Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
26
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 20:51link do post | comentar | ver comentários (2)
We don't need no education,We don't need no thought control,No dark sarcasm there in the classroom.Teachers, leave them, kids, alone.Hey, teacher! Leave the kids alone.All in all it's just another brick in the wall.
A leitura de Preconceito Linguístico: o que é e como se faz — obra seminal de Marcos Bagno — me abriu os olhos para algo que eu intuía, mas nunca articulava: o viés de luta de classes que está presente na concepção da língua como algo que precisa ser ensinado ao povo ignorante, ao povo que não sabe falar. Na visão da gramatiquice tradicional, já devidamente desancada por Monteiro Lobato em sua Emília no País da Gramática, o povo é uma espécie de primata pelado que não se humaniza, pela linguagem, se não for à escola, esse laboratório do saber onde o tosco bípede é amestrado naquilo que serve aos objetivos da sociedade capitalista.

Eu já havia sentido na pele esta situação nas vezes em que fora discriminado por falar como um «roceiro», já percebera esta tensão na diferença de prestígio entre o falar de uma região em relação ao de outra. Mas Bagno me abriu os olhos também para uma outra coisa que eu não tinha ainda percebido: que a língua, tal como a falamos, não é uma versão bastarda e manca da Última Flor do Lácio Inculta e Bela. Em vez disso, é um fenômeno novo, coerente, gramaticalizável e perfeitamente útil na boca de quem o usa. A língua que a gente fala é um dialeto do português padrão, que os gramáticos tradicionais querem descongelar da forma em que foi posto ainda no século XIX.

Estas ideias ficaram voejando em torno de minha cabeça durante anos, sem que eu as levasse mais adiante, até o dia em que se acendeu em mim uma centelha de novidade: o dia em que meu interesse por línguas artificiais — eu estudara esperanto ainda na adolescência, embora nunca tivesse aprendido a realmente falar — se uniu às ideias de Marcos Bagno e ao meu orgulho mineiro. Isso aconteceu enquanto começava a escrever um romance — ainda não terminado — intitulado provisoriamente Serra da Estrela.1 Meus amigos +Eduardo Jauch e +Sergio Ferrari são alguns que estão acompanhando o processo.

Enquanto pesquisava para formatar a língua «estropiada» que os personagens de meu romance falariam, comecei a perceber que não era necessária tanta pesquisa, bastava mapear os metaplasmos, arcaísmos, «corruptelas» e outros fenômenos, fonéticos, morfológicos e sintáticos, que ocorrem em meu próprio falar quando não me policio para tentar parecer «educado». Esta constatação foi ainda mais aprofundada quando, ao dialogar com estrangeiros, percebi a facilidade com que eu saía do português castiço e recaía em meu dialeto, ininteligível para eles.

O processo de mapeamento destas características me levou, no fim, a perceber que a gramática do português que tem sido ensinada na escola não é realmente a da língua que falamos. É uma gramática estrangeira para a maioria de nós. Nada é tão alijado do falar do povo quanto uma gramática normativa que ainda emprega segunda pessoa e recomenda a mesóclise. Se esta língua formal está tão longe do falar do povo, por que o nosso sistema de ensino não reconhece isso e adota em seu ensino técnicas pedagógicas adequadas para o ensino de línguas estrangeiras? Seria certamente mais efetivo do que cobrar de pobres crianças que assimilem como «errada» a língua que aprenderam naturalmente e como «certa» uma língua que lhes é imposta pelo sistema de ensino. Crianças mais inteligentes e de auto estima mais alta, como eu modestamente me declaro (e vocês logo entenderão porque), aprendem eficazmente o português padrão sem abandonar o uso de sua língua natural. Crianças menos inteligentes, ou menos talentosas para o aprendizado de línguas, padecerão a vida inteira com a impressão de que falharam em aprender a própria língua. Para elas o português está errado, e é uma língua difícil. Mas elas se enganam: errado está o método, errada está a escola que finge que o povo fala exatamente como nos livros.

Basta que eu passe a escrever empregando convenções ortográficas mais próximas do coloquial e tolerando os fenômenos morfológicos e gramaticais característicos de meu dialeto para que se perceba que não podemos aceitar como dada esta correspondência entre a língua que se ensina e a que se fala. Afinao, a gente nõ fala iguao screve. Cada lugar do Brasio tem um jeito seu de falar. Nõ tá nem errado e nem certo, é só dois jeito diferente de ser e de falar. Na gramática formao tem «concordança» do sustantivo com toda as palavra que ligõ co ele, maes em quaes todo os dialeto do país o plurao fica só no artigo. A diferença entre o L e o U no finao das sílaba é uma coisa que só eziste na gramática e no dicionari, e o povo se entende co isso. As palavra «proparoxítona» é otro pobrema: pelo menos aqui in Minas Geraes isso quaes nõ eziste e o povo assimila as duas última sílaba. «Fósforo» vira fosfo, «música» vira musca. E quano nõ dá para fazer essa mudança, mudam a palavra: nada fica «próximo», maes umas coisa fica perto.

Mudanças léxicas, semânticas, sintáticas, fonéticas, morfológicas. À parte as semelhanças restantes, as diferenças já acumuladas são suficientes para se afirmar, sem muito medo de errar, que entre os dialetos brasileiros e o português padrão já existe mais diferença do que entre as formas padrão do português e do galego, tidos como línguas diferentes.

Não quero aqui argumentar que devamos sucumbir a estas forças (elas vencerão de qualquer forma, com o tempo), mas que está mais do que na hora de entendermos que o povo não fala «errado», apenas fala uma variante linguística não padronizada e não gramaticalizada (posto que não há gramáticas e nem dicionários desses falares coloquiais). Precisamos respeitar o povo, deixar de vermos nele um primata pelado que precisa «aprender a falar» e enxergar nele o que é, um cidadão pleno de direitos, como qualquer outro, que apenas calha de falar diferente.

Não é necessário, claro, abolir o ensino do português padrão, como algum boçal leitor dirá que eu estou defendendo porque não foi letrado o suficiente para ler até aqui, apenas modificar o modo como é ensinado, para que deixe de se basear na humilhação inútil dos alunos com a imposição de um padrão artificial como natural. Ensinar o português padrão com a noção de que ele é diferente daquela língua que o menino fala e que esta língua que a escola ensina, apesar de não ser «melhor» do que a outra, é a língua adotada pela nação, como traço de união de todos os brasileiros.

Quando se popularizar esta consciência de que o português padrão é um fenômeno alheio à realidade imediata do aluno, será mais fácil ensinar-lhe a gramática pátria. Não será preciso, intolerantemente, dizer-lhe que «assim é que é certo», apenas que na língua padrão é diferente. No dia em que não for mais necessário usar a língua padrão como ferramenta de subjugação das identidades regionais ela será até mais efetiva para unir os diversos povos que formam o povo brasileiro.

1 Nome que vai aos poucos se tornando definitivo pelo costume.

25
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 23:10link do post | comentar

O amigo leitor que se pergunta o porquê dessa postagem saiba que se trata de uma descoberta notável, que me salvou do ostracismo um dos melhores contos (quase uma noveleta) que eu jamais escrevi. Terminada a história, maravilhosamente ambientada nos «sertões do leste» de Minas Gerais, em um momento indefinido do Segundo Império (vários elementos na história indicam que se trata de um contexto pós-regencial), eis que me dei conta de um imperdoável e imenso anacronismo: o desfecho da história só fazia sentido mediante a atuação de uma força policial reconhecível como tal, do uniforme ao cavalo branco. Só que várias fontes consultadas me disseram que não havia tal força de segurança disponível naquela época e lugar. Fiquei muito chateado com essa descoberta, pus de lado a versão inicial da história, sem sequer fazer a revisão gramatical, e fui seguir com a vida. Hoje, porém, durante uma lida casual na Wikipédia, seguida de uma consulta ao Pai Google da Califórnia (que traz a informação desejada em 0,03 segundos), descobri que de fato havia.

A sensação que tive foi a melhor possível. Foi como descobrir que um velho amigo morto está de fato vivo. Agora posso concluir a história tendo a certeza de que o conto não ficará anacrônico. Ainda bem que não segui as dicas de um famoso blogueiro, que me sugeriu transformar a ação policial em algum tipo de evento sobrenatural (sei lá, com anjos ou demônios solucionando o conflito) ou realocar a história para o século XX. No primeiro caso eu teria criado um brutal deus ex machina (um dos cinco maiores defeitos que, em minha opinião, podem vitimar uma boa história) e no segundo caso teria que reescrever praticamente tudo — e muita coisa não faria sentido em outro momento de nossa história.

Conforme minhas fontes, citadas abaixo, havia uma polícia permanente na província de Minas Gerais, à parte as guardas municipais (subservientes aos políticos locais e, portanto, inúteis para os fins da história) e a Guarda Nacional (basicamente desmobilizada e inepta), apenas era uma força pouco numerosa e de ação limitada à capital e seus arredores (Batitucci, 2010). Tal força, porém, cujo efetivo sempre ficou em torno de 400 a 600 homens (entre praças e oficiais), serve perfeitamente para os fins da história que eu contei. Principalmente porque, em casos de necessidade, poderia incorporar oficiais do exército (Uruguai, 1865) e alistar voluntários temporários, os chamados «pedestres».

Embora tal força nunca tenha estado estacionada em qualquer parte de Minas Gerais a mais de vinte ou trinta quilômetros do Palácio Provincial, então localizado em Ouro Preto, não é descabido imaginar que ela pudesse ser destacada para missões excepcionais, sob o comando de um pequeno grupo de oficiais do exército de linha e aumentada, se necessário, por alguns voluntários — mas nunca por membros das guardas municipais de outros municípios, que por lei nunca podiam ser mandados em missão fora da localidade em que residiam (Vellasco, 2005). Apenas não houve, durante o Segundo Império, nenhum fato que justificasse tal medida excepcional. Ora, como a minha história é uma obra de ficção, eu tenho toda permissão para imaginar um tal evento.

Ademais, existe uma outra possibilidade: a do deslocamento de um corpo de Voluntários da Pátria, rumo ao porto do Rio de Janeiro e à Guerra do Paraguai. Tal corpo de voluntários, sob o comando de um oficial do exército, poderia ser tentado a interferir em um caso tão extraordinário quanto o que ocorre em minha história.

No primeiro caso a força policial seria enviada para resolver uma grave violação da paz civil. No segundo, policiais militares de passagem seriam envolvidos nos eventos. A segunda hipótese é historicamente muito mais verossímil do que a primeira, mas eu ainda estou considerando a possibilidade de mitificar um pouco a história mineira e imaginar uma força policial provincial combatendo o mal nos rincões do estado.

Nos próximos dias estarei revisando o conto, para publicação aqui no blogue. Se você tiver alguma sugestão a fazer sobre qual opção seria melhor, ou se tiver mais dados sobre a história da segurança pública em Minas Gerais, por favor deixe um comentário.

Para terminar brindo meus leitores com um parágrafo da obra do Visconde do Uruguai, exibindo a ortographia etymologica e também uma série de características coloquiais do português brasileiro, hoje proibidas pela gramática (e tem gente que nega que os nossos gramáticos sejam reacionários).

Posto que o acto addicional não se referisse a um typo determinado, nem declarasse o que se devia entender por força policial, comtudo pela significação da palavra, e idéa do tempo, parece que os seus autores tinhão em mente, uma força cidadôa e paisana do que militar propriamente e por isso mais propria para a policia, como é a força policial Ingleza e Franceza que não é militar, e formada e estabelecida em cada Municipio, para auxiliar suas autoridades policiaes.

Em lugar dessa força civil, quasi paisana, tem muitas Assembléas provinciaes criado exercitozinhos, e Corpos policiaes nas Capitaes das provincias, apparatosos, com Estados maiores, musicas, reformas, e muito dispendiosos apezar de serem os Soldados mesquinhamente pagos.

Grande parte da força desses Corpos é conservada nas Capitaes, ás vezes para apparato e falta em muitos Municipios a indispensavel para a guarda das cadêas, prisão de criminosos, serviço que vem a recahir sobre a Guarda Nacional.

A força publica destinada a defender o Imperio de seus inimigos, a manter a segurança e ordem publica, a fazer executar as leis e as ordens das autoridades compõe-se entre nós:

  • Do Exercito ou tropa de linha
  • Dos Corpos policiaes da Côrte e provincias
  • Da Guarda nacional
  • De Corpos de Pedestres em alguns lugares

A tropa de linha é evidentemente impropria para a policia das localidades, e para a execução das ordens das autoridades civis no descobrimento, perseguição e prisão de criminosos. Demais todas as vezes que é muito fraccionada, perde a instrução, a disciplina e desmoralisa-se.

Pela sua composição, principalmente quando são recrutados, dá-se o mesmo inconveniente nos Corpos policiaes, que são hoje uma especie de tropa de linha.

Salvo raras excepções, por motivos cuja exposição seria mui longa, pouco serve a força de linha entre nós para manter a policia nas localidades e executar ordens das autoridades. A força policial pelo modo por que está composta e organisada é insufficiente.

Em muitos lugares a maior parte do serviço policial vem a recahir sobre a Guarda nacional, isto é, sobre aquella parte da Guarda nacional que pela sua pobreza e posição não encontra meios de esquivar-se a um serviço desigual, irregular e frequentemente arbitrario, muitas vezes extremamente vexatorio, e por isso feito de má vontade e mal.

É demais o serviço policial um terrivel instrumento eleitoral para constranger a população desvalida a votar no sentido que convém aos prepotentes do lugar, que ordinariamente são os chefes da Guarda nacional.

Não tive tempo para fazer o cálculo exacto, mas creio que se juntarmos á despeza annual  que se faz com o Exercito, aquella que exigem o Corpo policial da Côrte e o das provincias, a Guarda nacional, etc. veremos subir a somma a a mais de 46 ou 47 mil contos. Veremos mais apparato que serviços reaes. É enorme a despeza e o vexame, e não temos nem Exercito, nem Guarda nacional e nem Policia que mereção esse nome. Temos apparato. Quanto á mim a organisação da força policial nas provincias é viciosa. Em lugar de centralisal-a toda nas Capitaes, conviria localisal-a.

Como se depreende dos parágrafos acima, muita coisa pode ter mudado nesse país, porém não a atração de nossos governantes pelo «apparato» em vez dos «serviços reaes». Tampouco mudou a estrutura das polícias estaduais, esses «exercitozinhos», como as chamou o Visconde do Uruguai. Moldadas a partir do Exército nacional, essas forças tinham mais papel cerimonial, para satisfazer o ego dos presidentes de províncias, do que efetivo. Podem ter ganhado mais poder com o tempo, mas continuam esse ser híbrido entre o exército e o serviço público de segurança. Militares a soldo do estado, mas teoricamente sob o comando do Exército nacional. Um verdadeiro monstro de Frankenstein.

O que o Visconde do Uruguai não diz, possivelmente porque não conseguiu ter esse discernimento, é que o estacionamento da forças policiais nas capitais, e a sua própria falta de efetivos, refletem os resultados da concentração de poder em torno dos «prepotentes dos lugares». Os coronéis da Guarda Nacional, chefes políticos e militares de seus municípios, não desejam uma força policial que não esteja sob seu comando e, por isso, repelem as iniciativas de policiamento mesmo quando necessárias. Em 1847 a província de Minas Gerais tentou estacionar trinta praças no vale do Rio Mucuri, para garantir a segurança das embarcações que utilizavam esta importante hidrovia, por causa da ocorrência de roubos numerosos na região. Os coronéis locais, incomodados com a ingerência provincial, denunciaram a iniciativa ao Conselho de Estado do Império, que eventualmente a julgou inconstitucional (Uruguai, 1865:175).

Nesse ponto o leitor deve estar a se perguntar: como tal força poderia ser decisiva nos graves eventos que meu conto narra se ela não era tolerada pelos coronéis nem para prender piratas fluviais no vale do Rio Mucuri? A resposta é simples: ela seria tolerada se os próprios coronéis a pedissem. Esse é o contexto de minha história: um grupo de coronéis, incomodado com os eventos que formam o pano de fundo do conto, solicita ao presidente da província um destacamento de praças profissionais, para auxiliar seus próprios voluntários civis na tarefa de exterminar o mal. E pronto, eis que temos um belo oficial em seu cavalo branco, portando um uniforme com quepe e dragonas.

A única coisa que me falta é descobrir como seria o uniforme de tais soldados. O conto sai quando eu deslindar isso. Por enquanto, por tudo que li, imagino esses homens vestindo dólmãs azuis com golas pretas e punhos da mesma cor, dragonas douradas nos ombros, calças azuis de brim com risca preta acompanhando o lado externo, botas de cano alto, cintura envolvida por uma faixa verde e amarela e vermelha (cores do brasão imperial). Os soldados usam quepes simples, de bico reto. Os oficiais usam quepes altos com penachos. Quepes sempre azuis, com detalhes em preto ou dourado. O comandante, e talvez algum capitão ou tenente, usa uma faixa diagonal sobre o peito, portanto insígnias de comando. O armamento seriam espingardas para os praças, fuzis para os oficiais. Todos teriam garruchas (pistolas antiquadas). Os praças teriam punhais de lâmina comprida (dois palmos ou mais) e os oficiais teriam espadas cerimoniais. Os voluntários da Guarda nacional seriam sem uniforme e seus oficiais também usariam azul, só que seus uniformes seriam mais elaborados: casacos azuis (não dólmãs) e calças brancas. Polainas em vez de botas. Quepes e dragonas mais elaborados. Imagino interessantíssimas interações entre essas duas forças tão antagônicas e de forças políticas tão díspares. Quem comandaria. Obviamente teria de ser um oficial do Exército, ou os oficiais da Guarda nacional não obedeceriam. Mas este oficial estaria a soldo da província (ganhando menos) e usando um uniforme menos vistoso e de menor prestígio. Acho que isso não vai acabar bem…

Referências

BATITUCCI, Eduardo Cerqueira. “A evolução institucional da Polícia no século XIX: Inglaterra, Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada”. Revista Brasileira de Segurança Pública. Ano 4, número 7, Ago/Set 2010.

LINO, Cássia Renata Scherer. “O Império das Polícias: Federalismo e Estado Unitário no Império do Brasil – 1831-1850. S.l., S.d.

SOUZA, Paulino José Soares de (Visconde do Uruguai). Estudos Práticos Sobre a Administração das Províncias no Brasil, Primeira Parte, Tomo II. Rio de Janeiro: Garnier, 1865.

VELLASCO, Ivan de Andrade. “A Polícia Imperial: Notas Sobre a Construção e a Ação da Força Policial (1831 –1850)”. In: XXIII Simpósio Nacional de História. Londrina:2005.


13
Jan 13
publicado por José Geraldo, às 10:57link do post | comentar
O prédio das repartições municipais era bonito, histórico, razoavelmente bem depredado e detestável. Entrei pela porta de madeira bruta, entalhada a machado, em busca do departamento de arrecadação do imposto predial e territorial urbano, onde deveria tentar obter, pela quarta vez em trinta dias, uma certidão negativa que me habilitasse a hipotecar a minha própria casa para poder custear o tratamento da doença terminal de minha mulher. Um dia falarei sobre isso, sobre a obrigação que temos de dilapidar o futuro dos filhos para fingir que tratamos da morte inevitável dos vivos, tudo porque a sociedade nos culpará se sobrarmos razoavelmente ricos depois de uma desgraça na família.

Impus ao meu rosto a melhor seriedade que ainda podia fingir, mascarando bem o alívio de saber que o sofrimento da querida Estela não duraria muito mais, e talvez nem fosse preciso usar a certidão. Somente assim, preparado para o luto, eu poderia transitar entre os conhecidos sem olhares reprovadores.

A sala do departamento de arrecadação era caracterizada pelas cadeiras desconfortáveis, de madeira nua e irregular, e pelo verniz meloso que estragava as calças de quem se sentasse durante muito tempo. Ainda teríamos muitos meses a esperar de pé até que os pobres peões de roupa suja e costas cansadas fossem curtindo o excesso de verniz até aquela cobertura caramelenta se transformasse numa sebosidade escura e segura. Lá dentro não havia senão um ventilador, que girava exclusivamente pelo amor de gastar alguma eletricidade, visto que a velocidade de grama crescendo com que girava não servia nem para refrigerar o próprio mecanismo. A sala de espera, dotada do conforto luminoso de amplos janelões de vidro que davam para o pôr do sol, estava separada do gabinete do oficial por uma porta que dava para uma sala refrigerada. O expediente começava ao meio-dia.

Ainda achei um lugar para me recostar próximo à parede oposta à janela. Se fosse atendido rápido ainda teria a bênção de não ter que aturar o sol das três horas. Teria ficado recostado lá, em cômodo silêncio, se não tivesse entrado o Rogério Justo, que eu não via há tanto tempo que mal lembrava seu rosto. Ele tinha sido um grande amigo de meu pai quando eu era menino, fora responsável por alguns bons presentes que ganhei de aniversário, e por muitas vezes que ele chegou em casa tarde e com cheiro de cachaça, para desespero de minha mãe. Felizmente meu pai nunca chegara sem dinheiro no bolso. Jogava, mas incrivelmente ganhava sempre mais do que perdia, e sempre voltava das noitadas quite com a despesa: o lucro gasto em bebida e salgadinhos. Andava afastado desde que meu pai se tornara abstêmio e ele não, mas ainda se cumprimentavam quando se encontravam pelo mundo.

Estávamos ainda nos cumprimentando quando Eleonora Gomes entrou, carregando um grosso envelope nas mãos. Tinha as unhas pintadas de rosa claro e um par de óculos em uma armação que combinava tanto com elas quanto com o tom dos sapatos, o tipo de luxo que ostenta cuidado obsessivo com a aparência. Era uma das conhecidas que fizera em minha carreira de representante comercial. Conhecida apenas. Mantenho distância de pessoas complicadas, especialmente as ricas. Levo uma vida simples e bastante sozinha. Gosto assim.

Achei-a bastante tranquila, apesar da recente perda de uma prima e o seu gênio, inalterado. Depois de breves minutos alternando entre respondê-la e ao Rogério, dei-me conta da falta de educação que estava cometendo:

— Desculpem-me a falta de educação, eu nem me lembrei de apresentá-los. Eleonora, esse é o Rogério, amigo de minha família, lá de São Pedro. Rogério, essa é a Eleonora, filha do Joaquim Gomes, lá de Leopoldina.

Eles se cumprimentaram cortesmente, com a urbanidade comercial e neutra que se espera nos dias de hoje. Deixei-os à vontade para darem continuidade à conversa, porque estava mais preocupado com a minha vez na fila do que com qualquer assunto que eles pudessem começar. O sol ia avançando pelo chão, como uma doença que se espalha, e a a fila andava lentamente demais. De vez em quando eu interrompia minha preocupação para dar um ou outro empurrão no assunto. Numa dessas vezes o empurrão funcionou tão bem que eles entraram numa conversa que tardou quase meia hora, e me colocou no meio:

— Você sumiu de Leopoldina, Eleonora.

— Estou agora vivendo em Governador Valadares. Meu marido está trabalhando com mineração por lá, temos uma empresa grande, que presta serviços à Vale do Rio Doce.

— Interessante, dizem que aquela região voltou a crescer bastante nos últimos dez anos — comentei, sem nenhuma intenção especial.

Foi a deixa para que ela começasse a falar sobre as maravilhas de lá, do pleno emprego, das oportunidades de negócios, do fluxo de pessoas e coisas. Eu até comecei a ter vontade de abandonar o meu emprego e ir para lá também. Felizmente eu sabia que ela era dada a exageros, especialmente quando falava de si mesmo e de suas infinitas qualidades. A menção de que o marido estava no ramo de mineração acabou atraindo Rogério para o assunto:

— Eu também estou no ramo — ele disse. Mas claro que não tenho uma empresa grande. Aliás, eu não trabalho diretamente com minério, eu alugo caminhões para as mineradoras.

— Pois é, menino. Lá em Valadares o negócio tá crescendo tão depressa que está faltando caminhão. E os que aparecem estão cobrando um horror. Meu marido está tentando conseguir 150 caminhões trucados para transportar minério, mas se for pagar o preço que andam cobrando ele não vai conseguir ter lucro. Você não conhece, por acaso, quem possa nos arranjar esses caminhões?

— Uai, eu posso — disse o Rogério. Eu arranjo esses 150 caminhões para você. E eu sei quanto andam pagando por lá. Eu faço por vinte por cento a menos se me der um contrato.

Eu me assustei um pouco com a afirmação do Rogério, que não me parecia ser o dono de tanto caminhão, especialmente numa cidade tão pequena quanto São Pedro.

— Mas, Rogério. Você tem tanto caminhão assim, homem? Com cento e cinquenta caminhões dá para levar embora São Pedro inteira!

— Uai, só eu tenho uns vinte a meu serviço, e eu arranjo o resto com amigos, parentes ou conhecidos. Fácil.

— Não vai sobrar um caminhão num raio de noventa quilômetros se você arranjar 150 caminhões para ela.

Rogério ficou um pouco ofendido com a insinuação. Mas reafirmou que conseguia.

— Passe o seu telefone, por favor — pediu a Eleonora.

Rogério não se fez de rogado e cantou o número de um telefone móvel. Ela tomou nota dele em uma folha avulsa de papel, retirada de dentro da bola, mesmo estando com o próprio celular à mão. Anotar um telefone num pedaço avulso de papel é desejar perdê-lo, para ter a desculpa de não ligar. Desculpa talvez desnecessária, pois um número citado tão depressa talvez estivesse errado.

Estávamos nisso quando chamaram a senha do Rogério para um dos dois guichês de atendimento, e logo a minha. Saímos de lá, separadamente, para resolver nossos problemas pessoais, deixando Eleonora com o telefone anotado e aquele seu belo sorriso escancarado.

Nunca soube se ela ligou, ou se o número estava certo. Porque eu mesmo não tomei nota dele. Só sei que continuou duvidando que haja tanto caminhão em São Pedro, ou num raio de noventa quilômetros. Tanto quanto duvido que Eleonora tenha uso para 150 trucados em seja qual for a empresa de seu marido. Ela é dada a exageros, só não contava que a gente de minha terra fosse dada a mais. Com 150 caminhões trucados não sobrava nenhuma casa em São Pedro. Não sobrava, talvez, nem a Pedreira Velha.
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03
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 23:00link do post | comentar
Estas montanhas têm uma história, desde os tempos dos índios, desde antes do primeiro português cortar a primeira árvore. Eles vieram, viveram, morreram, viram o mal que havia e se foram, ficaram apenas alguns pobres puris isolados, entocados quase como bichos. Vieram os emboabas a caminho das minas, tentaram fixar-se aqui, mas não ficou nenhuma vila, queimaram todas as casas, sumiram no tempo como se nunca tivessem pousado, e a estrada real passou ao largo.

Minha avó costumava me contar que toda esta região era pacífica e silenciosa até a segunda década do século, que ela mesma viveu numa casinhola entre árvores, beijada pela sombra fria da mata. Mas veio o café, veio a guerra, a estrada de ferro, vieram as armas. Mataram os índios, abriram clareiras, começaram a produzir. Mas em pouco tempo a terra negou seu seio, os cafezais feneceram, os fazendeiros faliram. O povo restou pobre, em uma terra mais seca e nua. Os trilhos de ferro recuaram, abandonando estações ilhadas nas montanhas.


Nasci aqui, sentindo esse vento seco e duro que cresta a alma e corta a cara, que arranca as folhas das árvores, como se tentasse arrancar os homens da terra. Mas eles só sairão quando chegar a hora da colheita. Toda vez que eu olhava os morros erodidos, as encostas peladas, a terra retalhada com cercas e dividida em lotes de cores diferentes eu me sentia cúmplice dessa violência.

Este ano, porém, começou diferente. O cheiro do ar foi outro desde o início, os dias foram encolhendo, as noites ficando mais frias e quando eu olhava as bordas dos morros cortadas contra as nuvens eu tinha calafrios, temendo que essa Hora maldita estivesse a caminho.

Nas primeiras semanas eu me senti assim, sozinho. Não tinha coragem de falar com ninguém, porque desde menino tivesse essa fama de sensível, de fresco, de frágil. Nem os calos duros em minhas mãos, nem minhas botinas armadas com arame, nem o cheiro forte da terra em meu corpo conseguiram apagar as impressões que os outros tiveram de mim no dia em que saí de mim e disse aquelas coisas que ninguém nunca ousou repetir.

Mas quando o outono começava a envelhecer, notei que não era mais o único. Podia pressentir que os jovens estavam irrequietos  que os velhos estavam mais abatidos. Alguns sonhando em voar, outros querendo dobrar definitivamente as asas. Então senti voltando a mim a sensação, e os cheiros, que me abateram naquela tarde de criança. Eu pressenti a proximidade do escuro, eu enxerguei as dobras do destino direcionando o correr de nossas vidas para o canto da mesa, para a caçapa inevitável. Senti a Presença pela primeira segunda vez, mas não tive medo nem ódio, aliviei-me de toda irritação e adorei aquela época do ano.

Os Gonçalves então apareceram com a notícia de que estavam indo embora. Eles tinham uma fazenda grande, com várias casas, currais, tulhas, silos e cocheiras. Tinham feito um trabalho bonito, por vinte ou trinta anos, desde que o velho Nhonhô Gonçalves chegara de Itaperuna cheio de dinheiro, que as más línguas diziam ser mal havido, e comprora a terra de um colono antigo, que eu nem chegara a conhecer. Eles trabalharam muito, fizeram render o seu dinheiro, tinham vacas, tinham milharais, canaviais, um pomar que dava gosto. Então veio aquela seca longa do ano retrasado, emagrecendo o gado, matando o milho plantado, prejudicando a cana. E justo quando a seca acabava apareceu a praga da erva roxa nos pastos, intoxicando os animais famintos que comiam tudo.

Perderam muito dinheiro, tiveram que vender as vacas boas enquanto valiam alguma coisa, muitas morreram vacas de fome, muitas ficaram vacas maninas, cresceram bezerros de pelo ruço, novilhas de tetas murchas.  Um gado sem valor, em uma terra que precisava ser roçada de novo, com uma praga que ninguém sabe de onde veio, como se o próprio demônio tivesse passado semeando.

Agora estão finalmente vendendo, e é uma tristeza ver os garotos com os olhos cheios de água, tentando sorrir enquanto põem preço naquilo que nada paga. Dizem que vão comprar caminhões, ganhar a vida no transporte de carga. Enquanto eles falam eu escuto um vento soprando forte, um vento que arranca folhas das árvores. O vento que anuncia que chegou o tempo de colher. Os dias continuaram encolhendo, as noites ficando frias. Colheita no inverno, colheita mais amarga. Os jovens irrequietos, os velhos andando de cabeça baixa. Eu sei que a escuridão está mais perto, alguma presença está aqui. Parece que o clima mudou, mas eu não estou mais gostando dessa época do ano.

Sempre vivi nesta casa de fazenda. Hoje fazem dez anos que meu pai morreu. Foi num agosto ventoso como esse, talvez ali eu tenha ouvido esse vento pela primeira vez. Herdei esta terra, estas cercas, estas pobres vacas, companheiras de meu infortúnio, pobres reses que eu nunca consegui vender. Não sei bem do que eu vivo, o leite que tiro mal dá para comer. Tenho a herança de uma tia rica, o ódio de uma mulher que me deixou. Faz muito tempo que não tenho medo, muito tempo que não sentia nada mau. Tinha aprendido a conviver com esta terra, deixar crescer o mato, receber a chuva, proteger a ave, abrigar o bicho. Dizem na cidade que eu também virei meio bicho, só porque não consegui cortar a árvore que nasceu debaixo do Mustang que ficava na garagem. Garagem que já caiu de podre porque não a uso: por que me enjaular entre dobras de ferro e produzir fumaça ruidosa pelo mundo? Vou a pé aonde vou, e sempre é perto. Dizem na cidade que a lucidez também me deixou.

Os Gonçalves eram meus últimos amigos. Catarina a última mulher que não me achava louco. Teria sido minha esposa se eu quisesse, me ajudaria a cuidar de meus coqueiros, meus horta, minhas laranjeiras, de todos esses pássaros que pousam na varando cada silenciosa tarde. Eles me dão uma música melhor que qualquer rádio.

Ficará um buraco em forma de Catarina em minha vida. Um buraco na forma de cada amigo que vai embora, na forma de deus que nunca vi, na forma de cada alegria irrepetida que nunca descobri.

Então esta tarde veio o homem de longe, com cabelos penteados, camisa branca de riscado roxo. Enverga botinas pontiagudas, sem esporas, porque sua montaria é dessas de que não gosto.

Ele me falou de coisas que não entendo — como dinheiro, eucaliptos e carros. Fala em derrubar estas espertas, angicos, paineiras, jenipapos, imbaúbas e ipês. No lugar de todas estas cores e perfumes diferentes, uma árvore apenas há de imperar, com sua resina roxa, seu aroma doce.

“Apenas oito anos”, ele diz, “e pode-se vender a um preço exorbitante. Tão exorbitante, aliás, que eu estou disposto a contratar agora a venda, para protegê-lo da possibilidade de que em oito anos tanta gente tenha plantado que o preço nem seja mais exorbitante. Aproveite esta oportunidade única na vida, está na hora de ganhar dinheiro outra vez, sacudir a poeira desta terra adormecida.”

Eram palavras bonitas, mas eu só consegui me fixar nas listras roxas de sua camisa, pensar nas folhas roxas da praga que matou o gado dos Gonçalves e vai levando embora Catarina. Nada de bonito pode vir de alguém que usa roxo. Cor de morte, cor de hematoma, cor de luto de homem, pois homem não se veste de viúva.

“Uma terra tão grande normalmente a gente oferece em parceria, mas se o senhor preferir podemos fazer-lhe um preço muito bom por seus cento e vinte alqueires.”

Não, não venderei a terra, nem plantarei eucaliptos. Tenho trinta anos e ainda tenho alguns mognos para ajudar a crescer. Espero um dia estender minha rede entre os dois jacarandás que plantei na entrada do terreiro, como sentinelas a bloquear a entrada de qualquer carro.

“Sua propriedade vai ficar isolada entre todas as outras, única ilha de mato e pasto sujo num mar de montanhas verdejantes de reflorestamento.”

Que seja, mas há uma beleza nas ilhas. As únicas que eu conheço são as que existem no rio, que eu costumo contemplar quando vou à cidade receber alguma venda, verificar a renda que me legou a minha tia e fazer minhas compras. São pedaços bonitos de terra que resistem no meio do rio, deixando a água passar ao largo, a turbulência ir embora. Resistem à enchente até. Que seja, minha fazenda será uma ilha. E eu o habitante feliz, Robinson Crusoé eternamente a espera de que não me resgatem dela. Espero viver muito, tenho de me cuidar. Enquanto estiver vivo talvez consiga proteger o trinca-ferro, o mão pelada e a preá.

Que sopre o vento o quanto quiser. Que leve embora as folhas doentes das árvores. Pode ser o tempo de colheita delas, mas as folhas vivas, que ainda bebem a seiva da terra, estas não vão ser arrancadas pelo primeiro vento.

Quando ele foi embora eu senti a escuridão mais perto do que nunca. Senti uma presença estranha aqui por perto. Estava perto da noitinha, mas eu não tinha medo. Faz muito tempo que não acontece nada estranho, esta terra nunca me fez mal. Nunca fizera mal aos índios que ficaram, os que a entenderam.

Mas o calafrio continuou, uma sensação de algo forte caminhando entre os galhos emaranhados, algo acinzentado, peludo e frio. Não tenho medo, mas não saio à noite quando pressinto isso. Fico na varanda contemplando o escuro, e o escuro me contemplando com seus olhos amarelos, que às vezes piscam. Acho que o estranho não deveria ter sido tão ousado, não a ponto de vir aqui em carro conversível.

Os grunhidos que ouvia longe, contidos, pareceram mais perto. Os olhos não estavam me olhando enquanto eles estalavam na noite. Ouvi o motor de um carro acelerar ao máximo, bater contra a minha porteira com a força de quebrá-la, mas por felicidade desapareceu pela estrada aos poucos. Pude ouvir o motor um longo tempo, como se a distância não aliviasse o pé do estranho de camisa roxa. Que nunca mais voltou, nem voltaria sob a mira de uma espingarda.

Ele talvez não saiba, mas não deveria ter falado comigo tão ríspido. Todos me chamam de louco, mas ninguém me incomoda. Não desde que o filho do Gracindo, aquele idiota, veio tentar caçar minhas capivaras. Eu o proibi, adverti, implorei, mas ele me estapeou, abusando de sua força e me chamando de maricas. Entrou na mata e não voltou. Sua mãe só o viu de novo embrulhado em plástico preto, uma fotografia ampliada colada no lugar do rosto.

Tentaram me acusar, mas não havia como associar minhas mãos com aquelas marcas, meus dentes com aqueles nacos de carne arrancada. Mataram uma pobre onça nestas redondezas e deram o caso por terminado. Isso é o que a polícia diz, mas ninguém nunca mais entrou na minha terra pensando em caçar. O povo daqui é mais esperto que esses polícias que vem de Ubá ou Muriaé, e não entendem a língua da terra. A diferença é que eu, diferente do povo, não tenho medo. Não vou me deixar levar.

Os Gonçalves foram embora hoje. Estava lá na despedida, barbeado pela primeira vez em meses. Uma cena de fazer chorar, os pobres homens, despossuídos de suas vidas, condenados a vagar no mundo conduzindo máquinas, a maldição da terra. Catarina estava entre eles, parecia mais triste que todo mundo. Não fui o único a notar que lhe haviam dado remédio outra vez, e amarrado suas mãos e pés.

Voltei para casa triste, sentindo a vida me escapar. Sentei na varanda olhando a noite, ouvindo os curiangos no terreiro, e sentindo falta dos olhos amarelos que me acompanhavam nestas solidões frequentes.

Então ouvi de novo o grunhido, e tampouco tive medo. Tanto faz à vida, se a gente morre tarde ou cedo. Mas a fera não tentou morder, nem veio junto a mim. Apareceram os seus olhos, amarelos, na penumbra do terreiro. E no dia seguinte eu encontrei na horta um lenço arrebentado, como se tivesse amarrado os punhos de alguém.

02
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 22:37link do post | comentar
Minha vida de solteiro não faz anos, faz meses. Melhor assim. A vida é curta demais para a medirmos em anos, décadas, séculos. Melhor pensar em termos mais exíguos. Em termos coisas próximas, curtas, fáceis de levar no bolso da alma como lembrança durante nossas andanças.

Estou solteiro desde que recebi minha promoção. Aluguei um apartamento na cidade onde assumi meu novo posto e minha mulher insistiu em ficar para trás. Primeiro foi para terminar o semestre das meninas na escola, depois para concluir o contrato temporário do emprego que conseguiu, depois para terminar o outro semestre, depois não sei mais o que será. Ela foi ficando e eu venho vindo.

Hoje minha segunda vida de solteiro completou sete meses. Não contei à minha mulher: esta comemoração, obviamente, eu só poderia fazer estando sozinho aqui em casa. Como todos os fins de semana, eu a fui visitar, mas voltei para casa no fim, para trabalhar no dia seguinte e dar seguimento a esta experiência estranha, que eu não tive quando menino.

São muitas as descobertas desta vida. Tentar fazer a própria comida, descobrir qual tipo de produto de limpeza adequado para retirar a inhaca de cada tipo de piso, como montar e desmontar sozinho os móveis para mudá-los de lugar cada vez que cismo de reorganizar as coisas, que veneno jogar nos vãos e corredores para evitar que entrem baratas e outros bichos.

Pela primeira vez na vida estou em uma casa com garagem anexa. Saio pela porta da frente e olho à esquerda e lá está meu carrinho, seus faróis me contemplam tristemente quando saio, implorando-me que o lave. Da última vez que tentei eu molhei todas as paredes e a minha roupa, mas ele continuou misteriosamente empoeirado depois que a água secou. Acredito que os carros, como os gatos, possuem uma aversão à água, que só com alguma habilidade se pode superar. Vou tentar de novo qualquer dia desses quando chegar mais cedo do trabalho, ainda de sol quente, pois não quero me gripar aqui nesta casa solitária. Tenho que me vacinar contra as situações em que desejaria alguém para minha companhia.

Tenho um quintal, também. Por enquanto ele está apenas exibindo um crescimento majestoso de ervas daninhas. Minha sogra, quando veio aqui, detectou a presença de plantas úteis também: batata doce, erva cidreira, hortelã pimenta, alecrim. Tenho dó de jogar herbicida e matar tudo. Comprei botas e luvas de borracha e vou arrancar as ervas com a mão, para preservar as plantinhas boas. Provavelmente terminarei nunca, mas ninguém tem nada com isso. Espero apenas ter sorte de terminar antes que o IBAMA declare meu quintal como “mata nativa em recomposição”.

Eu andava preocupado com a quantidade de insetos que frequentava a casa. Mas eles diminuíram significativamente desde que espargi inseticida pelos corredores laterais, na varanda dos fundos e na parte de fora das janelas. Ou talvez tenha algo a ver com os camaleões que apareceram. Camaleões adoram insetos, e eu gosto de camaleões. Se minha mulher ou minhas filhas estivessem aqui hoje, o pobre bichinho já estaria morto. Eu deixei sobras de bolo para ele. Se até logo à noite ele não tiver comido, vou varrer e jogar na lixeira do quintal para não atrair baratas.

Como a casa está vazia, vou me estimulando a comprar coisas para enchê-la: um capacho para a porta de entrada, um tapete antiderrapante para o banheiro, um baú de ferramentas para pôr num canto, uma mangueira de jardim para a torneira da varanda, aquela com que me molhei tentando lavar o carro. Minha cozinha está cheia de inutilidades úteis: queijeiras, pegadores de macarrão, saca rolhas, abridor de latas elétrico, biscoiteira, lixeira com tampa móvel. Algumas dessas coisas minha mulher nunca quisera comprar, achava-as inúteis quando a gente passava pela ala de utilidades domésticas do supermercado. Mas eu estou comprando de todas, e descobrindo suas utilidades. Coloquei o álcool em um borrifador (tenho três), eliminei o risco de acidentes e descobri como limpar o chão sem precisar enxaguar. Desajeitado que sou, essas pequenas descobertas me poupam tempo e trabalho. Só não consegui ainda descobrir o que vou fazer com tantos adaptadores de tomada e lâmpadas de formatos vários.

Terei, infelizmente, de comprar outro jogo de ferramentas. Não sei aonde foi parar a bolsa de veludo com velcro onde guardava as minhas chaves de fenda e de boca. Estou reduzido a um alicate, uma trena, um estilete e um martelo. Com eles eu monto e desmonto, prego e desprego. Uma beleza.

Mas beleza mesmo foi a faca de açougueiro com cabo de madeira que eu comprei ontem. Cheguei aqui hoje com a belezinha e já fui experimentado. Fiquei quase vinte minutos embevecido com sua eficácia ao cortar queijos (tenho seis tipos diferentes na geladeira), goiabada (experimentei uma fatia com cada tipo de queijo e realmente fica melhor com queijo minas frescal), frutas e até um trapo de pano de chão. Acho que vou comprar outros tamanhos de faca, também. Afinal, se preciso de várias chaves de fenda, de boca e de estrela, é inconcebível que uma faca de tamanho único sirva para tudo. Minha racionalidade masculina me diz que isto não faz sentido.

Esta dificuldade com os instrumentos, aliás. Nunca consegui entender as pessoas que cismam em usar as coisas de forma errada. Colheres são para líquidos, sopas e molhos. Garfos são para comida sólida. Facas são para cortar. Pegadores de macarrão são para pegar macarrão. Minha mãe, porém, punha uma colher para retirar o macarrão. Eu, particularmente, nunca consegui entender como ela conseguia servir-se usando aquela colher. Em minha casa este problema não existe: tenho pegador de macarrão, escumadeira de arroz, colher de feijão, queijeira, boleira, biscoiteira, saleiro, pimenteiro, azeiteiro, bule. Para cada coisa seu vasilhame ou utensílio. Um mundo ordenado, onde as coisas funcionam. Apenas se acumula lixo pelos cantos, copos sujos na pia e sujeira no tampo da mesa enquanto eu não resolvo varrer, lavar e limpar.

02
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 11:28link do post | comentar

A Zona da Mata Mineira vive hoje uma crise – humana, econômica e ecológica. Por toda parte onde se vá, encontramos a descaracterização cultural, a perda das tradições orais, o esquecimento do artesanato (e da própria história) e, mais grave que tudo, uma absurda destruição da natureza que, de tão arraigada, deixou de significar apenas a remoção da vegetação nativa e agora está chegando à remoção do próprio solo e das montanhas: percorrendo a região vemos morros pelados, terra aparente, erosões, cursos d'água assoreados. A Zona da Mata deixou de merecer esse nome: hoje é uma região em processo incipiente de desertificação.

“No começo isso aqui era só mato, bicho e índio. Mas nós limpamos a terra e a fizemos produzir.” A frase foi dita, de verdade, por um proprietário de terras da Zona da Mata Mineira, em algum momento nublado de minha infância. Ele certamente não se lembrava de quando chegaram os primeiros colonos, procedentes do norte do estado do Rio de Janeiro ou dos Campos das Vertentes, mas a presença dos três elementos definidores – mato, bicho e índio – perdurou durante décadas depois, permaneceu no imaginário do povo até bem há pouco tempo. E eu sempre achei curioso como a gente de minha terra contava sua história.

Conheci pessoas que diziam que um ou outro de seus antepassados havia sido “índio pego a laço no mato” – uma referência oblíqua a indivíduos sobreviventes dos massacres dos grupos isolados de tapuias, puris, goitacazes e outros povos ameríndios que aqui viviam. Quando os colonos brancos vieram, trazendo seus escravos e seus machados, a presença dos índios foi sendo extirpada, junto com o mato e com os bichos. As três palavras foram sempre empregadas em um tom pejorativo.

“Mato” era, no português coloquial de antigamente, uma palavra carregada de negatividade. Dizer que algo “era mato” era como dizer que era vulgar, que era encontrado em qualquer lugar. O “mato” era, também, o lugar desorganizado, o caos primevo. “Bola para o mato, que o jogo é de campeonato” e “fugir para o mato” são expressões que mencionam esse sentido. Joga-se a bola para onde ela desaparecerá, para retardar o jogo. Foge-se para longe do alcance do braço da lei. No meu tempo de criança ainda corriam histórias de pessoas que fugiam das cidades e vinham “para o mato” trabalhar em terras de coronéis, e que não eram presas se esses não deixassem, porque a polícia não entrava nas propriedades. Remover o “mato” era um processo civilizatório. Lembro-me de como a professora leiga, de minha escolinha rural, me contou, embevecida, como seus antepassados “desbravaram” a terra. “Desbravar” é cognato de “bravio”. Envolve um sentido de “doma”. Desbravar é amansar a terra. É tirar o mato, o bicho e o índio. E eu me lembro até hoje do desenho que fiz, de um colono enxugando o suor da testa, apoiado em seu machado, no meio da lida hercúlea de derrubar árvores em um campo imenso.

Meus antepassados odiavam árvores. Tanto que construíam suas casas em clareiras lisas, os “terreiros”. O tamanho do terreiro estava vinculado ao poder do proprietário. Viver em uma casa isolada no meio de um terreiro imenso era para os coronéis, ou quem tinha dinheiro equivalente. Manter o terreiro limpo envolvia o trabalho de muitos homens, para remover as folhas do mato, arrancar as ervas que teimavam em nascer. O terreiro era também uma proteção natural contra emboscadas. À noite, mesmo sem lua, era mais fácil ver alguém tentando atravessá-lo para atacar a casa. Mais fácil do que seria se em vez de terreiro a casa fosse cercada de árvores.

“Bicho” tinha um sentido ainda mais forte. A palavra “animal” era reservada para as bestas domesticadas: cavalos, mulas, vacas, jumentos, cabras, ovelhas. Pequenos animais domesticados, ou que viviam próximos à casa – como gatos, ratos e lagartixas – eram chamados de “bichos”, assim como os insetos (bicho-de-pé, por exemplo). Os outros eram os “bichos do mato”, vistos como “invasores” e predestinados à caça ou ao mero extermínio porque interferiam na economia. E o colono sabia muito bem que remover o mato era uma maneira eficiente de afastar o bicho, sem ter que matar cada um, correndo risco. Por isso as grandes queimadas, por isso “desbravar” até mesmo encostas de ângulo impossível para a agricultura e a pecuária. Era preciso “limpar” a terra, para que o bicho não ficasse perto. A onça, o quati, o piriá, a jaguatirica, o guará, o guaxinim, o maracajá, o mão pelada, o caboclo d'água, a lontra – todos bichos que, embora fossem bonitos alguns, tinham o infeliz hábito de ver nas galinhas das fazendas uma caça mais gorda e mais fácil do que os magros e velozes pássaros “do mato”.

E o “índio”, por fim, era o “bicho” por excelência. Dotado de uma inteligência “quase humana”, reunia a ferocidade e a matreirice. Por isso o ódio que despertava no colono, de forma espontânea e natural. Se algum era capturado e trazido à fazenda, era para ser simplesmente morto ou escravizado. Poucos comentam, mas os antepassados pegos a laço eram, em geral, mulheres. Estuprar a índia e fazer filhos nela era uma forma de subjugar este animal estranhamente humano que vivia em torno das regiões de colonização incipiente. Mas uma vez trazido à civilização, se “aprendesse a falar” (o que geralmente só acontecia com crianças) e conseguisse aprender uma profissão, o índio não era mais um inimigo, apenas outro elemento subjugado, na estrutura de poder da grande fazenda.

Não podemos esquecer essa mentalidade se quisermos entender o desastre. Os colonos removeram a mata para afastar o bicho e para exterminar o índio. Removeram a mata até mesmo nos lugares onde isso nem era necessário, como encostas de pedreiras com ângulo de sessenta graus. No lugar da mata plantaram monoculturas que não ofereceram cobertura ao solo, as mais recentes são o eucalipto e a brachiaria. O uso frequente da queimada enfraqueceu a terra, salinizou-a, acidificou-a. Queimada proposital, ou queimada acidental, causada por balões, raios, acidentes domésticos ou, em dias excepcionalmente quentes, pedaços de vidro perdidos em moitas secas. Nos lugares mais queimados já não cresce mais nada: a terra está pelada, mostrando sua derme, vermelha ou amarela. Sem cobertura a chuva arranca e arrasta: surgem erosões imensas. A terra solta vai para os riachos, que ficam rasos e largos. As nascentes são sufocadas, riachos secam na estiagem, coisa que nunca se imaginou acontecer por aqui.

E este desastre acontece aos poucos, sem que ninguém proteste. Os jornais não comentam. A televisão não fala. O cadáver vai apodrecendo e é como se ninguém sentisse o cheiro. As pessoas dirigem pelas estradas olhando exclusivamente para o asfalto, sem ver as feias marcas de destruição que perfilam ao redor. Tal como, nas cidades, ignoram os mendigos, ao sair delas ignoram a destruição.

Ninguém quer ver, porque ninguém quer admitir que tem alguma responsabilidade. Não fomos nós, foram nossos pais, avós e bisavós. Nossos netos e bisnetos também dirão que não foram eles, mas que fomos nós – mas nós estaremos mortos então, o que significa que não veremos seus dedos apontados em nossas caras, e não precisaremos ter vergonha da acusação. Por isso podemos ficar inertes, sem nada fazer, sem nada dizer.

Nascemos em uma cultura violenta, uma cultura de genocídio, estupro, desmatamento, queimada e depredação. Matamos ou “pegamos a laço” os índios, arrancamos as árvores, secamos os brejos, queimamos os montes, destruímos os sinais de tudo que houve antes de nós. Tomamos posse da terra através da terraplenagem e da espólio. Esfolamos a terra, tiramos sua pele, para que crescesse outra, nova, nossa. Agora vemos essa pele que nasceu, ressecada, feia, cicatrizada, e não a queremos. Eis o fruto da ira e da cobiça de nossos antepassados. Até quando os desculparemos, até quando nos desculparemos?

Eu poderia também estar quieto, mas me dói cada vez que vejo uma nova erosão, que noto que esqueci outra cantiga que fez parte de minha infância. Dói quando vejo que a colonização continua, sempre em novas vagas, cada uma determinada a suplantar a que havia antes, sob camadas sucessivas de esquecimento. Rompendo a continuidade, para que tenhamos a ilusão de que o mal lá fora não é fruto nosso: queremos ser novos, fingimos ser outros, porque não queremos saber que matamos os bichos, que laçamos os índios e que limpamos o mato.

Eu não estou quieto porque todo escritor é consciência de sua era. Eu sei muito bem que a perfeição, possível ou não, é apenas um ideal vazio, apenas outra forma de não olhar lá para fora e ver o vazio, de árvores, de bichos e de índios, que o nosso passado produziu. Se eu ficasse obcecado apenas em contar, do melhor modo possível, as histórias e os sentimentos que agradam aos outros, eu estaria sendo apenas outro colono, que vive aqui, mas tem a cabeça no Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar. A mentalidade do colono é transitória. Ele não ama a terra, ela não tem família: seu coração está em outro lugar, para onde quer ir ou voltar, quando arrancar da terra o que seja preciso para viver lá como patrão, ele que veio como ladrão. O colono não é um cidadão.

Então eu começo, aos poucos, a falar disso, e de outras coisas que sinto, da raiva que sinto. Posso estar escrevendo mal, mas cada dia que passa tenho mais definida esta sensação de que é preciso vocalizar esta frustração. Falar em nome das árvores, dos bichos e dos índios. Falar em nome do que esta terra foi antes de ter sido reduzida ao que é.


09
Set 12
publicado por José Geraldo, às 11:57link do post | comentar

A simples sensação de estar em uma cidade muito grande me assusta um pouco. Juiz de Fora é a maior cidade onde consigo me locomover sem ser acometido pelo pavor existencialista de subitamente deixar de existir, graças a uma facada no escuro, um carro bomba ou uma bala perdida. Cidades grandes têm trânsito confuso, motoristas nervosos que, do nada, podem descer de seus carros brandidos símbolos fálicos e ejaculando em projetis sua impotência diante do imenso pé da cidade, que os pisa e achata contra o solo. Cidades grandes têm exércitos de miseráveis famintos arrancando sua sobrevivência como podem, às vezes como não deveriam.

Mas quando ando pelas ruas de uma cidadezinha do interior, mesmo a centenas de quilômetros da minha, a sensação que tenho é de estar o tempo todo andando entre os braços abertos de amigos e parentes. O ritmo da vida vai devagar, como deve ser, ninguém parece andar armado, a não se precauções. Até os miseráveis são menos agressivos, porque são menos agredidos.

Cada vez que vou a um lugar pequeno eu tenho a certeza de que a salvação deste país, e deste mundo, reside na destruição deste monstro chamado metrópole, que encaixota os seres humanos em imensos depósitos numerados.

Salvar o mundo envolve remover o concreto e o asfalto, replantar um pouco da vida verde que havia antes, deixar os bichos pisarem a terra livremente, sem o risco de atropelamento por gente que tem pressa demais, e só um coração. Chamem-me idealista, mas quando eu penso no crescimento das cidades eu tenho medo, o medo que tem quem vê crescendo uma mancha de formato irregular em sua pele. A pele do mundo é como se fosse um pouco a minha pele. E as cidades, que um dia foram somente sardas, estão se transformando em tumores.


05
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 10:24link do post | comentar
Este texto é um trecho avulso do romance «Amores Mortos», que está em fase final de revisão. A história se passa entre 1984 e 2000 e neste trecho em especial está situada em 1994, pouco após o Plano Real. Oswaldo (variadamente referido pelos diversos personagens do livro como Vado, Vadico, Vadinho ou Valdo) é um sujeito que migra de emprego em emprego, por diversas cidades da Zona da Mata Mineira, geralmente trabalhando como representante comercial, vendedor de seguros ou funções assemelhadas. A história acompanha, de forma não linear, a sua vida amorosa, que incluiu mulheres de várias cores, idades e tem­pe­ra­mentos, e a sua busca pela paz interior, através de duas ou três religiões dife­rentes, inclusive atuando como pastor de uma pequena igreja em certa época e tendo um «papo sério» com Jesus no momento mais tenso de sua vida.
Ele parou o carro à sombra de uma árvore, como um espião faria, e abaixou até a metade o vidro. Passou os dedos pelos cabelos uma última vez, para ver se não havia nenhum desleixo excessivo, e olhou pela greta em direção à casa número 156. Tirou do bolso o pedaço de papel onde anotara o endereço e conferiu se não havia distraidamente invertido os números em sua lembrança e respirou fundo. A casa devia ser aquela.

A certeza acelerou o coração, fez amargar a boca, causou aquele aperto por den­tro que acontece nos momentos de grandes escolhas. Ainda poderia simples­mente ligar o carro e ir embora, depois ligar de volta dizendo que… sei lá, qual­quer coisa. Porém, se o fizesse, levaria meses ou anos ou vidas martirizando-se pela falta de ousadia. Decidiu que levaria a coisa toda até o fim.
Tudo começara semanas antes, quando começara a conversar por telefone com Mar­lene, que trabalhava no escritório de alguma das muitas lojas a que vendia. Gos­tara da voz, quisera conhecer o rosto, encontrara-o dentro de um envelope, dese­jara o corpo, deixara o emprego, mas levara o número e chegava então à casa onde ela o esperava. Marlene, auxiliar de escritório em alguma loja pequena, de uma cidade razoavelmente grande para oferecer anonimato, bastante perto para possibilitar aquela aventura.

Lamentou que os telefones celulares ainda fosssem tão caros, ou poderia ter um no porta-luvas para discretamente chamar-lhe e perguntar alguma coisa antes de descer. Ouvir a voz dela o ajudaria a ter mais coragem, ajudaria a borrar um pouco a imagem de Cândida de sua memória.

Por fim desceu, mesmo sem coragem e com as pernas bambas. Atravessou a rua depressa, com as costas queimando como se milhares de olhares mapeassem cada passo. Tocou a campainha e refugiou-se na sombra da soleira esperando que nem todas as pessoas daquele bairro, daquela cidade, do estado, do país, do mundo, do universo, tivessem visto, tivessem notado, tivessem anotado sua presença.

Ouviu passos, pés arrastados no chão. Calcanhar de chinelo batendo. Passos de velha, ou passos também tremendo. A porta se abriu e lá estava ela, a mesma Marlene da foto, ou quase ela. Os cabelos eram mais curtos, o rosto mais estreito, um cheiro que a mulher fotografada não tinha. Marlene sorriu-lhe dentes bonitos, sempre o grande medo que tinha nos primeiros encontros. E começou a destrancar os múltiplos cadeados que protegiam a entrada.

— Tanta tranca — perguntou-lhe — é seguro deixar meu carro na rua aqui nesse bairro?

— Provavelmente — ela disse com uma voz que mal lembrava a do telefone — eu é que sou meio desconfiada.

Aberto o portão, pisou pela primeira vez a casa dela. Piso frio, paredes manchadas pelo uso, um cheiro suave de lavanda, os móveis simples, sofá coberto por uma capa de tecido liso.

— Aceita um copo de água?

— Obrigado, claro, é… foi uma viagem longa.

Ela lhe indicou que se sentasse no sofá, o que ele fez com cuidado, escorregando como se aquele assento o rejeitasse. Ela veio com o copo de água e sentou-se ao seu lado, sorrindo sem jeito às vezes. Tomou a iniciativa de pegar suas mãos, estavam frias, eram magras, eram duras, terminando em unhas pintadas de vermelho escuro, que combinava tão bem com o tom moreno da pele.

— Você veio mesmo.

— Duvidava que eu viesse?

— Claro. Por que você viria?

Fez-lhe uma carícia no rosto macio, apesar de macilento.

— Porque lhe disse que queria vir, é suficiente.

Ela sorriu outra vez, olhando obliquamente para algum canto da sala que ficava em outro universo:

— É suficiente.

E deixou-se escorregar até mais perto dele, até suas coxas se encostarem, separadas pelo brim das calças. Oswaldo se sentia com dezessete anos, como sem­pre se sentia quando surpreso na vida. E a vida vivia a surprender-lhe.

Olhou de novo para o rosto de Marlene: era bonita, mas a sua expressão sofrida o desarmava.

Então ouviu uma terceira voz na casa. Arrepiou-se, fez menção de se levantar. Ela o segurou pela mão e surrou-lhe ao ouvido:

— Calma, é só a minha prima que veio pegar uns discos emprestados. Ela já está indo embora.

Oswaldo não se sentiu seguro com esse consolo, mas não tinha a chave da porta. Sentia-se um coelho pego numa armadilha. Da sala não podia ir a nenhum lugar, nenhum esconderijo a não ser suas mãos. Ouvia os passos da prima que vinha de dentro da casa com passos parecidos com os de Marlene e pensava se não poderia, talvez, desaparecer como um vampiro na fumaça. Não pôde. Ela veio, deu boa noite e dirigiu-se à cozinha, seguida de Marlene, saindo pela outra porta, que foi trancada depois.

— Pronto, querido — disse ainda a meia voz — agora estamos sós.

E sentou-se ao seu lado, oferecendo a segurança que tinha fugido dele ao ouvir a voz da prima. Beijou-o com lábios firmes, olhos fechados e a alma faminta. Oswaldo, então, relaxou e abraçou. Não dirigira quase cem quilômetros desde Juiz de Fora para acovardar-se facilmente. Qualquer coisa que tivesse de dar errado, já daria sem que pudesse evitar.

— Espero que sua prima seja péssima fisionomista — comentou, cedendo pela última vez à covardia.

— Você se preocupa demais, ninguém o conhece aqui na cidade, como você mesmo me disse. Sua mulher nunca vai saber.

Beijou-a por sua vez. Apertou-a num abraço que revelou quão pouca carne havia sobre seus ossos. Então ela o chamou:

— Vem.

Levantou-se do sofá e a seguiu pela casa, rumo ao quarto. Pelo caminho conhe­ceu onde habitava a voz doce que conhecera pelo telefone: um pequeno quarto com beliche, certamente o das crianças, um banheiro pequeno onde ele mal cabe­ria, um quarto abarrotado de roupas e espalhadas pelo chão, contendo uma máquina de costura, um quarto maior, de janela única, com um roupeiro imenso, uma cama que parecia feita para alguém muito maior que Marlene, tão miu­dinha.

— Quer tirar a camisa para não amarrotar?

— Não precisa.

Tão logo ele o disse, Marlene tirou as mãos de seu colarinho e as levou à própria cin­tura, tratando de abaixar as calças rapidamente, revelando-se para ele sem ceri­mônia. Oswaldo se sentiu ridiculamente tímido e foi tratando de desabotoar a camisa, o que só terminou de fezer quando ela já havia pendurado toda a roupa no cabide junto à porta, e ainda não acabara de despir-se e ela já estava toda nua, de pé com seus cento e sessenta centímetros de ousadia. Quando final­mente se desvencilhou das meias, última cobertura de sua carne, abriu-lhe os braços, envergonhado, como um frango exposto no balcão do supermercado.

— Espero que você não se decepcione — comentou, pensando nas próprias per­nas finas, na barriguinha de cerveja que começava a crescer e no tamanho do próprio pênis, que ela poderia julgar insuficiente, considerando toda a fami­li­a­ridade que parecia ter com essas coisas.

— Nem um pouco — ela respondeu, lançando-se contra seu corpo.

O contato com uma carne estranha o fez estremecer. Mas não dirigira por quase cem quilômetros para falhar tão cedo. Abraçou-a quase como se ela fosse uma criança, apesar de seus trinta anos, e a pôs de pé sobre a cama, a uma altura que per­mitia que suas cabeças estivessem no mesmo nível.

— Então, vamos com calma, que ainda é cedo esta noite.

— Mas é tarde na vida — ela respondeu, filósofa.

15
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 12:44link do post | comentar

O ganso grasnou na neblina leitosa e Janaína chegou à janela para ver os raios infantis de sol nas teias de aranha que punham um véu nas folhagens úmidas, o orvalho parecia um salpico de perolazinhas: não havia maior troféu no mundo que estar viva e ver aquilo!

Dona Gertrudes trouxe uma bandeja de torradas com manteiga, café de rapadura e queijo. Tudo cheiroso como na infância soterrada pelo tempo. Há momentos na vida que parecem durar eternidades, mesmo sendo poucas semanas. E Janaína ouvia os ecos da infância como se tivessem sido numa era anterior, quase inimaginável. Estava de volta à cidade pequena e à casa da mãe. Nada era mais surpreendente do que isto. Depois que a mãe saiu num passo abatido, suspirou e começou a morder o desjejum enquanto contemplava o mundo, tão distraída que talvez não notasse um tiro de canhão.

Havia um pé de girassol além da cerca, algo melancólico de se ver, todos os dias, aquele movimento inconsciente da flor, aquela vitalidade vazia de planta… Nem as aranhas são tão desesperadas: fazem teias por instinto, mas não parece que ficam tão presas a um ciclo. Ao contrário dos girassóis elas podem pular de árvore em árvore. E tantas pessoas parecem girassóis. E tantas querem ser aranhas.

Quando deu por si mastigava o resto do queijo, que rangia gostoso na boca. Mal notou quando a mãe tirou a bandeja, resignada.

Afastou-se da janela com o cuidado que se precisa e foi ler outro capítulo do livro de Miguelito. O rapaz era atencioso, trazia-lhe livros e gastava horas preciosas de sua vida dando-lha atenção. Adorava Miguelito, ingênua e desesperada, mesmo sendo tão bonito — era um sonho inconsequente e necessário.

Dessa vez lhe trouxera um romance. Finalmente ela o convencera a parar com obras espirituais: “Não preciso me agarrar tanto a Jesus, pobrezinho. Se ficar o tempo todo falando em seu ouvido ele vai cansar e talvez não me ouça quando eu precisar”.

Miguelito se ofendera com a ideia. Sugerira, ácido, que Janaína “não aprendera nada”. Mas trouxe um livro que não era de orações nem exemplos edificantes. Demorou, porém, deixando-a com medo de ter perdido o amigo. Mas ele voltou, parecendo querer voltar — e isso importava muito.

Logo cansou do livro e preferiu pensar no amigo. Ele tinha uma pele morena muito uniforme, como se jamais tivesse sido agredido pelo sol, um tom moreno de nascença, de herença atávica. Seus olhos eram pretos, completamente pretos, como botões. Olhos que brilhavam, líquidos, quando a contemplavam. E tinha cabelos escorridos, cabelos de índio, grossos e saudáveis. Gostava de pensar nele, mas pensava melhor sob as cobertas.

Aproximou-se da cama com cuidado e com toda a energia que lhe sobrava nos braços. Ainda estava aprendendo muita coisa, ainda estava adquirindo força e delicadeza. Deixou a cadeira de rodas e passou para o leito. Enrolada nas cobertas, pensando nele, voltou a explorar restos de sensações na pele, mapeando-se, descobrindo onde ainda o sentia, imaginando o que poderia oferecer-lhe. Pois Miguelito merecia mais que seus sorrisos.


10
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 12:29link do post | comentar | ver comentários (1)

Apareceu de repente um barui estrãe no motor do caminhão, chamano a atenção do Remundo, que cochilava no banco de carona pro Jailso dirigir. Tava de madrugadinha e era lua minguante, num dava para ver nada no escuro daquele fim de mundo.

— Jajá, para o caminhão.

Encostar ali era perigoso: ês tava no meio do nada, estradinha de terra. Canavial dum lado e dotro. Não tinha nenhuma luz de cidade apareceno no céu.

— O que foi, Mundim?

— Um barui no motor.

— Não escutei nada, ocê tá bêbo. 

—  Parece que tem um trem quarqué atrapaiano o motor a girar.

— Tem nada. Iss’ é besteira de caminhonero bêbo.

Mas o rai do barui tava lá. Remundo tamém escutô e ficô co os cabelo rupiado da nuca até a bunda. Porquê num era no motor coisa nenhuma, era arguma coisa no meio do canavial. Mas o motor tamém tava estrãe.

— Né não, Jajá. Me chama de Richarlyso se não tá aconteceno alguma coisa.

Descero então e pegaro as chave de fenda. Abriro a tampa do capô da F-150 e ficaro olhano com a lanterna, procurando um trem quarqué solto que fizesse o barui.

Então escutaro um ruído quase que não dava para ouvir, assim como os pezim duma galinha correno. A nuca do Jajá rupiô de novo e ele virô assustado como se alguém tivesse enfiado gelo na carça dele. Pela estrada afora, na luz do farol, ia umas pegada esquisita, que sumia na curva.

— Tá veno isso, Mundim?

— Olha, nem sei o que é, mas vam’ ‘bora daqui!

Montaro os dois, apertaro os cinto e ligaro o motor. Nos matagal em volta da estrada se oviu um bater de asa que parecia revoada de morcego saino do inferno.

— Jajá, acabei de pensar. As pegada vão para lá…

— Cõ efeito, Mundim, deixa de ser medroso.

Aceleraro com força. Poquim depois da virada da curva, um par de zói vermei apareceu no mei da estrada, encarano os farol.

— Ai Santa Mãe de Deus, um lobisome!

Jajá tentou frear, mas já tava muito em cima. O bicho foi na grade, fazendo um barui seco, como uma explosão de pedrera lá longe.

— Será que matamo o demõe?

— Vam’ descer e ver.

De fato mataro, só que não era nenhum demõe, mas uma pobrezinha duma capivara, gorda que só ela.

Os dois começaro a rir da bobiça enquanto examinav’ os resto da bichinha. Uma capivara, cês sabe, é mais ou meno um ratão cotó grande e cabeludo.

Enquanto ês tava lá rino de alívio, nem viro a sombra grande do disco voadô que subiu do meio do canavial, quietim, e sumiu céu acima, sem ês ver.


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Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
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Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
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