imagina que um povo «mestiço» ou, dito de umaforma menos evidentemente racista, «tropical», não seria incapazde falar direito nem a «sua» própria língua.3Obviamente ninguém diz abertamente a razão pela qual o brasileiro«não sabe falar português» porque envolveria a sugestão de que obrasileiro é uma espécie de bípede implume que só apreende afalar se for amestrado na escola. Muitas das pessoas que têm talconcepção nunca visitaram outros países para ver como seushabitantes também «não sabem falar» suas respectivas línguas,4outros aderem ao preconceito para vender livros.

Este preconceito não resiste à comparação com nenhum paísde mais de um milhão de habitantes: italianos de diversas regiõesquase não se entendem em dialeto, franceses tampouco, os falaresalemães chegam a ser agrupados em duas línguas diferentes (alto ebaixo alemão). O árabe da Arábia Saudita é ininteligível por umegípcio, que, por sua vez, quase nada entende da fala de ummarroquino, que, por sua vez, sofre para entender um sírio. E nem sefale da salada de dialetos que cruza os Bálcãs, da Ístria à costado Mar Negro. Por que, então, diferentemente da maioria dos paísesdo mundo, o Brasil teria uma «uniformidade surpreendente» de sualíngua? Se existe tal uniformidade, como tanta gente «não sabefalar»?

Em todos esses países, a solução para o problema da comunicação é a difusão de umalíngua padrão, a norma culta, geralmente baseada em um dialeto deprestígio. Em nenhum desses países se aceita que idiotas apareçamna televisão dizendo que o povo não sabe falar. Ai de quem o diga,pois as pessoas consideram os dialetos parte da sua identidade e nãoaprendem a língua padrão porque «não sabem falar» direito, massim porque desejam integrar-se ao conjunto da nação.

Português é muito difícil.

«A desculpa do preguiçoso é a dificuldade», dizia o ditado popular. Adificuldade pode ser uma ilusão, causada pela abordagem incorreta doproblema. Quem tentar carregar água na peneira terá muito maisdificuldade do que quem usar uma caneca.

A ideia de que o português é muito difícil resulta do fato de o ensino de portuguêsno Brasil partir de um diagnóstico errado da situação do aluno, deuma apresentação incorreta da matéria e da apresen­tação damatéria errada. Imagina-se que o aluno, mesmo «não sabendo falar»,fala uma língua que tem «surpreendente unidade». Esta língua lheserá então ensinada através de um sistema educa­cionalprecário, por profissionais mal treinados e mal remunerados. Porfim, a língua que se ten­tará ensinar é uma versãoarcaizante, desconectada da realidade do aluno. Então, quando osalunos falham em massa no aprendizado, a culpa é da língua. Dapobre língua, única que não pode se defender. Gramáticos epedagogos discursam bonito. Políticos, que fazem escolas e definemcurrículos, podem defender-se. A língua, porém, é um ser abstratoe leva a culpa calada.

Nota-se o quanto esse mito está equivocado quando analisamos a percepção que os outrospovos têm de nossa língua. Numerosos levantamentos feitosinternacionalmente com estudantes de diversas partes do mundo colocamem «2» o nível de dificuldade do português, numa escala de «1»a «5». No nível «1» ficam as línguas de gramática mais simplese regular (como esperanto e indonésio) e no nível «5» línguascomo coreano, mandarim, japonês, cantonês, sânscrito e árabe.Sempre em tais levantamentos o português é colocado no mesmo nívelde dificuldade do inglês, do espanhol e do italiano, e um nívelmais fácil que francês, alemão, ou holandês.

As pessoas sem instrução falam tudo errado.

Aqui o preconceito fica um pouco mais claro. A falta de instruçãoestá associada à falta de contato com a língua propagada atravésdo sistema educacional que, obviamente, é a língua da elite. Existeuma estigmatização do falar das classes populares, não por causade suas características, mas por serem populares. Todos os «erros»do português coloquial também são encontráveis em textos degrandes escritores do passado, evidenciando que tais «erros»”nada mais são do que fenômenos linguísticos que já aconteceramantes e podem acontecer de novo. A troca do «L» por «R», porexemplo, considerada a «marca da besta» entre os «erros» deportuguês, pode ser lida abundantemente nos poetas portugueses ebrasileiros entre os séculos XV e XVIII: «frecha», «pranta» e«frauta» se encontram aos montes em Camões, Bocage, Sá deMiranda, Gregório de Matos e Guerra e numerosos outros, provando queestas pronúncias eram correntes na época. Tanto isso é verdade quese você as digitar no seu programa de edição de textos sesurpreenderá ao constatar que elas não são marcadas como erros!Ora, se é válido admitir variações como «flauta/frauta»,«flecha/frecha», «planta/pranta» e outras, por que não admitir«plano/prano», «claro/craro» e outras? Trata-se do mesmo fenômenolinguístico, operando da mesmíssima forma.

A única diferença é que as palavras do primeiro grupo foram legitimadaspela elite através de sua literatura, enquanto as do segundo gruposão estigmatizadas por serem encontradas somente nas variantespopulares do português. Mas os preconceituosos, em vez de imaginarque estamos diante da persistência, no seio do povo, de um fenômenolinguístico que existe há séculos, prefere pensar que quem fala«craro» possui algum tipo de atraso mental. Talvez se ospreconceituosos lessem mais, aprenderiam sobre a própria língua esua história, em vez de confiar em preconceitos alimentados pelaignorância.

Onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão.

Parte do complexo de inferioridade do brasileiro em relação à sualíngua se baseia em sempre deslocar geograficamente o lugar onde sefala o português ideal. Muitas pessoas dizem que é o Maranhão,afinal ele é suficientemente remoto. Em Minas Gerais muitosacreditam que os cariocas falam melhor. No Rio de Janeiro existe essacrendice sobre o Maranhão, mas também sobre o Rio Grande do Sul. Ospaulistanos estigmatizam os «caipiras» do interior, enquantoreverenciam os gaúchos.

Em geral se acredita que onde se fala ainda o «tu» o português é melhor(tanto cariocas quanto gaúchos e maranhenses o empregam ainda,embora raramente conjuguem o verbo de acordo). Esta fixação com opronome da segunda pessoa é mais um reflexo da subserviência aPortugal, que se manifesta no persistente luto de nossos gramáticospela morte do sistema pronominal clássico, que ocorreu no Brasilainda durante o século XIX, mas ainda hoje não foi assimilada.

É preciso falar como se escreve.

Se estivéssemos apenas falando de padronizar a pronúncia da normaculta para facilitar a comunicação inter-regional, seria aceitávelpreconizar a pronúncia baseada na ortografia, ainda que de formalimitada. Mas ocorre que nem mesmo norma culta padrão segue talregra. A abolição dos acentos diferenciais tornou ainda mais vaga arelação entre a letra e a leitura, a ponto de termos pares depalavras que se distinguem pelo timbre, mas têm a mesma grafia(«olho» e «olho», «molho» e «molho», «porto» e «porto»,«pelo» e «pelo»). Como então cobrar que um mineiro leia «móínho»em vez de «mũe» citando que é preciso falar como se escreve?Obviamente esta é uma desculpa para negar voz aos dialetos regionaise forçar a homogeneização a partir de uma norma culta ideal quenão é falada nem mesmo pelos cariocas e paulistas em cujos dialetosela supostamente se baseou.

Ocorre que a escrita é representação da fala, tal como o desenho é uma representaçãodo objeto. A função da escrita é nos lembrar dos elementos queempregamos na fala, tal como o desenho nos relembra o objeto.Subordinar a fala à escrita é como querer que as coisas reaispassem a parecer com os desenhos que são feitos delas. Imagine se umerro de impressão faz com que o desenho de uma galinha saia semcrista. Quem sairá pelo mundo amputando cristas das penosas? Existeum erro na avaliação da função da escrita em relação à língua,e certa categoria de gramáticos «pop» e professores seus fãsparece querer andar pelo mundo, de estilete à mão.

É preciso saber gramática para falar e escrever bem.

Se o bom conhecimento da gramática fosse requisito para falar eescrever bem, todos os bons escritores seriam exímios gramáticos, eum bom número de gramáticos teria talento literário. Ocorre quenenhum gramático jamais escreveu coisa que preste em termos deliteratura e os grandes escritores costumam ser unânimes críticosdeles. A lista de escritores que destilaram veneno contra osgramáticos é extensa e notável, com nomes como Rubem Braga,Vinícius de Morais, Leon Eliachar, Carlos Drummond de Andrade,Machado de Assis, Monteiro Lobato, entre outros. Todos, sem exceção,viam a gramática mais como obstáculo do que como ferramenta de seutrabalho. Machado de Assis escreveu uma crônica sobre suaincapacidade para ajudar um sobrinho a fazer seus deveres deportuguês, por exemplo. Se nem o Bruxo conseguia se dar bem com asabsurdidades da gramática, como podemos esperar que um aluno comum oconsiga?

Mesmo assim, existe uma«propaganda enganosa» de que os alunos passarão a falar e aescrever melhor se aprenderem gramática. Esta propaganda esconde queas gramáticas foram inventadas muito depois da literatura (e estamuito depois da escrita). A gramática não é a base de coisanenhuma, apenas um guia para os que desejam dominar uma determinadavariedade linguística. A primeira gramática grega surgiu somente noséculo II a.C., séculos após Homero, Xenofonte, Safo, Platão,Aristóteles, Eurípides, Aristófanes, Ésquilo, Anacreonte, Hesíodoe outros. As primeiras gramáticas do português surgiram no séculoXVIII, séculos após Sá de Miranda, Camões, Dom Dinis e outros.Como explicar que tantas obras de tão alta qualidade tivessem sidoproduzidas antes da existência de gramáticas? Inspiração peloEspírito Santo?

O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social.

Este mito retorna ao primeiro e ao segundo, aqui se considerando uma«boa ação» dar uma língua aos «sem língua» para permitir queeles superem sua condição de pobreza e marginalização. Existecerta verdade na ideia de que a educação é transformadora dasociedade, para melhor, mas não se deve levar isso a ferro e fogo.Se dominar a norma culta fosse um instrumento eficaz de ascensãosocial, professores de português (e gramáticos, principalmente)seriam pessoas extremamente poderosas e prestigiadas.

A verdade fica muito longe disso, com pessoas de pouca ou nenhuma instruçãoadquirindo ou conservando popularidade e poder por vários meios.Mais do que isso: ninguém corrige o falar de um político poderoso,por mais que cometa solecismos e «erros de concordância». Nãodominar a norma culta não lhe impediu de galgar o poder e não oexpõe à crítica. Portanto, quando criticamos o falar de uma pessoado povo, não estamos criticando o falar propriamente dito, mas a suacondição social.

É fato que a profusão de «erros» está relacionada ao posicionamentodo falante na estrutura da sociedade: quanto mais baixo mais «erra».Não somente por falta de acesso à «cultura», mas também porqueas classes dominantes não aceitam como legítima a cultura dasclasses subalternizadas, a não ser quando apropriada na forma defolclore ou artesanato.

O preconceito linguístico é uma ferramenta de exclusão e de humilhaçãodaqueles que se encontram na base da pirâmide: para eles oreconhecimento só pode vir através do domínio de uma norma cultaque lhes é imposta, domínio que não lhes garante ascensão sociale não os isola de serem ridicularizados ainda assim, por sua«correção pedante», quando se defrontam com pessoas dotadas depoder, que não precisam se preocupar com todos os «esses e erres».

Estes oito mitos do preconceito linguístico se sustentam em um tripé perverso: agramática tradicional, o ensino tradicional e o livro didático. Agramática tradicional (normativa, intolerante, preconceituosa,arcaizante e lusófila) inspira um sistema educacional tradicional(excludente, intolerante, unilateral, colonizado), que alimenta aindústria do livro didático (instrumental, unilateral, alienante,superficial) que, por sua vez, recorre à gramática tradicional parafonte de sua ideologia e de seus métodos. Fecha-se um círculovicioso difícil de romper, pois livros que tentem desviar da normaserão combatidos pela mídia (que está associada à indústria dolivro didático e ao ensino particular instrumental) e ignoradospelas escolas (que são cobradas pela mídia, pelos pais e pelo“mercado” de acordo com a sua fidelidade ao ensino tradicional).Escolas que tentem inovar terão dificuldade para conseguir livrosdidáticos e sofrerão ataques da mídia e boicote dos pais dealunos, especialmente se tal escola for particular. E assim seperpetua a concepção de que o povo não sabe falar, uma situaçãona qual a escola não sabe ensinar e um resultado de que o povo nuncasaberá o que precisaria saber: o domínio suficiente da norma culta.

1 Eu digo que é até pode ser mais negado, porque a prática de tal forma de preconceito é uma maneira menos rude de discriminar as pessoas sem evidenciar uma posição abertamente racista.

2 Uma reputação evidentemente absurda, pois Bagno não é um político, mas um cientista, e quase tudo que ele escreve é corroborado por pesquisas feitas no mundo todo. Chamá-lo “comunista” ou termo que o valha é como acusar todo o estabelecimento universitário da maior parte do planeta de estar envolvido em uma conspiração.

3 O pronome possessivo vem entre aspas porque nesta série estamos justamente discutindo «de quem» é a língua que a escola pretende ensinar.

4 Para os que consideram a Argentina uma espécie de ilha de cultura nesta América Latina mestiça e chucra, sugiro fortemente que pesquisem sobre o voseo, um fenômeno linguístico característico do espanhol portenho (comum à Argentina, ao Uruguai, ao Paraguai e ao sul da Bolívia) que consiste na substituição do «tú» e do «vosotros» por um «vos» que se comporta de forma análoga ao «vous» francês e ao «você» brasileiro.


17
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 11:28link do post | comentar | ver comentários (2)

Nos últimos anos tem estado muito em evidência o debate sobre o “preconceito linguístico”, notadamente desde que um homem do povo (e por isso xingado de “apedeuta” por uma mídia preconceituosa e elitista) chegou ao poder. Tal debate é, porém, feito por leigos e para leigos, nunca, jamais, em hipótese alguma permitindo que os especialistas tenham o mesmo destaque que os palpiteiros. Fala-se sobre a língua, sem nunca sequer mencionar que existem linguistas. O que é mais ou menos como conversar sobre doenças sem mencionar que existem médicos. Fala-se sobre gramáticos, políticos, escritores e professores de português, é verdade, o que equivale a, mesmo esquecendo os médicos, lembrar de uma série de outras profissões relacionadas à saúde, algumas sérias, outras não.

Quando um apologista cristão diz não crer na Evolução e enfileira uma série de comentários deturpados e desconexos, que evidenciam desconhecimento completo ou muito grande das coisas mais básicas de Biologia, as reações jocosas no meio do “movimento ateu” são quase instantâneas. Há quem chegue a recomendar à criatura que “vá estudar”, há quem lhe aponte as “falácias” de seu raciocínio ou até o fato de argumentar desconhecendo coisas básicas e imediatas, que deveriam ser evidentes no quotidiano. É unânime entre os que não são fundamentalistas religiosos que um criacionista é uma pessoa que tem um sério problema intelectual (dissonância cognitiva), uma profunda ignorância científica ou então é um manipulador que desconsidera fatos a fim de ter apelo junto às pessoas que não os conhecem ou compreendem. Em uma linguagem mais direta, criacionista só pode ser burro, ignorante ou desonesto.

Este estado de coisas não tem a ver, necessariamente, com religião. O criacionismo não é causado pela necessidade de crer em Deus, visto que muitas pessoas creem nEle sem serem criacionistas. Na verdade o criacionismo reflete o apego a um conjunto de explicações que — mesmo obsoleto e em contradição com aquilo que se observa na ciência (e até no quotidiano, em alguns casos) — continua tendo apelo porque oferece uma visão de mundo mais simples, imediata e inteligível. “Deus fez” é uma explicação que não exige muito raciocínio, não humilha quem não tem tempo de estudar e tem, na cabeça de muita gente, o salutar efeito de diminuir a distância entre um diploma de primário e um de doutorado. Em simples palavras: o criacionismo é uma reação anti-intelectual, que procura restaurar um mundo ideal que homens eram homens e sabiam consertar os motores de seus carros.1

Existe, porém, uma ciência que sofre um ataque muito mais cerrado da pseudociência, um ataque muito mais cruel e eficiente. Esta ciência foi estabelecida há mais de duzentos anos e; mesmo mostrando notável capacidade de produção de conhecimento, inclusive com modelos que permitem fazer predições; é praticamente ignorada fora dos meios acadêmicos, enquanto seus detratores têm acesso fácil à mídia para propagar seus panfletos reacionários. E de tal forma isso, que o discurso pseudocientífico se tornou a norma e os pesquisadores precisam enfrentar o ceticismo e o descrédito quando apresentam seus trabalhos. Ceticismo e descrédito que chegam, inclusive, entre os pesquisadores de outras áreas do conhecimento.

A ciência de que estamos falando é a Linguística. Fora dos círculos acadêmicos pouca gente ouve falar dela, embora seja frequente que os conhecimentos por ela produzidos se difundam, sem crédito, por uma variedade de meios. A Linguística permitiu a tradução de textos em línguas perdidas e a reconstrução da autoria da Bíblia; provou a múltipla autoria do Pentateuco e do Alcorão; determinou as relações étnicas entre os povos da Europa, do Oriente Médio, da Ásia Central e do Subcontinente Indiano; permite detectar fraudes documentos históricos; é parte da análise que busca determinar a validade de uma inteligência artificial; ajudou a desconstruir o discurso totalitário etc. As descobertas da Linguística são incríveis, para uma ciência tão recente e que estuda um fenômeno tão complexo quanto as linguagens humanas.

Porém a Linguística desperta sua quota de reações entre aqueles que sonham com um mundo ideal, que homens eram homens e tudo que se precisava aprender era o trivium e o quadrivium.2

Ocorre que a Linguística se insurge contra um dos últimos bastiões do preconceito nossa sociedade. Não é mais aceitável discriminar os indivíduos por fatores como a cor de sua pele ou a religião, resta apenas como última distinção do elitismo a afirmação de um sistema de castas linguísticas, que perpetua e justifica a exclusão de uns favor de outros. Ao demonstrar a cientificamente a falsidade dos paradigmas em que se assenta tal divisão, a Linguística atrai a ira dos que se aproveitam deles para exercer privilégios ou para ganhar uns trocados. E ganha-se muito dinheiro vendendo dicionário e gramática, e cursinho e concurso e manual de redação.

Refiro-me, obviamente, à cultura de gramática e dicionário, herdeira dos sistemas medievais de ensino. Tal cultura se baseia na crença de que certas línguas são superiores a outras,3 que “as pessoas” (aqui geralmente entendidas como “as pessoas das classes inferiores”) pertencem a uma espécie de bípede pelado e estúpido que não saberá se comunicar a menos que a escola ensine. Se não for ensinadas direitinho pelo “sistema educacional”, crescerão falando “errado”, do jeito que puderam aprender com outros ignorantes, como seus pais, por exemplo.

Colocando a coisa nestas palavras ela soa um pouco ofensiva. Talvez algumas pessoas que estejam lendo este texto ouçam soar o alarme: “Ei, eu não penso assim!” Será mesmo? Façamos um exame de consciência, às vezes só conseguimos enxergar certos detalhes quando exagerados na caricatura. E a caricatura dessa visão de mundo é o gramático normativo conservador, figura já satirizada com força por Monteiro Lobato, em Emília no País da Gramática, escrito incrivelmente em 1934. Entre esses há um gramático famoso hoje em dia, que tem por sobrenome a marca de um remédio que causa abortos, que tem espaço até na televisão para difundir “regrinhas” de uma gramática que reflete uma língua falada no século XVIII e que nem mesmo a elite fala mais.

Um cético não pode compactuar com essa visão de mundo. Já falei anteriormente sobre como o ceticismo tem sido abastardado pela convivência com preconceitos, a ponto de arengas céticas incluírem injúria racista contra um povo historicamente discriminado. Aqui estou indo além: a cultura da gramática e do dicionário é preconceituosa, embora não da forma grosseira como se manifesta o preconceito racial contra negros, judeus ou ciganos.

O preconceito a que me refiro é reflexo de uma sociedade de classes, na qual os valores e experiências do povo são desconsiderados e os valores e experiências das classes dominantes são impostos através de sistemas ideológicos. A elite é que sabe falar, e vai ensinar o povo a falar. O “não saber falar” significa que, para a elite, o que quer que o povo esteja falando é uma “não língua”. A História está repleta de exemplos de situações nas quais a imposição da língua dominante refletiu um processo de dominação política.

Ao ser entrevistado para a Veja, o professor foi introduzido pelo seguinte comentário: … professor de português — idioma que, de tão maltratado no dia a dia dos brasileiros, precisa ser divulgado e explicado para os milhões que o têm por língua materna. Não houve contestação desta definição por parte do professor, certamente porque ele gosta de se ver assim, como uma espécie de missionário entre os primitivos. Será realmente necessário “divulgar e explicar” o português para pessoas que o têm por língua materna?

Ocorre que, conforme demonstra a Linguística, os dialetos populares não são uma “corrupção” da língua nacional pela ignorância do povo: eles têm uma origem, uma história e uma lógica interna. Os dialetos regionais já existiam no Brasil Colônia, como reflexo das origens geográficas diferentes dos imigrantes de cada região do país,4 como se percebe facilmente estudando episódios como a “Guerra dos Emboabas”, no qual o falar definia a identidade das pessoas, da mesma forma que seu vestir. Ora, se sabemos que os dialetos têm uma história, como seguir afirmando que nada mais são do que fruto da ignorância de um povo que “não sabe falar”? Não podemos, eis porque segue existindo, entre os que se beneficiam dos métodos de “ensinar a falar”, uma barragem contínua de críticas e desqualificações contra a ciência da Linguística.

Infelizmente, porém, quando uma ciência começa a detectar as estruturas de dominação ideológica que mantêm as coisas “em seu lugar” ela começa a ser associada com movimentos revolucionários que procuraram ou ainda procuram colocar outras coisas no mesmo lugar. Esse discurso da Linguística, que explicita como as elites estabelecem-se como portadoras da “língua certa” e se arrogam a missão de ensinar o povo, passa então a ser visto como perigosamente “comunista” por pessoas que não sabem o que é Linguística e, muitas vezes, não sabem o que é comunismo.

Você já deve ter ouvido falar esse tipo de coisa por aí. É muito frequente entre os adeptos de ciências exatas a depreciação das ciências humanas, como se elas fossem coisa de “maconheiros comunistas gays”. Não percebem os que dizem estas bobagens que adotam um discurso análogo ao dos criacionistas, que rejeitam a priori e em bloco todo um ramo do conhecimento que não estudaram, apenas porque as teses se chocam com as suas opiniões leigas.

Gostaria de enfatizar esta última palavra. Debatedores como o Franciso Quiumento — mas não somente ele — adoram esfregar esse termo na cara de criacionistas para descartar suas opiniões. Acho justo: ninguém confia na opinião de um “leigo medicina” para tratar-se ou de um “leigo engenharia” para construir uma ponte. Natural, portanto, que o bom senso rejeite o que um “leigo biologia” tenha a dizer. Mas será que tipo de reações que eu provocarei se disser que os vociferantes críticos da Linguística são “leigos” que não sabem o que estão falando? Será que essas pessoas terão a racionalidade de reconhecerem que agem como o apologista de Bíblia à mão que grita que “A Evolução É Só Uma Teoria”? Tenho certeza de que a maioria não. Tal como é impossível demover o criacionista, ao menos não subitamente, é impossível demover os críticos da Linguística, porque do alto de sua ignorância eles acham que estão “certos”, que as ciências humanas não são ciências “de verdade”, enquanto eles têm à mão a régua exata para medir o mundo.

Cabe perguntar qual a razão do preconceito contra as Ciências Humanas por parte das pessoas que cursam Exatas ou Biológicas. Talvez tal preconceito seja agravado pelo reflexo das distorções de nosso mercado de trabalho, que tornam mais financeiramente bem sucedido um médico ou engenheiro do que um professor, mas o fenômeno é encontrado também outros lugares do mundo, o que nos sugere uma causa mais profunda do que as imperfeições de nossa sociedade tropical. Se eu quisesse cometer um comentário tão abusivo quanto os que já me foram dirigidos por pessoas de Exatas ou Biológicas eu diria que aqueles que são instrumentalizados pelo sistema serão por ele pregados como peões na luta contra o conhecimento que ameaça a atual estrutura do mesmo sistema. Não creio, porém, que esses comentários sejam deliberados, mas fruto de irreflexão e, portanto, não é justo que eu reaja com um ataque desse tipo. Justo é, porém, que eu convide as pessoas que desqualificam as Ciências Humanas a examinar não as motivações de tais críticas, pois tal pedido seria falacioso, mas a validade delas.

Na próxima semana volto ao tema, para falar especificamente sobre as formas como se manifesta tal preconceito.

1 Uma das provas de que o criacionismo não é um monstrengo isolado, nem a Biologia a Geni das ciências, é que existem vários outros fenômenos análogos afetando outras ciências, exatas, humanas e biológicas. A pseudociência existe em todos os ramos do conhecimento, sempre acompanhada de uma pregação panfletária contra o “elitismo” da ciência estabelecida e seus controles e apresentando-se com uma humildade cativante que fala ao coração do leigo com o conforto da sugestão de que o esforço de estudar é uma vaidade sem sentido. Exemplos de fenômenos tais podem ser encontrados na História (revisionismo do Holocausto, deuses astronautas, fenícios cariocas), na Geografia (Amazônia pulmão do mundo), na Medicina (homeopatia, osteopatia, auras, cura pela fé), na Geologia (terra oca, terra jovem), na Astronomia (Nibiru/Hercólubus) etc. Talvez os outros tipos de pseudociência não consigam ter a mesma projeção do criacionismo por não contar com o púlpito para divulgá-los (inclusive o púlpito eletrônico), mas epistemologicamente falando não há uma grande diferença entre crer Adão e Eva ou crer crianças índigo.

2 O currículo das escolas mantidas pela Igreja na Idade Média se baseava no estudo de dois grupos de matérias. As básicas correspondiam ao trivium, de que deriva o adjetivo “trivial”, e as demais eram consideradas avançadas. O trivium era composto de gramática, lógica e retórica; enquanto o quadrivium tinha de aritmética, geometria, música e astronomia. Este currículo correspondia às “artes liberais”, enquanto outros cursos ensinavam as “artes práticas” (como a medicina e a arquitetura).

3 Os anglófonos, por exemplo, julgam o inglês a língua “mais própria à civilização” por possuir o maior conjunto de vocábulos (ainda que os dicionários de inglês sejam inflados por todo e qualquer termo estrangeiro que adquira certo uso corrente e que as diferentes acepções de uma mesma palavra sejam frequentemente postas verbetes separados). Os francófonos consideram o francês superior porque possui “o sistema de conjugação verbal mais preciso entre as línguas latinas”, entre outras bobagens. Para cada língua há um meio de demonstrar sua “superioridade” segundo algum critério arbitrário: o alemão e sua incrível capacidade de derivação morfológica, o italiano e sua plasticidade sonora, o espanhol e sua estabilidade ortográfica e gramatical de quase oito séculos, o grego e sua tradição de dois mil e quinhentos anos etc.

4 A influência açoriana nos dialetos do extremo sul, por exemplo, ou da língua tupi sobre os dialetos do centro-oeste e de São Paulo.


24
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 20:39link do post | comentar

Caro leitor, tenho de confessar, tem dias que me dá uma vontade estranha de esquecer o inglês! Lembro-me das palavras da velha Dolly Pentreath — que eu nunca conheci e cuja voz jamais ouvi — em seu leito de morte, gemendo para as paredes Me ne vidn kewsel Sowsnek! Me ne vidn kewsel Sowsnek! Como ela eu também gemo para as minhas paredes, com séculos de antecipação, que não quero ser obrigado a falar o inglês! Temo que meu brado seja em vão, mas eu vou ainda assim dar os meus resmungos, na esperança de alguns que me ouçam transformem este incômodo em um murmúrio audível.

As pessoas dão um valor excessivo ao inglês. Tem gente demais exibindo “tinturas” de inglês, tal feiticeiros murmurando abracadabras em línguas mortas. As pessoas esperam dar “cor cosmopolita” aos seus blogues, com a ajuda de alguns bye-bye e de alguns títulos traduzidos com o dicionário. Muitas dessas pessoas nem sabem que dentro de algumas décadas poderão estar sendo obrigadas a estudar chinês, árabe ou, se as coisas derem certo para nós, português!

Eu não gosto das pessoas que vão na onda. Surfe nunca foi meu protótipo de esporte favorito. Se é verdade que os que ficam no caminho da história são pisoteados por ela, nada é tão belo quanto um “tank man” em sua Praça da Paz Celestial. A tragédia cômica dos quixotes possui maior grandeza do que o sucesso obsceno dos vendidos. São os vilões que se vendem, e heróis sempre morrem no fim. Mesmo assim você não lê o ciclo arturiano torcendo por Mordred e nem assiste uma encenação de Hamlet torcendo pelo rei Cláudio.

Por isso, caríssimo leitor, que me sinto incomodado com a invasão inglesa que vai por este país. Incomoda-me que eu tenha tido que escrever este texto com a ajuda de pelo menos um anglicismo porque ninguém sabe dizer “tank man” em português, não de uma forma evocativa. Penso que no futuro haverá cada vez mais termos que não poderão ser perfeitamente expressos em nossa língua, tal como, num distante passado, nossos caipiras achavam que certos conceitos não poderiam ser expressos em tupi. Amigos, temo que o português brasileiro seja o tupi do futuro.


21
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 12:00link do post | comentar

Entre todas as coisas erradas que o MEC faz, ele comete alguns acertos quase involuntários — e é justamente contra eses que vozes se levantam.

Os zurros dos fãs de gramatiquice sempre tentam impedir que o método científico seja finalmente empregado no ensino de língua portuguesa no Brasil. Nesse terreno ainda estamos presos em práticas pré-científicas. Pasquale Cipro Neto está para o português como Ptolomeu para a astronomia.

Assim como a fotografia de uma paisagem não é a paisagem, a gramática não é a língua. Mas os gramatiqueiros chegam ao ponto de afirmarem que o povo não sabe falar, porque pensam que a língua se resume ao que está no livro, e o resto não é língua.

Ninguém se importa que nossa escola dê diplomas a analfabetos funcionais. Não há gritaria na imprensa quanto a isso. Mas basta surgir a possibilidade de estarem implementando métodos mais científicos de ensino (ó ameça!) e até Alexandre Garcia é posto como “cheerleader” dos gramatiqueiros.


23
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 23:11link do post | comentar | ver comentários (4)

Maria Bethânia atraiu uma grande reação quando “se soube” que ela teria apresentado ao Ministério da Cultura um projeto para desenvolver um blog de poesia e obtido uma licença para captar R$ 1.300.000,00 (coloquei assim, com todos os zeros, para que vocês possam tentar visualizar melhor a cifra). Seguiu-se grande indignação pilotada pela mídia amestrada (aquela que abana o rabo quando lhe mostram o osso de uma polêmica) e surgiram desmentidos e explicações. Parece, isto é, “parece” que tal cifra não se refere à “recursos federais” mas a uma “autorização para captação de recursos” junto a patrocinadores, usando a Lei de Incentivo à Cultura. Assim, tenho feito esta breve apresentação do caso, acompanhada das devidas considerações necessárias para que eu não recaia em qualquer afirmação que sim ou que não (palavras estas, ambas, inexistentes no vocabulário do legítimo mineiro político).

Mas o caso deste post não é comentário sobre a moralidade envolta no caso, ou possível falta disto. Não me julgo árbitro capaz da moral alheia, tanto que, aliás, nem acho que “moral” exista a não ser nos catecismos — e estes, vós todos sabeis, não fazem parte de minha biblioteca. O caso deste post é mais intangível porque, de fato, em toda essa história, o proverbial e metafórico buraco é muito mais embaixo.

No centro desta questão há um fato: não se dá valor nenhum à poesia nesse país. Tivesse Maria Bethânia se proposto a fazer um blog sobre política ou sobre viagens de férias e certamente muita gente teria protestado menos, ou até aplaudido. O que eu detectei em muitos dos mais venenosos comentários foi o escândalo pelo fato de alguém, em algum lugar em Brasília, ter considerado que poesia valha um milhão de reais.

De fato é surpreendente que em Brasília, cidade erguida em material anti-alérgico sobre uma superfície devidamente esterilizada, existam pessoas com tal consideração pela poesia. Cá de longe a maioria das pessoas não supõe que exista sensibilidade em Brasília, apenas políticos e filhos da classe média que queimam índios para passar o tempo. A notícia, portanto, traz embutido um alento: talvez Brasília não seja um caso perdido, pois a cidade onde há pessoas que acham que a poesia vale um milhão de reais é um lugar que certamente merece considerações.

Mas o espanto teria sido o mesmo se não tivesse vindo de Brasília. Porque o problema do povo não é com a capital, mas com a poesia. Onde já se viu alguém achar que poesia vale tanto. “Com tanta gente passando fome”, certamente em algum lugar algum boçal está pensando. Boçais são pessoas que mesmo sendo crentes de carteirinha ignoram que o próprio Jesus teria dito que “nem só de pão vive o homem”. Vive o homem também de poesia.

Mas as pessoas, algumas devidamente providas de suposta cultura que lhes capacitaria a não pensar de forma tão automática e de forma tão alinhada com os preconceitos automáticos do vulgo, se surpreenderam com isso: “Ora, bolas, um milhão de reais para declamar poesia? Que absurdo!”

Essa gente, decerto, não acha errado que um jogador de futebol iletrado e não necessariamente talentoso ganhe mais que o Presidente da República ou que um ogro sem dicção e sem cultura musical enriqueça berrando palavrões a que certo tipo de “gente” chama de “música”. O problema não está em receber um milhão de reais, é receber tal soma em troca de poesia. Se fosse em troca de cocaína haveria quem abrisse a boca admirado. Se fosse em troca de fazer um filme pornô, haveria quem achasse “sensato”. Mas ganhar dinheiro com poesia? Onde já se viu isso? Poeta não tem que morrer louco e faminto?

Na mente de muitas pessoas não há lugar para a poesia — e consequentemente não lhe dão valor. Se Betânia estivesse pedindo seu milhão de reais para fazer um desses “projetos sociais” com crianças carentes não haveria uma só voz de crítica. É com demagogia assim que as pessoas sem talento infundem complexo de culpa nos menos espertos: “como você ousa criticar o Vadico do Cavaco assim, ele tem um projeto social com crianças cancerosas e você não faz nada pelos outros.” Foda-se quem pensa assim, as pessoas devem ganhar dinheiro fazendo o que se propõem a fazer. Maria Bethânia faz música, faz poesia, faz cultura. Ela não precisa beijar criança ranhenta para mendigar patrocínio. Pessoas como ela são (ou deveriam ser) um patrimônio da cultura nacional. Maria Bethânia sequer precisaria pedir esse dinheiro: em um país sério isso lhe seria espontaneamente ofertado.

É incrível como as pessoas chegam a pensar que fazer e distribuir poesia nesse mundo tão carente dela seja “absurdo”. Talvez se houvesse nesse país um pouco mais de poesia haveria um pouco menos de fome. Quando matam a poesia, vai junto a consciência de um povo, e daí se pode impunemente resvalar na superficialidade e no egoísmo. Daí se pode chegar ao ponto de vivermos de aparências e de fingimentos. Quanta gente famosa por aí não finge que canta, que atua, que escreve… A cultura passa a ser mercadoria, passa a ser uma maneira de canalizar dinheiro, uma indústria. Mas a poesia, nas mãos de uma pessoa cuja vida construiu a dignidade que deveria ser suficiente para estar acima destas línguas sujas que a vituperam, não vale um milhão de reais.


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