Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
11
Out 11
publicado por José Geraldo, às 22:28link do post | comentar

Há anos um parágrafo escrito por Howard Phillips Lovecraft não me sai da cabeça. Já o devo ter traduzido uma dezena de vezes, para postar em duas ou três dezenas de lugares. Aqui vai a décima primeira tradução, como introito deste artigo que, mais uma vez, me alijará de alguns amigos e leitores:

A coisa mais misericordiosa no mundo, creio, é a incapacidade da mente humana para interligar todos os seus conhecimentos. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio aos mares negros do infinito, e não fomos feitos para ir muito longe. As ciências, cada qual puxando em uma direção, até agora nos causaram pouco mal, mas um dia a montagem de todo o conhecimento desconexo abrirá tais terríveis visões da realidade, e de nossa precária posição nela, que enlouqueceremos com a revelação ou fugiremos da luz fatal, para a segurança e a paz de uma nova idade das trevas.

Lovecraft escreveu no entre-guerras, uma época em que o mundo estava muito pessimista — e com plena razão: treze anos após terem sido escritas estas palavras o mundo mergulhou na pior guerra de todos os tempos, uma que, em seus efeitos de longo prazo, praticamente destruiu a civilização ocidental. Por paradoxal que isso possa parecer, a orgia de massacres e destruição da Pior de Todas as Guerras deu ao mundo um otimismo tal como nunca se vira, e a humanidade embarcou num sonho de grandeza extraordinário: sonhamos em conquistar as estrelas, colonizar sistemas solares, ser mestres de galáxias. Lênin não dizia que o capitalismo, se pudesse, anexaria os planetas? Pois bem, a utopia do século XX sonhava exatamente com isso.

Mas as palavras de Lovecraft, mesmo esquecidas de quase todos, continuavam profeticamente denunciando a vaidade de nossos sonhos. E cada nova descoberta da ciência foi pondo uma pá de cal a mais na cova da utopia. Sonhamos, sim, com as estrelas, mas elas estão distantes de nossas mãos, somos crianças brincando numa poça, sonhando agarrar as estrelas que se refletem na água. Sonhamos com uma maravilhosa máquina prateada que nos eleve e nos leve além de nossos horizontes cinzentos, tal como na canção do Hawkwind:

Acabei de passear em uma Máquina Pratada / e ainda estou me sentindo tonto. / Você gostaria de também ver-se transportado / ao outro lado do céu? / Eu tenho uma Máquina Prateada / que voa diagonalmente no tempo. / É um aparelho eletrizante / vindo exatamente de meu signo do zodíaco. / Tenho uma Máquina Prateada / Tenho uma Máquina Prateada

Que tal canção tenha feito grande sucesso nos anos setenta não é nenhum espanto: era o auge do delírio espacial do homem.

Se todos nós pudéssemos ajuntar os cacos partidos do conhecimento humano, já teríamos visto a enormidade do desafio: a extensão do cosmos vai muito além do que o intelecto medíocre pode conceber, mas no jargão dos fãs de ficção científica fala-se em anos luz como se fossem «quilômetros espaciais». De certa forma, são, mas nós somos para tal quilômetro fantástico menos do que formigas na estrada. Estrelas comparáveis ao sol existem nas nossas proximidades, a meros anos luz. Elas parecem, no entanto, minúsculas e frias porque meros anos luz transformam o Sol em uma estrela a mais. A maioria das «estrelas» que vemos no céu são super gigantes, agrupamentos de estrelas ou até galáxias distantes. Como pudemos sonhar romper estas distâncias que transformam sóis em velas? Somente com ingenuidade, e ignorância.

Mas a orgia de tal sonho teve um fim: o mundo de hoje não consegue mais reunir tantos excedentes e obter verbas em escalas suficientes para desenvolver projetos semelhantes ao que levou o homem à Lua. Com a tecnologia que temos, a repetição do feito seria quase trivial: os computadores de bordo das naves Apollo não tinham a capacidade de uma calculadora científica de hoje. Ir à Lua seria fácil, mas ainda não temos nada de útil para fazer lá. Então o projeto espacial se torna obsoleto, desnecessário. As distâncias são muito grandes, o espaço é muito frio. Nós fomos lá fora, vimos os mares negros do infinito e estamos presos na praia. São vários os fatores que nos limitam: nossas almas, nossos corpos, nossa tecnologia, nossa finitude.

As leis da física estão contra nós: basta fazer uma conta simples, como a que fez Poul Anderson, em seu romance «Tau Zero». Mesmo sem a resistência oferecida pelo ar, mesmo ainda beneficiados pela inércia, no espaço nós precisamos de quantidades imensas de energia para empurrar nossas naves meteóricas. Cada aceleração adicional exige mais energia, uma dose de energia que cresce exponencialmente a cada acréscimo aritmético da velocidade. A energia necessária para acelerar da metade a dois terços da velocidade da luz é maior do que toda a energia necessária para chegar à primeira. E uma vez tendo chegado a 90% (algo que ninguém mais crê ser possível) qualquer aceleração adicional já exigiria uma quantidade praticamente infinita de energia. Mais do que isso, devido à relatividade do espaço-tempo, uma nave tal, supondo que seja possível a um objeto físico real acelerar a tanto, estaria de tal forma afetada pela velocidade que no espaço de uns poucos anos para seus tripulantes transcorreria um tempo maior que a atual idade do universo. Nossas almas ficariam para trás, ainda que nossos frágeis corpos resistissem a tudo isso.

E falando de frágeis corpos, não cessam de acumular dados sobre os efeitos negativos da permanência no espaço. Passada a fase romântica em que era interessante usar toneladas de explosivos para atirar fora da atmosfera frágeis bolhas de metal e vidro levando corajosos (ou loucos?) indivíduos que sonhavam com a posteridade, hoje não parece haver muito sentido em expor corpos humanos às condições da órbita: os ossos se fragilizam, os músculos definham, o labirinto se atrofia, o sangue fica estranho. Não faz um ano descobriu-se que os astronautas que permanecem no espaço mais do que alguns dias retornam com a visão afetada também. Quanto resistiria o frágil corpo humano em uma viagem realmente dura, de anos ou décadas pelo espaço vazio, rumo ao nada? Chegaríamos sem ossos, sem músculos, cegos, desequilibrados. Cegos e desequilibrados talvez já estejamos.

Existem tecnologias teóricas que poderiam vencer tais obstáculos. Fala-se em hiperespaço, buracos de minhoca, gravidade artificial. Fala-se de tais coisas tal como na idade média se falava em carruagens mágicas, feitiços do tempo, pedra filosofal, panaceia universal. Tal como naquela época, falamos destas coisas sem ter a mínima ideia de como poderiam ser obtidas. Sob certo aspecto, o romance medieval de cavalaria mencionando o bálsamo cura tudo e o fogo grego é uma obra de ficção científica tão legítima quanto uma moderna, que fale sobre viagens por buracos de minhoca, em naves maravilhosas, rumo a planetas desconhecidos. A vassoura mágica de uma feiticeira em seu sabá é tão científica quanto o disco voador do alienígena (bom ou mau) que aparece do nada, para punir ou pregar. Cada idade tem seus demônios e seus deuses, e como disse Clarke, tecnologia suficientemente mais avançada não se distingue de mágica.

Sim, meus amigos. Lovecraft tinha razão. Não fomos feitos para ir muito longe. Sonhamos apenas com isso, e nossos sonhos hoje não são mais com anjos que nos levem para ouvir a música das esferas, mas com inventos fantásticos que nos levem desse mundo cada vez mais vazio. Mas não adianta sair: este é, ainda, o único mundo que nós temos.


09
Out 11
publicado por José Geraldo, às 23:32link do post | comentar

Hoje à tarde, enquanto lia sobre a obra de H. P. Lovecraft, que segue sendo um de meus autores favoritos (em parte devido às suas semelhanças comigo, nos aspectos psicológico e teratológico), encontrei uma passagem, escrita jocosamente por um comentarista na Usenet, zombando das inúmeras obras que foram escritas até hoje empregando como clichês os elementos mais característicos das histórias lovecraftianas, os chamados “pastiches”:

Será que ninguém escreveu um anti-pastiche? Centrado em um culto que acabou de ser formado, com prateleiras cheias de livros comprados na B Dalton [uma cadeia de livrarias americana equivalente à nossa Cultura MegaStore] e vários cadernos ainda preenchidos apenas pelas linhas azuis, que tem um bom relacionamento com a comunidade…

Ao ler isso eu quase cuspi no teclado a água que estava bebendo. Esta é a sinopse da “Confraria dos Temerários” (de que já publiquei uma parte aqui no blog)! Caramba! Alguém teve essa ideia em 1997 e ela certamente está rodando por aí, nas mãos de escritores talvez até mais competentes do que eu! Certamente já existe esta história, de alguma forma. Para a sinopse ficar completa, só faltou mencionar o meu protagonista, um jovem psicólogo que estuda a fixação de certos indivíduos por grimórios.


23
Set 11
publicado por José Geraldo, às 20:20link do post | comentar | ver comentários (1)

Denilson Ricci, responsável pelo Site Lovecraft está prestes a lançar ao mundo um dos mais ousados projetos editoriais independentes dos últimos tempos, talvez o mais ousado da década até agora. Movido apenas pelo trabalho de voluntários (tradução, revisão, ilustração, projeto gráfico, catalogação) e com a proposta de venda a um grupo fechado de compradores, ele pretende dar à luz um volume que deve, em breve, ser referência para autores brasileiros de ficção científica e horror: a primeira edição abrangente das obras de H. P. Lovecraft no Brasil.

O objetivo é ambicioso: reunir as obras mais significativas do mestre do horror cósmico, tanto em prosa quanto em verso, em um volume ilustrado e acompanhado de prefácio e de uma longa biografia do autor. Espera-se que o volume tenha mais de 400 páginas! Além disso, a edição será em formato grande, em papel de primeira qualidade, em vez das edições de bolso que normalmente são reservadas para os gêneros “menores” (como a ficção científica e o horror) pelas editoras tradicionais.

Esta edição foi possível porque toda a obra do autor encontra-se em domínio público no Brasil desde 2007, considerando que ele morreu em 1937. Mas de nada adiantaria a obra estar disponível se Denílson não conseguisse reunir, através da internet, uma variada equipe de pessoas de todas as partes do país, das mais diversas profissões e interesses. Tradutores, revisores, críticos, biógrafos, desenhistas, designers. Coordenando um grupo de dezenas de pessoas, separadas pelas distâncias físicas e culturais que a Internet, e apenas ela, permite vencer, o editor nos traz a esse momento glorioso, em que nasce, quase de um parto, um livro destinado a ser referência pelos anos que hão de vir.

Sinto profundo orgulho de ter colaborado nesse trabalho, com a tradução de nada menos que quatro contos do Mestre, dos quais três devem ser aproveitados nesse primeiro volume:*

  • A Busca de Iranon (The Quest of Iranon),
  • Um Sussurro na Escuridão (A Whisperer in Darkness),
  • O Habitante das Trevas (The Haunter of the Dark)
  • O Depoimento de Randolph Carter (The Statement of Randolph Carter)

Visite o Site Lovecraft para mais informações, e prepare alguns cobres para comprar, até janeiro ou fevereiro, a primeira edição de luxo e independente das obras de H. P. Lovecraft no Brasil.

Sugiro fazer já a sua reserva, pois a tiragem será restrita aos que encomendarem. Eu já encomendei OS MEUS.

*Sim, ouso dizer “primeiro volume” porque seria mais do que apropriado usar o conhecimento já adquirido e fazer um segundo volume. O autor tem obras em quantidade suficiente para alimentar várias repetições desse projeto. E eu ainda sonho, muito em traduzir para o português The Dream-Quest for Unknown Kadath.


23
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 14:57link do post | comentar | ver comentários (1)

Em algum momento, em 2003, eu tive um sonho no qual me via seguindo uma mulher a cavalo, vestida de negro. Na época eu ainda não conhecia o som do Uriah Heep e não poderia ter feito a ligação com “Lady in Black”. Em vez disso, o sonho se referia mais à uma figura existente na capa da edição de “As Brumas de Avalon” que eu tinha comprado naquela época. A “Senhora da Magia” levando Excalibur à mão e cavalgando um cavalo branco.

Este sonho acabou se conectando, pelas tortas vias da inspiração, com outro que eu tive no dia seguinte, no qual me via na pele de um perseguido político, ameaçado de tortura. A conexão dos dois resulta no argumento inicial do conto. A segunda parte, escrita cerca de duas semanas depois, procurou relacionar os episódios algo sobrenaturais narrados na primeira a algum tipo de acontecimento histórico conhecido. Eu planejava fazer outras conexões mais amplas, usando, por exemplo, um outro conto que eu intitulava “História de uns Fantasmas” (que acabou resultando em “Inocência Assassina”). O plano que eu tinha era de um romance, ou um ciclo de contos, baseado em um universo paralelo conectado com o interior de Minas Gerais.

Mas o projeto não prosseguiu. Em parte isso foi porque eu não gostava muito de histórias de fantasia e terror, mas a principal razão foi eu não vislumbrar maneiras de dar prosseguimento à história. Durante muito tempo os contos “A Cabana ao Pé da Montanha” (atual Parte I) e “A Mansão Além da Montanha” (núcleo da Parte II) figuraram como duas histórias independentes e inacabadas em meu antigo site. Porém, durante o ano de 2009, eu resolvi retomar o projeto do “Grande Romance Místico Mineiro” e acabei revisitando os dois contos. Na época escrevi um terceiro conto, chamado “O Círculo Entre as Montanhas”, que foi o esqueleto da Parte III. Este conto nunca foi publicado.

Por fim, agora no comecinho de 2011, numa tarde razoavelmente inspirada, eu revisei os três contos, consertei as conexões entre eles, tornando-os efetivamente partes de uma mesma história, e os publiquei no blog (usando a ferramenta de agendamento de postagens).

A “Cabana ao Pé da Montanha” ainda será revisado algumas vezes, certamente aumentado em talvez até 50%, mas já está em uma forma apresentável. Ele será, futuramente, uma espécie de introdução ao universo da “Serra da Estrela”, no qual vou ambientar um romance e alguns contos. Nesse universo, as lendas brasileiras existem, de certa forma, e algumas maldições portuguesas foram desterradas.


20
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 20:00link do post | comentar
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<div class="nav"><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha.html" rel="noopener">Parte I</a> <em>·</em> <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha-parte-ii.html" rel="noopener">Parte II</a> <em>·</em> <a anchor"."="anchor&quot;.&quot;" rel="noopener">Parte III</a></div><p>A desolação escaldante da paisagem parecia piorar à medida em que o sol subia no céu, e os fatos da noite, ainda queimando na minha memória, me impediam de pensar com propriedade. Que maldito lugar era aquele? Por que as malditas sepulturas estavam esvaziadas? Quem era a Inês, que se parecia tanto com a mulher que se matara na colina? Tantas perguntas. Nenhuma resposta.</p><p>Fui perdendo o medo de ficar por ali e retornei à casa. Seus longos corredores de paredes sem pintura tinham uma frieza cavernosa, apesar do sol que vergastava a terra lá fora. Uma formidável construção, feita para resistir às intempéries dos trópicos. Curiosamente, uma construção da qual eu nunca ouvira falar, mesmo residindo, em teoria, a menos de cem quilômetros dali.</p><p>O lugar realmente se parecia com um mosteiro abandonado. Os demais quartos, que permaneciam fechados, tinham o seu ar de claustro mais preservado, com móveis ainda mais rústicos e até mesmo um ocasional rosário de contas negras pendurado na parede. Boa parte do que normalmente se encontra em um tal lugar estava, porém, faltando. Não havia biblioteca e a capela estava ausente. Apenas um terreno pavimentado de pedras encaixadas, bem ao lado da construção maior, dava a ideia de que ali existira um templo cristão. O que motivara sua completa destruição era algo que me escapava. A igreja maior, localizada onde deveria ter sido a aldeia, ainda estava lá, mesmo arruinada e coberta de ervas. Apenas a capela dos monges tinha sido obliterada da face da terra.</p><p><a name="more" rel="noopener"></a>Vasculhei o prédio durante todo o dia, na esperança de encontrar algum registro deixado por algum dos antigos moradores. Mas não havia nada. Nenhum livro, caderno ou simples calendário com anotações. Na verdade, à medida em que eu percorria aquele lugar, ficava com a impressão mais forte de que ele estava se desfazendo diante de mim, como se os séculos tivessem resolvido finalmente andar.</p><p>Vendo, então, que não havia nada que pudesse me dar notícia do lugar onde estava, decidi que era melhor mesmo retornar ao único lugar onde encontrara alguém com respostas: a cabana ao pé da montanha. Quem sabe a jovem grisalha estaria lá, embora tivesse me alertado para não permanecer naquele lugar por muito tempo?</p><p>Fiz uma trouxa com comida para alguns dias, escolhendo com cuidado na despensa pouco provida. Montei o cavalo sentindo medo, talvez, de algo mais grave que a morte ou mais dolorido que o pau de arara. Deixei que o animal me levasse, e notei com estranheza que ele parecia não ter mais nenhum tipo de receio, nem de ir e nem de voltar. Como se alguma sombra que antes o assustava tivesse sido removida.</p><p>O caminho de volta à montanha não teve aventuras. Passei com cuidado pelas encruzilhadas que não conhecia, temendo especificamente aquela que me faria dobrar a crista do monte e entrar de volta na pequena estrada vicinal que me trouxera, fugido, do mundo onde eu era um criminoso. A custo localizei a entrada da picada na parede fechada da mata virgem, através da qual cheguei ao prado florido à beira do regato, ao vau por onde se podia cruzar a pé a correnteza e à estrada pavimentada de pedras chatas pela qual se subia ao cume fatal da Montanha.</p><p>Não sei que horas eram, porque meu relógio de corda andava louco desde que deixara a civilização. Sem outros com que conferi-lo, poderia estar marcando qualquer hora. Mas eu sabia que devia ser por volta de seis da tarde, ou pouco mais, porque o sol já ia tocando as serras, o ar já tinha um sopro frio que descia pelas árvores, um vento que fazia os troncos estalarem fantasmagoricamente.</p><p>Encontrei a jovem grisalha, vestindo sua longa túnica negra, sentada em torno de uma mesa de madeira rústica, à sombra de uma alta árvore, cuja copa se perdia acima das copas menos notáveis de outras árvores: um centenário pau-brasil, cuja casca rescendia um aroma suave no ar. Ela me acompanhava com os olhos, sem demonstrar emoções. Aproximei-me calado, sem ter mesmo ideia de como dar início à conversa.</p><p>Quando me aproximei dela, a ponto de poder perceber que ela não era, de fato, tão jovem — mas não tão velha que devesse ter aquela cor lunar nos cabelos.</p><p>— Estou confuso — foi o que eu consegui dizer, depois de algum tempo.</p><p>Ela me mostrou um sorriso, ou rosnado, e olhou para os lados e para cima, como se tivesse algo que eu devesse ver. Mas não havia nada, apenas o silêncio e os estalos dos troncos movidos pelos ventos e o murmúrio da água do regato.</p><p>— Como eu pude ter encontrado Inês ontem se a vi matar-se anteontem?</p><p>A jovem grisalha se levantou e caminhou até mim, sem que seus pés descalços quebrassem as folhas secas do chão. Ela me estendeu os braços, cobertos de marcas azuis de tatuagens e maldições milenares. Os olhos dela tinham uma tristeza tão profunda que eu tive vontade de abraçá-la.</p><p>— Ah, querido. Tudo é tão complicado. Tudo seria tão mais simples. Eu mesma não entendo tudo. Não entendo onde estou mais, é como se eu vivesse um círculo eterno. Uma solidão que nunca passa. Desde que vieram os homens de branco, com aquele maldito ritual. Parece que o tempo sempre volta e vem, e vai e está. As coisas acontecem depois de suas consequências, as vidas e mortes sempre se repetem e eu sempre permaneço aqui em torno desta cabana, tentando ir e nunca indo, tendo de testemunhar através das décadas e dos séculos a traição e a morte que tanto me magoaram.</p><p>— Quem é você? O que é você?</p><p>A jovem grisalha me olhou desolada.</p><p>— Quem eu sou não importa mais, nem o que eu era. Tu és apenas mais um que chega, para enfiar outro espinho no meu coração. Quantas vezes não contei minha história a homens como tu, ou mulheres! Quantas vezes não os amei, matei ou ignorei! Nada importa. Vivos, mortos, amados, feridos, abandonados. O tempo continua sua dança em torno de mim e outros vêm.</p><p>Quando disse que muitas vezes havia matado, não pude deixar de notar a adaga de lâmina curva que levava à cintura: distintivo certamente de uma ordem hermética. Estava diante de uma bruxa, de uma proverbial bruxa das histórias infantis. Das que são capazes de matar ou amar com a mesma intensidade e indistintamente. Isto explicava o livro em língua estranha, língua de bruxa. E por isso aparecia ao anoitecer.</p><p>Recuei dois passos enquanto ela falava. Começava a acreditar em toda aquela loucura. Ela não percebeu, ou fingiu não perceber. Minha curiosidade ainda me queimava, mas não tanto quanto o ferro em brasa dos torturadores:</p><p>— Eu não sei quem és. Mas eu quero, eu preciso ficar por aqui. Eu não entendo onde estou, não sei o que estou fazendo. Mas quero e preciso ficar.</p><p>Ela me olhou sem surpresa:</p><p>— Outros antes quiseram ficar.</p><p>— E não é bom que de vez em quando alguns queiram ficar? Se é como você diz, a solidão das décadas já deve ter se acumulado demais.</p><p>— Oh, querido. Tu não entendes nada, e o que dizes é loucura!</p><p>— Se o que digo é loucura, então ouça o que digo: eu preciso de ajuda. Preciso de um lugar onde possa ficar escondido, por alguns anos, talvez para sempre. Dizem que as irmãs sempre ajudam quem as procura com sinceridade e sem desejar o mal.</p><p>Ao ouvir-me mencionar “as irmãs” a jovem grisalha se empertigou subitamente, como se lhe tivessem cutucado em uma parte sensível do corpo.</p><p>— O que sabes, profano? Como reconheces o nome secreto!?</p><p>Se fosse verdade que ela estava há séculos presa naquele canto perdido de Minas Gerais, fazia sentido que ela não imaginasse a facilidade com que se podia ter acesso aos grimórios do passado.</p><p>— Calma, irmã. É em paz que venho.</p><p>— Quia est nomem tuus?</p><p>— Johannes</p><p>A bruxa pronunciou com uma rapidez quase cômica uma série de imprecações em alguma língua mais antiga e mais assustadora que o latim, durante a qual a forma latinizada de meu nome foi repetida várias vezes. Então ela sentou e começou a chorar:</p><p>— Já não funciona mais. Já nada funciona.</p><p>— O que não funciona?</p><p>Aproximei-me dela com cuidado, mas sinceramente comovido, e acariciei os seus cabelos descoloridos pela dor da solidão eterna. Ela permitiu que eu o fizesse, murmurando entre soluços:</p><p>— Oh, tu sabias, velho maldito. Tu o sabias! A carne é frágil diante da solidão e do tempo. Tu o sabias, maldito!</p><p>A bruxa me conduziu de volta à cabana, à sua cabana. Ali ela me preparou um chá, que eu bebi com receio e vagareza, temendo que ela me envenenasse. Mas não era nada disso: apenas hortelã-brava fervida em pura água da montanha e adoçada com o mel das abelhas selvagens.</p><p>Então ela me contou a sua história. Contou-me que se chamava Júlia Carneiro, que realmente fora bruxa em Portugal, que por isso recebera o degredo para o Brasil, casada à força com um proprietário de terras, que parecia ter a missão de espancá-la, mas que nunca ousara tocá-la, talvez por receios de sua fama de bruxa. Havia histórias horríveis sobre lábios com dentes e sobre escorpiões escondidos no útero. Em vez dela, o bronco engravidava as negras e as índias e se enchia de aguardente e de maldades. Um dia os negros e os índios da fazenda se revoltaram, os empregados não puderam resistir muito, pois uma enchente molhara os paióis de pólvora. Foi assim que ela se tornara viúva, vendo o marido ser esquartejado, “como um porco”, pelos vingativos negros, cujas costas tanto haviam sofrido a mando dele.</p><p>Sobrevivera ao massacre atirando-se no rio gordo e turbulento. Deveria ter morrido, mas salvou-se graças à arte mágica da natação, que bem poucas mulheres daquele século sabiam: só as que tinham sido raparigas de navio ou mulheres de pescadores.</p><p>Os índios a acolheram quando ela demonstrou algumas de suas artes. Mas uma pajé mulher era algo que não fazia sentido e ela acabou tendo de deixar a aldeia. Conseguiu retornar à civilização graças a um convento que estava sendo construído bem no centro da Serra da Estrela, a poucos quilômetros do Pico da Mesa, que dominava dezenas de quilômetros quadrados de planície pantanosa e pedregosa: o perigoso vale do Rio Vermelho.</p><p>Nesse ponto da história, fez uma longa pausa. Seu rosto, mal iluminado pela vela de sebo, parecia corar um pouco ao lembrar dos detalhes.</p><p>— Acreditas no amor?</p><p>— Sim.</p><p>— Acreditas no amor absolutamente sem fronteiras, no amor entre almas, ou crês que o amor está preso a corpos?</p><p>— Não sei o que dizer, mas acredito que o amor não pede licença e nem se explica.</p><p>— Eu ainda tenho receio de falar sobre o que aconteceu.</p><p>— Mas não me disseste, há pouco, que é uma história que já te cansaste de contar?</p><p>— Mesmo que a conte mil vezes, sempre terei receio de que a maldição se renove.</p><p>— Então somente me fales sobre isto se houver necessidade. E se quiseres falar. Eu não te cobro respostas. Tudo que desejo é abrigo na tempestade.</p><p>Lá fora soou um trovão distante.</p><p>— Um dia certamente eu te contarei a parte que mais me enluta. Mas por enquanto te baste saber que os padres descobriram tudo, acharam que havia obras do demônio em curso nesta região. Eles já tinham ouvido histórias, dos índios, dos negros, dos brancos supersticiosos que evitavam estas montanhas. Disseram que havia sido imenso o sacrilégio, tão imenso que havia contaminado toda a terra e que somente arrancando, como um tumor, o foco de infestação, seria possível evitar a “gangrena do mundo”. Foi assim que eles fizeram. Não sei a quem recorreram. Artes escuras de todas as partes foram conjuradas pelos homens de branco, a pedido dos padres e suas crenças. Não foi o Deus deles que fez isto. De uma forma sacrílega e estranha eles acharam que valeria até mesmo o recurso aos maiores inimigos da humanidade para poder fazer algo que a Cristo agradaria. E foi o que fizeram.</p><p>— O que foi que fizeram? Eu não consigo entender!</p><p>— Oh, querido. Não vês este emaranhado do tempo em que estamos? Aqueles malditos sacerdotes do Inominável fizeram o que os padres pediram. Amputaram todo esse território do mundo dos vivos, do presente, do passado e do futuro. Estamos aqui fora da geografia, fora da história, fora de tudo.</p><p>— Como assim? Isso não faz sentido? Como eu entrei aqui?</p><p>— A Arte deles não é perfeita, é claro. Ela não tinha que ser. Bastava que cumprisse o que havia sido pedido: não poderíamos jamais morrer ou sair, nem Inês e nem eu. Deveríamos viver a eternidade experimentando e expiando a culpa de nosso sacrilégio.</p><p>— Então é possível entrar?</p><p>— Sim. Muitos entraram antes. De vez em quando alguém entra. Quase todos acabam saltando do Pico, como você viu Inês fazer. Tu mesmo um dia o farás, quando estiveres cansado de mim e não puderes mais sair. Outros acham outros meios. Não sei de nenhum que saiu, mas deve ser possível sair, tanto quanto é possível entrar. Mas a quantidade de corpos no fundo do vale sugere que achar uma saída não é tão fácil.</p><p>Júlia foi me contando sua história naquela noite e eu tomando o chá de hortelã, segurando a xícara com cuidado para não queimar a mão. As palavras dela eram amargas, amargas como o chá que o mel não conseguia adoçar.</p><p>Foram muitas noites como aquela, na cabana ao pé da montanha. A cabana que Júlia construíra com suas próprias mãos para tentar parar a marcha cíclica do destino.</p><p>Muitas outras vezes nós vimos Inês passar, sem parecer vê-la, ou até mesmo a mim. Ela sempre subia ao alto do Pico e de lá se atirava ao abismo. Cada vez que isso acontecia eu pensava ver brotar um fio branco na cabeleira de Júlia. A contar pelos outros que já tinha entre os seus, eram dois séculos ou mais daquela agonia.</p><p>Todos os domingos, à tarde, ela subia a montanha e se atirava, sem dar mostra de nos ver. Júlia chorava ao ouvir o ruído do corpo dela corpo contra o chão e entrava a recolher-se, mesmo sem conseguir dormir. Lá pela madrugada velha ela acordava e saía, sem nunca dizer aonde ia. Assistir aquele espetáculo era uma terrível forma de começar a noite, praticamente impedindo que Júlia e eu tivéssemos qualquer atração.</p><p>De fato um dia eu não suportei mais tudo aquilo. Permanecera ao lado de Júlia querendo ter alguma explicação. Mas nunca tivera mais do que novas perguntas. Não sei quanto tempo demorou para que me cansasse, mas podem ter sido dois anos, ou vinte. Não quis, porém, atirar-me do alto do pico: preferi procurar uma saída. Afinal, eu já tinha uma vaga ideia de onde poderia haver uma.</p><p>Uma manhã, logo depois que Júlia retornou de seus misteriosos passeios noturnos e foi dormir, como sempre envolta naquela túnica de luto, roubei o caderno encapado em couro, que roubara do cadáver de Inês, e saí pela estrada levando uma magra trouxa com o resto de minhas roupas e alguma comida.</p><p>Cheguei à encruzilhada ao pé do morro. Durante o tempo em que vivera na cabana ao pé da montanha, passara muitas vezes por ali, sem nunca criar coragem para subir o morro e conhecer o que haveria do outro lado. Eu vivia com o pavor de haverem soldados espreitando para localizar-me e prender-me tão logo eu saísse detrás de alguma árvore e pusesse o pé na estrada.</p><p>Mas naquele dia o medo não existia mais: certamente a ditadura acabara e eu não teria mais que fugir de soldados e temer torturas. Subi o morro devagar, conquistando cada metro como se fosse um território inimigo. Esperava chegar ao alto e encontrar a beira de uma estrada, alguns carros passando. Ali talvez haveria o ruído de música e de vida urbana filtrado pela distância.</p><p>Não foi o que vi. O que havia diante de mim era o brejo sem fim do vale do Rio Vermelho, dominado pela presença tétrica do Pico da Mesa. Não fazia sentido: o caminho era praticamente em linha reta em direção ao leste, margeando o rio. Dava para acompanhar pelo sol. Mas eu estava ali, encarando de frente aquela paisagem que eu só deveria ver se viesse do sul. Era como se tivessem recortado aquele pedaço do mundo e emendado em torno de si mesmo, num eterno círculo ou buraco negro, cujos caminhos são todos espirais em torno de um ponto. “O Pico da Mesa domina uma região de dezenas de léguas”, dissera Júlia. Era fato.</p><p>Sentei-me em uma pedra e abri o caderno de Inês. Ele devia conter alguma pista adicional sobre o acontecido, mas estava coberto de garatujas angulosas.</p><p>— Meu Deus, são … são caracteres cuneiformes!</p><p>Ali estavam, desenhados com um tipo secular de pena, símbolos malditos e esquecidos de uma civilização extinta, anteriores à Bíblia e a Jesus. Símbolos anteriores às penas e aos livros, que eram antigamente gravados no barro usando estiletes de cana.</p><p>Guardei o livro no bolso, reconhecendo enfim que haveria uma solução para o mistério algum dia, se conseguisse sair daquele poço no tempo em que me metera. Sim, eu sempre temera sair e ser pego, mas nunca pudera, de fato sair. E no momento em que o queria, e muito, percebia que a saída era uma ilusão como outra qualquer.</p><p>Assim derrotado, saí caminhando a esmo por aquele mundo em redoma, procurando alguma brecha por onde pudesse saltar. Quando finalmente o cansaço me derrotou, e já era noite velha isso, achei uma pedra razoavelmente plana, à beira de uma encruzilhada, e ali me deitei, usando a trouxa como travesseiro.</p><div style="text-align: center;">***</div><p>Acordei na manhã seguinte completamente derrotado. Passara o dia anterior sem sonhar como sair. Depois dormira uma noite de pavores, ao relento e sobre uma pedra desconfortável. Sonhara com monstros que passavam em torno, carregando imensos cascos nas costas. Sonhara com monstros de olhos flamejantes, com homens de túnicas brancas que evocavam forças desconhecidas, fazendo o mal em nome do bem.</p><p>Mas quando amanheci e meus olhos doeram com o sol, percebi que estava à beira de uma rodovia maior do que as que conhecera antes. Por ela passavam continuamente imensos caminhões e inumeráveis automóveis, de modelos que pareciam saídos de filmes futuristas.</p><p>— Deus seja louvado! Voltei!</p><p>A encruzilhada já não existia. A pedra estava longe, empilhada com outras à beira do caminho.</p><p>Aos poucos fui me familiarizando com o mundo. Muita coisa havia mudado, mas não tanto assim. Consegui entrar em contato com a minha família e vieram me buscar. Para eles voltei como voltaria um defunto: receberam-me com uma incredulidade que somente minha semelhança com as fotos e a memória fiel de muitos acontecimentos foi capaz de convencer.</p><p>Havia pouca coisa que eu pudesse fazer. Felizmente eu tinha um irmão que era advogado e ele conseguiu-me uma indenização do governo, em nome dos anos de prisão e tortura que eu supostamente passara. Nunca consegui convencer ninguém da minha história alternativa. Com o tempo desisti de tentar. Aliás, o que me passou naquelas montanhas foi de fato prisão e tortura, mereço esse dinheiro.</p><p>Com ele reconstruí minha vida. Casei-me, tive filhos. Esqueci aquela história, guardei o caderno de Inês em uma gaveta da memória e toquei a vida. Hoje tenho sessenta e cinco anos e passei a ter certos sonhos que me incomodam.</p><p>Foi por causa desses sonhos que eu mandei uma cópia das notas do caderno para um especialista em línguas antigas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Não posso dizer o nome desse homem: ele não leciona as disciplinas proibidas a que recorreu para fazer-me a tradução. Soube dele através de meus contatos com maçons amigos.</p><p>Recebi ontem a tradução. Foi por causa dela que resolvi contar a história que agora termino. O caderno contém muita coisa que não ousarei transcrever. Coisas, porém, que não deveriam condenar nem a Júlia e nem a Inês.</p><p>Deus não deve ter gostado mesmo que se amassem. A demolição da capela certamente serviria para purificar o lugar da mancha do que os padres assistiram naquela noite. Até o mosteiro teve que mudar de lugar, até os mortos já enterrados tiveram de ir junto. Porque o que veio a seguir afetaria a eternidade.</p><p>O motivo de meus pesadelos recorrentes é que eu passei a imaginar, veja só que loucura, a possibilidade de retornar. Amo a minha pobre mulher, claro. Amo aos meus filhos também. Mas este mundo em que tenho vivido parece tão alheio quanto o outro. A diferença é que neste eu envelheço e tenho um câncer.</p><p>Se eu puder retornar à Serra da Estrela, estarei condenado à eternidade. Desde que ache outra entrada, em algum acaso da estrada. Desde que Júlia me perdoe e não me sangre com seu punhal.</p><div class="nav"><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha.html" rel="noopener">Parte I</a> <em>·</em> <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha-parte-ii.html" rel="noopener">Parte II</a> <em>·</em> <a anchor"."="anchor&quot;.&quot;" rel="noopener">Parte III</a></div>

09
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 09:47link do post | comentar

O que estou prestes a contar pode parecer sem pé e nem cabeça a você que me lê (porque a mim mesmo parece), mas sinto algo que me pressiona a falar e não posso desviar-me da missão de te dizer as coisas que vivi naqueles dias.

cabana de madeira

Às vezes tenho a impressão de que, na verdade, tenho sonhado isto que parece ser minha vida — e ainda não consegui acordar. Depois de haver guardado nas gavetas do esquecimento os traços deste pesadelo por muitas semanas, ele volta a me perseguir. Não dá mais para carregar este peso nos ombros, espero que você me ajude a pousá-lo no chão.

Contar essa memória que não me abandona é dividir esta saca pesada de medos e angústia para que, talvez por um breve momento que seja, eu possa tentar reorganizar meus sentimentos e livrar-me dessas imagens intermitentes e insanas.

Em um dia quente e desesperado eu me achei caminhando por uma estrada empoeirada sob um sol abrasador. Nem pássaros ousavam cantar diante da pressão que o ar exercia sobre as montanhas desbotadas.

Às minhas costas eu levava uma mochila pesada de culpas e projetos, alguns já malogrados em broto. Estava fugindo nem me lembro mais de que e temia que todos os meus amigos estivessem mortos ou presos. Tempos depois tive a certeza. Ou será que nunca, de verdade, tive amigos?

Para não ter de enfrentar nenhum dos doidos destinos que se me apresentavam eu saí de casa no meio da noite, furtando apenas roupas, comida para dias e uma Bíblia.

A comida se esgotara rápido, e já eram três dias que eu passava a roer-me de fome, tendo de roubar de comer.

As roupas, não podia trocar porque estava imundo, suado e coberto de pó e a comarca estéril em que estava vagando padecia de seca e infelicidade.

A Bíblia eu trocara por um pão com salame.

Depois de mais alguns dias de caminhada sem rumo pelos lugares aonde ninguém nunca vai, eu já estava exausto e bastante desesperado para fazer qualquer coisa. Mas só havia frutas murchas da estação fracassada nos galhos despojados das raríssimas propriedades habitadas.

Certa noite cheguei a uma cidade cujo nome não se dava a conhecer em nenhuma placa, em nenhuma saudação, em nenhum monumento. Um lugar pequeno, afastado das estradas principais e de Deus, incrustado numa encosta de morro onde não havia nenhum aspecto de beleza a ser ressaltado.

Uma cidade feia e cinzenta, com cerâmica industrial barata cobrindo as paredes das casas, ornadas com estéreis motivos geométricos, parecidas com monumentos funerários. Havia casas abandonadas e decadentes até mesmo nas ruas principais, ruínas ao lado da prefeitura, calçamento revirado na própria praça da matriz. As luzes estavam apagadas para economizar o gerador porque todos dormitam tranquilamente, seguros dentro de suas edificações residenciais sem vida.

Passeei pelo deserto urbano como um fantasma através de uma cerimônia, invisível e suave. E em nenhuma parte vi hotel, lugar nenhum em que se desse pouso a quem se perdesse por lá. Meus últimos trocados lamentaram de dentro do bolso não poderem dar para uma boa cama e um banho tépido, capaz de atravessar as teias de vertigem e o cansaço do tédio.

Com ossos doloridos de um longo dia e ainda por cima faminto, imaginava meios de dormir. Havia bancos na praça, mas me recusei a entregar-me ao nível dos pedintes reles. A dignidade vociferava em mim e me obrigou buscar onde ao menos pudesse ocultar a situação em que estava, e foi no cemitério que vi um lugar perfeito para terminar aquele dia de pesadelo.

Não me pareceu provável que o lugar fosse visitado durante a noite, ou mesmo pela manhã, já que era afastado e mal cuidado. Além do fato óbvio de ser um cemitério de uma cidade que parecia estar morrendo em vez de crescer. Apenas corujas piavam na escuridão e não havia sequer uma vela acesa em túmulo algum.

Buscando um lugar para deitar, encontrei no fim da alameda mais larga um mausoléu imponente cujo portão de ferro estava apenas encostado. Dentro, algumas velas ali postas a arder anos antes e muita, muita poeira e teias de aranha. Apesar disso, não podia negar que era um dos lugares melhores para deixar-me dormir e me rendi a uma grande mesa de mármore junto à entrada, usando minha mochila como travesseiro, e dormi sem pesadelos e nem esperanças.

Despertei com o sol agraciando meu rosto e sentindo a brisa leve e fresca. Pus às costas a mochila e saí pelo mundo para ver onde estava.

As cidades, a dos mortos e a dos que morriam, estavam em um morro um pouco mais ou menos alto do que os outros em torno. Todos morros redondos, pastos nus e salpicados de feridas avermelhadas, inteiramente desprovidos de árvores e imersos na cinza tristeza do outono-inverno, essa espécie de devastação que acomete o interior de Minas Gerais todos os anos a partir de abril.

O cemitério estava fora dos limites, cerca de uns quinhentos metros acima da última rua e apenas um muro baixo o isolava da terra secular. Temeroso de que alguém testemunhasse a minha vergonha apressei-me a sair e continuar a caminhada.

Tendo caminhado cerca de três quilômetros para além, pude ouvir o estrondo de água em pedras e me dei subitamente conta da delícia de poder lavar-me após… quantos dias?

Um segundo depois sorri ao dar-me conta de que minha vida de andarilho me estava devolvendo a sensibilidade aos ouvidos, podia ouvir os grilos no capim, as aves piando a uma distância considerável e o rumor do mundo em movimento. Mesmo na desgraça o ser humano tem motivos para sorrir.

Desci a encosta em direção a um fundo de vale arborizado onde havia a água que criava aquele som familiar. Seguindo a direção do ruído, encontrei uma pequena maravilha à minha espera: uma cascata de uns dois metros de altura que caía sobre um poço com fundo de areia, em meio a árvores que pareciam ter estado ali durante muitos milênios.

Despi-me e brinquei alegre como criança durante algum tempo, finalmente abri o sabonete que trazia de casa e me dei um banho como poucas vezes. Depois de escovar os dentes pela primeira vez em dias e de usar desodorante pela primeira vez desde que saíra de casa eu vesti uma roupa limpa, mesmo calçando os mesmos surrados sapatos e olhei para mim mesmo com um pouco mais de orgulho. Apenas a fome atentava contra a minha auto-estima.

Com tristeza deixei o pequeno pedaço de paraíso onde, apesar da beleza, não havia alimento e voltei ao caminho. Devagar para não suar muito, tão sem destino quanto antes, mas sentindo-me mais limpo e mais leve. Nisso ouvi um cauteloso trotar de cavalo atrás de mim e me virei para averiguar quem caía em meu mundo.

Uma mulher, montando um cavalo castanho e usando um vestido e um chapéu. Bela mulher. Aparentemente apenas o vestido e o chapéu denunciavam alguma irregularidade. Teria trinta anos mais ou menos, mas logo percebi que não era uma das mulheres comuns da região. As mulheres do interior não têm no olhar aquela malícia e nem no semblante aquela firmeza indômita e algo cruel. “Também não usam roupas desse jeito e nem um chapéu assim”. Toda ela me pareceu recuada do tempo, alheia ao mesmo mundo meu. Dominava o cavalo com displicência, mantendo um silêncio ardoroso em seus gestos. Quando me viu, me chamou com um sorriso e fez diminuir o andar do animal, audácia que me chocou.

“Senhora, boa tarde”, eu disse, com palavras que me soaram raras depois que saíram de minha boca porque não pareceram minhas, mas a fala de um personagem de uma lenda antiga.

Ela respondeu com um aceno aberto mostrando dentes claros de padrão algo feroz. Ela continuou e me mantive entre envergonhado e excitado até que finalmente resolvi segui-la.

Ela não olhava para trás, mas para os lados, fingindo ver a paisagem, como para certificar-se de que a estava seguindo. Naquele momento em que a inspiração me faltava e meu olhar vacilava, eu era capaz de dizer qualquer besteira, mas não disse.

Ela não deixou o cavalo parar e nem esperou que eu a alcançasse. Sem o que dizer, eu apressei o passo, vendo que o cavalo soprava com ansiedade, tentando ir mais rápido.

Os passos do animal eram contidos por uma mão mais firme que a minha e por olhos que viam aonde eu não sabia. Mas lentamente estas mãos meticulosas libertaram o trote e tive de cada vez ir mais rápido para não ficar para trás.

A rapidez cada vez maior de meus pés pareceu cancelar as precauções que eu devia ter em minha mente. Logo eu já me havia esquecido de meus pensamentos e até de onde andava. Era como se não enxergasse nada à esquerda ou à direita. Depois de meia hora de perseguição eu estava suado, ofegante, desidratado e com cada músculo esvaído e doendo demais.

Então ela se embrenhou por uma trilha à esquerda, uma que se abria quase imperceptível na parede de galhos que orlava o caminho. Entrei após, pisando folhas e arbustos. Meus passos estalam nos gravetos e ecoavam no ar vazio como se o mundo inteiro estivesse dentro de uma redoma.

Acordei horas depois de um sono impreciso que tive. Estava nu, deitado sobre um gramado pontilhado de flores amarelas à beira de um riacho. Ao meu lado, também nua, a mulher que eu perseguira, adormecida e indefesa.

Olhei em torno num relance e nada reconheci. O murmúrio da água parecia renovar a minha sonolência e eu não conseguia ter noção do tempo — a não ser que, talvez, estivesse terminando o dia; pela brisa fresca que soprava lá.

Não consigo imaginar como cheguei a esse lugar estranho e nem porque subitamente aquela mulher, cujo nome eu ainda não sei, jazia nua ao meu lado, salpicada de pétalas amarelas e com o sol da tarde fazendo luzirem as gotas de suor em sua pele (como se muito recentemente tivesse terminado um grandes esforço! Um esforço comparável ao do amor!).

Quis fugir dali! Mas como? Olhei outra vez em torno e não vi montanhas no horizonte. A clareira estava cercada de escuras paredes de árvores e trepadeiras e eu nem mesmo imaginei por onde deveria tentar sair para estar de volta… À estrada que seguia sozinho e sem saber para onde ir?! Sufoquei-me pensando que não havia nenhum motivo para fugir, nenhuma alternativa que me convencesse de que vale a pena fugir da presença daquela mulher, que de resto era tão bela.

Não consegui senão render-me à contemplação de sua nudez tão bela e simples. Uma sensualidade clássica e farta, com pernas grossas, braços roliços, seios bem feitos e cintura larga. O rosto de uma Vênus de Rubens com mãos maltratadas de serviços, unhas roídas e irregulares, nódoas nos dedos. O seu sexo era coberto de uma penugem macia que parecia não haver sido jamais raspada de tão suave e curta. O seu corpo era de uma cor que parecia não ter jamais tomado sol. De uma cor que não existe mais.

Enquanto eu permaneci atônito a contemplá-la, esqueci o tempo e não vi se anoiteceu ou não (deveria?). Foi com muda surpresa que a vi acordar e espreguiçar-se.

Ela olhou em torno, viu-se e me viu. Cobriu-se subitamente envergonhada e me atingiu:

— Que fizeste, bandido?!

— Nada que eu saiba. Diz-me tu que fizeste comigo?!

— Nada que ferisse. Agora responde que fizeste comigo!

— Nada que te acordasse.

Ela se pôs a chorar, acusando-me de ter tirado proveito do sono que a rendera. Embora certo de minha inocência, não tentei abrir a boca para dizer coisa alguma, ao mesmo tempo em que me embebedava em sua beleza.

Depois de lamentar por um tempo, ela se levantou, tomou as suas roupas e se vestiu  vagarosamente. Assobiou e o cavalo pareceu aparecer do nada. Manso e arreado. Veio pacatamente receber de suas mãos um carinho e um “venha, menino”.

— Você não devia ter tentado me interromper.

— Mas não tentei fazer nada!

— Não pense que isso mudou alguma coisa. Só vai trazer-lhe mais

sofrimento.

— Quem é você, e onde estamos?

Ela montou sem me responder e cavalgou, muda, rumo ao riacho. O animal não hesitou em achar uma travessia através dos bancos de areia enquanto eu me ocupava em vestir-me tão rápido quanto podia para poder tentar acompanhá-la ainda. Sabia que onde estava não podia continuar e que voltar era impossível.

Após o rio e além da primeira curva se erguia uma casa de pedras com teto de folhas de sapé, que eu apenas observei de passagem. Dentro da casa algumas pessoas pareciam ocupadas em talvez um tipo de piquenique.

Passada a curva e seguindo a segunda estrada pelo morro acima, terminei numa clareira ampla entre árvores, com mesinhas de pedra, próprias para piqueniques ou bruxaria. Uma longa escada de lajes de pedra dispostas através da encosta permitia que se subisse ao topo da montanha coberta de relva verdejante (“nessa época do ano? Estranho!”). É pela escada que ela subia a pé — e eu a segui.

Não a tempo de conseguir impedir que chegasse ao alto do mirante antes de mim. Ela olhou para trás, viu que eu estava chegando, disse alto algo que não ouvi, me acenou um gesto que não reconheci… e se deixou cair!

Eu gritei mas não acordei porque não estava dormindo. Eu corri, mas não pude chegar lá a tempo porque não era sonho. O mirante se abria sobre um abismo imenso, cujo fundo era de pedra viva. Lá estava, ensanguentado, o cadáver da mulher que eu seguira e amara sem nem saber por que.

Havia uma escadinha perigosa esculpida na parede de granito. Movido sei lá por que mórbida curiosidade eu a desci em direção ao poço, que fedia a sangue de muitos corpos e a culpas de muitas almas. Noto que havia muitos ossos, mas raramente alguma joia ou coisa de valor.

A misteriosa estava morta. Vasculhei seu corpo e percebi que não trazia brincos, nem pulseiras, nem relógio, nem cordões, nem tatuagens, nem obturações, nem nada de ouro ou prata. Não trazia bolsa e nem dinheiro.

Sua roupa era um vestido negro e largo, por baixo umas anáguas rendadas em branco. O único objeto que portava era um pequeno envelope pardo. Continha um pequeno livro em papel tão fino e letras tão miúdas que mal daria para tentar ler, ainda que fosse escrito em nossa língua. Em vez de uma carta contendo explicações ou qualquer outra coisa, eu encontrei uma escrita estranha e angulosa (ou será que neste sonho ou vida era analfabeto?).

Havia também uma espécie de talismã costurado em couro, com alguma coisa macia por dentro e pendente de um cordãozinho trançado em palha. Tomei aqueles objetos na mão e olhei para cima. A Lua ia alta no céu, embora ainda não fosse escuro.

Pus o conteúdo todo do envelope em meu bolso. Olhei em volta e me vi mais perdido do que jamais antes estivera. Não havia nenhum sentido em estar ali entre aqueles mortos.

“Que diabos vim fazer aqui? Por que raios eu saí de casa?” Deixei a estranha morta lá entre aqueles outros cadáveres mais antigos. Lá onde esperaria as chuvas que o decomporiam e purificariam sua alma de seu gesto.

E subi outra vez, cuidadosamente, pela perigosa escada na pedra. No alto do mirante me dei conta de que estava anoitecendo ainda. Gastei mais uns minutos olhando a paisagem, como se lembrá-la valesse a pena depois e desci de volta ao vale entre as árvores, pensando em que fazer de minha vida a partir de então.

No meio da descida encontrei seu cavalo. Ele pastava tranquilamente e, aparentemente, não me rejeitava enquanto eu me aproximava. Tomei-o pelas rédeas e continuei a descer.

Os que faziam piquenique já haviam ido todos embora. Restava apenas uma jovem de cabelos grisalhos.

“Que estranha essa mulher também!” Ela tinha olhos que pareciam uvas, tão escuros e brilhantes mas ao mesmo tempo cheios de uma luz azulada ou roxa. Usava um vestido semelhante ao da morta e também subia. Sem cavalo.

Olhou-me com uma expressão de espanto no rosto:

— O que está fazendo? Por que está descendo esta montanha e de quem é esse cavalo?

— Boas perguntas. Eu estava atrás de alguém que pudesse me salvar, mas esta pessoa queria se matar. Estou descendo a montanha porque não quero morrer e nem ficar entre os mortos. E esse cavalo ficou sem dono, portanto pode ser meu.

— Que audácia a sua vir até aqui! Você não sabe o que está acontecendo! Aliás você nem devia ter conseguido encontrar esse lugar! Quem o trouxe?

— Eu já contei a verdade. Creia se quiser. Mas não me ofenda porque não sou um ladrão e nem profanador de corpos.

— Este cavalo não poderá nunca ser seu!

— Tudo bem. Então fique com ele se quiser, mas eu peço, por favor me ajude! Eu estou perdido!

— Muito mais perdido do que imagina!

Por um momento um pouco de doçura veio a seus olhos.

Então um certo sentimento de culpa passou em mim. Abri meu bolso e lhe entreguei o envelope:

— Desculpe-me, acho que menti ao dizer que não sou um profanador de corpos. Tirei isso do cadáver da estranha.

— Você nem tem ideia do que é isso, tem?

— Está em alguma língua estranha. Nem é útil para mim. Trouxe porque pensei que poderia obter alguma resposta.

— Querer respostas não é sempre uma boa ideia.

— Mas é melhor uma resposta que continuar vagando sem rumo pelo mundo.

Ela me olhou pensativa:

— Eu posso te oferecer umas respostas, mas isso vai ter um preço. E o preço é que deverás viver aqui entre nós.

— “Nós”?

— Só posso dizer se concordas com o que cobramos.

Lembrei-me dos agentes do governo que queriam o meu sangue e até confesso que senti certa tranquilidade. Tendo alimento, saúde e paz; diante das circunstâncias; eu achei que podia me dar por feliz.

— Está bem.

— Então vamos subir de volta.

Lá do alto, sob o luar estranho que nos banhava, ela me mostrou um horizonte muito largo, sem nenhuma luz que denunciasse a presença da humanidade. Muito profundo era o silêncio daquela noite e muito pesado o cicio dos pássaros e o cricri dos grilos.

De repente, sem que ela precisasse me dizer coisa alguma, eu comecei a perceber.

— Por isso temos este lugar. Nem todos são fortes.

— Eu a tentei salvar!

— Eu li isto em você. Talvez isso me tenha convencido.

Descemos de volta à casa. Ela me mostrou um quarto e me disse que eu deveria viver ali por algum tempo.

— E alguém virá — continuou.

— Quanto tempo?

— Não se sabe. O que for necessário.

— Tenho medo.

— Todos temos.


04
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 22:49link do post | comentar | ver comentários (1)

A camponesa apertou os lábios para protegê-los contra o frio, maldizendo-se pela ideia péssima de subir ao alto daquele monte. Puxou para baixo as abas de seu chapéu de pele de lebre e tratou de esconder a cara morena com a da manta de lã. Estava uma noite bem pouco amável nas colinas da Gaulanítide, mas as promessas da bruxa grega a haviam convencido. Sozinha, persistia subindo o monte, apesar da neve que começava a cair a partir daquela altitude. Encontrou então o início de uns degraus de pedra rústica, que serpenteavam pelo monte desolado. No cume encontrou um pequeno grupo de pessoas, gregos em sua maioria, todos pesadamente vestidos com peles de animais, que lhes davam uma aparência ameaçadora, animalesca.

— Boa noite, em nome de Hécate — pronunciou cuidadosamente uma mulher madura, de cabelos louros e voz dura, cuja pele era quase tão clara quanto a dos escravos gálatas que os romanos ocasionalmente traziam.

— Boa noite, em nome de Javé — pronunciou a pobre moça morena, tentando esconder a cárie de seu dente da frente com a aba da manta.

— É de livre e espontânea vontade que vens? — perguntou-lhe um grego corpulento e de nariz largo, cuja voz trovejante intimidava e seduzia.

— Em nome de Javé, digo que sim.

— Quem a envia, flor das montanhas? — novamente perguntou a mulher loura, ditando as sílabas com uma entonação arcaizante, que soava estranhamente no ouvido de quem apenas conhecia o koiné.

— Filomena, a herbalista de Séforis.

— Sabes bem do que se trata a oferta que lhe foi feita?

— Sei sim.

— E a aceitas, incondicionalmente?

— Sim.

— E o que buscas em troca do sacrifício que farás?

— Que me restaurem a saúde, para que eu possa ajudar minha pobre mãe.

A mulher loura fez um gesto para cima, deixando que a manta de lã corresse por sobre a pele, revelando nos braços pálidos as sombras azuladas de tatuagens. A jovem tremeu e quase saiu correndo, só de pensar nos significados daqueles símbolos, tão arredondados, tão diferentes das letras sagradas. Mas, em vez de desembestar correndo pelo morro abaixo, assustada pelas coisas que via, lembrou-se de seu terrível destino e da perspectiva de afastá-lo. Fincou os pés no chão e permaneceu.

O vento frio assobiou com mais força. Os gregos indicaram que terminasse a subida da escada, e então a fizeram deitar-se numa pedra chata e retangular, que haviam coberto com peles de ovelha costuradas. Quando terminou de deitar-se, enrolaram a pele em torno, abotoando as bordas com broches de ferro. Por fim, ouviu estenderem outra pele, que a isolava de toda luz que pudesse aparecer.

Estava imersa na escuridão daquele estranho casulo. Um perfume suave de almíscar impregnava o ar, disfarçando o cheiro cruel do sangue que vez ou outra vertia de suas feridas que não fechavam. Os gregos terminaram de dispor os artefatos nos quatro cantos do altar assimétrico e declamaram os versos sagrados, enquanto abriam feridas para gotejar de seu sangue nos cálices purificados:

— Ó amigo e companheiro dos viajantes da noite, ó tu que te regozijas no ladrar dos cães e no cheiro do sangue derramado, ó tu que perambulas em meio às sombras entre as tumbas, ó tu que desejas o sangue e trazes o terror aos homens, ó tu que tens mil faces e as revelas somente ao luar! Contempla favoravelmente nosso sacrifício!

Aquela jovem morena teria enlouquecido simplesmente por ouvir essas frases de bocas gentias, mas para benefício de sua sanidade elas foram pronunciadas em uma forma tão arcaica do grego que bem poderia datar de antes da colonização da Hélade, tempo em que navios de velas negras partiam de Creta para espalhar o terror no Mediterrâneo e somente os deuses abissais responderam ao apelo dos argivos, antepassados daqueles que em volta da pedra evocavam as trevas da noite em seu auxílio.

O vento frio soprou mais forte, parecendo até apagar as chamas das estrelas menores, deixando o céu aterrorizado. Dentro das peles firmemente costuradas com agulhas de osso e cordas de nervos e presas com pesados broches de ferro aconteceu uma agitação sutil, uma fala feminina tão abafada que não se podia entender e logo uma comoção muito mais forte e uma voz mais alta, tornada ininteligível pelo desespero, e tudo isso redundou numa frenética sucessão de espasmos e em um som rouco e indistinto, quase animalesco.

Por fim a agitação se acalmou, o vento soprou de novo e foi embora, anunciando que o inverno era velho e logo se abriria a primavera. Os gregos soltaram os broches com todo cuidado, desamarraram as cordas de nervos com paciência e fé. Por fim desdobraram as peles e encontraram a jovem morena imóvel, mas quente. Seus olhos estavam vidrados, mas se moviam imperceptivelmente. Suas mãos se cruzavam com força sobre o peito e suas pernas entreabertas estavam esticadas como se fossem colunas de pedra.

— Acorda, irmã, pois tudo terminou — disse a mulher loura.

A jovem mestiça de pele morena ainda continuou por alguns instantes extática ali sobre o altar, tendo no rosto uma expressão matizada de medo e luxúria. Por fim piscou os olhos e moveu-se, olhando em volta como um cão enxotado que tenta novamente buscar migalhas entre os comensais.

— Calma, irmã — repetiu, ternamente, a sacerdotisa de Hécate.

— O que aconteceu comigo!? — indagou a camponesa das montanhas da Gaulanítide?

— Tu te tornaste parte de uma grande obra, e foste imensamente recompensada.

A jovem olhou para as próprias mãos, que pareciam — pelo menos à luz da lua — isentas das manchas claras que a estigmatizavam perante seu povo. Se tivesse mirado no espelho teria visto limpos igualmente todos os seus dentes.

— Ó Adonai, o que eu fiz de minha vida!?

Os gregos fizeram um círculo em torno dela, reverenciando-a e temendo-a.

— Terrível seja o Fado daqueles que pisarem teu caminho, irmã — declamou um deles.

— Rápida seja a Justiça contra aqueles que a agravarem, irmã — adicionou um segundo.

— Abram-se as portas diante de teus pés, irmã de todos nós — concluiu a sacerdotisa.

O grego de nariz largo trovejou seu vozeirão cavernoso pela última vez naquela noite, ordenando-lhe que retornasse àquele mesmo local a cada lua cheia, até não ser mais possível ou necessário. Para sinalizar-lhe a importância disso, amarrou uma corda em seu tornozelo, dizendo-lhe:

— Aqui atamos teu pé e o de tua sombra. Voa livremente pelas montanhas, mas não além delas para que nada te impeça de retornar nas luas cheias, ou horríveis serão para ti as consequências.

Tendo-a feito ritualmente irmã de todos, deram-lhe o nome de Catarina, a purificada, nome esse que somente poderia ser usado na presença da sacerdotisa. E assim, naquela feia noite de fim de inverno setentrional, uma jovem mestiça da Gaulanítide desceu da montanha curada de suas manchas na pele, passou pela colônia de leprosos onde estivera tão brevemente, e se dirigiu à aldeia para pedir um reexame, conforme permitido pela Lei. E assim foi feito, e assim obteve de volta a sua vida.

Duas semanas depois, enquanto moía trigo para assar o pão, sentiu-se mal. O marido, que tanto festejara o seu retorno, imediatamente reconheceu os sintomas, os enjoos. Deixando-a com as mulheres da casa, tratou de ir à estalagem pagar vinho para todos os seus amigos:

— Eis que Javé me abençoa mais da conta, meus amigos. Não apenas restaurou a pureza de minha amada esposinha, curando-a da horrível lepra, mas também permitiu-nos, tão rápido, a alegria de engendrar uma vida. Sim, amigos, ela está esperando!

Os amigos de Yohanan beberam à sua saúde, desejando que Javé lhe preparasse filho varão para finalmente assegurar a descendência de sua casa. Yohanan retornou tarde para casa, entorpecido de vinho barato da Galiléia, e dormiu pesado como um elefante sobre as imundas almofadas da sala.

Foi no frio dezembro que Hulda deu à luz, em parto fácil e quase indolor, a um menino ruivo como o pai, dotado de choro feroz e olhos negros, muito negros, que abriam com curiosidade para este mundo cruel. Deram-lhe o nome sagrado de Yehuda, ou Yudah na língua do povo, ou ainda Judas na língua dos gentios.


02
Out 10
publicado por José Geraldo, às 13:23link do post | comentar

O louco dançava à beira do rochedo, desafiando as ondas com seus versos:

— Vamos para o céu, ou talvez… pulem, pulem! Andem logo, ele espera. Vocês não tem escolha! Pulem, pulem para os braços do dragão que esconde suas asas e seus dentes na maciez das ondas.

Os homens continuavam construindo o barco sobre o gramado. Enquanto as mulheres colhiam frutas e preparavam carne-seca — provisões para a viagem. O louco observava e cantava seus versos desafinados:

— Vocês não tem escolha, as velas serão rasgadas pelos ventos. Os mastros serão destroçados pelas ondas. Em vez da Torre ou da Terra Prometida vocês serão mortos e seus corpos trespassados pelos espinhos longos do dragão.

O contramestre cansou-se da litania e raspou a garganta:

— Cale-se, estúpido. Esta ilha é teu destino, por blasfemar desta maneira contra a esperança. Pára de gritar, pelo menos, enquanto nos preparamos para cruzar o mar.

Mas o louco não tinha medo do poder, quem teve a morte diante de si e viveu, mesmo que por um tempo, perde esse pudor, da dor. Com uma lágrima solitária no olho, o louco dirigiu-se a uma das mulheres:

— Madame, você veja o que diz seu marido. Oh, cuidado o homem que acha que sabe o que quer. Ele nunca para em lugar nenhum. Sempre haverá outro mar, sempre haverá outros braços. Alguma promessa da grande cidade perdida, da grande vida que não houve, e nada é tão favorito do aventureiro quanto o desejo de partir outra vez.

— Cala-te, louco. Ninguém mais suporta tuas dores. Guarde-as para ti.

— Como, madame, se eu tampouco as suporto?

Fez-se um silêncio na colina. O silêncio da compreensão. Mesmo os loucos falam a verdade, precisamente. E quando os sãos a entendem, uma dor profunda, dessas que exigem um assassinato, passa pelos corações dos sensatos.

O contramestre pegou um machado e ameaçou outra vez.

— Some de nossa presença, besta!

O louco amansou um pouco e continuou os versos num outro tom:

— Então vão, viagem, vão para o céu, ou o inferno. Vocês não têm escolha. Por favor, me deixem aqui, prometo fechar meus olhos quando o Grande Polvo surgir. É bom e é seguro estar perdido no mato, não é tão mau quanto estar triste na praia. O mato não me diz nada, não me mata. E o que eu digo lá não é ouvido por ninguém que me odeie. Então vão, viagem, iscas vivas, crianças lambuzadas de mel andando entre as colmeias.

O louco deixou escapar uma gargalhada cortantemente triste e correu pela praia, tropeçando na areia.— Por favor, deixe-nos em paz — berrou um rapaz que parecia sensato.

O louco mirou-o com olhos agudos e disse:

— Prometo fechar os meus olhos, mas como fechar meus ouvidos?

O vento soprou e as folhas das árvores lamentaram os troncos cortados pelos homens para fazer os barcos.

— Por favor, não me ponham na bagagem — insultava o louco.

O contramestre deu por terminada a obra. Uma garrafa de antiga cerveja, choca pelas décadas, mas ainda cerimonialmente útil, foi quebrada no casco. O cheiro doce do levedo estragado preencheu o ar com saudades. Um discurso. A bruxa da tribo subiu na proa, desafiadoramente penetrando a maré.

— Os mares alcançam o mundo, amados. Eles continuam, apesar de tudo, iguais. Não precisamos voar, nem morrer nesta ilha miserável. Quanto mais ficamos, menores somos. Vamos embora, chega de arrastar-nos pela areia. O calor do vento é nosso amigo, nossas cantigas nos darão força para cruzar o mar. Venham, todos, amigos, amantes, maridos. Ponham-se a bordo e vamos!

Do alto de uma pedra, o louco chorava. Era um homem ainda jovem e razoavelmente belo. Em sua loucura amava a donzela cujo nome não sabia. Por ela chorava, mais do que pelos outros, porque ela não ia por querer, mas por força da vontade do seu pai — segundo contramestre.

E na tarde do quinto dia o barco foi empurrado para dentro do mar, e navegou suavemente até os arrecifes, deixando o louco na praia, derramando-se em lágrimas e versos de pé quebrado.

Então os tentáculos do monstro surgiram das profundezas, cheios de agulhas longas e penetrantes, e abraçou o barco, diante dos gritos da tribo inteira. O louco descobriu o ombro e olhou a cicatriz que tinha sob a clavícula, lembrando da dor e do desespero, da sorte de ser trazido, esquecido, até aquela praia.

Ergueu-se ali e estendeu um punho fechado contra o céu, dizendo:

— Tu já foste bastante surdo ou bastante mau. Já me convenci o suficiente de ambas as coisas. Mas tenho duvidado se devo mesmo ter medo de você, mais do que do Polvo. Porque ele, ele eu sei que existe e vai me matar um dia, quando tiver aprendido a cercar-se da terra pouca dessa ilha. Mas tu, tu podes ser somente uma ilusão que sobrou, de um mundo que não existe mais. Mas se existes, então salva justamente Ela, como salvaste justamente a mim. Salva-a não por misericórdia, mas porque és mau e te deleitarás mais no sofrimento da morte dela adiada. Salva-a para minha luxúria, como me salvaste para ser palhaço dos ignorantes.

O louco deixou-se cair na areia, chorando sem controle, esperando que sua prece fosse ouvida. E o mar rugia, e dezenas de impotentes gritos se ouviam.


publicado por José Geraldo, às 12:10link do post | comentar

Minha peregrinação pela cidade de Malnéant ocorreu durante um período de minha vida não menos obscuro e dúbio que a cidade mesma e as regiões nebulosas em que se localiza. Não tenho recordação precisa de sua situação, nem posso lembrar exatamente quando e como cheguei a visitá-la. Mas eu tinha ouvido falar vagamente que tal lugar estava situado ao longo de meu caminho habitual, e quando eu cheguei àquele rio envolto em brumas que corre ao longo de suas muralhas, e quando ouvi além do rio o repicar fúnebre de muitos sinos, logo concluí que estava próximo a Malnéant. Ao chegar à colossal e cinzenta ponte que cruza o rio, poderia ter continuado à vontade rumo a outras estradas que conduzem a cidades ainda mais remotas, mas me pareceu que poderia entrar em Malnéant como se fosse qualquer outro lugar. E foi desta forma que pus o pé na ponte de arcos sombrios, sob a qual as águas negras corriam em impreciso fluxo, dividiam-se nas rochas e se juntavam outra vez, em silêncio, como o Estige e o Aqueronte.

Aquele período de minha vida, eu já disse, era obscuro e dúbio, ainda mais, talvez, por causa de minha necessidade de esquecimento, minha persistente e às vezes recompensada busca de obliteração. E aquilo que eu tanto queria esquecer, mais que tudo, era a morte da donzela Mariel, e o fato de que fora eu mesmo que a assassinara, tão certamente como se tivesse sido com as minhas próprias mãos. Porque ela me havia amado com um afeto mais profundo e puro e estável que o meu, mas meu temperamento instável, minhas ocasiões de cruel indiferença ou irritabilidade feroz, haviam partido seu calmo coração. Então foi desta forma que ela buscou o conforto de um lento veneno da alma, até finalmente ser posta a descansar nas trevas das criptas de seus ancestrais. Desde então eu me tornei um vagabundo, perseguido e sempre torturado por um remorso impiedoso. Por anos e meses, dos quais não estou seguro, eu vaguei de cidade a cidade do Velho Mundo, pouco me importando onde dava, se apenas vinho ou outros agentes de estupor estivessem disponíveis… E então eu cheguei, em algum momento de minha jornada indefinida, às vizinhanças lúgubres de Malnéant.

O sol (se alguma vez brilhou naquela região) estava oculto havia muito tempo, nem sabia quanto, em um céu de vapores plúmbeos, o dia estava feio e insípido, para dizer o mínimo. Mas então, pelo espessamento das sombras e das névoas, eu sentia que a noite estava chegando, e os sinos que ouvia, embora pesados e sepulcrais em seu repicar, davam ao menos a promessa de segurança pela noite. Então eu cruzei a longa ponte e entre o portão tristemente escancarado com um apressar de meus passos mesmo sem alegria no espírito.

O crepúsculo havia atingido além das muralhas cinzentas, mas havia poucas luzes na cidade. Poucas pessoas estavam pelas ruas, e estas seguiam seu caminho com uma pressa solene, como se em algum compromisso perigoso que não admitisse nenhum atraso. As ruas eram estreitas, as casas muito altas, com balcões que se projetavam e cortinas pesadamente cortinadas ou tolhidas de persianas. Tudo era muito silencioso, exceto pelos sinos, que repicavam recorrentemente, às vezes débeis e distantes, às vezes com um clangor alto e despertador que parecia vir praticamente de cima. Enquanto eu penetrava através das sombras das mansões obscuras, através das ruas das quais um certo crepúsculo surgia para envolver-me, parecia que eu estava indo para mais e mais longe de minhas memórias a cada passo. Por esta razão eu não perguntei de imediato pelo caminho de uma taverna, mas me contentei em errar cada vez mais pelo labirinto de edifícios, que se tornava mais cinza e mais vago em meio à escuridão progressiva e o nevoeiro, como se dissolvendo-se em olvido.

Eu acho que minha alma quase estaria em paz consigo, se não fosse o toque reiterado dos sinos, que eram como os que repicam pelo repouso dos mortos, e por isso me recordavam sempre aqueles que haviam tocado por Mariel. Mas sempre que eles pausavam, meus pensamentos escorregavam de volta à calma indolente, à segurança recuperada, à vaguidão circundante… Eu não tinha ideia do quanto penetrara em Malnéant, nem por quanto tempo eu vagara entre suas casas que pareciam não poder ser habitadas por ninguém a não ser os mortos em seu sono. Por fim, no entanto, eu percebi que estava muito cansado, e pensei em pão e vinho e uma cama para a noite. Mas em nenhuma parte enquanto andara eu percebera o letreiro de qualquer hospedaria, e por isso tive de perguntar a um transeunte qualquer a direção desejada.

Como disse antes, eram poucos os que estavam fora. Naquele momento, quando me decidi a dirigir-me a um deles, parecia que não havia mais nenhum e que eu andava de rua em rua em uma fútil procura de uma viva alma.

Finalmente encontrei duas mulheres, vestidas de cinzento tão feio e frio como as dobras da névoa, e totalmente veladas, que se apressavam com a mesma determinação fúnebre que eu percebera em todos os outros habitantes daquela cidade. Criei coragem para aproximar-me delas, perguntando se poderiam direcionar-me a uma hospedaria. Quase sem pausar e sem mesmo voltar suas cabeças, elas responderam: “Não podemos dizer-lhe. Somos tecelãs de mortalhas e estivemos ocupadas fazendo uma para a donzela Mariel.” Então, ao ouvir tal nome, que de todos os nomes do mundo era o que eu menos esperava ou queria ouvir, um calafrio inexplicável invadiu meu coração, e um terrível desânimo abateu-me, como se eu respirasse o hálito da morte. Era realmente estranho que naquela cidade em penumbra, tão distante no tempo e no espaço de tudo que eu fugira para esquecer, uma mulher houvesse morrido recentemente e seu nome fosse Mariel. A coincidência era tão sinistra que um medo ímpar das ruas por que andara nasceu subitamente em minha alma. O nome evocara, de forma mais irrevogavelmente fatal que o repicar dos sinos, tudo que eu desejara em vão esquecer, as lembranças que eram carvões em brasa em meu coração.

À medida que prosseguia, com passos que haviam se tornado mais apressados, mais febris até, que os da gente de Malnéant, eu encontrei dois homens, que estavam da mesma forma vestidos da cabeça aos pés de cinzento, e perguntei-lhes o mesmo que perguntara às tecelãs de mortalhas; “Não podemos dizer-lhe,” eles responderam. “Somos fazedores de caixões e estivemos ocupados fazendo um para a donzela Mariel.”

Enquanto falavam, e se apressavam, os sinos tocaram de novo, daquela vez muito perto de mim, com um tom maior de nebulosa e sepulcral ameça em seu repicar pesado. E tudo ao meu redor, as altas e nebulosas casas, as escuras e indefinidas ruas, as raras e espectrais figuras, tornou-se parte de uma confusão indistinta de medo, preocupação e pesadelo. Momento a momento, a coincidência em que tropeçara aparecia mais bizarra ainda de se aceitar, e eu me sentia então perturbado pela monstruosa e absurda ideia de que a Mariel que eu conhecera havia acabado de morrer, e que aquela fantástica cidade estava, de alguma maneira incompreensível, ligada à sua morte. Mas isto, é claro, minha razão rejeitava sumariamente, e eu repetia para mim mesmo: “A Mariel de que falam é outra Mariel.” E me irritava além de toda medida que um pensamento tão inadequado e ridículo continuasse retornando, mesmo que minha lógica o houvesse repelido. Não encontrei ninguém mais a quem perguntar o caminho. Mas por fim, enquanto lutava com minha sombria perplexidade e as memórias flamejantes, eu me achei parado abaixo do letreiro de uma hospedaria, castigado pelo tempo, cujas letras tinham sido quase apagadas pelo tempo e pelo mofo. O edifício era obviamente muito antigo, como todas as casas de Malnéant, e seus andares superiores se perdiam no redemoinho da neblina, exceto por umas poucas e furtivas luzes que brilhavam na escuridão que descia, e um vago e musgoso odor de antiguidade saiu para cumprimentar-me quando eu subi as escadarias e tentei abrir a pesada porta. Mas esta havia sido trancada ou bloqueada, então eu comecei a bater com meus punhos para atrair a atenção de quem estivesse dentro. Após muito tardar, a dor foi aberta, lentamente e a contragosto, e um indivíduo de aparência cadavérica apareceu, com uma grave expressão de desgosto ao ver-me.

“O que deseja?” Ele inquiriu, com uma entonação ao mesmo tempo brusca e solene.

“Um quarto pela noite, e vinho.” Eu pedi.

“Não podemos acomodá-lo. Todos os quartos estão ocupados pelas pessoas que vieram assistir às exéquias da donzela Mariel, e todo o vinho da casa foi requisitado para seu uso. Você terá de ir a outro lugar.”

Ele fechou rapidamente a porta em meu rosto ao dizer as últimas palavras. E eu tive de retomar minha perambulação, e tudo o que me perturbara antes foi intensificado umas cem vezes. As névoas cinzentas e as casas imprecisas estavam cheias da ameaça da lembrança: eram como tumbas traiçoeiras das quais os cadáveres das horas mortas surgiam para assaltar-me com suas presas e garras venenosas. Eu maldisse a hora em que entrara em Malnéant, porque me pareceu então que ao fazê-lo eu apenas completara um círculo funéreo e sinistro no tempo, e retornara ao dia da morte de Mariel. E certamente todas as minhas lembranças dela, de sua agonia final e de seu sepultamento, haviam assumido a vitalidade assustadora de fatos presentes. Mas meus pensamentos ainda mantinham, claro, que a Mariel que estava morta em algum lugar de Malnéant, e por quem todos aqueles ritos de exéquias estavam sendo cumpridos, não era a mesma donzela que eu amara, mas uma outra.

Depois de percorrer ruas que ainda eram mais escuras e estreitas que todas por onde passara, encontrei uma segunda hospedaria, ostentando um letreiro similarmente batido pelo tempo, e em todos os aspectos muito parecida à primeira. A porta estava bloqueada, e eu bati com força, e não me surpreendi de modo algum quando um segundo indivíduo, de rosto cadavérico, me informou em solene e sepulcral entonação:

“Não podemos acomodá-lo. Todos os quartos foram tomados por músicos e carpideiras que atuarão nas exéquias da donzela Mariel, e todo o vinho foi reservado para seu uso.”

Então eu comecei a temer a cidade ao meu redor com medo multiplicado: porque parecia que toda a ocupação da gente de Malnéant consistia em preparativos para o funeral da tal donzela Mariel. E começou a ser óbvio para mim que eu deveria perambular pelas ruas da cidade por toda a noite sem abrigo por causa dos mesmos preparativos.

Subitamente, um cansaço arrebatador se mesclou ao terror e à perplexidade de meu pesadelo.

Não continuara por muito tempo minha peregrinação, depois de deixar a segunda hospedaria, quando os sinos repicaram mais uma vez. Pela primeira vez, pude identificar sua origem: eles estavam nas torres de uma grande catedral que pairava imediatamente acima de mim na neblina. Algumas pessoas estavam entrando na catedral, e uma curiosidade, que eu sabia ser ao mesmo tempo mórbida e perigosa, me levou a segui-los. Lá eu senti de alguma forma que seria capaz de conhecer mais do mistério que me atormentava. Estava tudo em penumbra lá dentro, e a luz de muitos pavios mal conseguia iluminar a vasta nave ou o altar. Uma missa estava sendo rezada por padres vestidos de negro, cujas faces não podia divisar claramente, seus cantos pareciam palavras em um sonho, das quais nada ouvia, e nada estava visível de forma definida no lugar, exceto um féretro coberto de tecidos opulentos no qual jazia uma forma alva. Flores de vários matizes haviam sido salpicadas sobre o féretro, sua fragrância preenchia o ar com um langor sonolento, com um amortecimento que parecia drogar meu coração e minha alma.

As mesmas flores haviam sido postas no féretro de Mariel, e desta forma, por causa de seu perfume, eu fora, em seu funeral, abatido por um entorpecimento momentâneo dos sentidos. Vagamente eu percebi que alguém me acotovelara. Com olhos ainda fixos no féretro, eu perguntei:

“Quem é que jaz ali, por quem é rezada esta missa e tocados estes sinos?”

E uma voz lenta e sepulcral respondeu:

“Eis a donzela Mariel, que ontem morreu e que será amanhã enterrada nas criptas de seus ancestrais. Se é seu desejo, pode aproximar-se e mirar seu rosto.”

Então eu percorri o corredor da catedral, até junto do féretro, cujos tecidos opulentos caíam até a lousa fria. E a face daquela que lá jazia, com um sorriso tranquilo nos lábios, com doces sombras sobre as pálpebras fechadas, era a face da mesma Mariel que eu amara, e não de outra. As vagas do tempo congelaram seu fluxo, e tudo que era ou fora ou seria, tudo do mundo que existira além dela, tornou-se como sombras vacilantes, e da mesma forma que antes (passadas eras ou minutos) minha alma foi trancada no inferno de mármore do supremo luto e arrependimento. Eu não podia me mexer, eu não podia gritar nem chorar, porque minhas lágrimas se tornavam em gelo. E então eu soube com certeza terrível, que aquele único evento, a morte da donzela Mariel, tinha sido arrancado de todos os outros acontecimentos, tinha sido separado da sequência do tempo e achado para si um cenário de penumbra e solenidade adequadas, ou talvez até construído em torno de si aquela enorme e labiríntica urbe, para ali aguardar meu retorno em meio às névoas do esquecimento. Por fim, com um imenso esforço da vontade, eu retirei meus olhos dela, e deixei a catedral em passos apressados, apesar de tolhidos pelo chumbo de minhas pernas, para buscar uma saída daquele labirinto horrível de Malnéant, para procurar o portão por onde entrara. Mas isto não foi de forma alguma fácil, devo ter vagado por horas pelos becos, opressivos e sem saída como tumbas, e pelas tortuosas e convolutas vias, até que me achei em uma rua familiar e dela fui capaz de dirigir meus passos com alguma certeza. E um mormaço fraco brilhava através das nuvens de um dia amortecido e nublado que nascia além das névoas quando eu cruzei a ponte e cheguei outra vez à estrada que me levaria para longe daquela cidade infeliz.

Desde então eu tenho vagado por muitos lugares. Mas nunca mais procurei revisitar aquele reino antigo de nevoeiro e de neblina, por medo de que chegar outra vez a Malnéant e descobrir que sua gente ainda está ocupada com os preparativos para as exéquias da donzela Mariel.


18
Set 10
publicado por José Geraldo, às 15:04link do post | comentar

Acabei de abotoar o cinto e tomei o resto da água mineral gelada para tentar ainda relaxar. Não seria difícil aquela noite, não era nunca muito difícil, mas a cada noite eu sentia que o controle das coisas me escapava, como se uma mão invisível estivesse puxando a corda que Deus me havia dado. Eu era um ladrão, não tinha vergonha disso, e estava prestes a cometer outro roubo.

Desci do carro e comecei a caminhar. Meus sapatos de sola de borracha macia rangiam gostosamente no chão e os meus óculos falsos, emoldurados por uma peruca despenteada, me davam um ar de universitário nerd voltando do laboratório tarde da noite. Passei por uma patrulha da guarda do Campus e os cumprimentei com gestos claros, sem medo. Eu queria que vissem o meu rosto, mas simplesmente não o achassem importante. Cheguei então ao Museu de História Universal, onde a Caixa da Quimera estava exposta. A misteriosa peça interessava a muita gente, e me pagavam bem para que eu a subtraísse da ciência e a entregasse a um comerciante escuso que a levaria para um milionário excêntrico.

Depois de tantas semanas infiltrado no campus, conhecia cada palmo dele, sabia onde passar, sem ter que ser visto pelas rodinhas de maconheiros ou por eventuais casais inflamados. Entrei pelo jardim que conduzia ao Museu de Ciências Naturais e logo estava em um lugar convenientemente discreto, onde havia preparado, noite após noite, a minha invasão. Abri a tampa da grade e me arrastei para dentro do porão.

A pequena lanterna me ajudou a localizar os interruptores certos. Propina nas mãos certas me haviam mostrado até coisas que eu não precisava saber sobre aquele prédio que eu invadia tão respeitosamente. Desligados os alarmes, passeei pelos corredores na penumbra como o hóspede de uma casa de monstros.

A Caixa estava em um pedestal simples, de feltro verde que imitava veludo. Vocês já devem saber de que se trata o artefato porque venho descrevendo-o, sob o nome postiço de um professor que não existe. Vê-la me deixou ligeiramente tenso, como se ela emanasse algo mais que antiguidade e cheiro de formol. Peguei-a, pus na bolsa e me esgueirei para fora, tão fácil quanto entrara naquele templo do saber.

Em casa, recostei-me no sofá a espera da visita do Portador. Contemplava a caixa curioso, revirando-a nas mãos como se fosse um Cubo de Rubik. O que será que Don Fabrizio deseja com esse exemplar esquisito de arte semítica antiquíssima? Por que magnatas querem exóticas obras de arte? Não as comem, não transam com elas, não podem ostentar em suas casas. Qual o sentido de ter consigo algo essencialmente inútil, sem afeto, sem beleza?

Então notei uma ligeira luminescência que surgia de um furo minúsculo como um poro, pouco menos que o buraco que teria sido feito por uma fina agulha. Aquela luz morta e pungente tentava sair. Olhei através do pequeno furo.

Uma mão forte me puxou para trás, separando-me da caixa. Olhei para cima e meus olhos ainda imersos em seiva rosa-acinzentada viram o corpo descomunal de Guido Feltri. Estava adiantado, o símio.

— Don Fabrizio não vai gostar de saber.

— Que não saiba, então.

— Perfeitamente.

Ele me atingiu, o brutamontes. Não vi com o que foi. Vi foi o meu corpo distender-se pelo chão enquanto outro homem, que entrava, berrava em uma voz que deveria ser alta, se eu a estivesse ouvindo com meus ouvidos materiais, mas que me soava então mais plana que um velho disco de vinil desgastado:

— Porco Dio, Guido. Tu sei una bestia!

Os dois homens olhavam assustados em minha direção. Não para o meu eu que sangrava no chão, mas para um outro eu, esse que eu realmente era. Olhavam-me de jeito tão curioso que eu tive vontade de brincar. Olhei fixamente neles e disse: “Buuu!”

Os dois saíram correndo como dois moleques que viram assombração. Deixaram a caixa cair ao chão, com o que ela se abriu e muito mais daquela estranha luz rosa inundou o ambiente.

Na manhã seguinte despertei atarantado, com estranhas formigações nas extremidades. Imaginei-me, à princípio, em um quarto de hospital, ou no céu, mas depois notei que era apenas a forte luz do sol que passava pela janela e atingia diretamente os meus olhos.

Levantei-me da posição em que estivera caído a noite toda. Havia sangue no chão, meu sangue. Uma poça imensa que certamente teria me matado. Mas ao procurar em meu corpo, não vi nada. A caixa estava caída ao pé da mesa, fechada por uma mão invisível ou por um mecanismo qualquer.

Por uma estranha razão, perdi a vontade de ter o dinheiro que ela poderia me proporcionar. Devolvi-a no mesmo dia, dizendo tê-la achado perto de casa. A minha história de que os responsáveis haviam sido Guido e o outro não pareceu ter credibilidade alguma, até que os guardas do campus se lembraram de tê-los visto correndo como loucos pela rua que leva ao Centro Velho, passando em frente ao portão principal.

Acabei absolvido no processo, mas não do inquérito mais rigoroso: aquele que surgiu dentro de mim por causa daquela caixa. Por causa dela eu resolvi levar a sério o meu papel de aluno e um dia me habilitarei a um mestrado em História Antiga. Então, finalmente, terei aquela caixa em minhas mãos, e todas as ferramentas e conhecimentos existentes sobre ela. Talvez consiga descobrir se o que aconteceu comigo foi real, ou foi sonho, ou se foi uma terceira e mais perigosa coisa.


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