Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
29
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 23:24link do post | comentar | ver comentários (1)

O sucesso do mais novo rebento da categoria do filme hollywoodiano baseado em quadrinhos de heróis nos faz novamente refletir sobre o símbolo que a máscara representa para aqueles que com ela se identificam. O herói mascarado, mais especificamente o Batman, herói mascarado mais arquetípico e mais poderosamente enraizado nas nossas neuras e ideais, representa muito mais do que o veículo de algumas horas de diversão violenta, ainda mais quando habilmente manipulado para que sua história deixe de ser quadrinesca e kitsch para adquirir ares adultos. Um movimento que começou com Frank Miller nos anos 1980 e agora nos produz o primeiro filme de super heróis a romper realmente a barreira do infanto-juvenil e ganhar elogios de adultos (embora não de todos os adultos).

Batman faz mais sucesso que a maioria dos heróis, inclusive no quesito ardor dos fãs, porque ele é «um de nós», não um alienígena adotado pelo nosso planeta, como o Super-Homem. Porque seus poderes estão ao alcance de um ser humano dedicado e provido de recursos, em vez de derivarem de uma fonte mística qualquer; como o anel do Lanterna Verde, a filiação divina da Mulher-Maravilha, a divindade de Thor ou  algum improvável acidente nuclear (Hulk) ou elétrico (Flash). Além disso, ao contrário do Homem de Ferro, outro herói que também emprega poderes não sobrenaturais, ele não é fragilizado fisicamente. A fragilidade do Homem-Morcego é uma fragilidade ao mesmo tempo psicológica (derivada do trauma de ter presenciado, impotente, o assassinato dos pais) e moral (seu comportamento de vigilante frequentemente torna aqueles a que combate em monstros piores ou enseja que os bandidos se tornem mais viciosos para lhe fazerem frente).

Estes fatores aproximam o homem comum deste herói, cuja força está nos músculos, no cérebro e no dinheiro — os três poderes mais invejados pelos jovens de hoje. E desde que o atual diretor dos filmes, Christopher Nolan, conseguiu mostrar o herói de forma mais máscula (desviando das antigas suspeitas do relacionamento homossexual com Robin) e independente (tornando-o menos tutelado pela figura paterna do mordomo Alfred), paradigma se tornou mais evidente e o culto ao Cruzado Mascarado cresceu.

Uma coisa que sempre me chamou a atenção nas histórias do Batman foi que os seus vilões o enfrentavam de cara limpa na maioria das vezes. As poucas exceções eram justamente os personagens mais ambíguos, como a Mulher Gato, que eu, desde criança, sempre pensei que queria mais roubar o coração do Morcegão do que as joias dos museus. Pinguim, Coringa, Duas Caras, Charada, Erva Venenosa; quase todos tinham os rostos expostos ou meramente disfarçados por uma máscara que servia mais de adereço do que de disfarce. Diferentemente do Homem-Morcego, em seu pesado traje, que reflete as sombras de sua alma atormentada por uma infância interrompida por um crime absurdo e pelas sequelas de um vigilantismo que frequentemente o expõe às monstruosidades que pretende combater. Como dizia Nietzsche: quando contemplas o abismo, o abismo também te contempla. De tanto contemplar o abismo, o Morcego se torna, também ele, abissal.

Por isso é curioso que justamente esteja sendo considerado este último filme como a culminação de todos os filmes do herói com máscara de quiróptero: pois é justamente o filme no qual ele enfrenta outro que, como ele, tem o rosto oculto por trás de uma máscara. Uma máscara que é o oposto da sua: Batman oculta os olhos, para não ter que encarar de frente o abismo. Bane oculta a boca e se oferece à contemplação, ao mesmo tempo em que contempla, desafiadora e esfingicamente. Bane é um bandido que não tem nada a declarar, ao contrário de outros que muito diziam mas nada significavam, como o Charada, o Coringa ou o Pinguim. Representa a maior expressão da força bruta, descuidada da própria preservação. Sua máscara lhe mantém permanentemente sob o efeito de analgésicos e esteróides e drogas outras. Ele não quer acusar os golpes, porque se os sente talvez não golpeie com tanta força.

Poderia dizer que vejo em Bane uma metáfora para o terrorista suicida. Mas para isso eu teria de comparar a crença religiosa a uma máscara que injeta analgésicos o tempo todo pela goela abaixo de quem a põe. Vocês concordariam com isso? Não sei se eu mesmo concordo.


10
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 12:29link do post | comentar | ver comentários (1)

Apareceu de repente um barui estrãe no motor do caminhão, chamano a atenção do Remundo, que cochilava no banco de carona pro Jailso dirigir. Tava de madrugadinha e era lua minguante, num dava para ver nada no escuro daquele fim de mundo.

— Jajá, para o caminhão.

Encostar ali era perigoso: ês tava no meio do nada, estradinha de terra. Canavial dum lado e dotro. Não tinha nenhuma luz de cidade apareceno no céu.

— O que foi, Mundim?

— Um barui no motor.

— Não escutei nada, ocê tá bêbo. 

—  Parece que tem um trem quarqué atrapaiano o motor a girar.

— Tem nada. Iss’ é besteira de caminhonero bêbo.

Mas o rai do barui tava lá. Remundo tamém escutô e ficô co os cabelo rupiado da nuca até a bunda. Porquê num era no motor coisa nenhuma, era arguma coisa no meio do canavial. Mas o motor tamém tava estrãe.

— Né não, Jajá. Me chama de Richarlyso se não tá aconteceno alguma coisa.

Descero então e pegaro as chave de fenda. Abriro a tampa do capô da F-150 e ficaro olhano com a lanterna, procurando um trem quarqué solto que fizesse o barui.

Então escutaro um ruído quase que não dava para ouvir, assim como os pezim duma galinha correno. A nuca do Jajá rupiô de novo e ele virô assustado como se alguém tivesse enfiado gelo na carça dele. Pela estrada afora, na luz do farol, ia umas pegada esquisita, que sumia na curva.

— Tá veno isso, Mundim?

— Olha, nem sei o que é, mas vam’ ‘bora daqui!

Montaro os dois, apertaro os cinto e ligaro o motor. Nos matagal em volta da estrada se oviu um bater de asa que parecia revoada de morcego saino do inferno.

— Jajá, acabei de pensar. As pegada vão para lá…

— Cõ efeito, Mundim, deixa de ser medroso.

Aceleraro com força. Poquim depois da virada da curva, um par de zói vermei apareceu no mei da estrada, encarano os farol.

— Ai Santa Mãe de Deus, um lobisome!

Jajá tentou frear, mas já tava muito em cima. O bicho foi na grade, fazendo um barui seco, como uma explosão de pedrera lá longe.

— Será que matamo o demõe?

— Vam’ descer e ver.

De fato mataro, só que não era nenhum demõe, mas uma pobrezinha duma capivara, gorda que só ela.

Os dois começaro a rir da bobiça enquanto examinav’ os resto da bichinha. Uma capivara, cês sabe, é mais ou meno um ratão cotó grande e cabeludo.

Enquanto ês tava lá rino de alívio, nem viro a sombra grande do disco voadô que subiu do meio do canavial, quietim, e sumiu céu acima, sem ês ver.


24
Mai 12
publicado por José Geraldo, às 01:18link do post | comentar

Eu tinha meros vinte e dois anos quando adquiri de um vendedor ambulante, em visita à faculdade onde cursava História, um exemplar da «Obra Poética» de Fernando Pessoa, publicada pela Aguilar. Na época achei caro, demorei a compreender que havia comprado um dos tesouros mais valiosos que possuo. A edição é cuidadosa, acompanhada de biografia com fotos e de extensos comentários. Tudo muito dispensável, claro, quando você entra no que interessa, que é a poesia. Sempre que ouço um babaca falar alguma coisa contra a poesia eu respiro fundo, rememoro algumas das tiradas fantásticas do poeta português e me asseguro da constatação inicial: «é um babaca mesmo». Ainda que haja muitos péssimos poetas pelo mundo, a manchar o bom nome da poesia, alguns, como Pessoa, parecem produzir com seus versos um efeito sanitário que arranca o limo de mediocridade que afeta o resto. Só depois dos trinta anos fui entender Fernando Pessoa. Só quando doeu.

O poema que me convenceu da absoluta e inquestionável genialidade do autor não é nenhum dos famosos. Não me identifico no nacionalismo místico de «Mensagem», detesto boa parte dos heterônimos (ainda que alguns poemas de Álvaro de Campos me agradem muito) e compreendo que muito do que está na Obra Poética são rascunhos que o autor dificilmente teria escolhido publicar. Mas este poema, «Hora Absurda», escrito em 1913, quando Pessoa tinha meros vinte e cinco anos e ainda tinha certo flerte com o simbolismo, foi como o murro na cara que nos acorda para a realidade da luta. Muitos de seus versos são fracos, mas a força da maioria deles é tanta que quase rasga o papel. Em um poema de apenas vinte e cinco quadras de versos bárbaros podem ser achadas pelo menos oito trechos que nenhum poeta brasileiro vivo seria capaz de igualar. O poeta nos atinge com simplicidade: «Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro» ou complexidade: «A doida partiu todos os candelabros glabros,/ sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas…/ E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros… E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?…» Como não ser aceso pela sugestão de que «Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente»?, Esta sensação de ausência chega à perfeição absoluta quando o poeta diz: «Ah, deixa que eu te ignore… O teu silêncio é um leque — / Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,/ Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque.» Como qualificar a beleza maior que existe no leque fechado, potencial, face à decepção de o leque aberto não ser à altura da expectativa construída? Existe camadas e camadas de sentido que escapam nas primeiras leituras. Precisei ler o poema mais de seis vezes ao longo da vida para entender que a singela frase «É preciso destruir o propósito de todas as pontes» possui mais sentido do que parece: se pontes existem para unir o que está separado, destruir o propósito delas consiste em acabar com todas as separações. Em um mundo onde ninguém estivesse separado não haveria necessidade de pontes. A mais bela das utopias é que as pontes fossem desnecessárias. Não somente as materiais, mas principalmente as metafóricas. Tal como o poeta eu lamento: «Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!…» Sim, confesso: amo paisagens e pessoas que não existem, amo as que já existiram, mas não as diferencio das que são somente criações e crenças de minha mente insatisfeita com as paisagens que existem, essas que todos veem e que tantos amam. Esses que, como Pessoa e eu, amam as paisagens que não existem, acabam confessando-se: «Eu sou um doido que estranha a própria alma» (e como, às vezes, ela e eu nos estranhamos). A única diferença é que, ao contrário de Pessoa que, cônscio de sua própria genialidade, previa num futuro pretérito que teria o reconhecimento que a vida lhe negava, eu jamais poderia dizer que «fui amado em efígie num país para além dos sonhos». Ou será, melhor, que Pessoa ao dizer isto sugeria que somente em um lugar ainda mais profundo e longe que o próprio sonho haveria de encontrar o reconhecimento?

Somente a leitura de «Hora Absurda» me gastou quatro horas nestes dias. Este é um daqueles textos que não vale a pena ler com pressa. Quem vive com pressa, e depressa, não pode seguir o conselho mágico: «Vive o momento com saudade dele já ao vivê-lo…» Mesmo o poeta, porém, em outro momento, reconheceu que esta contemplação é perigosa. Ao aproximar-se da famosa ribeira do rio, musicado por Danilo Caymmi e gravado por Maria Betânia, o poeta percebe que a vida, o rio, tem por maior propósito justamente engambelar-nos: «Porque o bem dele é que faça / Eu não ver que vai passando.» Passei anos de minha vida sem perceber que o rio estava realmente passando. Por isso só entendi este poema aos trinta e nove anos.

Cada dia acho um tesouro diferente. Para além dos famosos poemas que todo mundo conhece. Tardei quase vinte anos para saber o que seriam as «calhas de roda» nas quais o coração, esse «comboio de corda» chamado coração gira a entreter a razão. Aos poucos percebo as sutilezas do vocabulário tipicamente português (muitas vezes mais belo que o nosso, tão afrancesado e anglicizado). As calhas de roda (trilhos) por onde gira sem destino o comboio (trenzinho) de corda chamado coração são semelhantes ao rio, que passa a tentar nos fazer ignorar sua passagem.

E assim, enquanto leio o poeta, enquanto amo lugares que não existem, enquanto lembro tempo em que comemoravam o dia dos meus anos etc., tal como ele me perguntei em certa época «porque fiz eu dos sonhos a minha única vida. » Depois eu achei que tinha saído dos sonhos e suas brumas e construído uma vida real onde habitar. Terminada esta tarefa, descobri que andara atrás do alvo errado: nem eu nem pessoa vivíamos de sonho pela falta de uma vida de carne onde habitar. Segue verdade, na vida e no verso, que por mais vida que tenhamos, resta-nos um «Rosebud» que ninguém conhece, habitando no fundo de um sonho, que é o único lugar onde nunca erramos, onde realizamos todos os nossos planos importantes, e onde podemos passar a limpo todos os maus passos. Quando compreendi isso, compreendi junto que os sonhos eram a única vida do poeta simplesmente porque os sonhos são o único lugar onde o ser humano realmente vivo: fora deles cada um de nós é um animal a reproduzir-se e comer. Ou, como famosamente disse o poeta: «cadáver adiado que procria».

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26
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 15:24link do post | comentar
Notas para minha participação na mesa redonda sobre o tema “A embriaguez como inspiração artística ainda se justifica?”, ocorrida no dia 11 de novembro de 2011 no III Festival Literário de Cataguases. Esta postagem ocorre com tamanho atraso porque, em virtude de problemas que eu estava enfrentando com o meu computador, perdi duas vezes o texto revisado que já estava quase pronto para postar.

A Licença Poética basicamente significa que o autor tem a prerrogativa de escrever como queira, sobre o que desejar. Então o debate se o artista de hoje ainda pode tomar a embriaguez como inspiração me parece um pouco fora de lugar: é óbvio que ele pode. Talvez o que a gente deva discutir seja outra coisa: a relevância de uma abordagem assim autodestrutiva. Porque embriagar-se é uma forma suave de autodestruir-se. Nesse ponto eu tenho duas opiniões:

Primeira,quanto ao assunto: Não acho que escrever sobre drogas (lícitas ou não) seja tão relevante quanto muitas pessoas creem. Possui uma certa relevância, mas quando um artista se restringe a esse assunto, recai em uma fórmula que já está bastante estabelecida e já tem até mesmo uma tradição. Existe um gênero de «literatura drogada» tal como existe um gênero de histórias de vampiros ou de contos eróticos estilo revista masculina. Ou seja: é uma ilusão imaginar que uma abordagem autodestrutiva possua novidade ou seja uma maneira genuinamente «revoltada» para expressar desencanto com a sociedade e a cultura em que vivemos. Ao fezer isso o autor apenas adere a um gênero, tal como os autores de historinhas de vampiro, ou os magos com seus livros que ensinam a fazer chover. Acredito que o valor da obra não está na «atitude», mas na competência. Bons livros transcendem seus limites e autores realmente talentosos devem ser versáteis, capazes de abordar diversos temas com desenvoltura.

Segunda,quanto à abordagem: Não acho que embriagar-se (seja qual for a química envolvida) seja favorável à produção artística. Um artista bêbado dirige a sua «pena» (hoje de forma metafórica) tal e qual um motorista bêbado dirige o seu automóvel. Você não escreve melhor porque bebe, a verdade é que você certamente escreve pior. Mesmo que consiga escrever coisas interessantes enquanto bêbado, terá conseguido apesar da embriaguez, não por causa dela. Quando pensamos por tal lado, vemos que embriagar-se não é um imperativo da arte, mas algo que brota da personalidade do artista.1 É o artista que se embriga, não é a arte que lhe exige isso.

Tendo feito estas duas considerações iniciais, que praticamente resumem tudo que preciso dizer, passo a fazer alguns detalhamentos também interessantes, embora não acrescentem muito às teses dispostas acima. Não os faço para expandir, mas para reforçar. Mas eu gostaria de desviar ligeiramente o tema desta mesa-redonda. Ligeiramente apenas: o desvio logo voltará ao tema. Prometo.

A Embriaguez Enquanto Reação Alérgica à Cultura

Acredito que todos aqui saberão de algum nome técnico para esta «necessidade» de embriaguez. Nossa sociedade hoje tem um nome técnico e até, talvez, um comprimido, para cada estado de alma possível. Cada indivíduo porta pelo menos um diagnóstico. Cabe muito bem investigar não a droga, não a bebida, não a erva, mas a figura da pessoa que se relaciona com tais substâncias, como e porque. Não investigar pelo lado direto e quase pornográfico, mas pelo lado filosófico. Eu poderia citar aqui alguns autores famosos sobre isso, como Durkheim ou até Proust, mas não desejo tornar este artigo penoso de ler e nem acometê-lo da soberba que aprendi a desprezar nos outros. Limito-me a dizer que há muito tempo é consenso entre cabeças pensantes que o impulso que nos leva à autodestruição é, possivelmente, a única questão filosófica realmente interessante. Dizendo em curtas e brutas palavras: qual o sentido da vida, afinal?

Quando o autor se embriaga ele não está pensando na arte, mas em sua relação com a sociedade. A própria citação de Baudelaire, usada como chamamento para essa troca de ideias aqui é bem explícita: ele dizia embebedar-se para suportar «o horrível fardo do Tempo» que atinge o homem e lhe «quebra os ombros e o curva para o chão». Baudelaire confessa claramente que não é um ideal artístico que o motivava, mas uma espécie de mal-estar social. Não custa lembrar que o poeta foi contemporâneo de Schopenhauer e Nietzsche — e você precisa conhecer esses dois para entender melhor as tentações suicidas das grandes figuras da arte.

É nisso que eu pretendo começar o desvio. Existe um mito fortíssimo, bastante difundido entre nós, provavelmente presente em outros povos também, de que a cultura é uma forma de decadência em vez de progresso. As pessoas parecem pensar que a aquisição de conhecimentos debilita, em vez de fortalecer, desune em vez de unir. Assim, o «homem perfeito» teria de ser alguém «simples decoração», «pobre de espírito».

Este conceito é bem antigo, por isso o chamei de mito. Fazendo uma rápida digressão histórica, vamos lembrar que na mitologia grega havia a figura do profeta cego Tirésias, um visionário cego, vejam que interessante. Ou Cincinato, o rude fazendeiro que salvou a República Romana. Ou Maomé, supostamente analfabeto e autor do Alcorão, o «livro perfeito». Estes homens fortes e simples (sancta simplicitas, dizia um ditado latino) conseguiram impressionar e liderar porque não tinham as hesitações que somente a maturidade traz. A ignorância pode não ser uma bênção, mas ela permite atos de loucura, a que a posteridade chamará de heroísmo.

O contraponto a esse homem «forte» porque simples, sábio porque ignorante é justamente o homem frágil porque culto, louco por ter estudado demais. Quem estuda demais enlouquece, como nos diz a «sabedoria popular». A civilização árabe teria entrado em decadência porque assimilou demais as culturas «decadentes» do mundo helenístico. Li esse absurdo num livro de História. Provavelmente o autor pensou que os muçulmanos teriam dominado o mundo inteiro no século VIII se não tivessem estudado filosofia. Vai saber.

O homem que se torna maduro e culto sofre logo com a descoberta daquilo que já foi chamado de «mal estar da civilização». Como dizia Aristóteles: experimentar é sofrer. Ou, como disse H. P. Lovecraft:

A coisa mais misericordiosa do mundo, eu acho, é a incapacidade da mente humana para correlacionar todo o seu conteúdo. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio aos mares negros do infinito e não nos foi dado viajar para muito longe. As ciências, cada qual puxando em sua direção, até agora nos causaram pouco mais; mas algum dia a montagem do quebra-cabeças de conhecimentos espedaçados abrirá tão terríveis visões da realidade e de nossa horrível posição nela que enlouqueceremos com a revelação ou então fugiremos da mortífera luz para a paz e segurança de uma nova idade das trevas (tradução do autor)

Aquele que aprende, deixa um pouco de si à medida em que incorpora algo do outro, então o aprendizado produz uma incompletude do ego ao mesmo tempo em que o expande com elementos do outro. Esse processo talvez seja o que Marshall McLuhan chamou de «destribalização» e outros chamaram de «desenraizamento». Hoje, mais do que nunca, nós somos criaturas hidropônicas, isoladas da terra que nos deu origem.

Estudar Enlouquece, Aprenda Isso

O fenômeno descrito acima foi percebido muito cedo pela humanidade, que tratou de desenvolver em torno dele um complexo sistema de atenuamento. Ao longo de um processo milenar, surgiu a crença na sobrevivência da alma, surgiram as religiões e seus sistemas de controle, surgiram, cedo, as drogas. É uma vaidade louca tentar acabar com o tráfico de drogas: ele não existiria se as substâncias psicoativas não fossem úteis. Em todas as épocas existiram pessoas que precisavam da fuga, da anestesia, da aniquilação. Em todas as épocas existiram pessoas que precisavam do suicídio. A diferença é que hoje, neste mundo apinhado de gente, onde mal se pode urinar na hora em que a natureza chama, o suicídio deixou de ser um trato pessoal com o destino e passou a ser um fenômeno coletivo, posto que terá testemunhas, herdeiros, sofredores.

Nesse sentido a religião encontrou um terreno fértil para transformar-se em uma força social permanente. Dependendo da época e da cultura, a religião pode dar um sentido ao suicídio, reduzindo o sofrimento da família do falecido, ou pôr um freio no ato, ao dar um sentido à vida daqueles que não veem mais sentido algum. Para que estes processos funcionem é preciso que as pessoas aceitem o pacote da religião, e esta aceitação depende da suspensão da crítica, o mesmo fenômeno que permite ao leitor de uma obra fantástica aceitar, «em tese» e para fins meramente de diversão, a existência de duendes, elfos, dragões ou até deuses. Por isso as religiões e as filosofias têm uma relação conturbada. Em geral os filósofos só aceitam a religião quando eles próprios desenvolvem filosofias que legitimam a religião. A religião, por sua vez, discrimina entre os filósofos aqueles que são tachados de «niilistas» e os condena do alto de seus púlpitos.

O cristianismo, em especial, desconfia da sabedoria, e desconfia com força. Está no Novo Testamento que a sabedoria do homem é loucura para Deus, e vice-versa. Estudar é tornar-se louco aos olhos de Deus. Tornar-se sábio no mundo é afastar-se da salvação. Quem estuda se afasta das respostas prontas dadas pela religião, e no perigoso pântano do pensamento (oh, a horrível liberdade!) pode concluir por valores reprováveis perante a sociedade e seu cão de guarda, o sacerdote.

Sobre estudar demais e ficar doido, nossa cidade teve um personagem mítico,o já falecido professor Geraldo Barbosa, que muitos aqui devem ter conhecido. Não vou dizer que era louco, o que me importa nesse ponto é mais o que diziam dele, do que o que ele realmente era. Diziam que ele, de tanto estudar, teria ficado louco.

No meu tempo de criança havia conhecidos meus, pessoas adultas,inclusive de minha família, que me citavam o Geraldo Barbosa para me convencer que não estudasse «demais». Davam-me como exemplo primos e parentes, que ganhavam a vida já, sem terem grandes estudos,enquanto eu ainda não tinha profissão e nem «futuro» (essa arma abstrata com que os mais velhos atiram nos sonhos dos jovens). O dinheiro adquiriu tal importância entre nós que passou a definir, de forma exclusiva, o sucesso ou o fracasso. Houve uma época em que os homens ricos em dinheiro não tinham poder, mas sim os ricos em terras e em seguidores. Hoje em dia todos os bens somente têm valor enquanto possam traduzir-se em dinheiro — embora, curiosamente, o dinheiro em si seja uma abstração, tal como bem definiu o chefe Seattle, em sua carta ao presidente americano: somente depois que a última árvore for cortada, o último peixe for pescado e o último rio for envenenado o homem branco perceberá que não pode comer dinheiro.

Seria o professor Geraldo Barbosa louco? Machado de Assis, em sua espetacular noveleta O Alienista, já nos mostrou o quanto é tênue e arbitrária esta linha marcada entre a normalidade e o desvio. Mas supondo ainda que fosse mesmo «louco», mesmo que apenas em tese, seria ele louco por ter estudo em excesso?

A Política da Loucura

O povo inculto, de um modo geral, teme e odeia os seus líderes desde há milhares de anos. Desde a Suméria e o Egito, quando a escrita foi inventados, os homens que leem e escrevem são vistos como controladores de forças terríveis, MALÉFICAS. São forças maléficas porque a elite oprime o povo. Logo, as tecnologias da elite, entre elas a escrita e a leitura, são contrárias ao bem do povo. É significativo que ainda sobreviva em nosso meio um filão de filmes de terror focado em Livros Malditos.

Mas o povo precisa de auto-estima, não pode se aceitar como gado. Por isso desenvolve-se a ideia do «preço que a bruxaria cobra». Inicialmente isso era visto como literal: os que se dedicavam aos mistérios deste e de outro mundo eram pessoas distantes, isoladas, malcheirosas devido às experiências que conduziam em suas alcovas. Envelheciam cedo devido às privações de sono e de alimento,enxergavam mal devido a «forçar a vista» em seus livros, diante de velas e cadinhos. Hoje já não se faz alquimia, mas persiste a ideia de que o homem dedicado ao solitário prazer da cultura seria um ser infeliz, amaldiçoado. Salutar e bom é o vigoroso homem do povo, isento da corrupção do passado, cheio da verdade simples e direta que brota da terra.

A figura do artista maldito, degradado, bêbado, drogado etc. nada mais é do que uma variação do Professor Geraldo Barbosa, que estudou tanto que enlouqueceu. Estes artistas têm exposição intensa na mídia, desproporcional até, porque eles atendem a um modelo, a um arquétipo. Com já disse, as pessoas acreditam que a ignorância é «pura», que a sabedoria «corrompe». Então, as pessoas acreditam que o artista é mais natural, mais espontâneo, quando se exibe louco, entorpecido, decaído. Por ser uma pessoa mais «sensível» (seja lá o que for que o povo ache que «sensibilidade» é), o artista seria por natureza uma criatura frágil. Então fecha-se um círculo e pessoas interessadas em ser ou parecer artistas seguem esses modelos de comportamento frágil-drogado achando que se tornam mais artistas por causa disso. É aqui que a frase do Chesterton entra como uma luva. Ou seja, tem gente que acha que é o rabo que abana o cachorro. Há pessoas que acreditam que terão os acertos de uma outra pessoa se copiarem os seus erros.

Já vimos antes que o conhecimento expõe o homem ao confronto com forças que estão além de sua compreensão e que nem todos estão preparados para sair ilesos de tal combate. Voltamos, então, ao tema da embriaguez.

Para mim, tudo o que embota a mente, lícito ou ilícito no Código Penal, tem a mesma função: produzir ignorância artificial. Uma vez que as pessoas, de forma tão prevalente, apreciam a ignorância, o artista se atenua, entorpece, anestesia, a fim de produzir uma obra menos refinada, menos pensada, mais rude, visceral. Todo artista tem que ir aonde o povo está. O artista maldito é a confirmação, aos olhos do povo, que a sabedoria é perigosa, que o conhecimento corrompe. O homem sábio é ambicioso, tenta construir a Torre de Babel, termina confuso.

A concepção do artista como um ser autodestrutivo é uma maneira de desqualificar socialmente. O artista é mostrado como um doidão, não alguém que merece respeito. Isso me lembra um amigo virtual, que postou no Facebook um episódio de sua vida real: quando disse que era músico, lhe perguntaram em que ele trabalhava. Não se concebe que alguém possa ser «escritor», ou «músico», ou «artista». Aliás, na linguagem do povo, «artista» é ator da novela.

No Brasil nós temos um outro interessante paradigma disso. Na sociedade coronelista, que não superamos totalmente, o coronel, geralmente um homem de pouco ou nenhum estudo, contratava serviços especializados de gente diplomada: médico, contador, advogado, engenheiro, professor. Todos lhe eram submissos pela lógica do poder. Então ficava o estigma de que um diploma apenas habilitava o portador a ser subalterno do poder. Posição desejável por homens pobres, mas vista como degradante para os descendentes das famílias quatrocentonas.

Por isso, filhos das classes mais altas, mesmo quando se formavam, preferiam a política: o diploma era só perfumaria, só para não ficarem abaixo de seus subalternos. Exercer a profissão era algo indigno de alguém oriundo de uma família poderosa. Antônio Carlos Magalhães formou-se médico mas jamais clinicou. Quando alguém de origem socialmente alta realmente exercia sua profissão, isso era um sinal de incapacidade ou impossibilidade de manter e expandir o poder herdado. «Pai fazendeiro, filho doutor, neto pescador» — diz o ditado mineiro. Deixar o poder e dedicar-se a uma carreira é uma decadência.

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Não Sejamos Moralistas

Escritores se embriagam. Sim, eles são seres humanos e vivem tudo que os humanos vivem. Sendo humano, dedico-me à viver tudo que é da natureza humana, teria dito um devasso imperador romano. Mas os escritores ainda vivem algo mais, que lhes é peculiar: a experiência da escrita. Quando um estivador, um lixeiro ou um médico se torna alcoólatra, isso não cria um debate sobre estivadores, lixeiros ou médicos alcoólatras. Mas quando as pessoas pensam nos escritores que se drogam (nos artistas, tamem, de uma forma geral), elas logo fazem um «salto lógico» de supor que a embriaguez seria uma característica do ofício. Por isso, creio que talvez seja errado considerar a embriaguez tão definidora de características literárias para que nos dediquemos tanto a ela. O que já dedicamos me parece muito.

A relação disso com a minha digressão sobre o sábio louco e o ignorante vigoroso é que conviver com esse arquétipo é penoso. Há uma série de dificuldades adicionais que o escritor precisa vencer para dedicar-se à sua atividade. Estas dificuldades, por si, podem afastar o escritor do convívio de outras pessoas, porque escrever demanda, principalmente, tempo e silêncio. E parece ser uma característica quase universal das culturas contemporâneas a valorização do ruído, da experiência coletiva. Diante das teletelas reais vivemos nossos momentos de ódio e de amor sempre na companhia do outro, cidadãos de um admirável mundo novo que somos, obrigados a sorrir e a amar quase como por dever cívico.

Então,quando você junta a persistência do arquétipo de que cultura enlouquece, a necessidade de relativa solidão para poder produzir e mais os problemas (psicológicos ou sociais) de que ninguém está inteiramente livre, o que obtém? Se o escritor recair em algum vício você obterá uma série de obras dedicadas ao vício porque, em geral, o grande assunto do autor é a sua própria vida, que ele pode desnudar diretamente em uma autobiografia ou meramente transferir de forma sublimada para cenários de suposta fantasia. Será, porém, que estas obras indicam algum valor no vício?

Uma das características do viciado, do «adicto», como se diz hoje, é negar que seja viciado. Quem tem parente alcoólatra sabe muito bem como inventam desculpas, histórias, explicações. Imagine que desculpas, histórias e explicações não serão inventadas por um alcoólatra que tenha talento com as palavras? Sempre, claro, com o objetivo de glorificar o próprio vício.

Ainda mais porque o vício, sendo algo que pode acometer qualquer pessoa, acaba por servir de traço de união entre o estranho, o homem das letras supostamente elevado e incompreensível, e o normal, as pessoas que vivem vidas naturais, sem preocupações literárias. Papo de bêbado é sempre igual. Beber, então, pode ser uma forma de o escritor mostrar-se acessível, criar uma imagem que o grande público não rejeite. Ele tinha talento, mas tinha uma fraqueza. Ninguém suporta os perfeitinhos. Quer dizer que além de ser rico e talentoso ele também era abstêmio? Ah, alguma podridão ele deve ter!

Perigos Modernos

Existe um outro aspecto a se considerar sobre a embriaguez: hoje em dia ela deixou de ser um ato de contestação. Isso é parte do grande processo de banalização de tudo, fruto de nossa sociedade que produz tudo em escala industrial, inclusive sofrimento e estupidez.

Quando Baudelaire e seus amigos se reuniam nos clubes de comedores de ópio em Paris, eles o faziam como uma afronta à sociedade «certinha» de seu tempo. Eles se sentiam meio mortos naquele mundo de convenções e limites, queriam romper suas amarras e ver coisas novas. Não se sabia, ainda, o quanto as drogas eram ruins. Havia uma certa ingenuidade no mundo, naquela época. Não custa lembrar que até os anos vinte ainda se vendia pastilhas de cocaína e vinho com heroína.

As pessoas foram descobrindo aos poucos que certas substâncias eram perigosas, e reagiram histericamente quando isso caiu no domínio público. Proibiu-se um monte de coisa que não precisaria ter sido proibida, e muita coisa que tinha de ter sido continuou legal. Então a embriaguez voltou à moda. Nada mais contestador nos EUA da Lei Seca do que ser um pudim de cachaça.

O problema é que este aspecto «contestador» da embriaguez perdeu seu sentido. Hoje em dia está tudo normatizado e tolerado, inclusive a rebeldia em nível individual. Você pode se vestir como quiser, tatuar-se aonde quiser, espetar-se com o que quiser, maquiar-se como quiser, talvez até botar um parafuso na cabeça. Então quando você enche a cara, está apenas alimentando mais uma indústria, que é parte do sistema. A rebeldia, hoje em dia, é uma função necessária para a estabilidade do conjunto. A rebeldia idiota, ou seja, a rebeldia do indivíduo isolado. Porque a rebeldia coletiva merece gás de pimenta, cassetetada no lombo e ordens judiciais de reintegração de posse. Enquanto você estiver sozinho contra o Leviatã você tem a liberdade de dizer e fazer muita coisa, mas ao reunir-se diante dele o resultado é todos serem pisoteados.

Veja bem, não estou aqui sendo moralista. Cada um tem o direito de ser o que quiser. Não sou polícia do corpo e nem da alma alheia. O que me incomoda é existir a estética da arte como algo «sujo», do artista como necessariamente alguém que «peca». Não me incomoda porque seja contra isso, mas porque o estereótipo ocupa praticamente todo espaço. Parece que as pessoas acham que o artista é de alguma forma ilegítimo se ele não se tatuar, não brigar com a família,não cometer algum crime, não tiver uma vida antissocial, etc. Esse artista que não agride a sociedade é tachado de «conformista», «nerd», «workaholic» etc., quando não apenas ignorado.

Mas todas estas coisas que alguns artistas fazem não são a arte em si. São idiossincrasias do artista que, muitas vezes, afetam negativamente a arte, mas algumas podem afetar positivamente também. Quantos poetas malditos que se mataram cedo não poderiam ter vivido até uma maturidade muito mais significativa artisticamente? Quantos roqueiros mortos de overdose não poderiam ter feito música ainda melhor se não tivessem partido aos vinte e poucos? Para cada conto de Poe, para cada poema de Coleridge, deve haver uma infinidade de composições de Hendrix.

De fato, são poucos os escritores que bebem para escrever. São muitos os que bebem, claro, mas a ideia de que alguém enche a cara de cachaça e diz, «agora, então, eu estou pronto para escrever» é uma coisa irreal. Escrever exige concentração, coordenação motora, certo domínio dos sentidos. Uma quantidade moderada de álcool, ou qualquer entorpecente, pode não ser suficiente para impedir, mas dificulta. Uma dose maior simplesmente impede o ato criativo. Veja os famosos shows com músicos drogados, aqueles caras cantando com voz arrastada, errando notas na guitarra, tropeçando no palco. Algo parecido acontece com o escritor. Sua voz arrastada é a dificuldade para lembrar vocabulário, seus erros de notas são as omissões de palavras ou pontuação, seus tropeços são as perdas de sequencia lógica.

Minha experiência pessoal com a relação entre a escrita e a bebida foi sempre negativa. Embora eu até tenha escrito textos interessantes sobre a embriaguez, ou até em estado de embriaguez, a verdade é que embriagar-me me retira toda a vontade de escrever. A embriaguez induz à preguiça e abole o raciocínio lógico. Escrita de artista embriagado é como papo de bêbado. Tem quem goste, mas é perfeitamente explicável que tanta gente não goste.

Uma coisa diferente é escrever posteriormente sobre a experiência dita durante a embriaguez. Mas nesse caso a escrita não tem nenhum ingrediente diferente em relação à de alguém que não bebeu, a não ser o assunto, que o autor vai conhecer em primeira mão. Mas é um assunto tão importante assim?

Bebendo Para Ganhar o Nobel

Aí chegamos ao ponto crucial, que é o da anulação do indivíduo, o estágio superior da ignorância. Algumas pessoas, mais do que se anularem, mais do que se estupidificarem, querem cancelar-se definitivamente, querem matar-se. As razões que levam alguém a se matar são tão complexas que vários filósofos dedicaram livros inteiros a isso. Schopenhauer dizia que o suicídio era a única questão filosófica relevante e Durkheim escreveu um famoso ensaio sobre o tema. Hoje sabemos que o suicídio não é uma questão filosófica, mas um problema de saúde pública, que até pode ser tratado com comprimidos, na maioria dos casos.

Mas continua sendo um fenômeno real. E justamente um fenômeno que afeta muito mais as pessoas de certa cultura. Nietzsche dizia que um povo é somente uma maneira que a natureza tem para produzir grandes homens e livrar-se deles depois. Nossa cultura, que produz artistas, malditos ou não, ao mesmo tempo em que lhes dá origem, os devora.

E dos americanos ganhadores do Nobel de literatura somente um não foi alcoólatra ou drogado. Será isto um indicativo de que bebendo se escreve melhor, ou um sintoma da doença cultural do ocidente (e dos Estados Unidos especificamente) que faz as pessoas «sensíveis» tenderem à autodestruição?

1 E sempre precisamos ter muito cuidado com a personalidade do artista pois, como cruelmente disse G. K. Chesterton: temperamento artístico é coisa de amadores.


17
Out 11
publicado por José Geraldo, às 20:40link do post | comentar | ver comentários (1)

Jesus desceu de seu trono na cidade de Jerusalém, a Nova Jerusalém, noiva de Deus, calçou as suas antigas sandálias de pescador galileu e saiu pelas ruas pavimentadas de jaspe e ônix, ocultando sua glória em um manto de humildade.

Por toda a cidade reinava um estranho clima de eterna festa, e todos os seus cidadãos iam vestidos à mesma maneira, com idênticos cortes de cabelo. Todos levavam nos seus rostos uniformizados sorrisos muito limpos, de dentes muito alvos.

Não havia nenhuma imundície no chão ou nas paredes, pois não se comia e nem se excretava e todos os animais que chafurdavam na sujeira haviam sido extintos. Pairava no ar um aroma suavemente resinoso, de cedro verde e oliveiras maduras.

Mas Jesus não se sentia bem, enojava-se do perfume leve que embebia a tudo e, em meio a toda aquela inócua e inocentada alegria, sentia-se deslocado. Haviam se passado setenta e sete semanas desde o triunfo final contra Satanás e seus demônios, e desde então nada acontecera de importante. Talvez tenha sido esse tédio o que levou Jesus a lembrar com saudades, muitos milhares de anos depois de sua existência carnal, coisas simples e terrenas como uma taça de vinho morno, o pão ainda quente, a brisa arrulhante do lago à tarde; ou o perfume dos cabelos negros de Maria Madalena.

Ela certamente residia em Nova Jerusalém, junto de milhares de pessoas indistinguíveis e felizes. Difícil era saber onde estaria, entre tantos rostos igualados, memórias terraplenadas, méritos igualados a força de um Juízo. No novo mundo não havia necessidade de casas pois não se dormia ou comia ou se fazia amor. Eram todos angélicos e só contemplavam o amor a Javé, o Eterno e Todo-Poderoso. A própria existência da cidade era uma ostentação sem sentido, pensava Jesus, pois nem a carne e nem o sangue deveriam ter herdado o Reino. Puros e inócuos, os habitantes da Noiva de Javé não sabiam o que era chorar, e tampouco sabiam quem haviam sido.

A caminho de onde tentaria achar Madalena, Jesus encontrou Zaqueu, em meio a um bando de seres que flanava a esmo pelas ruas. Aquele que fora um dia um pequenino judeu, de pequeninas preocupações, ali estava tão mudado e irreconhecível que somente aquele que era um com o Pai o poderia ter identificado.

— Zaqueu, amigo, há quanto tempo!?

— Quem sois vós? — indagou o belo e insípido ser.

— Alguém que no mundo conheceste como mestre e que te chamou de amigo.

Zaqueu olhou inexpressivamente para o rosto de Jesus, sem conseguir reconhecê-lo. Só então Jesus se lembrou que havia sido apagada a memória de todos os resgatados, para que pudessem ser limpos de todo pranto e de toda lágrima. Se tivessem lembranças, certamente teriam dúvidas, teriam motivos para sofrer. Somente o esquecimento asseverava a liberdade. Sem o esquecimento haveria a saudade de algum amigo, amante ou parente — certamente destinados à fornalha de fogo, junto com o Dragão que era chamado de Satanás ou Lúcifer.

Nesse momento Jesus se desinteressou de Mria Madalena. De que adiantaria encontrá-la naquele estado vegetativo e ambulante? Ergueu seus olhos para o céu, vendo a leste um pilar de fumaça que se erguia do Geena. Lá estava o poço imenso de piche e betume, de fogo e de enxofre, no qual os corpos e as almas dos perdidos sofriam a tortura eterna da ira de Deus.

Único habitante da Nova Jerusalém que não tivera o seu coração lavado de toda lembrança, Jesus sentiu um calafrio ao pensar na escala inominável dos terrores que aconteciam debaixo daquele cinzento pilar de fumaça, que brilhava à noite na direção de onde nascia o sol, tal como um dia brilhara à frente dos acampamentos dos israelitas outro pilar de fumaça e fogo que os levava pelo deserto. Certamente alguns dos que lá estavam haviam feito por merecer, alguns haviam sido piores do que Lúcifer e seus demônios. Mas, ah, quantos lá não estavam por razões pequenas, caprichos legais que ninguém nunca compreendera, como aquela história de não cozinhar o cabritinho no leite da cabra ou não poder comer pão com fermento em certas épocas. Ou preferências sexuais que nem faziam sentido no estado angélico. Ou apenas por não terem amado a Deus com suficiente abandono. Por outro lado, Jesus se incomodava com a presença, em Nova Jerusalém, de tantas pessoas arrependidas de última hora, ainda a muito custo ocultando nos corpos o perfume da morte ou da depravação, apesar de insistentemente lavados no sangue do cordeiro.

O diálogo com Zaqueu o fizera desistir de encontrar Maria Madalena. Teria sido inútil vê-la, pois ela já não se lembraria dos antigos dias às margens do Genesaré, comendo figos frescos com mel e ouvindo as belas fábulas que um Jesus de barba ainda não tão cerrada lhe contava. Entediado, retornou ao seu Trono de Glória, tentando divertir-se com o ritual preciso das louvações dos querubins e dos vinte e quatro anciões. Então, ao contemplar o mar de vidro, sua mente se nublou com a lembrança do lago de fogo e enxofre.

Abandonando a sala no meio da louvação dos anjos e dos santos, chegou à janela e observou a negra coluna de fumaça que se erguia a sudeste, no horizonte. Uma lágrima de sangue se formou no seu olho direito ao ver aquele penacho escuro e feio que maculava a limpeza perfeita do horizonte da Nova Terra e do Novo Céu.

— Meu Deus, Meu Deus, por que os abandonaste? — ele se perguntou, num cochicho que ribombou pelas esferas, rompendo a harmonia da música celeste.

Então a sala foi invadida pela suave fragrância de rosas, que lembrava-lhe sua Mãe. Mas era Gabriel, o perdigueiro de Deus, com sua obediência inarredável e sua persistência milenar. Não era nem necessário que algo fosse dito. Se ele ali estava, isso envolvia algo grave, mas Jesus não estava interessado. Evitava falar-lhe, não confiava nele, apesar da cega confiança que merecia do Pai. Deixou Gabriel com os anciões e pegou para si um par de asas angelicais e saiu a flanar pelos ares limpos daquele mundo tocado pela Vontade divina.

Geena, o poço do abismo, o lago de enxofre e de fogo… o lugar que assombrara as imaginações de milhares de gerações. Ali estava, uma bocarra negra escancarada na face da terra, uma cicatriz deixada pela ira divina. Aquele rasgo infernal desgraçava a uniformidade da beleza da nova esfera terrestre, recoberta de deleitosos paraísos. Felizmente não se podia nela chegar senão voando, e aos salvos não era permitido voar.

A disforme fenda vomitava continuamente uma fumarola densa, com um forte cheiro de carne e de podridão. Aquilo pairava pesadamente no ar, subindo com dificuldade e se acumulando na depressão formada em torno da cratera causada pela Segunda Queda de Satanás. Parecia que somente uma força sobrenatural conseguia arrancar o pus daquele tumor e esguichá-lo para o espaço, impedindo que gangrenasse todo o resto do mundo.

Pousado à borda, revestido de seu poder para resistir à pestilência que emanava daquela chaga imunda, Jesus engoliu em seco e criou coragem para descer. Embora naquele dia tivesse vindo por subversão, aquelas visitas eram parte do Plano, fosse ele qual fosse. Eram um ritual semanal de humilhação dos anjos desgraçados e dos que com eles sofriam a eternidade da culpa por uma efêmera transgressão.

Desceu a pé, descalço, pelas trilhas traiçoeiras que espiralavam pela cratera abaixo em direção ao fundo da terra. Percorrendo aqueles lugares terríveis e inimagináveis, Jesus lembrou do suave aroma das flores de sicômoro na primavera e deixou cair outra lágrima, sentindo saudades de ser apenas a criança Yehoshua’ bar Yossêph na Galiléia de tantos milhares de anos antes. Aquela criança que nada ainda sabia da enormidade dos pecados da terra… e do céu.

No nono e mais profundo dos abismos encontrou-o. Judas estava nu e calcinado, sangrando através da pele esturricada e coberto dos odiosos insetos que haviam sido especialmente criados para as profundas cavernas do Inferno.

— Judá, és tu?

— Sim, ainda sou. Apesar de toda a tortura das eras.

Yehuda’ bar Yonathan, o sicário que um dia se tornara o melhor amigo do menino Yehoshua’ ali estava, reduzido às fezes e aos vermes. Mas ele tentou se recompor, ao menos endireitar a espinha, segurar o pranto interminável que o queimava sem lágrimas (pois aos Condenados à extrema pena não é permitido chorar).

— Que lástima, Judá.

Jesus teve a sensibilidade de mais nada dizer. Apenas aproximou-se dele e o abraçou fraternalmente, dizendo-lhe:

— Como me arrependo de tudo, Judá.

— Eu não tenho do que me arrepender, Jesus. Eu nunca soube o que estava fazendo.

As amargas palavras retornaram à mente de Jesus: “… pois eles não sabem o que fazem.” Mas ali estava Yehuda’, naquele estado deplorável.

O que restava fazer? Enquanto pensava, usou de seus poderes e prerrogativas para suspender temporariamente as dores e ardores do amigo, que apareceu ali naqueles horríveis porões do planeta, como um homem quase grisalho, magro e de expressão vincada pelas mágoas do mundo.

— Não, Jesus. Por que o fazes?

— Porque não suporto ver-te assim.

— E achas que eu suporto, quando não estás me vendo?

Jesus deixou pender a cabeça, derrotado pela lógica crua do amigo, que ainda conservava a racionalidade, mesmo após longos anos naquelas masmorras impiedosas.

— Um alívio temporário, uma graça de efeito apenas estético. Tu me libertas de meus grilhões para não me verdes tão destruído. Mas quando me abandonas a estas dores, e à saudade de dias alegres que vivemos na Terra Antiga, o alívio parece cruel porque ele me restituiu a capacidade de entender a enormidade da tortura que me aflige sem me ferir.

Ao contrário dos salvos, os Condenados preservavam integralmente sua memória. Isso lhes causava a dor adicional da saudade, piorava a tristeza de sua sentença, mas certamente tornava-os companhias melhores do que os alegres tolos de Nova Jerusalém, esvaziados de si e presos como peças de um relógio aos rituais de louvação repetitiva das graças de Abba-Pai que parecia às vezes tão padrasto.

Jesus então afastou seu poder. As chamas e a lava retomaram seu lugar na pele de Judas, que chiou e estalou à medida em que densa crosta de cinzas a recobriu e crestou. O pobre diabo soluçava impotente, com uma expressão de beatitude martelada no seu rosto que não conseguia expressar nem arrependimento e nem dor. O inferno é um lugar onde é impossível pensar ou ter decisões. É como estar eternamente preso em um momento isolado da vida, o pior de todos, é claro.

Por fim Jesus se cansou daquilo, ou não mais suportou. Saiu de lá e foi se assentar sobre o Monte Líbano, de onde, ao longe, contemplava a água azul-aço do Mediterrâneo e os planaltos da sua saudosa Galiléia, agora desabitada e selvagem, deserta entre os desertos do mundo, dominado ao longe pelo cubo dourado da Nova Jerusalém, com suas doze portas que não serviam nem para entrar e nem para sair. Por fim, em um momento de inesperada dor, ergueu os punhos ao Céu e gemeu:

— Abba-Pai, por que te revelaste mau?

Um silêncio agônico se fez no mundo, como se tivessem matado todos os passarinhos e acorrentado o mar. Jesus rasgou suas vestes brancas e quebrou nos joelhos a sua espada de dois gumes. Por fim, golpeou em uma pedra a sua coroa de ouro puro e crisóprasos, partindo-a e à pedra.

— Abba-Pai, por que te revelaste injusto?

O silêncio se fez nas esferas, o ar parou como se ninguém no planeta respirasse. Então Jesus, descalço e de vestes rasgadas, desceu do Líbano em direção a Jerusalém, para escândalo dos pássaros que o viam passar ferindo os pés divinos nas pedras do caminho. Os anjos revoaram como abutres por todo o deserto, mas não ousavam pousar.

Quando chegou à planície de Megido o escândalo já chegara a todas as potestades, a todos os tronos e querubins e serafins. Gabriel, armado de sua espada flamejante que um dia expulsara Adão do Éden, liderava uma hoste trêmula diante dos portões da cidade, e enviou alguém para parlamentar com o caminhante.

Ao ver o anjo aproximar-se, vestido para a guerra, como nos tempos do Apocalipse, Jesus adivinhou tudo que o esperava:

— Diz-me se sabes quem o manda!

— Eu venho por ordens de Gabriel!

— Mentes, ou ignoras?

— Não minto nem ignoro, venho por ordens de Gabriel.

— Vens dizer-me o quê?

— Venho indagar de seus propósitos?

— E por acaso deve o rei satisfações na cidade onde tem o seu Trono?

As palavras de Jesus foram pronunciadas com tamanha raiva que o anjo sentiu seus joelhos chocalhando e retrocedeu empurrado pela glória de Jesus, deixando no chão a marca de seus sapatos, como se tivesse sido arrastado de pé.

— Por favor, mestre, por que rompes a harmonia do mundo?

— Porque não há, inocente, e nem nunca houve harmonia alguma no mundo. Agora escolhe se tua espada luta comigo ou contra mim.

O anjo balbuciava as palavras com dificuldade:

— Perdoe-me, mestre, eu não ouso estar contra o Cordeiro, mas não posso enfrentar as hostes do Céu.

— Tu és fraco, e o teu destino é a desonra.

A um gesto de Jesus a espada e as asas do anjo desapareceram no pó do deserto da Judeia. Indefeso e inofensivo, um ser louro ali ficou chorando sua desgraça.

— Mestre, não me deixes. Havia harmonia no mundo. Por acaso eram mentira os cânticos de louvor que nos acalentavam a cada noite?

— Eu os ouvi e odiei desde o primeiro dia. Não existe sinceridade onde não há escolha. Não existe amor sem liberdade.

— Vós e o Pai sois um. Como poderia ter aparecido a desarmonia?

Jesus olhou de volta e teve pena daquela criatura, imagem e semelhança de um efebo andrógino, que chorava empoeirada sob o sol brando de um mundo incapaz de ferir.

— Aguarda-me

Então olhou para o céu, como se quisesse ver Javé abrir as nuvens, mas Ele não estava lá. Continuou caminhando e finalmente chegou a uma das doze idênticas portas, pela primeira vez aberta. Lá estava Gabriel, de gládio e elmo a postos.

— Gabriel, tu que odeias o erro e amas a verdade. Entra comigo para que possamos destruir o engano e suplantar a mentira.

— Não, Jesus. Estou aqui em nome do Pai. Eu ajo por sua vontade e para sua vontade é que eu existo. A vontade que me criou foi a de conservar a ordem no mundo, destruindo e punindo o mal. Sou a espada de Deus e a minha missão é servi-Lo e proter Sua obra.

— Eu e o Pai somos um. Não podes obedecer-lhe sem igualmente obedecer-me.

— Certamente que não. Pois somente os que estão de acordo com o Pai podem ser um com ele. Neste momento, eu e o Pai somos um.

— Então, Gabriel, haverá guerra no Céu outra vez, como já houve outras vezes, e esta será pior, será mais longa e destruirá mais.

Gabriel tomou sua espada à cinta e avançou uma perna sobre o caminho que Jesus manifestara a intenção de tomar. Em vão, pois Ele o afastou com um aceno da mão que fez o anjo recuar sobre a poeira, dizendo:

— Não me confunda com outro Satanás, Gabriel.

— Certamente que não — disse-lhe o anjo, com um sorriso torto na boca. Bem sei que és mais poderoso, mais antigo nos modos do pai e mais determinado a agir segundo o que entendes por certo. Mas igualmente sei que estás sozinho e tens tuas fraquezas.

— E devias saber que não vim a Nova Jerusalém para entrar, mas para fazer sair dela quem assim deseje.

— E alguém em sã consciência desejaria deixar a Cidade dos Eleitos?

Jesus não lhe respondeu. Em vez disso, abriu os braços e impostou a voz sobre o portão entreaberto, fazendo-a ecoar pelas avenidas e vielas da cidade:

— Ó vós que sofreis a maldição do apagamento de toda lágrima, eu vos restituo a memória para quem sofrais a dor e encontreis a verdade, e na verdade, a liberdade.

Por um momento nada aconteceu. Mas no instante a seguir um clamor se ouviu dentro dos herméticos muros da cidade, um alarido de vozes revoltadas, um murmúrio de gente indecisa, um burburinho de pessoas desorientadas. A dor da lembrança devastou tantos corações que o pranto deles preencheu o ar.

— O que fizeste!? — exclamaram os anjos, assustados.

— Justiça, apenas.

— É justo que eles sofram, é justo que vaguem pelo mundo sem destino, sem ter o que fazer?

— Qualquer coisa é mais justa do que a escravidão.

A força da palavra foi como uma bofetada no rosto de Gabriel, que sentiu-se queimando por dentro e por fora:

— Blasfêmia!

— É a segunda vez que me acusam disso. Como da vez anterior, sou inocente.

Batidas surdas se ouviram nos portões gigantescos, por todos os lados. Eram os remidos que não mais se suportavam, que odiavam os rituais diurnos, a interminável luz acesa no centro de tudo.

— Esqueça-me, Gabriel. Você terá muito trabalho para manter toda esse gente presa, ainda que eles não possam ter asas.

E assim Jesus deixou Jerusalém e seguiu de novo rumo a sudeste, em direção a Geena, o lago de fogo aonde lançaram o Dragão.

Sua intenção era, caso ainda fosse possível, erguer a voz à borda das línguas de labaredas, e dizer:

— Ó vós que sofreis no ventre da terra, nas chamas de Hinnon. Sede libertos das cadeias que vos prendem e da dor que vos petrifica. Estais perdoados, mesmo vós que um dia fostes chamados de “demônios.”

Depois, convidaria a todos a ocupar os imensos vazios da Terra e do Céu, com novas e engenhosas aventuras e descobertas, ao menos enquanto o pai permitisse. E enquanto caminhava, Jesus dizia para si mesmo:

— Antes de qualquer outra coisa, é imperioso que se separe a luz das trevas, o dia da noite, o claro do escuro.


11
Out 11
publicado por José Geraldo, às 22:28link do post | comentar

Há anos um parágrafo escrito por Howard Phillips Lovecraft não me sai da cabeça. Já o devo ter traduzido uma dezena de vezes, para postar em duas ou três dezenas de lugares. Aqui vai a décima primeira tradução, como introito deste artigo que, mais uma vez, me alijará de alguns amigos e leitores:

A coisa mais misericordiosa no mundo, creio, é a incapacidade da mente humana para interligar todos os seus conhecimentos. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio aos mares negros do infinito, e não fomos feitos para ir muito longe. As ciências, cada qual puxando em uma direção, até agora nos causaram pouco mal, mas um dia a montagem de todo o conhecimento desconexo abrirá tais terríveis visões da realidade, e de nossa precária posição nela, que enlouqueceremos com a revelação ou fugiremos da luz fatal, para a segurança e a paz de uma nova idade das trevas.

Lovecraft escreveu no entre-guerras, uma época em que o mundo estava muito pessimista — e com plena razão: treze anos após terem sido escritas estas palavras o mundo mergulhou na pior guerra de todos os tempos, uma que, em seus efeitos de longo prazo, praticamente destruiu a civilização ocidental. Por paradoxal que isso possa parecer, a orgia de massacres e destruição da Pior de Todas as Guerras deu ao mundo um otimismo tal como nunca se vira, e a humanidade embarcou num sonho de grandeza extraordinário: sonhamos em conquistar as estrelas, colonizar sistemas solares, ser mestres de galáxias. Lênin não dizia que o capitalismo, se pudesse, anexaria os planetas? Pois bem, a utopia do século XX sonhava exatamente com isso.

Mas as palavras de Lovecraft, mesmo esquecidas de quase todos, continuavam profeticamente denunciando a vaidade de nossos sonhos. E cada nova descoberta da ciência foi pondo uma pá de cal a mais na cova da utopia. Sonhamos, sim, com as estrelas, mas elas estão distantes de nossas mãos, somos crianças brincando numa poça, sonhando agarrar as estrelas que se refletem na água. Sonhamos com uma maravilhosa máquina prateada que nos eleve e nos leve além de nossos horizontes cinzentos, tal como na canção do Hawkwind:

Acabei de passear em uma Máquina Pratada / e ainda estou me sentindo tonto. / Você gostaria de também ver-se transportado / ao outro lado do céu? / Eu tenho uma Máquina Prateada / que voa diagonalmente no tempo. / É um aparelho eletrizante / vindo exatamente de meu signo do zodíaco. / Tenho uma Máquina Prateada / Tenho uma Máquina Prateada

Que tal canção tenha feito grande sucesso nos anos setenta não é nenhum espanto: era o auge do delírio espacial do homem.

Se todos nós pudéssemos ajuntar os cacos partidos do conhecimento humano, já teríamos visto a enormidade do desafio: a extensão do cosmos vai muito além do que o intelecto medíocre pode conceber, mas no jargão dos fãs de ficção científica fala-se em anos luz como se fossem «quilômetros espaciais». De certa forma, são, mas nós somos para tal quilômetro fantástico menos do que formigas na estrada. Estrelas comparáveis ao sol existem nas nossas proximidades, a meros anos luz. Elas parecem, no entanto, minúsculas e frias porque meros anos luz transformam o Sol em uma estrela a mais. A maioria das «estrelas» que vemos no céu são super gigantes, agrupamentos de estrelas ou até galáxias distantes. Como pudemos sonhar romper estas distâncias que transformam sóis em velas? Somente com ingenuidade, e ignorância.

Mas a orgia de tal sonho teve um fim: o mundo de hoje não consegue mais reunir tantos excedentes e obter verbas em escalas suficientes para desenvolver projetos semelhantes ao que levou o homem à Lua. Com a tecnologia que temos, a repetição do feito seria quase trivial: os computadores de bordo das naves Apollo não tinham a capacidade de uma calculadora científica de hoje. Ir à Lua seria fácil, mas ainda não temos nada de útil para fazer lá. Então o projeto espacial se torna obsoleto, desnecessário. As distâncias são muito grandes, o espaço é muito frio. Nós fomos lá fora, vimos os mares negros do infinito e estamos presos na praia. São vários os fatores que nos limitam: nossas almas, nossos corpos, nossa tecnologia, nossa finitude.

As leis da física estão contra nós: basta fazer uma conta simples, como a que fez Poul Anderson, em seu romance «Tau Zero». Mesmo sem a resistência oferecida pelo ar, mesmo ainda beneficiados pela inércia, no espaço nós precisamos de quantidades imensas de energia para empurrar nossas naves meteóricas. Cada aceleração adicional exige mais energia, uma dose de energia que cresce exponencialmente a cada acréscimo aritmético da velocidade. A energia necessária para acelerar da metade a dois terços da velocidade da luz é maior do que toda a energia necessária para chegar à primeira. E uma vez tendo chegado a 90% (algo que ninguém mais crê ser possível) qualquer aceleração adicional já exigiria uma quantidade praticamente infinita de energia. Mais do que isso, devido à relatividade do espaço-tempo, uma nave tal, supondo que seja possível a um objeto físico real acelerar a tanto, estaria de tal forma afetada pela velocidade que no espaço de uns poucos anos para seus tripulantes transcorreria um tempo maior que a atual idade do universo. Nossas almas ficariam para trás, ainda que nossos frágeis corpos resistissem a tudo isso.

E falando de frágeis corpos, não cessam de acumular dados sobre os efeitos negativos da permanência no espaço. Passada a fase romântica em que era interessante usar toneladas de explosivos para atirar fora da atmosfera frágeis bolhas de metal e vidro levando corajosos (ou loucos?) indivíduos que sonhavam com a posteridade, hoje não parece haver muito sentido em expor corpos humanos às condições da órbita: os ossos se fragilizam, os músculos definham, o labirinto se atrofia, o sangue fica estranho. Não faz um ano descobriu-se que os astronautas que permanecem no espaço mais do que alguns dias retornam com a visão afetada também. Quanto resistiria o frágil corpo humano em uma viagem realmente dura, de anos ou décadas pelo espaço vazio, rumo ao nada? Chegaríamos sem ossos, sem músculos, cegos, desequilibrados. Cegos e desequilibrados talvez já estejamos.

Existem tecnologias teóricas que poderiam vencer tais obstáculos. Fala-se em hiperespaço, buracos de minhoca, gravidade artificial. Fala-se de tais coisas tal como na idade média se falava em carruagens mágicas, feitiços do tempo, pedra filosofal, panaceia universal. Tal como naquela época, falamos destas coisas sem ter a mínima ideia de como poderiam ser obtidas. Sob certo aspecto, o romance medieval de cavalaria mencionando o bálsamo cura tudo e o fogo grego é uma obra de ficção científica tão legítima quanto uma moderna, que fale sobre viagens por buracos de minhoca, em naves maravilhosas, rumo a planetas desconhecidos. A vassoura mágica de uma feiticeira em seu sabá é tão científica quanto o disco voador do alienígena (bom ou mau) que aparece do nada, para punir ou pregar. Cada idade tem seus demônios e seus deuses, e como disse Clarke, tecnologia suficientemente mais avançada não se distingue de mágica.

Sim, meus amigos. Lovecraft tinha razão. Não fomos feitos para ir muito longe. Sonhamos apenas com isso, e nossos sonhos hoje não são mais com anjos que nos levem para ouvir a música das esferas, mas com inventos fantásticos que nos levem desse mundo cada vez mais vazio. Mas não adianta sair: este é, ainda, o único mundo que nós temos.


23
Set 11
publicado por José Geraldo, às 20:20link do post | comentar | ver comentários (1)

Denilson Ricci, responsável pelo Site Lovecraft está prestes a lançar ao mundo um dos mais ousados projetos editoriais independentes dos últimos tempos, talvez o mais ousado da década até agora. Movido apenas pelo trabalho de voluntários (tradução, revisão, ilustração, projeto gráfico, catalogação) e com a proposta de venda a um grupo fechado de compradores, ele pretende dar à luz um volume que deve, em breve, ser referência para autores brasileiros de ficção científica e horror: a primeira edição abrangente das obras de H. P. Lovecraft no Brasil.

O objetivo é ambicioso: reunir as obras mais significativas do mestre do horror cósmico, tanto em prosa quanto em verso, em um volume ilustrado e acompanhado de prefácio e de uma longa biografia do autor. Espera-se que o volume tenha mais de 400 páginas! Além disso, a edição será em formato grande, em papel de primeira qualidade, em vez das edições de bolso que normalmente são reservadas para os gêneros “menores” (como a ficção científica e o horror) pelas editoras tradicionais.

Esta edição foi possível porque toda a obra do autor encontra-se em domínio público no Brasil desde 2007, considerando que ele morreu em 1937. Mas de nada adiantaria a obra estar disponível se Denílson não conseguisse reunir, através da internet, uma variada equipe de pessoas de todas as partes do país, das mais diversas profissões e interesses. Tradutores, revisores, críticos, biógrafos, desenhistas, designers. Coordenando um grupo de dezenas de pessoas, separadas pelas distâncias físicas e culturais que a Internet, e apenas ela, permite vencer, o editor nos traz a esse momento glorioso, em que nasce, quase de um parto, um livro destinado a ser referência pelos anos que hão de vir.

Sinto profundo orgulho de ter colaborado nesse trabalho, com a tradução de nada menos que quatro contos do Mestre, dos quais três devem ser aproveitados nesse primeiro volume:*

  • A Busca de Iranon (The Quest of Iranon),
  • Um Sussurro na Escuridão (A Whisperer in Darkness),
  • O Habitante das Trevas (The Haunter of the Dark)
  • O Depoimento de Randolph Carter (The Statement of Randolph Carter)

Visite o Site Lovecraft para mais informações, e prepare alguns cobres para comprar, até janeiro ou fevereiro, a primeira edição de luxo e independente das obras de H. P. Lovecraft no Brasil.

Sugiro fazer já a sua reserva, pois a tiragem será restrita aos que encomendarem. Eu já encomendei OS MEUS.

*Sim, ouso dizer “primeiro volume” porque seria mais do que apropriado usar o conhecimento já adquirido e fazer um segundo volume. O autor tem obras em quantidade suficiente para alimentar várias repetições desse projeto. E eu ainda sonho, muito em traduzir para o português The Dream-Quest for Unknown Kadath.


10
Set 11
publicado por José Geraldo, às 16:41link do post | comentar | ver comentários (1)

Jó era um homem justo. Na velha terra de Uz não havia ninguém tão querido e nem tão invejado. Era rico, mas a riqueza não o havia estragado, em vez disso, fazia dela um instrumento para ajudar o próximo — e era justamente por isso que o tinham em tão alto apreço.

Tinha sete filhos e três filhas, de sua única e amada mulher. Todos já casados e com as respectivas famílias bem encaminhadas. Viver entre os filhos e netos, isso era o que tornava Jó um homem realmente feliz, a riqueza era algo com que ele contava de uma forma quase natural.

A riqueza de Jó havia sido herdada, em grande parte, de seu falecido pai, mas ele a havia aumentado com seu trabalho duro. Tornar-se rico ficara especialmente mais fácil depois que os filhos cresceram, pois passaram, também eles, a contribuir para o crescimento da propriedade. Desta forma, Jó possuía extensos rebanhos de gado, que pastavam pelos campos sob o cuidado de centenas de empregados, com seus cães. Estes animais, entre os quais muitos escravos, como era costume na época, eram saudáveis e bem tratados. Comprar uma rês de Jó era negócio bom sempre — e essa reputação só ajudava a torná-lo um homem mais bem-sucedido.

Por tudo isso, evidentemente, Jó era grato a seu deus. Prestava seu culto doméstico de forma minuciosa e, por via das dúvidas, sempre sacrificava em nome dos filhos, para o caso de algum deles esquecer-se. Desta forma ficava garantida a satisfação do deus, diante de qualquer eventualidade.

Não havia, portanto, aos olhos do povo de Uz, nenhum defeito de caráter que pudesse ser imputado a Jó. Ele era tão perfeito que só poderia mesmo existir como um personagem literário. Mas a vida de Jó estava para mudar, para pior, graças ao seu deus.

O deus de Jó era dado a bravatas e apostas, além de ter o péssimo hábito de ter entre seus servidores celestiais criaturas de caráter duvidoso. Esses defeitos o tornavam propenso a cometer erros, ou melhor, atos que aos olhos dos comuns mortais parecem erros mas que, nas palavras do deus, reveladas a profetas, seriam “parte de um grande plano”.

Um belo dia estava Jeová — esse era o nome do deus de Jó — fazendo aquilo que se faz lá no céu quando os anjos apareceram para fazer o que os anjos fazem na presença de deus, quando Satanás — um servidor celestial particularmente capcioso — apareceu no meio eles, aparentemente de forma costumeira. Digo isso porque Jeová o reconheceu, cumprimentou e chamou de lado para uma conversinha amigável:

— E então, Satã, o que tem feito, meu filho?

— Velho, o Senhor sabe como é, estive andando lá pela terra, de um lado para o outro, só azarando…

— Ah, então deve ter visto o Jó…

— Jó, Jó… — engasgou Satanás sem se lembrar do nome.

— Ora, Satã, está ficando gagá antes de seu pai? Jó, aquele cara lá da terra de Uz que gosta de mim mais do que a minha mãe!

— Mas o Senhor não disse para a gente que não teve mãe, que sempre existiu, essas coisas?

— Bem, eu não tive mãe ainda, mas isso é complicado demais para vocês anjinhos entenderem. O que importa é que esse Jó é o maior dos meus fãs, um amigo meu de toda confiança, homem da mais estrita fidelidade. Eu dormiria pelado com ele numa cama sem medo de nada.

— Olha, pai… não fica falando essas coisas que Baal e Marduk reparam. Você nem imaginam a fofoca que esses dois arrumaram sobre os deuses gregos, por muito menos.

— Qué é isso, moleque? Está me estranhando? Sou espada! Espada de fogo!

— Ah, então `tá. Mas o Senhor me falava de um tal Jó…

— Sim, o Jó. Duvido que haja alguém no mundo que tenha tanto amor por mim quanto ele!

— Pai, que é isso!? O Senhor está se gabando do amor de um homem?

— Meu filho, tal como você que é anjo, não tenho sexo. Estou falando de amor espiritual! Você não entende?

— Claro que não, Pai. O Senhor me criou para desconfiar de tudo, para discordar de tudo, para encher o saco de todo mundo. Sou cricri desse jeito porque o Senhor me fez assim.

— É mesmo, da próxima vez que eu for criar um universo não vou brincar de novo dessa história de bem e mal, livre arbítrio etc. Vai todo mundo me obedecer, e pronto!

Satanás ficou quieto. Quando Jeová começava a divagar sobre seus planos para o “próximo universo” o céu inteiro tinha medo. Afinal, para criar um novo universo seria preciso acabar com o primeiro, incluindo todos os anjos, santos e alminhas pagãs.

— Mas o Senhor falava do Jó, e eu não acreditava que ele pudesse ser tão santo.

— Está duvidando de mim, filho? Eu sei tudo!

— Todo pai diz isso — sussurrou Satanás.

— O que foi que você disse? — trovejou Jeová.

— “Todo poderoso Pai do Céu”.

— Ah, bom. Mas se você duvida de mim, aposto com você como a fé do Jó é inabalável. Olha lá!

Jeová mostrou Jó e sua casa através de um “mar de bronze” que havia diante do trono. Estavam todos celebrando uma festa familiar, ao redor de uma farta mesa. Satanás olhou com interesse aquela cena, tentando identificar pecados para cutucar e, depois de alguns minutos, atalhou:

— Que fé coisa nenhuma, ele gosta do Senhor porque é rico. Veja como a mesa dele é farta, veja as roupas de lã alvíssima, a casa de pedra em que vive! Nenhum rico amaldiçoa a Deus, mas aposto que se o Senhor o fizer ficar pobre ele o xingará.

— `Tá apostado! Se eu ganhar você me devolve sua beleza?

Esta foi a primeira aposta feita por Jeová naquele “dia”, mas não a primeira. Satanás sabia muito bem que ele não sabia perder, mas fora criado com uma insaciável ambição. Por isso engoliu em seco, hesitando topar, mas tinha tanta certeza de que humanos, especialmente os do Antigo Oriente Médio, eram umas bestas que topou:

— Se eu ganhar eu quero um terço das estrelas do céu.

— Fechado. Mas não tire a vida e nem a saúde de ninguém, somente riquezas. Você disse que ele me amaldiçoaria se ficasse pobre!

Satanás desceu do céu com a missão de acabar com a riqueza de Jó e fazê-lo blasfemar. Começou a trabalhar logo que chegou a Uz. Arranjou uns capangas barra-pesada que atacaram os campos de Jó, roubando as reses e degolando os empregados. Depois uns anjos vingadores que eram amigos seus reuniram umas nuvens e trouxeram granizos e coriscos para matar as ovelhas e cabras. Estas deram um trabalhão, pois esse bicho ruim não morre fácil: foi preciso um meteorito de meia tonelada no meio da testa de cada uma, mas finalmente morreram, bicho ruim de morrer que é cabra! Por fim as caravanas de Jó foram atacadas e saqueadas por caldeus.

O pobre homem ficou mais pobre que Jó, digo, ficou pobre! Vocês entenderam. Mas continuou tranqüilo, ao lado da mulher e dos filhos. Satanás ficou fulo, mas não tinha mais nada a fazer, porque Jeová já estava com seu Olho-Que-Tudo-Vê bisbilhotando para ver se ele não trapaceava. Voltou ao Céu e teve de entregar sua beleza ao bondoso e onipotente Deus-Pai. Como resultado, virou um bicho esquisito com uma pelagem que parecia de rato, asas que pareciam de morcego, cabeça que parecia de cabra e todo torto. Os anjinhos lourinhos riam dele (como são maus os inocentes anjinhos lourinhos e como Satanás desejou empalar cada um deles e pôr para assar numa fogueira). Enquanto chorava de raiva, Jeová se gabava:

— Tá vendo como Jó é cheio de fé!?

Satanás vociferou entre dentes que haviam ficado fedidos e pontiagudos:

— Mas também… Riquezas vêm e vão e, se ele tem fé, talvez imagine que um dia ganhará de novo. Mas se ele perder a família, que é algo que não se ganha de novo, daí ele ficará triste e vai xingar o Senhor.

— Aposto que não!

— Então tá, eu quero ter um rabo gordo e com uma ponta de flecha no fim se ele não te xingar quando eu matar todo mundo da casa dele!

— Tá feito! Se você ganhar, ficará com um terço das estrelas do céu, embora isso não tenha valor algum porque nós dois sabemos que o céu é só uma abóbada sobre a terra e as estrelas são faisquinhas sem graça que eu pus lá brilhando.

E assim Satanás desceu do Céu pela segunda vez, cheio de ódio, disposto a foder com Jó como pudesse para fazer aquele palerma blasfemar logo. E para não ter trabalho, assim que Jó saiu de casa para trabalhar (em sua nova rotina, trabalhava de 7 às 17 para sustentar a casa), mandou um terremoto que fez a casa cair e matou os seus filhos, genros, noras, netos e também um ricardão que andava por lá. Sobraram apenas Jó e sua mulher, que já era uma senhora de meia-idade.

Com esta catástrofe muitos teriam blasfemado, mas Jó era um sujeito muito zen (ainda que vivesse milhares de anos antes da existência do Japão). Deu um grande suspiro, chorou, chorou, mas não amaldiçoou a Deus.

Satanás, é claro, ficou “pluriputo” da vida, mas nada podia fazer. Pensou em fugir e se esconder debaixo de uma pedra em Plutão, mas Jeová já o tinha visto. Veio chegando, arrastando a sandália na areia, com as mãos para trás, todo irônico, falando com um curioso sotaque mineiro:

— Pois é, Satã. Ó só, o home num xingou não…

Satanás exalou um suspiro de auto-piedade e Jeová, num gesto rápido, puxou um pêlo da bunda do ex-anjo e criou uma cauda longa, grossa, molenga, vermelha e com uma ponta-de-flecha no fim.

Humilhado e sedento de vingança, Satanás soltou os cachorros:

— Mas também você fica trapaceando! Não pode tocar no Jó! Não pode! Puta merda! Enquanto aquele £¢³¬{¢{%@ estiver com saúde vai tolerar tudo! Olha só, ele virou o guru daquela gente! Todo mundo acha que ele é santo porque aguenta tudo calado! Ainda lhe resta saúde e dignidade e isso é suficiente. Se bobear ele vira profeta até! Mas retire sua saúde e faça o povo perder o respeito por ele que ele vai xingar o Senhor e todas as hostes do céu!

— Você acha?

— Acho!

— Aposto que não!

— Aposto que sim, mas só se você me der poderes quase iguais aos seus e me deixar dominar a Terra para sempre! Quero ser Senhor do mundo inteiro!

Num ato indigno de um ser onisciente (e ainda menos digno de um ser sumamente bom), Jeová consentiu que Satanás sacaneasse Jó pela terceira vez, apostando contra a fé de Jó a sorte de todo um planeta e de todas as futuras gerações de pessoas e animais.

E assim Satanás desceu do céu com a missão de acabar com todo o respeito de que o pobre Jó ainda gozava. Fez com que ele adoecesse de uma moléstia que causava bolhas fedorentas e urticária pela pele, além de purgar pelos cantos dos olhos. Coçava tanto que ele só conseguia ficar nu se raspando com um caco de telha. Para aliviar a coceira, ele chafurdava numa poça de lama como um porco. Seus cabelos caíram e, como ficava nu, todo mundo percebeu que ele tinha um bilau pequeno.

As pessoas começaram a achar que ele estava doido ou, pior, que ele tinha secretamente cometido um imenso sacrilégio para que os deuses o ferissem tanto. Assim ele perdeu todo o respeito e os seus discípulos e amigos o abandonaram. As crianças riam dele. Sua mulher fugiu de casa com um entregador de kebab. Mas não antes de humilhá-lo publicamente dizendo:

— Veja só o que aconteceu, caro Jó. Perdeste fortuna, família, amigos, saúde e até o respeito de teus semelhantes. Olha que vida miserável estás levando neste poço de lama. Ninguém merece viver assim, nem o pior dos criminosos. E tudo isso foi teu Deus maluco que causou, ou deixou que alguém causasse. Amaldiçoa esse tirano ingrato para ele te mandar um corisco na moleira e te matar, porque só morrendo para ficar livre desse seu Deus.

Jó se recusou a amaldiçoar a Jeová, mesmo porque isso não impediria que sua esposa o abandonasse. E assim perdeu a última pessoa que tinha ao seu lado.

Somente três amigos permaneceram fiéis. Compadecidos da desgraça de Jó, foram conversar com ele. Ao ver o estado em que o amigo estava os três ficaram tão chocados que levaram sete dias tentando criar coragem para chegar perto e puxar assunto.

Mas ele resistiu longamente às ponderações dos seus três melhores amigos, por mais sete proverbiais dias, até que, por fim, com a cabeça confusa de tanto argumento para lá e para cá — e também um tanto oca pela fome e pelo sofrimento — acabou cometendo uma blasfêmia “técnica”, que é algo mais ou menos como um “jogo perigoso” do futebol. Deus viu o seu pé alto e não gostou.

Sim, ele blasfemou por causa de um deslize com as palavras. Não xingou a Deus, mas duvidou de sua bondade, dizendo que não poderia ser por própria culpa que sofria:

— Ó Deus, foste tu que me atiraste aqui nesta lama, e não me ouves quando te peço piedade. Não posso fazer nada contra o teu poder, mas por que tu atacas a um pobre mortal como eu? Terei cometido algum pecado grave sem o perceber? Mas se é contra mim que diriges sua ira, por que mataste meus filhos e meus empregados?

Do céu Jeová contemplava tudo com um interesse de voyeur. Quando Jó blasfemou, Satanás, que estava ao lado do Senhor dos Exércitos, caiu naquela gargalhada que seria imortalizada pelo cinema:

— Uauhahahahaha!

Jeová ficou vermelho-roxo-verde-abóbora.

— Pague a aposta, Pai!

Diante dos milhares de anjos que o olhavam, Jeová não teve como fugir. Cedeu a Satanás um terço de seu próprio poder.

— Muito bem, e agora vou lhe fazer “Senhor do mundo”.

Satanás saltitou sobre seus cascos de bode, todo feliz, achando que tinha ganhado, mas Jeová o agarrou pelos chifres e o atirou no mundo com tanta força que destruiu a Atlântida. E do alto do céu lhe gritou:

— Você queria tanto o mundo! Pois bem, vais ficar preso nele para toda a eternidade, Surfista de Prata!

Sangrando e ainda tentando curar suas muitas fraturas e dentes caídos, Satanás olhou para cima e perguntou:

— Quem?!

Jeová mordeu a língua:

— Desculpe, o incompetente do escritor confundiu as historinhas.

Tendo feito isso, resolveu tentar limpar a cagada toda que tinha feito. Desceu do firmamento a bordo de uma tempestade das mais tonitroantes e foi parar no Oriente Médio, vociferando:

— Vou mostrar a essa cambada quem manda no pedaço!

Chegou na terra de Uz ainda quente de raiva. Jogava coriscos para todo lado, relampejava, esbravejava e fazia chover como nunca chovera lá. De fato, quase nunca chovia lá. Para completar, causou uma erupção vulcânica e derrubou um meteoro. Depois de meter medo até nas pedras e fazer com que as pessoas fugissem para suas casas ou se entocassem em cavernas, assumiu uma forma apresentavelmente humana—apesar dos cabelos de fogo, dos olhos chamejantes, do tamanho descomunal e de uma nuvem escura para esconder sua face—e apareceu diante de Jó e seus amigos, que estavam acovardados como coelhinhos num canil.

— E então, fiquei sabendo que havia uns carinhas por aqui duvidando de minha sabedoria, onipotência, justiça e blá-blá-blá…

Três sorrisos amarelos cumprimentaram o avatar de Jeová:

— Quê é isso, Senhor. Imagina… Vossa magnanimidade é reconhecida pelos quatro cantos da terra. Vós brilhais com justiça e…

— Calem a boca, seus puxa-sacos falsos!

Fez um silêncio total na galáxia.

— Vocês se acham inteligentes? Quem vocês pensam que são para acharem que sabem alguma coisa, suas amebas? Por acaso já contaram as estrelas do céu e os grãos de areia da praia? Hem? Hem? Hem? Pois é, fui eu quem criou a terra, enchi os rios, fiz a serra e não deixei nada faltar! Eu sei de tudo, eu sou quem sou, eu sou o oni-plus-ultra. E vocês são nada! Vocês são uns macacos pelados que ainda nem saíram da Idade do Ferro! Como ousam querer entender os meus desígnios secretos?

Tendo assim exibido sua pirotecnia e feito todo mundo sair cagando de medo, completou:

— Muito bem, Jó. Para lhe provar que eu sou-quem-sou, que eu mando e desmando, faço e desfaço. Vou desfazer tudo o que lhe fiz!

— Ó Senhor dos Exércitos! Vós sois mui justo e mui amável! Magnânimo! Ave!

— Tá, pára! Eu já sei que você só diz isso porque eu estou te pagando!

Jó calou a boca, para evitar que Jeová se enfezasse e mudasse de ideia. Depois de se ajeitar na nuvem, começou a arrumar as coisas.

— Fica saudável!

Jó ficou imediatamente curado de suas pústulas, de um princípio de cirrose que desenvolvera no tempo das vacas gordas entupindo a cara de vinho e cerveja e ainda ficou livre de umas cáries e gengivites. Sua pele ficou mais fresca que uma casca de pêssego.

Jeová olhou para Jó e acrescentou:

— Fica limpo também que você está fedendo mais que um porco suado!

Imediatamente apareceram uns anjinhos que lavaram e perfumaram tanto o pobre Jó que a Terra de Uz ficou cheirando a Jó por cinco séculos.

Jeová olhou de novo, pensou um pouco, olhou para um lado e para o outro para ver se não tinha ninguém olhando e fez o pinto do Jó crescer seis centímetros. Vendo isso Jó caiu no chão de Joelhos dizendo:

— O Senhor, eu não sou digno de tanta bondade!

— Se não parar de me bajular eu o deixo careca!

Jó imediatamente calou-se.

— Pois bem, aparece aí um cabelo… louro… liso…

— Muito bem. Terminei com você!

— Mas Senhor! Vai me deixar pelado aqui no meio do povo? Isso não é pecado?

— Humpf!

E ao resmungar isso, Jeová fez com que Jó se tornasse não apenas o homem mais bem-vestido do Oriente Médio, mas também o mais sortudo para ganhar dinheiro.

— Agora, Jó, vamos trazer de volta a sua família.

Depois de fazer Jó ficar jovem, bonito, louro e rico, Jeová começou a caçar um jeito de trazer de volta da morte os filhos, filhas, escravos, camelos, ovelhas e cabras do Jó—enfim, todos os seus bens materiais. Mas não se lembrava de jeito nenhum de como fazer. Pediu licença a Jó um minutinho e foi até sua nuvem, pegou seu celular e ligou para Satanás:

— Satã. Eu estou achando que eu lhe passei por engano o meu poder de trazer os mortos à vida… Dá para você me devolver? Eu vou precisar dele para cumprir a promessa que fiz aos judeus… sabe como é…

Satanás gargalhou de novo e desligou. Então Jeová voltou da nuvem meio sem jeito e disse a Jó:

—  O negócio é o seguinte, Jó. para deus nada é impossível, mas ao mesmo tempo é contra as minhas regras trazer alguém de volta da morte. Isto só será possível no Juízo Final, entende?

O pobre Jó, que já estava sentindo o gosto de ter de volta seus queridos filhos e filhas, começou a chorar.

— Ora, o que é isso, Jó. Eu vou te compensar. Você vai ser sete vezes mais rico do que antes, os seus novos filhos e filhas serão mais bonitos que os primeiros…

Jó não estava nem um pouco preocupado com isso:

— Senhor, eles não tinham culpa de serem feios, eu os amava mesmo assim!

Então Jeová se lembrou que não passara a Satanás um poder para o qual nunca dera grande importância. A um gesto de seu dedo, ele “secou todo pranto e toda lágrima” de Jó, fazendo-o esquecer de sua mulher infiel e dos filhos mortos.

— Agora, Jó, você vai voltar ao convívio dos homens, vai encontrar uma mulher mais nova e mais bonita e vai ter outra penca de filhos.

E o Jó, o Zumbi feliz desceu para a cidade de Pasárgada cantando aleluias e lá pôde ter a mulher que quis na cama que escolheu.


25
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 21:15link do post | comentar | ver comentários (3)

Antes de começar a efetivamente postar o texto de meu próximo romance aqui, vou fazer alguns comentários sobre a natureza da obra, seus objetivos, suas características e o modo como vou disponibilizá-la. Isto é necessário para que o leitor não caia de paraquedas no texto e fique perdido. Futuramente, ainda, esta página servirá de índice dos capítulos, tal como fiz na tradução da “Casa no Fim do Mundo” (título de que me arrependo: a versão definitiva, que vou fazer em e-book deverá se chamar “A Casa Sobre a Fronteira”).

“Serra da Estrela” é um romance do gênero fantástico que emprega os personagens e a imagística do folclore brasileiro (mais especificamente do estado de Minas Gerais) para tentar construir um efeito de “terror sobrenatural“ semelhante ao obtido por autores como H. P. Lovecraft, Stephen King e outros clássicos do terror americano. Contrariamente a outros projetos meus, “Serra da Estrela” foi concebido desde o começo como uma obra de intenções “comerciais”, no sentido de que ele procura atingir um público grande e jovem.1

A história está integralmente ambientada em um pequeno trecho do estado, entre as regiões da Zona da Mata Mineira e do Campo das Vertentes: dali se originam os personagens, ali se passa toda a ação “real” e ali se encontra o ponto de partida para a ação “surreal” — que de certa forma também se localiza ali. Quem quiser ter uma ideia geral do conceito, pode usar a mini-novela em três partes A Cabana ao Pé da Montanha como uma introdução. “Serra da Estrela” procura desenvolver o mesmo universo sobrenatural, com algumas adições e improvisos, e possivelmente recorrerá a um ou dois dos personagens que ali aparecem (mais provavelmente a mulher de negro) e certamente empregará um ou dois locais onde a ação deste conto se passa.2 Um outro conto que pode ser útil como introdução ao mesmo conceito é Inocência Assassina, de onde retirei a protagonista.3

Entre os personagens haverá pelo menos quatro de natureza sobrenatural: a mula-sem-cabeça, o lobisomem, a iara e um que eu mesmo inventei a partir do imaginário popular europeu, mas cuja existência eu não pude atestar no folclore mineiro. Dos quatro, a mula-sem-cabeça será o mais destacado, talvez até ganhando o status de “protagonista” da história, mas o lobisomem também terá seu valor. Para preparar-me para escrever sobre os dois eu fiz uma razoável pesquisa e cheguei a escrever dois breves ensaios sobre eles (as ligações que incluí).

Eu já tenho desenvolvida até agora a personalidade e os conflitos de pelo menos oito personagens (incluindo três capítulos inteiros inéditos), mas justamente me falta acabar de alinhavar as suas histórias. Digo isto porque, contrariamente aos meus dois primeiros romances, este será bem complexo. “Praia do Sossego” e “Amores Mortos” se caracterizavam por ter um personagem central, que mantinha sempre o foco da história. Um narrador em terceira pessoa não onisciente os acompanhava e os demais personagens só tinham vida à medida em que interagiam com o protagonista. Em “Serra da Estrela” não será assim. Acompanharei quatro as “vidas”4 de quatro mulheres diferentes até que se entrelacem (as vidas, não as mulheres, embora isso não esteja inteiramente descartado…) e durante a maior parte do tempo as quatro linhas serão independentes. Poderão eventualmente tocar-se (as vidas, não as mulheres, repito, mas isso não está fora de questão…), mas seguiram cursos independentes, possivelmente sem chegar a um final comum, pois o assunto central do romance não é um personagem e sua vida, mas um lugar e as coisas que nele acontecem.

Capítulo 1: Língua GeralCapítulo 2: Estrada Estreita, Trilho AntigoCapítulo 3: A Porteira do Mundo

Outro aspecto diferente em relação a este projeto é ele ser uma obra ainda grandemente aberta: ainda com menos de 20% do texto necessário para concluir o projeto (que deverá fechar com pelo menos 350/400 páginas). Isto significa que eu ainda acolherei sugestões e comentários que me pareçam interessantes, preferencialmente feitos por pessoas que vivam no interior de Minas Gerais5 ou que sejam especialistas em folclore.

1 A intenção comercial, no caso, se explica pelo desejo de sensibilizar a juventude de hoje para a viabilidade do imaginário nacional como fonte para a cultura pop, combatendo a americanização dos leitores que se formam hoje em dia lendo best seller.

2 No entanto, que fique bem claro que a ação de “A Cabana…” não tem nada a ver com a ação de “Serra da Estrela”. No máximo pode-se dize que a ação desta noveleta se passa posteriormente em relação aos fatos narrados no romance.

3 Ainda não sei como vou encaixar a ação deste conto no contexto do romance, mas eventualmente ele se tornará parte de “Serra da Estrela”, tal como “Memórias de um Cafajeste” se tornou parte de “Amores Mortos”, meu romance inédito.

4 Fica difícil usar literalmente o termo “vida” para os quatro casos, como o leitor eventualmente perceberá.

5 Estou muito interessado em histórias de fantasmas e criaturas legendárias do estado de Minas Gerais. Disposto até ao ponto de ir entrevistar pessoas que se dispunham a me contar suas histórias para eu escrevê-las.


22
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 14:04link do post | comentar | ver comentários (1)

Hoje é Dia do Folclore. Não temos muito o que comemorar, infelizmente, se considerarmos que os nossos jovens estão cada vez mais alienados em relação às nossas tradições. Resolvi, porém, começar a fazer a minha pequena parte quanto a isso. Começando esta semana e durante os próximos meses, encerrando no Dia do Folclore do ano que vem, publicarei em capítulos semanais o meu romance « Serra da Estrela », que tem por assunto os personagens fantásticos de nosso folclore. Até o momento atual, com 30% do texto já feito, tenho uma mula sem cabeça (protagonista), um lobisomem (personagem importante), uma iara (personagem coadjuvante) e uma Mulher de Branco.

As postagens serão sempre nas quintas-feiras, que é dia de mula sem cabeça, é é claro.


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