Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
02
Jan 13
publicado por José Geraldo, às 01:09link do post | comentar | ver comentários (1)
Faz alguns dias que eu comecei a analisar o caso de Christopher Schewe, um idiota americano que aparece no YouTube comendo ou bebendo coisas com uma voracidade de avestruz no cio. Passou o fim de ano e eu me detive mais churrasqueando e entupindo os cornos de cidra barata e cerveja do que pensando no que continuar escrevendo sobre o tal babacão. Perdi a onda. Não vou continuar. Pensar em gente imbecil me imbeciliza, me estressa além da conta.

Vocês que já ouviram falar do cara, já devem estar procurando por suas aventuras na internet, inclusive seu famoso vídeo da ingestão de uma garrafa inteira de absinto (que seu fígado descanse em paz, Chris).

Depois de passarem por esse ordálio estúpido e sem razão, sugiro que se perguntem por que motivo esses conteúdos esdrúxulos atraem tanta atenção. Tanto filme bom para se ver, tanto livro legal para se ler, tanto blog como o meu ou melhor, e a audiência da internet vai para vídeos de um americano retardado que enfia uma garrafa de Coca Cola de dois litros pela boca adentro  e vai arrotando pela beirada da boca enquanto se enche daquele lixo tóxico com cor de chorume.

Se você assistiu a todos os vídeos que mencionei (e dos quais eu só ouvi falar através de comentários, depois de ter assistido o da Coca Cola e o do absinto) e alguns outros mais, saiba que você é parte daquilo que está errado no mundo. Sinta-se feliz em ser um semeador do apocalipse.

Mas pelo menos vá rindo enquanto semeia. O mínimo que um idiota merece é todos reconheçam sua idiotice. O suicídio é a eutanásia do imbecil.

27
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 00:07link do post | comentar
Você não ouviu falar de Christopher Schewe. Dificilmente terá ouvido falar de “shoenice22” — seu nome de usuário no YouTube. Não perde grande coisa, mas a vida e as apresentações deste assim chamado “comediante” da internet podem servir de base para algumas reflexões interessantes sobre quão doentia é a psique coletiva da humanidade.

Sim, você que é bem informado provavelmente já tivera o primeiro vislumbre do real valor do ser humano ao saber que aproximadamente 55% de todo o tráfego da internet se refere a pornografia. Recentemente tomei conhecimento de informações mais precisas sobre o chamado “lado negro da web“, ou “Deep Web“, que corresponde a mais de 90% do conteúdo da internet, e é o domínio de toda espécie de seres ditos “humanos” (entre aspas) que nem deveriam ter o direito de estar vivos: traficantes de drogas, assassinos de aluguel, pedófilos, estupradores, traficantes de escravos, pervertidos sexuais, canibais etc.

Todas estas coisas existem porque há um público. Só quem pregou no deserto foi João Batista.

Mesmo na internet “normal” existem coisas que não parecem normais, que evocam o lado negro, ou simplesmente a filhadaputice encarcerada dentro de cada cavalheiro ou dama. E não é preciso procurar muito, porque parece que estamos chegando a uma “geléia geral” difusa, sem fronteiras entre o aceitável e o escroto.

Houve um tempo em que o povo não tinha nenhum controle sobre a programação do rádio ou da televisão que assistia.  As pessoas, sensatamente, sabiam que tudo aquilo era uma idealização da realidade — que, muitas vezes, recebiam a informação filtrada por olhos e mentes que haviam visto e pensado primeiro. Como dizia Raul Seixas: “Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz”. Sempre havia um tolo que acreditava na novela, mas era do tipo que a gente ria.

O povo, porém, consumia sem entusiasmo este feno pasteurizado que era produzido pelos meios de comunicação de massa. No fundo, as pessoas ansiavam por ver coisas mais viscerais. Lembro do entusiasmo com que meus coleguinhas de escola falavam dos golpes de “tele-catch” ou de filmes de terror como “Sexta Feira 13”, “A Hora do Espanto” e “Halloween”. Acredito até que foi o sucesso estrondoso deste último filme que impulsionou a popularidade das festinhas promovidas pelos cursinhos de inglês, que, enventualmente, sairam de lá e cairam no gosto do povo, como uma espécie de carnaval gótico fora de época.

No fundo sentíamos saudades dos monstros de circo e dos espetáculos extremos. Em séculos passados era possível ir à feira no domingo e ver uma bruxa sendo queimada ou um criminoso sendo estripado na praça. O populacho adorava estas cenas de sangue, nisso filmes históricos hiperviolentos, como “Coração Valente” não se enganaram.

Esse impulso inspirou Kafka a escrever uma de suas mais brilhantes histórias, “O Artista da Fome”, sobre um pobre diabo que atrai a atenção do público jejuando, possivelmente por dinheiro ou talvez por migalhas de atenção apenas. As pessoas querem vê-lo passar tempos cada vez maiores sem comer, trancado em sua jaula, como um miserável animal.

A Internet já nos brindou com algumas figuras tão melancólicas quanto o Artista da Fome, mas nenhuma tão semelhante a ele quanto “shoenice22”. Ele é o legítimo palhaço triste, em toda sua inglória. Com pouco mais de quarenta anos de idade, divorciado, pai de duas filhas, veterano da Guerra do Golfo, filho de hippies fumadores de maconha e concebido e criado num trailer sujo (suas próprias palavras, em um de seus primeiros vídeos). Seu rosto sempre crispado por uma agonia que pode ser física ou não, Christopher propõe e aceita desafios de seus “fãs” pelo mundo. Desafios que consistem em comer ou beber coisas que não deviam ser comidas ou bebidas, ou então comer ou beber coisas de uma maneira inatural e socialmente inaceitável.

Enquanto o francês Michel Lotito comia coisas (quase sempre de metal) cortadas em pequenos pedaços, ao longo de um grande espaço de tempo (levou dois anos para comer um monomotor Cessna 150), Christopher “ShoeNice” Schewe come coisas que possa cortar com os próprios dentes e engolir de forma rápida, filmadas em vídeos sem interrupção, que posta no YouTube com o subtítulo de “funniest man alive”. Mas não é engraçado.

Schewe já comeu uma barra de desodorante sólido, um rolo de papel higiênico, um cheeseburguer com plástico e tudo. Já bebeu vodca, absinto, álcool líquido e tequila. Já bebeu fluido de isqueiro e água de narguilé.

Eu deveria estar tecendo muitas considerações sobre ele, mas é tarde e meu cérebro já desligou. Continuo na quinta feira, amanhã.

24
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 22:38link do post | comentar
Um humorista, não me lembro se britânico ou americano, certa vez definiu “colonização” como o processo através do qual um povo “insere” dentro de outro algo, que pode ser uma comunidade imigrante, uma indústria multinacional, um regime de governo ou outra coisa, e o faz de forma tão profunda que o povo “colonizado” passa a levar aquilo dentro de si, imperceptivelmente. À parte o caráter escatológico e sexual desta metáfora, ela serve bem para mostrar como, em pequenos gestos, as pessoas vitimadas pelo lento e quase imperceptível processo da colonização se tornam incapazes de perceber que se tornaram parte dele, também elas reforçando os mecanismos de dominação. Marx teria dito que estas pessoas, por estarem alienadas de seu papel na sociedade, não conseguem perceber como o seu papel na sociedade passou a ser utilizado por outras forças, sem o seu conhecimento e até de uma forma que elas não aprovariam se soubessem.


Neste blogue tenho frequentemente batalhado por migalhas de uma identidade brasileira, criticando subserviência desnecessária ou imitação sem sentido. Mesmo estas migalhas que eu aponto geram reações inamistosas. As pessoas não gostam que digam que foram “colonizadas”. Reagem, negam, agridem, tentam suprimir. Se possível, ignoram. Em geral, mesmo os meus leitores mais esclarecidos, me acham um paranoico  Talvez eu até seja. Mas mesmo um paranoico às vezes tem mesmo alguém atrás de si.

Hoje faço isso mais uma vez, pronto a ser chamado de diversos adjetivos. Quanto mais profunda a inserção do conteúdo estranho, quanto mais “colonizada” a mentalidade do indivíduo, maior seu empenho em negar. O viciado jura que cada gole poderia ser o último se ele quisesse que fosse. O colonizado jura que macaqueia a metrópole porque escolheu esse caminho por algum motivo.

Refiro-me ao capitão da seleção brasileira de futebol de salão que, ao voltar à sua cidade como herói do heptacampeonato mundial do esporte, apareceu no aeroporto trajando um uniforme da seleção estadunidense de pólo, com a bandeira ianque figurando proeminentemente e com as indefectíveis letras “U S A” pontificando acima desta. Ele já não é tão jovem para que digam que foi imaturidade, algo que o tempo supostamente conserta, mas certamente é inocente de uma forma lhe impede de ver além do imediato: ele sofre, como a maioria dos brasileiros, de uma profunda alienação em relação a seu papel no sistema de coisas. Não fosse alienado, ou estivesse assessorado por alguém que não seja, ele não teria usado, em momento tão importante de sua vida, uma camisa que glorifica um obscuro esporte praticado em outro país. Ao colocar aquela camisa sem pensar, o capitão de nosso escrete campeão passou subliminarmente a mensagem de que ele, o vencedor, idolatra, na verdade, um esporte e um país estrangeiros.

Dirão que foi humildade. Digo que foi só ignorância. As duas são muito parecidas na forma, diferem no conteúdo. O humilde recusa homenagens imerecidas, ou as transfere ao grupo. Um capitão humilde não teria desfilado em carro aberto com a taça, como ele fez, visto que esta pertence a ele tanto quanto a todos os demais integrantes do time. O ignorante comete erros que muitas vezes coincidem com as posturas dos humildes. O capitão, ignorando o simbolismo e o significado de sua própria conquista, maculou-a com uma demonstração de colonização cultural, ao usar aquela camisa.

Sim, eu sei que vocês não concordam. A maioria de vocês, mesmo não usando uma camisa como aquela, usaria outra camisa aleatória que poderia coincidir com alguma outra coisa que alguém criticasse. A maioria de vocês não teria a "sacada" de que o desembarque de um campeão é um momento para a história, que precisa ser planejado e que precisa receber um significado.

Esta é uma diferença importante entre nossos campeões e os dos outros. Nossos campeões adoram posar de super homens, reclamando das condições que enfrentaram, mesmo quando tiveram apoios importantes. O simples fato de eles viverem no Brasil já significa que não têm e nem poderiam ter condições semelhantes às dos atletas de países desenvolvidos. Então esta reclamação nem sempre é justa. Mas o que o capitão da seleção de futsal fez foi, para mim, um pouco pior: ele encarou sua conquista como algo que lhe pertence, pessoalmente. Por isso não planejou seu retorno triunfal, vestiu-se de qualquer jeito, com uma camisa que uma figura pública como ele nem deveria ter, e deixou-se fotografar para um momento que pode ficar na história usando uma camisa que alude à nação hegemônica do mundo.

Ficou feio para ele. E não espero que vocês concordem comigo. Afinal, vocês não acharam feio. Só lamento que tantas pessoas tolerem a insidiosa colonização a que somos submetidos.

10
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 23:49link do post | comentar | ver comentários (2)
ou «Porque os discursos superficiais de ódio ecoam com tanto vigor»
Acabo de me deparar no Facebook com alguém compartilhando a pequena história em quadrinhos acima. Logo que a li percebi que ali havia assunto para mais do que meramente um «Curtir» ou um «Compartilhar», mesmo porque não me senti impelido a nenhuma das duas coisas. Como aquela rede social não é muito receptiva a elucubrações mais compridas, preferi postar aqui, mesmo sabendo que menos gente lerá, curtirá ou compartilhará.


A tirinha expressa, de fato, muito mais do que está dito nas palavras de seu protagonista: ela é a vingança, possibilitada pela instantaneidade do fluxo de informações na internet, daqueles que sempre detestaram a poesia, mas sempre tiveram esse ressentimento represado pela inexistência de um canal que o amplificasse e difundisse. Estas pessoas a quem chamo de «ressentidas» sempre existiram, não passaram a surgir ontem, e possivelmente existiam antes em número muito mais significativo em relação à população em geral.

Portanto, que ninguém interprete esse texto como uma catilinária contra nossos tempos e costumes. Limitar-me a isso seria, de fato, dar eco à crítica, pois seria uma defesa estúpida de algo que, por si, não carece de defesa. Aquilo que existe por si não carece de justificativas. As coisas não têm, em si, nenhuma razão moral de ser, como muito bem disse Nietzsche, em um aforisma que é útil em múltiplos sentidos: não existem fenômenos morais, apenas derivações (ou explicações, segundo algumas traduções) morais dos fenômenos. Muita gente «odeia» a poesia, e no entanto a poesia existe, permanece e existirá. Como disse Mário Quintana, «toda essa gente que fica atravancando o meu caminho, eles passarão, eu passarinho».

O que cabe ser dito é, de fato, tentar entender a consistência desse «ódio» (que vai entre aspas doravante, posto que não é um ódio de fato, mas uma coisa outra, que obedece a leis diferentes do ódio em si, que é uma reação irracional momentânea). É preciso que investiguemos a natureza desse ódio, agora que ele extravasa dos bueiros por onde corria, pois já não é possível ignorarmos que algo cheira mal nessa metafórica Dinamarca.

A principal manifestação do «ódio» à poesia se dirige não contra o texto em si, mas contra o «poeta», este ser esfíngico, admirado de uma forma torta e inadequada, a ponto de a palavra ter sido tomada como epíteto por compositores populares (nem sempre poéticos) e apropriada até mesmo em ditos populares: «fulano, calado, é um poeta». Este «ódio» é, de fato, apenas uma faceta da discriminação agressiva (ou «bullying» como hoje se diz) contra os tipos sociais divergentes de uma norma impositiva. Em uma sociedade como a nossa, na qual a cultura originalmente foi apenas um verniz de civilização, tangibilizado por um diploma devidamente europeu ou pela prática de costumes importados daquelas latitudes, sempre foi natural que certos comportamentos fossem circunscritos a certos grupos sociais. Assim como se espera que o negro seja malemolente, que o suburbano seja esperto, que o interiorano seja ingênuo e que o baiano seja indolente; nunca se esperou que alguém do povo possuísse, de fato, os tiques e taques privativos da elite, entre os quais diplomas, erudição e talentos artísticos. Pobre não faz arte, faz artesanato, não faz poesia, mas faz letra de música. Mais ou menos assim.

Exceções acontecem, quando devidamente legitimadas pela elite, que está frequentemente em busca de ídolos, como um Machado de Assis. Mas quando o talento, mesmo equivalente, não encontra essa legitimação, por alguma razão nem sempre inteligível, o pobre artista, além de fustigado pela pobreza que persiste, ainda sofre o escárnio de uma sociedade que vê nele como postiça e ilegítima a mesma atitude que louva como visceral e própria em um dos luminares escolhidos. Um breve estudo comparativo das obras e biografias de artistas malditos, como Lima Barreto ou Cruz e Sousa, por exemplo, nos deixa com a pergunta incômoda sobre o motivo de não terem sido aceitos por um sistema que aceitava gente de talento evidentemente menor.

As explicações estão dadas acima: residem na divisão de classes de cunho pós-escravagista, divisão que só permite a ascensão social daqueles que são, por alguma razão, «aceitos» pelo sistema. Daqueles que são «branqueados» no processo, tal e qual os pecadores são «lavados no sangue do Cordeiro» para poderem entrar no Reino dos Céus.


Este quadrinho, porém, vai mais fundo do que esta manifestação de escárnio contra os «patinhos feios», que sempre existiu e pôde ser sentida por todos nós que escrevemos, pelo menos uma vez ou duas na vida, a menos que tenhamos sido abençoados com uma idiotice beatífica que nos impede de enxergar o desprezo alheio, ou tenhamos adquirido um calo sensorial que nos insensibiliza para isso. Vai mais fundo porque ele não se limita a zombar dos que «ousam» ser poetas sem terem sido, previamente, autorizados a isso, por um concurso, uma editora, uma academia ou a bênção de um figurão das nossas letras belas. Zomba da poesia em si,  e isso nos exige uma reflexão além.

Por que alguém odiaria poesia, a ponto de execrá-la publicamente, dizendo que «limparia a bunda» com a obra de Augusto dos Anjos? A escatologia é um argumento fácil para quem não tem argumentos. O macaco atira excrementos nos visitantes do zoológico. Não obstante ele continua sendo o macaco,  e os visitantes continuam sendo os visitantes. Atirar excrementos não modifica a situação de submissão e desumanidade do símio enjaulado e nem desumaniza os visitantes, que poderão lavar-se depois e ter uma divertida história para contar. E limpar a bunda com a poesia de Augusto dos Anjos em nada a modifica, e nem à bunda de quem a usou para tal fim. Evidentemente essa manifestação bárbara de desprezo pela obra de alguém que morreu há tanto tempo expressa algum tipo de sentimento mais profundo e duradouro do que o desprazer de não ter gostado de um ou dois sonetos. Qual a jaula mental onde se encontra este ser que recorre a excrementos para agredir aquilo que não entende?

Vivemos atualmente uma fase perigosa no mundo, após tantas décadas de triunfo da ciência, com suas conquistas e perigos, com os dois gumes de seus conhecimentos, com a exigência de responsabilidade diante das múltiplas possibilidades de cada conquista nova. Parece que muita gente se assusta com a obrigação de escolher se vai usar a radiação para curar o câncer ou para causá-lo, se vai usar o foguete para nos levar à Lua ou de volta à Idade da Pedra. Diante desses dilemas, há hoje quem reaja ao modo do avestruz mitológico (não o real), que enfia a cabeça na areia diante do susto. Refiro-me à reação anti intelectual que grassa pelo mundo e que, apesar de nossa ignorância de periferia deslumbrada, não começou aqui.

O modo de pensar anti intelectual, não irracional, não confundam por favor, surgiu, de fato, nos Estados Unidos, nos anos sessenta, e hoje podemos ver com clareza como. Alan Bloom já o havia percebido em 1986, ano em que escreveu uma obra hoje esquecida, mas que devia ser mais lida: The Closing of the American Mind («O Fechamento das Mentes Americanas», traduzido porcamente para o português como «O Declínio da Cultura Ocidental», refletindo a subserviência do tradutor e editores, prontos a aceitar o império ianque não apenas como centro do mundo, mas resumo dele). O anti intelectualismo é a crença de que as imperfeições da ciência significam que as soluções científicas não devem ser buscadas. Houve vários momentos de triunfo desta mentalidade, e talvez o mais significativo tenha sido a «luta antimanicomial», que ajudou a desmantelar toda tentativa de abordagem e tratamento científico das patologias da mente em nome de uma filosofia segundo a qual os limites entre a loucura e a normalidade seriam uma convenção social. Ora, vivemos em uma sociedade, e quase tudo nela é convenção social. O triunfo do anti intelectualismo consiste em convencer-nos de que o fato de vivermos sob convenções significa que as convenções são arbitrárias e políticas baseadas nelas são injustas. Em vez de buscar aperfeiçoar as convenções, devemos aboli-las. Com toda sua virtude humanista, a luta antimanicomial abriu caminho para o questionamento da ciência enquanto alternativa viável de abordagem dos problemas sociais. Isto acaba sendo útil aos sistemas de poder, especialmente quando surgem indícios de ação humana na modificação dos padrões climáticos da Terra. Se a ciência está em xeque, então as decisões políticas não precisam considerá-la. Eis o monstro criado pela luta antimanicomial a longo prazo. Tal como não precisamos tratar dos loucos, pois a loucura é uma categoria arbitrária imposta pela cultura, também não precisamos evitar as modificações ambientais que inadvertidamente causamos por nosso estilo de vida, pois os modelos e parâmetros usados pela ciência para determinar a realidade destas modificações são também arbitrários e sujeitos a influências culturais.

O anti intelectualismo é um populismo filosófico. Nada afaga mais o ego instável do ignorante do que ser chamado de sábio. Chame um homem por aquilo que não é e ele se sentirá feliz, desde que acredite sinceramente que não há malícia de sua parte. Desde que ele esteja seguro de que a calúnia é imerecida e o elogio é verdadeiro. Do contrário, se supuser a calúnia uma realidade e o elogio, uma falsidade, reagirá com agressividade. Eu já havia notado isso em 2010, quando escrevi «O Sábio Louco e o Ignorante Vigoroso», pequeno texto no qual observei que, como disse Caetano Veloso, «Narciso odeia tudo que não é espelho». O ignorante odeia o sábio por ele ser sábio, mas quer ter, ele mesmo, o nome de sábio. Diga ao ignorante que o sábio não o é, mas ele sim, e, caso a afirmativa inspire confiança, o afago ao ego do idiota produzirá um deslumbre genuíno.

O ignorante precisa acreditar que não há prejuízo em sua ignorância. De outra forma, sente-se incompleto, precário. Para combater esta sensação de vazio, que o inquieta mas ele não sabe expressar, ele busca o elogio, busca a sensação segura de que «sabe». Venda a este cara a ilusão de que «sabe», de que «pode saber em apenas cinco lições» ou, melhor ainda, que «já sabe». Olavo de Carvalho acredita que conseguiu desmentir Newton e Einstein. Muitos são os que o elogiam, fazendo com que ele se sinta, de fato, um injustiçado pelo Nobel. Dão-lhe até medalha para melhorar a ilusão. Que se multiplica através dos excrementos verbais que ele difunde, e que são assimilados e replicados por outros que, tão vazios quanto ele, aceitamo como sucedânea do conhecimento a mistificação que ele divulga.

Este fenômeno é reforçado quando o ignorante possui algum conhecimento, mas só um pouco. Temei ao homem de um livro só, disse o santo filósofo. Ele não conhece, de fato, quase nada do mundo, mas domina tão bem seu quase nada que adquire uma certeza, uma autoconfiança que intimida. E agarra-se a esta migalha, que lhe confere autoridade.

E onde entra nisso a poesia? Pobre poesia, pobre e inútil poesia. Que sempre sofreu com esta pecha de inutil, e graças a Deus que ela o é. A pior coisa que pode acontecer à literatura é que lhe encontrem alguma utilidade. Não há maior tédio do que nos livros julgados os mais adequados pelo sistema educacional. Se tachados de «educativos» então, aí se encontra um indutor de letargia mais poderoso que a mosca tsé-tsé.

A poesia entra nisso como mais uma manifestação de intelectualidade. Se vivemos uma reação contra a intelectualidade que é útil (ninguém duvida das previsões do tempo, ora bolas, nem da capacidade voadora dos aviões e foguetes), quanto mais contra as pobres formas inúteis de intelectualidade! É muito fácil falar contra a poesia: é algo que poucos entendem, que raros gostam, que poucos praticam. É um saco de pancadas tradicional daqueles que sempre satirizaram os pendores de questionamento que brotassem da boca do pobre. A poesia é o senhor gordo e lento no qual o macaco consegue acertar mais excrementos.

23
Set 12
publicado por José Geraldo, às 21:31link do post | comentar
Um poema satírico inspirado por uma postagem de minha amiga Ana Feijó da Cruz no Facebook.

Eu juro
Sou de um tempo passado,
em que cupcake se chamava bolinho,
blush se chamava ruge,
van era furgão
sale era liquidação.

Nunca me ocorreu
chamar meu amor de love,
nem referência de benchmark,
nem interessado em stakeholder,
nem artigo de paper
e nem discurso de keynote.

Hoje vivo perdido
comendo cigarrette em vez de enroladinho.
Nunca mais vi jogarem bola ao cesto
e nem futebol de salão.

Acho estranho quando chamam
stickers de adesivos e
entrega em domicílio de delivery.
Especialmente se houver alguma coisa free
nos cookies que compro no shopping.

11
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 19:39link do post | comentar | ver comentários (3)
Esta semana, enquanto discutia a opinião de Paul Rabbit sobre James Joyce, acabei, sei lá como, psicografando Clarice Lispector. Se eu fosse espírita, esse seria um dos momentos em que eu me orgulharia de minha mediunidade. Com a vantagem de que o texto que escrevi expressa, praticamente sem ressalvas o pen­samento da autora — muito diferente das psicografias da moda, que em geral tem tanto a ver com a obra do autor espiritual quanto o proverbial ânus com as calças. Refiro-me a esta declaração de Clarice, numa de suas últimas entrevistas (agra­decimento a Victor de Toledo Stuani por me repassar o link e a transcrição):
"Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade."
Clarice estava se referindo ao papel que todos esperam que o profissional exerça, não só em relação ao nicho literário em que foi inserido ao longo do tempo, mas também em relação às opiniões e imagem que precisa manter em relação ao sistema. As mesmas ideias de Clarice eu expressei assim:

Equal é exatamente a diferença entre um escritor amador e um profissa? Pode parecer pouca, mas pare e pense, pense muito bem. Um autor amador como eu é um franco atirador. Eu escrevo o que quero, como quero. Publico no blog por­que quero, procuro editora na medida do possível e vou levando. Não preciso da litera­tura para nada além de satisfação pessoal (o que inclui o sonho de alguém algum dia notar que sou um gênio incompreendido e assinar comigo um con­trato de milhões de dólares e me dar um título honoris causa da Sorbonne).

Por isso eu posso ousar. Se ficar ruim, é porque é um trabalho amador. Se ficar bom, tapinhas nas costas e nem um centavo de reconhecimento. Posso também cri­ticar quem quiser, o quanto quiser (e bobo é quem se achar atingido por estas crí­ti­cas a nível pessoal), sabendo que minhas críticas «valem quanto pesam», ou seja, serão julgadas pela sua propriedade e não pelo meu currículo inexistente.

Não é a mesma coisa para um profissional. Ao se dedicar a literatura como meio de vida, como fonte permanente da grana que compra seu feijão (ou seu caviar, depen­dendo de quanto venda) o autor profissional passa a depender de vendas regu­lares. Isso inclui definir seu estilo, encontrar seu nicho, cativar seu público, etc. Não espere que um autor de FC, por exemplo, dê uma veneta de escrever poesia erótica, ou que um autor regionalista se meta a fazer FC hard. Eles até podem querer isto, mas o mercado não quer, o público leitor preconceituoso não quer. Poucos leitores de Stephen King leriam contos românticos de sua autoria. Pou­cos fãs de FC levariam a sério uma space opera de autoria de Rachel de Queiroz.

O mesmo se aplica às críticas: quando um autor famoso e profissional fala sobre lite­ratura as pessoas imaginam um mestre falando ex cathedra. Esse peso extra que as pessoas dão às opiniões dos profissionais faz com que elas não valham ape­nas o quanto pesam, valem o peso da vendagem, dos contratos, da publi­cidade, dos diplomas (mesmo honoris causa). Uma estupidez dita por um acadê­mico é estudada na imprensa. Uma crítica muito apropriada feita por um amador como eu será sempre entendida como uma ousadia inadequada. «Quem é você, seu bosta, para falar mal do livro do fulano?»

Isso significa que o autor que deseja ser profissional precisa começar a censurar-se. Precisa começar a enquadrar-se. «Erotismo demais para uma obra juve­nil», «ficção científica ambientada no interior de Minas Gerais é uma coisa ridícula», «ninguém está interessado em sua autobiografia». E o que já conse­guiu precisa policiar-se: «não fale mal de fulano, porque ele é um editor impor­tante», «faça algumas críticas elogiosas a sicrano e aumente suas chances de ir para a Academia»,«não diga uma coisa dessas, que isso pode ofender os res­pon­sáveis pelo sistema educacional».

Paul Lapine tem, entre suas raras qualidades, a liberdade de atacar o sistema. Porque o sistema foi lamber suas botas para dar um sopro de vida a uma Aca­demia caquética, cada vez menos relevante culturalmente e inflada de autores de nulo valor (como José Sarney (devidamente posto em seu lugar por Millôr Fer­nandes), Ivo Pitanguy (enquanto literato é um ótimo médico), Merval Pereira, Marco Maciel, Nélson Pereira dos Santos (apesar de ser um bom cineasta) e Eva­risto de Morais Filho. A verdade é que, por mais que eu deteste o trabalho de Pavel Krolik, ele é mais importante para a literatura do que todos esses juntos, e com um nariz de vantagem. Isso lhe dá a ousadia de falar mal de um dos santos do cânone ocidental, traduzido ao português por ninguém menos que Antônio Houaiss.

Minha opinião sobre Joyce, idêntica à de Paul Kaninchen, jaz amparada no sagrado direito de dizer bobagens que assiste aos amadores. Nós somos livres para não gostar do que não gostamos, não temos a obrigação de elogiar o que nos enfastia. Não somos maridos da grande literatura para suportá-la a todo custo.

Continuo, porém, mantendo a minha opinião sobre Ulysses, e não é um crítico britânico especialista em Joyce que vai me intimidar. Certamente há pessoas que gostam de Ulysses, tanto quanto há quem goste de vela quente e chicotada nas costas. De gustibus non eramus disputandum.

Há, porém, uma diferença fenomenal entre a opinião do Paolo Coniglio e a minha: eu desgosto de Joyce enquanto leitor, pois esse não é o tipo de literatura que me comprazo em ler (mas reconheço que Ulysses possui boas ideias, mistu­radas com outras horríveis e outras medíocres). Já o Pablo Conejo desgosta dele com a «otoridade» de um acadêmico, e um acadêmico precisa entender que nem todas as obras foram feitas para serem lidas pelo grande público, nem todo autor é assunto para se conversar na padaria. Se alguém me desancar pela minha opinião eu aguento o tranco sozinho e me refugio, acuado, na desculpa de que sou só um leitor, que também amadoristicamente escreve e palpita, mas o desancamento do Paul Konijn pelo crítico inglês salpica na Academia que o elegeu porque sugere que o mago é um simplório, um tosco, alguém que se iguala ao leitor de tabloides. Para vender ao leitor de tabloides, diga-se de pas­sa­gem. Um mercenário.

Na qualidade de não acadêmico e de amador, eu ainda tenho tempo de dizer boba­gens e não tenho assessoria que me impeça. O mesmo não se pode dizer de Paul Lapine, o prestidigitador. Que está começando a enfrentar, lá fora, o mesmo nível de rejeição nos meios literários de que já desfrutava por aqui. A ABL ainda se arrependerá de tê-lo eleito, mas não antes de arrepender-se de ter eleito o Merval.

URUBUSERVAÇÕES: Não é curioso que a ABL eleja com tanta facilidade polí­ti­cos e personalidades de direita, mesmo com nulo valor literário (além dos cita­dos, a Academia também já agraciou um general da Junta, o Aurélio Lira Tava­res, mas ignorou solenemente o Carlos Drummond de Andrade, que, afinal, era comunista).

Utilizei pseudônimos poliglotas para o autor em questão por duas razões. Pri­meiro porque ele é mais reconhecido por vender no mundo inteiro do que pelo valor de suas obras. Segundo que ele disse as bobagens que disse para se pro­mo­ver, obviamente, e eu não quero ajudar a encher a sua bola, nem mesmo se isso encher a minha também. Na qualidade de amador, reservo-me o direito disso.

30
Jun 12
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar | ver comentários (4)

Não me refiro à educação escolar, essa que sucessivos governos parecem querer dificultar, mas à educação cidadã e humana, que cabe às famílias e a cada um de nós. Esta é a que faz mais falta, porque se trata da que não precisa de grandes investimentos, nem de grandes construções. Não dispende energia, não move terras e céus, não cria dívidas e nem polui. Não custa livros, não consome dinheiro, não requer transporte. Mas apesar de ser tão barata em termos econômicos, é caríssima em termos de cuidado e de carinho — e cuidado e carinho parecem ser justamente os insumos que mais estão em falta no mundo do tchu e do tcha, do tchan e do Telò. Tem muita gente por aí que sabe fazer o lelelê, mas nada mais.

Tudo isso me vem à mente depois de ter ido assistir à festinha junina da escola da minha filha mais velha.

O evento até que foi bem organizado: tinha seguranças, som profissional, cantina produzindo os salgados fresquinhos, o guichê de fichinhas tinha troco, os banheiros eram bons e as crianças estavam muito bem ensaiadinhas. Vergonha foram os pais.

Apesar de ser evidente a falta de espaço do recinto, logo no começo se verificou que um canto da quadra, mais próximo da entrada, ficou atolado de gente, enquanto o canto oposto ficava vazio. Todo mundo querendo pegar o «melhor lugar» se amontoava junto à passagem, impedindo a entrada e saída dos outros, de modo que não apenas era difícil aos recém chegados verem seus filhos dançando a quadrilha, mas era também difícil para quem já estava conseguir enxergar alguma coisa através do mar de cabeças e braços erguidos com câmeras desesperadas para tirar uma foto qualquer.

Sucessivos pedidos da direção através do microfone foram em vão: ninguém se movia e a muvuca aumentava. Começou a haver acotovelamentos, alguém xingou palavrões altos (em um ambiente escolar, numa festinha de crianças, por Júpiter!). Somente quando a diretora ameaçou pedir aos seguranças que abrissem caminho foi que alguns «educados» concordaram em desobstruir a entrada e passar para os fundos da quadra.

A luta seguinte foi para retirar de dentro da própria quadra os pais desesperados por fotos dos filhos dançando. Tanta gente tinha entrado lá com câmera na mão e merda na cabeça que não havia espaço para as crianças dançarem. Novamente foram necessários apelos repetidos da direção da escola e os pais só se tocaram de lá quando novamente se ameaçou chamar os seguranças.

Liberada a quadra, a direção da escola, desistiu de tentar organizar o resto, pois já havia dito algumas coisas bem pouco elogiosas na tentativa de convencer os pais a abrirem espaço — como, por exemplo, sugerir que eles precisavam dar exemplo para seus filhos ou que a escola era um ambiente de respeito e não um lugar para se dizer palavras chulas e cometer agressões. O resultado foi um verdadeiro caos em torno da quadra, com gente se empurrando e se embicando como dava. Há um antigo axioma da ciência da organização que diz que para todo corredor estreito existe um imbecil disposto a empilhar coisas lá, ou obstruí-lo ele mesmo. Havia muitos destes no local, que, em vez de procurarem um lugar amplo para manter sua conversa ou paquera, ficavam parados no corredor, ainda por cima fazendo cara feia para quem vinha tentando passar. E cada turma que concluía seu turno na quadrilha gerava um tropel de crianças e pais que se espremiam pelas passagens apertadas com o desespero de quem está prestes a cagar nas calças. Essa era a hora em que os imbecis do corredor se sentiam pisoteados ou acotovelados e xingavam ou reclamavam da falta de educação alheia.

Nos lugares amplos a situação não era muito melhor. Onde não houvesse luz direta havia casais dando amassos. Caramba! Em um ambiente escolar? Por que esses animais vão se esfregar pelos corredores de uma escola primária? Não dá para satisfazer o cio em outro lugar, ou esperar para depois da festinha junina das crianças?

Para completar o drama, a escolha das músicas foi de uma lástima terrível. Para uma festa de crianças dançando quadrilha resolveram tocar estas porcarias breganejas que só falam de beber cachaça, fazer lelelê, querer tchu e tcha e coisas piores. E a gente que dizia que a Xuxa era uma influência perniciosa para os «baixinhos» por causa de seus shortinhos. Que valores está transmitindo uma escola que toca numa festa infantil uma música que diz:

Ela chega no baile faz a galera delirar Mascando chiclete doidinha pra namorar De saia curtinha só pra provocarE deixa a macharada delirando sem párarEla dança mexe mexe eu não vou aguentar.Eu vou beber cachaçaEu vou tomar méEu vou encher a cara por causa dessa mulher.

Muito educativa esta escolha, para acompanhar a quadrilha das crianças do segundo ano, todas na faixa dos sete ou oito anos de idade. Elas vão crescer sabendo que a «macharada» delira sem parar quando uma mulher chega de sainha curta no baile, «doidinha para namorar», e que para isso a referida «macharada» vai tomar cachaça.

Eu poderia escrever vinte páginas de lamentos sobre as coisas que pensei e senti, mas chega que me dá nojo. Alguns vão dizer que minha reclamação é «puritana» e que «é isso que as crianças encontram na sociedade em que vivem», mas a escola não é «a sociedade», ela precisa ser, e deveria ao menos pretender ser, um microcosmo de excelência, um lugar melhor do que a sociedade, onde se ensina aos pequenos um mundo ideal, que sonhamos que exista para eles, já que não existiu para nós. Não é lugar de endossar o mé que a «macharada» toma por causa de mulheres doidas de sainha curta, mas de ensinar justamente estas crianças a perceberem a brutalidade, a grossura e a estupidez que são necessárias para que uma pessoa conviva com essa música sem revoltar-se.

Enquanto nossa escola toca nas festinhas juninas infantis uma trilha sonora que não tocava nem em puteiro até há bem poucos anos, as verdadeiras tradições juninas são esquecidas: as crianças dançaram em estilo country.


09
Mai 12
publicado por José Geraldo, às 22:30link do post | comentar | ver comentários (1)

Uma verdade sobre a qual pouco se reflete é que existe, de fato, uma diferença abismal entre ter a capacidade de fazer alguma coisa e saber fazê-la bem. Em geral as pessoas estão mais preocupadas em conseguir fazer do que em passar além disso e fazer bem. É um tipo de «estética punk» que valoriza mais a «atitude» do que a habilidade. Os punks, como se sabe, eram músicos que tinham inveja do dinheiro que ganhavam bandas como o Led Zeppelin e o Yes mas, não sabendo tocar nem a décima parte do que o Steve Howe fazia com o pé esquerdo enquanto via televisão, fizeram um ataque calhorda a esses grupos acusando-os justamente de terem se afastado da juventude por tocarem uma música «elitista» e ganharem rios de grana com ela. No fundo o que eles chamavam de «elitismo» era a capacidade de tocar bem os seus instrumentos.

Os punks não foram os inventores do despeito — apenas os seus mais conhecidos e bem sucedidos praticantes nas últimas décadas — mas uma ideia, quando solta no mundo, ganha asas e cresce até chegar a lugares onde o seu criador original nem sonhava. Imagino que alguns músicos dos primórdios do movimento punk tenham aprendido a tocar melhor desde então e passaram a respeitar sujeitos como o Jimmy Page; ao mesmo tempo em que devem sentir arrelia nos dentes ao ouvir boa parte da música de hoje — e que só existe porque muita gente entrou pelo buraco que os punks arrombaram no muro que separa a mediocridade do sucesso. Exemplos dessa evolução não faltam lá fora: Robert Smith, do The Cure, não suporta ouvir o primeiro disco de sua banda, e David Byrne, do Talking Heads, largou a música e virou produtor (sendo responsável pela divulgação nos EUA do trabalho de gente como o nosso Tom Zé).

Estes dois parágrafos iniciais, que certamente só farão pleno sentido para quem entende algo de música, servem de introdução para uma constatação que me sobreveio hoje ao receber mais uma «revista eletrônica» (recebo umas seis ou sete por semana, algumas anexadas ao e-mail, outras com uma educada hiperligação me convidando a baixá-la de um servidor na internet). A constatação de que, no ramo das publicações amadoras, ninguém mais se importa em fazer bem feito. Pode-se fazer feio, que é falta de educação dizer isso. Só que eu sou mesmo mal educado e não me acanho de dizer: a maioria das publicações independentes padece de uma feiura que dói nos olhos.

Claro que eu não espero que alguém que faz uma revista amadora tenha capacidade de dar-lhe um acabamento do nível de uma revista semanal publicada por uma grande editora. Não há tempo para isso e certamente os editores amadores não têm grana para comprar os programas profissionais necessários para tanto (e mesmo que os obtenham pela via da pirataria, não terão tempo para aprendê-los até chegarem ao mesmo nível de um profissional gráfico). Mas existem certos erros básicos, que poderiam ser evitados com sensibilidade (para observar como são feitas as revistas profissionais), alguma pesquisa sobre o tema (para conhecer o bê-a-bá da formatação de documentos) e uma certa dose de talento (que nem todo mundo tem). Sem sensibilidade, talento e conhecimento; o resultado é que as revistas eletrônicas amadoras são frequentemente feias, e feias de doer, e ficam mais feias ainda se o leitor resolver imprimir para ler em papel ou distribuir (o que algumas delas chegam a implorar que o leitor faça). Eu acho que não existe desculpa para isso: basta pensar no que significa «amador». Se o amador é alguém que «ama» fazer aquilo que se propõe a fazer, então é de se esperar que o amador se dedique. Quem ama se dedica. E quem se dedica procura o conhecimento, trabalha a sua sensibilidade, aprimora o talento. Com bastante conhecimento e alguma sensibilidade, compensa-se bastante a insuficiência do talento, por exemplo. Portanto, ainda que seja desculpável a falta de talento, nada desculpa a ignorância. Nada. Principalmente nos dias de hoje, em que se pode achar informação sobre quase tudo na internet.

Eu mesmo já abordei em vezes anteriores (Formatando Páginas com a Medida Áurea e Medida Áurea e Páginas Confortáveis) alguns temas relacionados à formatação, sempre ressaltando que as «regras» de formatação de documentos não são arbitrárias, mas baseadas em boas práticas que resultam em textos mais agradáveis de ler. Por exemplo: existe uma ciência na quantidade máxima de letras por linha e de linhas por página, uma ciência que, inclusive, se baseia na fisiologia, que explica o funcionamento do olho humano. Mas o amador dirá que essas «firulas» não são importantes, que o importante é ter realizado algo. É um raciocínio que seria respeitável em um mundo onde poucos fizessem alguma coisa. Com tantas facilidades oferecidas hoje pelos computadores, realmente parece haver muita gente fazendo e-zines amadores. Diante desta realidade este raciocínio é uma condenação à mediocridade. Por favor não incluam textos meus neste tipo de publicação. Nos fanzines de antigamente, penosamente xerocados, muitas vezes escritos à mão por falta até de máquina de escrever, havia lugar para a feiura e eu não me importava de ser publicado ali. Mas nesses de hoje, produzidos aos montes usando qualquer editor de textos, a feiura é apenas falta de vontade de evoluir. E me importa aparecer em um trabalho feito por alguém que não se importa com a qualidade.

A estética do «faça você mesmo» impede que o amador evolua. O simples ato de fazer parece bastar. Não há um objetivo ulterior, de superar, de melhorar, de fazer algo que simplesmente faça a diferença em um mundo tosco, onde cada vez mais as pessoas pensam menos em realizar e mais em «fazer». Um mundo no qual os amadores não amam o que fazem, pois não estão ganhando nada com isso. Um mundo, em suma, no qual o amor verdadeiro só é oferecido por aqueles que cobram por isso. Triste mundo esse, em quesó as prostitutas fazem amor direito. Esta frase final eu dedico ao meu amigo Ronaldo Roque, que a inspirou.


14
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 21:45link do post | comentar | ver comentários (1)

Dei-me conta disso por causa de um desses movimentos literários altruístas e anticapitalistas que surgiram por aí. Acho que o nome é «Doe um Livro», ou coisa parecida. Eu estava esperando em uma fila de banco, ocasião em que o bom gosto fica seriamente comprometido e você pode se pegar lendo com interesse o verso de sua fatura de cartão de crédito ou uma brochura publicitária esquecida por um cliente que foi embora. Estava eu justamente desesperado em busca de letras para ler quando uma moça bonita, apesar do estranho piercing negro em seu nariz, que parecia um troço de catarro, me ofereceu um livro.

— Não, obrigado — recusei educadamente como minha mãe me ensinou a fazer da primeira vez para toda e qualquer oferta.

— Por favor — insistiu a garota com um sorriso de teclado de piano, ou melhor, de sanfona, porque o seu rosto não parava quieto em cima do pescoço.

— Mas… você está… me dando o seu livro…

— Oh, sim. Por favor, não estranhe.

Então ela me falou uns três ou quatro minutos sobre seu movimento de difusão da leitura, sobre a ideia de comprar o livro, ler e depois dar para alguém ler. Acho que era «Esqueça um Livro», ou algo assim, esqueci…

Recebi o livro, cuidadosa e femininamente encapado em plástico vermelho, com uma falta de jeito provinciana. Acho que jamais na minha vida um estranho me dera qualquer coisa além de motivos para desconfiança.

Mas enquanto o recebia notei o olhar fuzilante do segurança em nossa direção, verdadeiro agente da repressão ignara, pronto para confiscar a obra ou para dizer que tínhamos de consumi-la em leitódromos cuidadosamente controlados. Ele veio andando em nossa direção, deixando balançar na cintura o grosso cassetete preto, mais volumoso que os braços de cigarra da garota sorridente e irriquieta. Que se levantou apavorada, uma traficante surpresa pela visita da viatura. Ela se misturou entre os clientes, aproveitando-se de sua estatura de ninfa, e nunca mais a vi.

O guarda chegou perto demais, e me abordou com uma voz de tuba:

— Aquela garota estava incomodando o senhor?

— De forma alguma, ela só me deu iss…

Ainda estava com metade de «isso aqui» dentro da boca e ele já arrancara o livro de minha mão.

— Eu fico muito revoltado mesmo com esse tipo de coisa. É um absurdo completo!! A barbárie tá tomando conta do país, a imundície se alastra pelas ruas e qualquer cidadão de bem está exposto.

— Mas ela só…

O guarda arrancou a capa do livro com violência, usando seus dedos de elefante. Só então percebi do que ele me salvara, quase em lágrimas, agradeci-lhe efusivamente como se ele fosse um irmão que eu não vira por vinte anos:

— É mesmo vergonhoso que a gente não possa esperar em paz na fila do banco sem correr o risco dessa violência — eu lhe disse.

O mundo de Farenheit 451 seria terrível. Baixos espíritos literários são mais memorizáveis do que o Grande Sertão: Veredas, e para malus1 adicional a presença de um declamador de romance de auto-ajuda na sua vizinhança é mais agressiva do que a presença de um romance do Mago na estante, presente da namorada que acha lindo você ser escritor e pensou que lhe estava agradando muito com aquela obra cheia de verdades.2

1 Um «neolatinismo» inventado para ser o antônimo de «bonus».

2 O autor sugere que este conto seja lido de forma iterativa, retornando ao começo depois de ler o último parágrafo, e assim sucessivamente até o leitor ter a certeza de que realmente passou a odiar o autor.


14
Jan 12
publicado por José Geraldo, às 15:57link do post | comentar

Reconhecidamente autor de obras insuportáveis para quem efetivamente lê, em vez de comprar para enfeitar estante ou para ter «lições de vida», Paulo Coelho se tornou o pivô de uma curiosa briga na internet nas últimas semanas. Eu, como sempre, marido traído em matéria de notícias culturais, fiquei sabendo só agora. Em uma postagem no Twitter, o Mago chamou de insuportável o novo livro de Mário Sabino. Achei a atitude do mago bastante imoral, embora o livro criticado seja mesmo, provavelmente, difícil de suportar. Para que o leitor possa entender as razões de meu julgamento, vou fazer um apanhado da história.

Mário Sabino é um jornalista brasileiro. Como muitos jornalistas, tem uma plataforma gratuita para lançar-se como autor literário (mas provavelmente vociferou contra a derrubada da exigência de diploma para o exercício do jornalismo e não aceitaria que autores literários tentassem a mão no jornalismo). Mário Sabino, ao que parece, nunca se notabilizou como repórter, mas chegou a cargos de mando relevantes em publicações como IstoÉ e, até recentemente, Veja. É um cara de ultra-direita (se for sincero), ou totalmente prostituído para a direita (caso não seja). Não tenho problemas com sua ideologia: apenas discordo antipodamente dela (em qualquer das hipóteses). Não estou aqui para falar de sua postura profissional, e nem sequer de suas qualidades de autor, mas do entrevero Sabino/Coelho. Quem não quiser ler a minha versão, pode procurar no Google, que está bombando com o assunto, ou ler a resenha do Luiz Nassif, um jornalista que, a julgar pelo que escreve, deve ser uma ótima pessoa (não o conheço pessoalmente).

Na qualidade de editor-chefe da revista Veja, Mário Sabino sofreu vários tipos de críticas quanto à sua conduta profissional. Estas críticas não me interessam. O que me interessa é que este período de sua vida coincidiu com o início de sua carreira literária. Tal como eu, Sabino é um late bloomer, ou seja, só começou a publicar tardiamente. A diferença é que eu publico em editora pequena e tenho quase nula repercussão. Sabino, devido ao poder emanado de sua condição de manda-chuva editorial de uma das principais publicações do país, publicou pela Editora Record. Tal como muitas celebridades, vendeu muito, mais pelo nome conhecido e pela divulgação recíproca entre seus pares. Provavelmente teria vendido algumas dezenas de exemplares apenas, se em vez de editor-chefe da veja ele fosse editor-chefe da Folha de Cabrobó ou da Gazeta Leopoldinense. É preciso desconfiar do sucesso que é alimentado pelo poder.

Pelo que pude verificar, Sabino publicou quatro livros durante sua fase na Veja (não sei e não quero saber se publicou algum antes): dois romances e dois volumes de contos, a saber:

O Dia em que Matei Meu Pai
Romance, traduzido para italiano, espanhol (Argentina), francês, holandês, inglês (Austrália e Nova Zelândia), coreano e romeno. Republicado em Publicado em Portugal. Ou seja: deve ser um livro razoável, ou não teria atraído tanta atenção. Se bem que ficou notoriamente fora de países importantes do mundo literário, como Espanha, México, Rússia, Polônia e Alemanha, e certas traduções foram publicadas na periferia (em inglês, na Austrália e Nova Zelândia, em espanhol, na Argentina). De qualquer forma, eu estaria rindo de orelha a orelha se tivesse tido repercussão igual.
O Antinarciso
Coletânea de contos, vencedor do Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional.
A Boca da Verdade
Coletânea de contos. Ao contrário dos dois livros anteriores, nem foi traduzido no exterior e nem ganhou prêmio.
O Vício do Amor
Romance, publicado recentemente, e pivô da crise com Paulo Coelho.

Na época em que era editor-chefe da Veja, os livros de Sabino foram bastante elogiados na imprensa brasileira. Aliás, os elogios e a vendagem de tais obras foi alvo de uma controvérsia, com suspeita de manipulação da lista dos Mais Vendidos, além de certas relações inadequadas no mercado editorial.

Nada disso importa, porém, se considerarmos que, por medo ou indiferença, os livros de Sabino eram elogiados (ainda que esses elogios fossem ouvidos apenas pelo eco), foram vendidos e foram promovidos na grande imprensa. Paulo Coelho, por exemplo, jamais se manifestara sobre o caso. E tinha direito, visto que ser autor de obras insuportáveis não impede um crítico de detectar a insuportabilidade alheia. Como meu dentista certa vez disse: «mau hálito você só sente o dos outros». Falta de talento é uma espécie de «mau hálito», mas, em nome da higiene universal da arte, não devemos esperar que somente os de boca limpa tenham o direito de se incomodar com o hálito alheio.

Acontece que Mário Sabino foi demitido (ou demitiu-se) da Veja no final do ano, em circunstâncias ainda misteriosas. A ser verdade o que se especula por aí, sua saída, se por demissão, foi em condições tão desfavoráveis que dificilmente ele ainda terá um futuro no ramo. Espero que tenha uma boa poupança. E não demorou para que se manifestassem alguns que permaneceram em silêncio durante todo o tempo em que Sabino detinha o poder fulminatório da Veja em suas mãos. Veículos de imprensa, como o Valor Econômico (que é um jornal de economia, não de literatura) e a Folha de São Paulo não perderam tempo em atacar-lhe justamente no que um autor (bom ou mau) tem de mais sensível: a sua auto-estima de criador. Depois que o inimigo é derrotado, aparecem muitos heróis para ir no campo de batalha cuspir nos cadáveres, dizia um antigo ditado polonês (ou iídiche, não consegui descobrir). Além de perder subitamente seu poder de editor-chefe da maior revista deste país, Sabino ainda foi chamado de vários adjetivos.

E justamente Paulo Coelho, notório autor de livros insuportabilíssimos, tuitou que o último livro de Sabino seria insuportável. A julgar pelas resenhas, deve ser mesmo. Mas por que razão será que Paulo Coelho deixou para falar mal de Sabino apenas depois de ele ter perdido seu emprego na Veja?

Em tempo, se alguém quiser tuitar que meu livro é insuportável, favor deixar o link do blogue e da editora. E se tiver mais artigos interessantes, talvez eu ponha no blogroll.

P. S. — não se trata aqui de ficar implorando por atenção. A questão é que, para um autor, a divulgação de seu livro é sempre interessante, mesmo que seja uma divulgação negativa. A literatura é uma das únicas profissões na qual um renome, mesmo horrível, ajuda a vender. Além do mais, ao contrário de certos autores, eu já desencanei de minha obra, e vejo os comentários, mesmo os mais críticos, com distanciamento. Quem não consegue esse distanciamento (e parece que o Mário Sabino ainda não consegue) acaba desestimulando a crítica, ou fazendo com que ela se torne rancorosa.


mais sobre mim
Março 2013
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30

31


comentários novos
Ótima informação, recentemente usei uma charge e p...
Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
Fechei para textos de ficção. Não vou mais blogar ...
Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
Este saite está bem melhor.
Já ia esquecendo de comentar: sou novo por aqui e ...
Essa modificação do modo de ensino da língua portu...
Chico e Caetano, respectivamente, com os "eco...
Vai sair em inglês no CBSS esta sexta-feira... :)R...
pesquisar neste blog
 
arquivos
blogs SAPO