Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
03
Set 12
publicado por José Geraldo, às 08:27link do post | comentar

Esta noite sonhei com o meu melhor amigo. Não, não foi a primeira vez, apenas foi um sonho estranho o suficiente para merecer que eu o lembrasse. Um dia imagino que um semiólogo ou crítico queimará pestanas tentando decifrar-me a partir de textos como esse, então escrevo para dar-lhe trabalho. Ou para apenas me divertir lembrando.

Estávamos em uma fábrica, uma fábrica que estava prestes a fechar, mas os trabalhadores não sabiam disso. O ritmo de produção era tão frenético como sempre, os contramestres andavam de um lado a outro pondo na linha quem estivesse morcegando e caminhões chegavam e saíam trazendo ou levando matéria prima e mercadorias. Então, subitamente o Kid Abelha apareceu, com um palco montado sobre uma estrutura de aço, talvez um guindaste, e tocou os operários um rock denúncia que tinha uma letra mais ou menos assim:

Vocês que continuama vida sem saberLogo vão compreenderque as máquinas os usame o dono só quer ter.Mas um dia tudo passa,vai a máquina parar.A quem vão perguntar o que fazer,vocês que seguem sem ouvir.Surfar fora da ondanão é loucura nem azarFora da onda porque háum momento de prazer.Fora da onda, fora da onda,ou a onda vai passare deixar você pra trás.Crie sua onda, fora da onda.

Enquanto eu contemplava a cena perplexo pela ideia de o Kid Abelha fazer uma canção de conteúdo político-filosófico-existencialista (o que equivaleria ao Pink Floyd regravar Jorge Benjor), apareceu o meu amigo dizendo que a fábrica estava prestes a ser vendida para um ferro-velho chinês e que devíamos sair dali porque os empregados organizariam uma arruaça. Ante a menção de uma arruaça organizada eu decidi que precisava comprar pão.

Com o painel do carro cheio de pães das mais variadas espécies eu dei uma carona ao meu amigo, que disse que precisava ir para a terra colorida de cinza e rosa. Eu lhe dei a carona dizendo que ia passar por lá a caminho de Kashmir.

Enquanto atravessávamos uma ruela de casas todas velhas e parecidas, meu amigo pediu que eu parasse o carro para ele fazer uma visita. Desci com ele e encontrei três avós deitadas em três camas em um quarto nos fundos de uma das casas. A avó dele era uma delas (não avó real, mas uma arquetípica) e pediu-lhe pão.

Então eu lhe disse que era muito tarde para comprar pão e lhe dei um pacote dos que eu havia comprado, provando que nos meus sonhos mais estranhos eu planejo com antecedência as coisas que eu nem sei se vão acontecer.

 Saímos daquela casa nos sentindo um pacote de pão mais pobres, porque sabíamos que apesar de tudo a senhora ia morrer, e ainda nos culpariam por ter-lhe dado pão.

— Foda-se o que pensem — protestou o meu amigo. Eu não ligo para as convenções malucas desta sociedade decadente. Minha avó pode ter oitenta anos de idade, mas vou lhe dar pão se ela quiser.

A última coisa que me lembro era de ver a velhinha revirando os olhos enquanto passava manteiga num pão.

No minuto seguinte eu acordei com vontade de urinar. Fui ao banheiro aliviar-me e vi Gregor Samsa recolhido, com medo, atrás do cesto de roupas. Notei que suas anteninhas tremiam de medo de meus pés, então prometi que não o esmagaria: deixaria que minha filha fizesse isso de manhã quando o visse.

Deitei de novo, ainda com o pescoço doendo de ter datilografado uma carta testamento antes de pôr a gravata. De repente lembrei do rosto do padre e pulei da cama como se estivesse acordando.  Minha mulher disse que me chutou, mas eu só me senti caindo através de um céu cheio de travesseiros e me recolhi de novo até a manhã.


15
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 12:44link do post | comentar

O ganso grasnou na neblina leitosa e Janaína chegou à janela para ver os raios infantis de sol nas teias de aranha que punham um véu nas folhagens úmidas, o orvalho parecia um salpico de perolazinhas: não havia maior troféu no mundo que estar viva e ver aquilo!

Dona Gertrudes trouxe uma bandeja de torradas com manteiga, café de rapadura e queijo. Tudo cheiroso como na infância soterrada pelo tempo. Há momentos na vida que parecem durar eternidades, mesmo sendo poucas semanas. E Janaína ouvia os ecos da infância como se tivessem sido numa era anterior, quase inimaginável. Estava de volta à cidade pequena e à casa da mãe. Nada era mais surpreendente do que isto. Depois que a mãe saiu num passo abatido, suspirou e começou a morder o desjejum enquanto contemplava o mundo, tão distraída que talvez não notasse um tiro de canhão.

Havia um pé de girassol além da cerca, algo melancólico de se ver, todos os dias, aquele movimento inconsciente da flor, aquela vitalidade vazia de planta… Nem as aranhas são tão desesperadas: fazem teias por instinto, mas não parece que ficam tão presas a um ciclo. Ao contrário dos girassóis elas podem pular de árvore em árvore. E tantas pessoas parecem girassóis. E tantas querem ser aranhas.

Quando deu por si mastigava o resto do queijo, que rangia gostoso na boca. Mal notou quando a mãe tirou a bandeja, resignada.

Afastou-se da janela com o cuidado que se precisa e foi ler outro capítulo do livro de Miguelito. O rapaz era atencioso, trazia-lhe livros e gastava horas preciosas de sua vida dando-lha atenção. Adorava Miguelito, ingênua e desesperada, mesmo sendo tão bonito — era um sonho inconsequente e necessário.

Dessa vez lhe trouxera um romance. Finalmente ela o convencera a parar com obras espirituais: “Não preciso me agarrar tanto a Jesus, pobrezinho. Se ficar o tempo todo falando em seu ouvido ele vai cansar e talvez não me ouça quando eu precisar”.

Miguelito se ofendera com a ideia. Sugerira, ácido, que Janaína “não aprendera nada”. Mas trouxe um livro que não era de orações nem exemplos edificantes. Demorou, porém, deixando-a com medo de ter perdido o amigo. Mas ele voltou, parecendo querer voltar — e isso importava muito.

Logo cansou do livro e preferiu pensar no amigo. Ele tinha uma pele morena muito uniforme, como se jamais tivesse sido agredido pelo sol, um tom moreno de nascença, de herença atávica. Seus olhos eram pretos, completamente pretos, como botões. Olhos que brilhavam, líquidos, quando a contemplavam. E tinha cabelos escorridos, cabelos de índio, grossos e saudáveis. Gostava de pensar nele, mas pensava melhor sob as cobertas.

Aproximou-se da cama com cuidado e com toda a energia que lhe sobrava nos braços. Ainda estava aprendendo muita coisa, ainda estava adquirindo força e delicadeza. Deixou a cadeira de rodas e passou para o leito. Enrolada nas cobertas, pensando nele, voltou a explorar restos de sensações na pele, mapeando-se, descobrindo onde ainda o sentia, imaginando o que poderia oferecer-lhe. Pois Miguelito merecia mais que seus sorrisos.


10
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 12:29link do post | comentar | ver comentários (1)

Apareceu de repente um barui estrãe no motor do caminhão, chamano a atenção do Remundo, que cochilava no banco de carona pro Jailso dirigir. Tava de madrugadinha e era lua minguante, num dava para ver nada no escuro daquele fim de mundo.

— Jajá, para o caminhão.

Encostar ali era perigoso: ês tava no meio do nada, estradinha de terra. Canavial dum lado e dotro. Não tinha nenhuma luz de cidade apareceno no céu.

— O que foi, Mundim?

— Um barui no motor.

— Não escutei nada, ocê tá bêbo. 

—  Parece que tem um trem quarqué atrapaiano o motor a girar.

— Tem nada. Iss’ é besteira de caminhonero bêbo.

Mas o rai do barui tava lá. Remundo tamém escutô e ficô co os cabelo rupiado da nuca até a bunda. Porquê num era no motor coisa nenhuma, era arguma coisa no meio do canavial. Mas o motor tamém tava estrãe.

— Né não, Jajá. Me chama de Richarlyso se não tá aconteceno alguma coisa.

Descero então e pegaro as chave de fenda. Abriro a tampa do capô da F-150 e ficaro olhano com a lanterna, procurando um trem quarqué solto que fizesse o barui.

Então escutaro um ruído quase que não dava para ouvir, assim como os pezim duma galinha correno. A nuca do Jajá rupiô de novo e ele virô assustado como se alguém tivesse enfiado gelo na carça dele. Pela estrada afora, na luz do farol, ia umas pegada esquisita, que sumia na curva.

— Tá veno isso, Mundim?

— Olha, nem sei o que é, mas vam’ ‘bora daqui!

Montaro os dois, apertaro os cinto e ligaro o motor. Nos matagal em volta da estrada se oviu um bater de asa que parecia revoada de morcego saino do inferno.

— Jajá, acabei de pensar. As pegada vão para lá…

— Cõ efeito, Mundim, deixa de ser medroso.

Aceleraro com força. Poquim depois da virada da curva, um par de zói vermei apareceu no mei da estrada, encarano os farol.

— Ai Santa Mãe de Deus, um lobisome!

Jajá tentou frear, mas já tava muito em cima. O bicho foi na grade, fazendo um barui seco, como uma explosão de pedrera lá longe.

— Será que matamo o demõe?

— Vam’ descer e ver.

De fato mataro, só que não era nenhum demõe, mas uma pobrezinha duma capivara, gorda que só ela.

Os dois começaro a rir da bobiça enquanto examinav’ os resto da bichinha. Uma capivara, cês sabe, é mais ou meno um ratão cotó grande e cabeludo.

Enquanto ês tava lá rino de alívio, nem viro a sombra grande do disco voadô que subiu do meio do canavial, quietim, e sumiu céu acima, sem ês ver.


04
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 19:37link do post | comentar
Era 1993 e eu estava voltando da faculdade, tarde da noite. Havia um burburinho de flamenguistas em um bar assistindo Boca x Flamengo. Os argentinos ganhavam por 1 x 0. Aproximei-me receoso para ver o placar e justo quando cheguei os argentinos marcaram. Gritei Goooooooooooooool e de repente me vi cercado de olhares ferozes. Algumas pessoas se levantavam da cadeira. Sebo nas canelas. Mas era difícil correr gritando— Felizmente sobrevivi para contar a história, e sobrevivi feliz!

21
Jan 10
publicado por José Geraldo, às 19:24link do post | comentar

Judah Stevens ganhou os primeiros trocados escrevendo discursos para políticos e anúncios de xaropadas curativas no jornaleco local. Tinha sido bom em redação na escola e por isso o haviam recomendado a um cargo na Prefeitura, por influência de sua família relativamente influente.

Com o tempo tornou-se o braço direito de ambos os partidos. Na calada da noite, como vampiros, homens de terno o procuravam com encomendas ilegais: “queremos discurso contra a privatização da rodovia”. No dia seguinte outros homens, de ternos iguais e voz idêntica encomendavam outra coisa: “queremos discurso contra a estatização da rodovia”. Não tinha vergonha, era divertido quando sua palavra causava desentendimentos, destruía alianças, construía esperanças, cimentava improváveis conluios.

Não era só para discursos que o queriam: logo os poetas descobriram sua incrível facilidade para corrigir pés-de-verso, os prosadores de indecisas orações queriam sua argúcia para remendar erros gramaticosos. Revisava romances, polia poemas, cortava contos, tratava de teatro e escrevia epístolas.

Um dia seu tio lhe deu um alerta, “cuida de tua própria horta, estúpido, e deixa dessa mania de se achar mórmon americano”. Ele se sentiu de novo Jairo Santos. Mas depois passou quando lhe pagaram patocentos reais por uma tese em filosofia. O tema, claro, foram os sofistas. Dotado de seu doutorado imaginário em eufemística, passou a cobrar mais caro.

Mas outro dia, voltando da missa regulamentar, aconteceu um apagão e o céu ficou vermelho escuro. Olhou para as nuvens pesadas e viu uma legião de esquálidos e míopes estafetas matraqueando máquinas de escrever entre as gazas.

“Estarei louco, o que é isso?” — perguntou a si mesmo. Uma voz em algum lugar, incorpórea, lhe respondeu. “Muda de vida ou serás um dia como eles. Estes são os ghost-writers amaldiçoados. Eles passarão a eternidade escrevendo roteiros encomendados e discursos de vereadores.”

Por sorte ele acordou suado.

21 de janeiro de 2010

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