Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
03
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 22:03link do post | comentar

Essa tirinha foi praticamente um soco na boca do estômago porque utiliza um dos mais geniais recursos da sátira, a inversão do lugar comum. Basta você pegar um conjunto de frases feitas, de conhecimento de seu leitor potencial, e fazer alguma pequena mudança. Pequenas mudanças podem fazer grandes diferenças.

Estamos acostumados com a ideia de que desperdiçada é a vida de quem se entorpece com substâncias que afetam o corpo e a alma, que deixam a vida passar sem amealharem do vil metal. Que tal, porém, introduzir no debate a questão dos que desperdiçam sua vida de outro modo, vivendo vazios, dedicando-se a projetos quiméricos que não levam a nada?

O linguajar do repórter é o dos apresentadores de vespertinos policiais sensacionalistas, ou de jornalísticos noturnos pretensamente denuncistas. Mas troque a cracolândia por uma outra coisa, que tal imaginar uma cafelândia, onde engravatados estressados atravessam dias maquinando números e vendas?

André Dahmer caminha a passos largos para a genialidade.


06
Jul 11
publicado por José Geraldo, às 14:00link do post | comentar

Nosso sexto episódio analisando tirinhas dos “Malvados” traz um verdadeiro clássico, uma tirinha já bastante antiga (2006), mas imensamente atual:

Não há quase texto, as três imagens falam por si mesmas. Acredito que para a tirinha ser perfeita o André nem deveria ter colocado as legendas, apenas as datas. A sequência ilustra uma grande transformação cultural ocorrida ao longo do século XX e chega a ser desnecessário comentar muito. Este é realmente um caso em que imagens valem mais do que mil palavras.

Cabe, porém, um questionamento: por que hoje temos a necessidade de comprar uma lata que contenha mais do que feijão, mas também música?

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30
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 11:00link do post | comentar | ver comentários (1)

As melhores piadas costumam ser aquelas que envolvem a inversão total de algo que normalmente nos é familiar. A tirinha que examinamos hoje é um exemplo perfeito de como a inversão do lugar-comum, mesmo sem grande sofisticação filosófica, produz uma tirinha genial e acessível:

As tirinhas da série “Encontro Anual dos Donos do Mundo” geralmente abordam o tema do egoísmo capitalista. Acredito que Dahmer seja um simpatizante do marxismo, embora talvez não a ponto de idolatrar ditadores vermelhos. Nesta tirinha, em especial, vemos um capitalista lidando com o dilema da herança. Se do mundo nada se leva, então como um materialista empedernido poderia lidar com a necessidade de deixar para trás o que amealhou em vida?

Ferreirinha indaga a Vázquez, o milionário, se ele pretende doar parte de sua fortuna para a caridade. Muitos milionários fazem isto, ou algo parecido, numa tentativa de limpar postumamente o seu nome. Alfred Nobel inventou a dinamite, mas criou o famoso prêmio, que o tornou mais conhecido do que a sua contribuição à arte de explodir coisas. Vázquez, porém, não tem esse idealismo em relação à sua reputação póstuma. Em vez disso, deseja que seu dinheiro seja cremado junto consigo, ato de supremo egoísmo que evoca a famosa frase de Luís XV (aprés moi, le déluge).

Até aí o quadrinho não tem nada de genial. O que faz toda a diferença é o quadrinho final, no qual a nossa realidade (na qual o diálogo dos milionários se deu) é apresentada como ficção para os demônios do inferno. A reação de dois diabos ao que Vázquez acabou de dizer é parecida com a reação que nós, humanos, costumávamos ter, antigamente, quando assistíamos filmes cheios de violênica, isso, claro, antes de nos acostumarmos a desfrutar da violência como uma forma de diversão. Um dos diabos, supostamente mais velho, repreende o outro por assistir “programas de humanos”, pois isso o impediria de dormir depois. Tal como as crianças de antigamente passavam noites em claro com medo do Drácula ou Maníaco da Serra Elétrica.

A mensagem. Qual será a mensagem sugerida pelo autor da tirinha? Salvo engano meu, é a de que nós humanos possuímos monstruosidades maiores do que as que nós imaginamos. Talvez o que para nós é aceitável, e até ortodoxo segundo as regras da economia, seja como um filme de terror para pessoas vivendo em outra época ou outra dimensão.

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22
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 16:00link do post | comentar | ver comentários (1)

Recuando mais no tempo, nos porões do site do André Dahmer, eis esta preciosidade, digna de comentários indizíveis. Quantos de nós não nos sentimos assim, às vezes?

O clima de cordialidade não disfarça um fato: os personagens desta tirinha não são felizes. Tanto “Romano” como seu colega são esvaziados (“descarnados”, na verdade) pela dedicação extrema a realizações que não são de seus projetos pessoais. É fácil imaginar porque eles se sentem assim: a falta de sentido é um mal que acomete a muitas pessoas no mundo de hoje, pessoas que não encontram uma razão para olhar-se no espelho e ver-se como indivíduos perfeitos e livres, dotados de uma missão. Eis o problema dos pobres esqueletos desta tirinha: eles vivem para o trabalho, somente para o trabalho.

No ônibus, o personagem da primeira tirinha encontra um homem que exibe orgulhosamente o próprio filho, dizendo “já trabalha comigo”. A criança, desde cedo, se acostuma a uma vida sem sentido, uma vida apenas de trabalho. All work and no play makes Jack a dull boy. Esta situação, porém, não causa aversão, mas orgulho. Tanto assim que, no quadrinho final, o homem exausto que deixou a repartição na sexta-feira “morto de trabalhar”, um pouco antes de desfalecer em seu caixão, à luz da lua, recomenda ao filho que ele “arrume um estágio logo”. O estágio, rito de passagem, é uma espécie de circuncisão mental a que todos são obrigados. Trabalhando desde cedo o garoto não terá tempo para desenvolver fantasias, tornar-se-á “seco”, “descarnado”, “morto de trabalhar”.

Este não é um quadrinho que exige muita reflexão, não há aqui muita filosofia. Apenas muita amargura e realismo, ainda que apresentado sob a capa do fantástico, esta licença poética que nos permite penetrar mais profundamente na realidade.


17
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 12:12link do post | comentar

Continuando nossa série de análises sobre as sensacionais tirinhas do André Dahmer, hoje analisaremos uma que será realmente polêmica, e atrairá a ira de centenas de pessoas contra mim e fará com que muitos de meus amigos fiquem horrorizados, me excomunguem, me xinguem ou digam que estou louco, coisas assim:

Aqui não há necessidade de muita sutileza para entender a filosofia que está sendo apresentada. Antes que comecem a chover pedras e protestos, vamos explicar uma coisa bem claramente: não me parece que André Dahmer, nesta tirinha, esteja duvidando ou afirmando qualquer coisa a respeito de Deus em si. O tema é muito outro: ele está ironizando certas pessoas que falam em nome dEle.

O diálogo que vemos no primeiro quadrinho reúne um homem de físico avantajado e outro que aparenta ser, além de menos fisicamente dotado, também idoso. O homem de físico avantajado, segundo podemos deduzir de sua fala, tem o hábito de extorquir dinheiro das pessoas usando violência e/ou ameaça de violência. Ele está preocupado com a descoberta de que suas atitudes agora são criminosas. O velho então lhe lembra que é possível legalizar suas “atividades”, adaptando-as aos novos tempos. Vemos claramente nesses dois quadrinhos iniciais que os dois personagens são símbolos, e não indivíduos. O primeiro simboliza a máfia, o criminoso, essas coias. O segundo simboliza o jurisconsulto, o estadista, o espertalhão. Do diálogo entre os dois brota o “novo homem” do terceiro quadrinho: um personagem que ainda tem debaixo da roupa os músculos do tempo em que batia nos outros para roubar dinheiro (restos de um poder temporal?), mas que em vez disso extorque dinheiro usando meios mais sutis.

Para mim esta tirinha é um ataque às instituições religiosas em geral, vistas como um meio de vida para seus membros, que se aproveitam do temor sobrenatural do povo para obter dinheiro. Sob o disfarce de uma preocupação com o bem estar alheio, o ex mafioso lembra aos fiéis que "Deus precisa de dinheiro".

Não acho que os quadrinhos sejam uma referência exclusiva à Igreja Católica. A simbologia católica aí empregada serve apenas para identificar adequadamente que o personagem se tornou um líder religioso. Outras instituições religiosas não têm uma simbologia tão transparente que permita identificar de forma inequívoca a função do líder. Tendo dito isso, acho que não sei dizer mais nada sobre o quadrinho, apenas que o acho genial.


09
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 21:54link do post | comentar

Dando continuidade a nossa análise existencialista e filosófica das tirinhas do André Dahmer, eis outra que merece praticamente um ensaio...

Vemos aqui uma inversão irônica do antiquíssimo clichê da prostituta que se ilude em encontrar um homem que a tire da vida (tão bem explorado por nomes do quilate de Nélson Rodrigues, Manuel Bandeira, Eça de Queirós e Odair José). É verdade que, em alguns casos, como o do poema do Bandeira e do romance do Eça, o homem realmente cumpre a promessa. Mas em essência, a história de amor da prostituta sempre foi a de uma ilusão quase infantil com príncipe encantado. Isto, claro, porque na vida, como na arte, raras sãos as Surfistinhas que têm a chance de se tornarem próceres da cultura nacional e candidatas a cadeira na Academia Brasileira de Letras (de depender de sua campanha boca-a-boca de convencimento dos acadêmicos, será por unanimidade).

A prostituta literária é uma jovem ingênua que, poluída pela "vida", sonha com algum cliente que por ela se apaixone e a leve consigo para uma vida pelo menos relativamente respeitável. Nenhuma delas carregava gilete no bolso e nem cheirava cocaína. Eram tempos chiques, em que era finíssimo comer haxixe e morrer de tuberculose.

Mas nesse quadrinho sensacional, sintético, multireferenciado e todos os etcéteras que vocês queiram acrescentar, André Dahmer pega esse clichê e o transforma em pano de fundo para uma piada arrasa-quarteirão, da qual, evidentemente, só poderão rir desbragadamente os que forem dotados de uma cultura literária suficiente para saberem quem foi a Dama das Camélias ou, pelo menos, a Zezinha do Butiá. Bruna Surfistinha não serve de referência.

Normalmente vista como corrupta, decadente e doente, aqui é a puta que promete a redenção ao político. Essa é a sensacionalidade da piada. Em um nível mais básico, sugere-se que chegar ao nível de uma prostituta seria um progresso moral para o político (ainda que, em alguns casos, tal seja uma meta inatingível). Em um nível mais sofisticado, pode-se pensar que o político é iludido com a promessa de redenção, tal como as putas de alma limpa, posto que a prostituta não quer realmente salvá-lo, mas apenas continuar recebendo seu dinheiro (tal como os clientes não querem levar a puta para casa, mas apenas ter com ela encontros ocasionais). Além disso, a salvação fica impossibilitada pelo fato de que o político, tal como a puta nos tempos pré-camisinha, fica contaminado pela corrupção e doença derivada de seu contato com a sujidade, a prevaricação, o dolo e outras coisas. Males contra os quais não existe antibiótico.


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