Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
03
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 23:00link do post | comentar
Estas montanhas têm uma história, desde os tempos dos índios, desde antes do primeiro português cortar a primeira árvore. Eles vieram, viveram, morreram, viram o mal que havia e se foram, ficaram apenas alguns pobres puris isolados, entocados quase como bichos. Vieram os emboabas a caminho das minas, tentaram fixar-se aqui, mas não ficou nenhuma vila, queimaram todas as casas, sumiram no tempo como se nunca tivessem pousado, e a estrada real passou ao largo.

Minha avó costumava me contar que toda esta região era pacífica e silenciosa até a segunda década do século, que ela mesma viveu numa casinhola entre árvores, beijada pela sombra fria da mata. Mas veio o café, veio a guerra, a estrada de ferro, vieram as armas. Mataram os índios, abriram clareiras, começaram a produzir. Mas em pouco tempo a terra negou seu seio, os cafezais feneceram, os fazendeiros faliram. O povo restou pobre, em uma terra mais seca e nua. Os trilhos de ferro recuaram, abandonando estações ilhadas nas montanhas.


Nasci aqui, sentindo esse vento seco e duro que cresta a alma e corta a cara, que arranca as folhas das árvores, como se tentasse arrancar os homens da terra. Mas eles só sairão quando chegar a hora da colheita. Toda vez que eu olhava os morros erodidos, as encostas peladas, a terra retalhada com cercas e dividida em lotes de cores diferentes eu me sentia cúmplice dessa violência.

Este ano, porém, começou diferente. O cheiro do ar foi outro desde o início, os dias foram encolhendo, as noites ficando mais frias e quando eu olhava as bordas dos morros cortadas contra as nuvens eu tinha calafrios, temendo que essa Hora maldita estivesse a caminho.

Nas primeiras semanas eu me senti assim, sozinho. Não tinha coragem de falar com ninguém, porque desde menino tivesse essa fama de sensível, de fresco, de frágil. Nem os calos duros em minhas mãos, nem minhas botinas armadas com arame, nem o cheiro forte da terra em meu corpo conseguiram apagar as impressões que os outros tiveram de mim no dia em que saí de mim e disse aquelas coisas que ninguém nunca ousou repetir.

Mas quando o outono começava a envelhecer, notei que não era mais o único. Podia pressentir que os jovens estavam irrequietos  que os velhos estavam mais abatidos. Alguns sonhando em voar, outros querendo dobrar definitivamente as asas. Então senti voltando a mim a sensação, e os cheiros, que me abateram naquela tarde de criança. Eu pressenti a proximidade do escuro, eu enxerguei as dobras do destino direcionando o correr de nossas vidas para o canto da mesa, para a caçapa inevitável. Senti a Presença pela primeira segunda vez, mas não tive medo nem ódio, aliviei-me de toda irritação e adorei aquela época do ano.

Os Gonçalves então apareceram com a notícia de que estavam indo embora. Eles tinham uma fazenda grande, com várias casas, currais, tulhas, silos e cocheiras. Tinham feito um trabalho bonito, por vinte ou trinta anos, desde que o velho Nhonhô Gonçalves chegara de Itaperuna cheio de dinheiro, que as más línguas diziam ser mal havido, e comprora a terra de um colono antigo, que eu nem chegara a conhecer. Eles trabalharam muito, fizeram render o seu dinheiro, tinham vacas, tinham milharais, canaviais, um pomar que dava gosto. Então veio aquela seca longa do ano retrasado, emagrecendo o gado, matando o milho plantado, prejudicando a cana. E justo quando a seca acabava apareceu a praga da erva roxa nos pastos, intoxicando os animais famintos que comiam tudo.

Perderam muito dinheiro, tiveram que vender as vacas boas enquanto valiam alguma coisa, muitas morreram vacas de fome, muitas ficaram vacas maninas, cresceram bezerros de pelo ruço, novilhas de tetas murchas.  Um gado sem valor, em uma terra que precisava ser roçada de novo, com uma praga que ninguém sabe de onde veio, como se o próprio demônio tivesse passado semeando.

Agora estão finalmente vendendo, e é uma tristeza ver os garotos com os olhos cheios de água, tentando sorrir enquanto põem preço naquilo que nada paga. Dizem que vão comprar caminhões, ganhar a vida no transporte de carga. Enquanto eles falam eu escuto um vento soprando forte, um vento que arranca folhas das árvores. O vento que anuncia que chegou o tempo de colher. Os dias continuaram encolhendo, as noites ficando frias. Colheita no inverno, colheita mais amarga. Os jovens irrequietos, os velhos andando de cabeça baixa. Eu sei que a escuridão está mais perto, alguma presença está aqui. Parece que o clima mudou, mas eu não estou mais gostando dessa época do ano.

Sempre vivi nesta casa de fazenda. Hoje fazem dez anos que meu pai morreu. Foi num agosto ventoso como esse, talvez ali eu tenha ouvido esse vento pela primeira vez. Herdei esta terra, estas cercas, estas pobres vacas, companheiras de meu infortúnio, pobres reses que eu nunca consegui vender. Não sei bem do que eu vivo, o leite que tiro mal dá para comer. Tenho a herança de uma tia rica, o ódio de uma mulher que me deixou. Faz muito tempo que não tenho medo, muito tempo que não sentia nada mau. Tinha aprendido a conviver com esta terra, deixar crescer o mato, receber a chuva, proteger a ave, abrigar o bicho. Dizem na cidade que eu também virei meio bicho, só porque não consegui cortar a árvore que nasceu debaixo do Mustang que ficava na garagem. Garagem que já caiu de podre porque não a uso: por que me enjaular entre dobras de ferro e produzir fumaça ruidosa pelo mundo? Vou a pé aonde vou, e sempre é perto. Dizem na cidade que a lucidez também me deixou.

Os Gonçalves eram meus últimos amigos. Catarina a última mulher que não me achava louco. Teria sido minha esposa se eu quisesse, me ajudaria a cuidar de meus coqueiros, meus horta, minhas laranjeiras, de todos esses pássaros que pousam na varando cada silenciosa tarde. Eles me dão uma música melhor que qualquer rádio.

Ficará um buraco em forma de Catarina em minha vida. Um buraco na forma de cada amigo que vai embora, na forma de deus que nunca vi, na forma de cada alegria irrepetida que nunca descobri.

Então esta tarde veio o homem de longe, com cabelos penteados, camisa branca de riscado roxo. Enverga botinas pontiagudas, sem esporas, porque sua montaria é dessas de que não gosto.

Ele me falou de coisas que não entendo — como dinheiro, eucaliptos e carros. Fala em derrubar estas espertas, angicos, paineiras, jenipapos, imbaúbas e ipês. No lugar de todas estas cores e perfumes diferentes, uma árvore apenas há de imperar, com sua resina roxa, seu aroma doce.

“Apenas oito anos”, ele diz, “e pode-se vender a um preço exorbitante. Tão exorbitante, aliás, que eu estou disposto a contratar agora a venda, para protegê-lo da possibilidade de que em oito anos tanta gente tenha plantado que o preço nem seja mais exorbitante. Aproveite esta oportunidade única na vida, está na hora de ganhar dinheiro outra vez, sacudir a poeira desta terra adormecida.”

Eram palavras bonitas, mas eu só consegui me fixar nas listras roxas de sua camisa, pensar nas folhas roxas da praga que matou o gado dos Gonçalves e vai levando embora Catarina. Nada de bonito pode vir de alguém que usa roxo. Cor de morte, cor de hematoma, cor de luto de homem, pois homem não se veste de viúva.

“Uma terra tão grande normalmente a gente oferece em parceria, mas se o senhor preferir podemos fazer-lhe um preço muito bom por seus cento e vinte alqueires.”

Não, não venderei a terra, nem plantarei eucaliptos. Tenho trinta anos e ainda tenho alguns mognos para ajudar a crescer. Espero um dia estender minha rede entre os dois jacarandás que plantei na entrada do terreiro, como sentinelas a bloquear a entrada de qualquer carro.

“Sua propriedade vai ficar isolada entre todas as outras, única ilha de mato e pasto sujo num mar de montanhas verdejantes de reflorestamento.”

Que seja, mas há uma beleza nas ilhas. As únicas que eu conheço são as que existem no rio, que eu costumo contemplar quando vou à cidade receber alguma venda, verificar a renda que me legou a minha tia e fazer minhas compras. São pedaços bonitos de terra que resistem no meio do rio, deixando a água passar ao largo, a turbulência ir embora. Resistem à enchente até. Que seja, minha fazenda será uma ilha. E eu o habitante feliz, Robinson Crusoé eternamente a espera de que não me resgatem dela. Espero viver muito, tenho de me cuidar. Enquanto estiver vivo talvez consiga proteger o trinca-ferro, o mão pelada e a preá.

Que sopre o vento o quanto quiser. Que leve embora as folhas doentes das árvores. Pode ser o tempo de colheita delas, mas as folhas vivas, que ainda bebem a seiva da terra, estas não vão ser arrancadas pelo primeiro vento.

Quando ele foi embora eu senti a escuridão mais perto do que nunca. Senti uma presença estranha aqui por perto. Estava perto da noitinha, mas eu não tinha medo. Faz muito tempo que não acontece nada estranho, esta terra nunca me fez mal. Nunca fizera mal aos índios que ficaram, os que a entenderam.

Mas o calafrio continuou, uma sensação de algo forte caminhando entre os galhos emaranhados, algo acinzentado, peludo e frio. Não tenho medo, mas não saio à noite quando pressinto isso. Fico na varanda contemplando o escuro, e o escuro me contemplando com seus olhos amarelos, que às vezes piscam. Acho que o estranho não deveria ter sido tão ousado, não a ponto de vir aqui em carro conversível.

Os grunhidos que ouvia longe, contidos, pareceram mais perto. Os olhos não estavam me olhando enquanto eles estalavam na noite. Ouvi o motor de um carro acelerar ao máximo, bater contra a minha porteira com a força de quebrá-la, mas por felicidade desapareceu pela estrada aos poucos. Pude ouvir o motor um longo tempo, como se a distância não aliviasse o pé do estranho de camisa roxa. Que nunca mais voltou, nem voltaria sob a mira de uma espingarda.

Ele talvez não saiba, mas não deveria ter falado comigo tão ríspido. Todos me chamam de louco, mas ninguém me incomoda. Não desde que o filho do Gracindo, aquele idiota, veio tentar caçar minhas capivaras. Eu o proibi, adverti, implorei, mas ele me estapeou, abusando de sua força e me chamando de maricas. Entrou na mata e não voltou. Sua mãe só o viu de novo embrulhado em plástico preto, uma fotografia ampliada colada no lugar do rosto.

Tentaram me acusar, mas não havia como associar minhas mãos com aquelas marcas, meus dentes com aqueles nacos de carne arrancada. Mataram uma pobre onça nestas redondezas e deram o caso por terminado. Isso é o que a polícia diz, mas ninguém nunca mais entrou na minha terra pensando em caçar. O povo daqui é mais esperto que esses polícias que vem de Ubá ou Muriaé, e não entendem a língua da terra. A diferença é que eu, diferente do povo, não tenho medo. Não vou me deixar levar.

Os Gonçalves foram embora hoje. Estava lá na despedida, barbeado pela primeira vez em meses. Uma cena de fazer chorar, os pobres homens, despossuídos de suas vidas, condenados a vagar no mundo conduzindo máquinas, a maldição da terra. Catarina estava entre eles, parecia mais triste que todo mundo. Não fui o único a notar que lhe haviam dado remédio outra vez, e amarrado suas mãos e pés.

Voltei para casa triste, sentindo a vida me escapar. Sentei na varanda olhando a noite, ouvindo os curiangos no terreiro, e sentindo falta dos olhos amarelos que me acompanhavam nestas solidões frequentes.

Então ouvi de novo o grunhido, e tampouco tive medo. Tanto faz à vida, se a gente morre tarde ou cedo. Mas a fera não tentou morder, nem veio junto a mim. Apareceram os seus olhos, amarelos, na penumbra do terreiro. E no dia seguinte eu encontrei na horta um lenço arrebentado, como se tivesse amarrado os punhos de alguém.

02
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 11:28link do post | comentar

A Zona da Mata Mineira vive hoje uma crise – humana, econômica e ecológica. Por toda parte onde se vá, encontramos a descaracterização cultural, a perda das tradições orais, o esquecimento do artesanato (e da própria história) e, mais grave que tudo, uma absurda destruição da natureza que, de tão arraigada, deixou de significar apenas a remoção da vegetação nativa e agora está chegando à remoção do próprio solo e das montanhas: percorrendo a região vemos morros pelados, terra aparente, erosões, cursos d'água assoreados. A Zona da Mata deixou de merecer esse nome: hoje é uma região em processo incipiente de desertificação.

“No começo isso aqui era só mato, bicho e índio. Mas nós limpamos a terra e a fizemos produzir.” A frase foi dita, de verdade, por um proprietário de terras da Zona da Mata Mineira, em algum momento nublado de minha infância. Ele certamente não se lembrava de quando chegaram os primeiros colonos, procedentes do norte do estado do Rio de Janeiro ou dos Campos das Vertentes, mas a presença dos três elementos definidores – mato, bicho e índio – perdurou durante décadas depois, permaneceu no imaginário do povo até bem há pouco tempo. E eu sempre achei curioso como a gente de minha terra contava sua história.

Conheci pessoas que diziam que um ou outro de seus antepassados havia sido “índio pego a laço no mato” – uma referência oblíqua a indivíduos sobreviventes dos massacres dos grupos isolados de tapuias, puris, goitacazes e outros povos ameríndios que aqui viviam. Quando os colonos brancos vieram, trazendo seus escravos e seus machados, a presença dos índios foi sendo extirpada, junto com o mato e com os bichos. As três palavras foram sempre empregadas em um tom pejorativo.

“Mato” era, no português coloquial de antigamente, uma palavra carregada de negatividade. Dizer que algo “era mato” era como dizer que era vulgar, que era encontrado em qualquer lugar. O “mato” era, também, o lugar desorganizado, o caos primevo. “Bola para o mato, que o jogo é de campeonato” e “fugir para o mato” são expressões que mencionam esse sentido. Joga-se a bola para onde ela desaparecerá, para retardar o jogo. Foge-se para longe do alcance do braço da lei. No meu tempo de criança ainda corriam histórias de pessoas que fugiam das cidades e vinham “para o mato” trabalhar em terras de coronéis, e que não eram presas se esses não deixassem, porque a polícia não entrava nas propriedades. Remover o “mato” era um processo civilizatório. Lembro-me de como a professora leiga, de minha escolinha rural, me contou, embevecida, como seus antepassados “desbravaram” a terra. “Desbravar” é cognato de “bravio”. Envolve um sentido de “doma”. Desbravar é amansar a terra. É tirar o mato, o bicho e o índio. E eu me lembro até hoje do desenho que fiz, de um colono enxugando o suor da testa, apoiado em seu machado, no meio da lida hercúlea de derrubar árvores em um campo imenso.

Meus antepassados odiavam árvores. Tanto que construíam suas casas em clareiras lisas, os “terreiros”. O tamanho do terreiro estava vinculado ao poder do proprietário. Viver em uma casa isolada no meio de um terreiro imenso era para os coronéis, ou quem tinha dinheiro equivalente. Manter o terreiro limpo envolvia o trabalho de muitos homens, para remover as folhas do mato, arrancar as ervas que teimavam em nascer. O terreiro era também uma proteção natural contra emboscadas. À noite, mesmo sem lua, era mais fácil ver alguém tentando atravessá-lo para atacar a casa. Mais fácil do que seria se em vez de terreiro a casa fosse cercada de árvores.

“Bicho” tinha um sentido ainda mais forte. A palavra “animal” era reservada para as bestas domesticadas: cavalos, mulas, vacas, jumentos, cabras, ovelhas. Pequenos animais domesticados, ou que viviam próximos à casa – como gatos, ratos e lagartixas – eram chamados de “bichos”, assim como os insetos (bicho-de-pé, por exemplo). Os outros eram os “bichos do mato”, vistos como “invasores” e predestinados à caça ou ao mero extermínio porque interferiam na economia. E o colono sabia muito bem que remover o mato era uma maneira eficiente de afastar o bicho, sem ter que matar cada um, correndo risco. Por isso as grandes queimadas, por isso “desbravar” até mesmo encostas de ângulo impossível para a agricultura e a pecuária. Era preciso “limpar” a terra, para que o bicho não ficasse perto. A onça, o quati, o piriá, a jaguatirica, o guará, o guaxinim, o maracajá, o mão pelada, o caboclo d'água, a lontra – todos bichos que, embora fossem bonitos alguns, tinham o infeliz hábito de ver nas galinhas das fazendas uma caça mais gorda e mais fácil do que os magros e velozes pássaros “do mato”.

E o “índio”, por fim, era o “bicho” por excelência. Dotado de uma inteligência “quase humana”, reunia a ferocidade e a matreirice. Por isso o ódio que despertava no colono, de forma espontânea e natural. Se algum era capturado e trazido à fazenda, era para ser simplesmente morto ou escravizado. Poucos comentam, mas os antepassados pegos a laço eram, em geral, mulheres. Estuprar a índia e fazer filhos nela era uma forma de subjugar este animal estranhamente humano que vivia em torno das regiões de colonização incipiente. Mas uma vez trazido à civilização, se “aprendesse a falar” (o que geralmente só acontecia com crianças) e conseguisse aprender uma profissão, o índio não era mais um inimigo, apenas outro elemento subjugado, na estrutura de poder da grande fazenda.

Não podemos esquecer essa mentalidade se quisermos entender o desastre. Os colonos removeram a mata para afastar o bicho e para exterminar o índio. Removeram a mata até mesmo nos lugares onde isso nem era necessário, como encostas de pedreiras com ângulo de sessenta graus. No lugar da mata plantaram monoculturas que não ofereceram cobertura ao solo, as mais recentes são o eucalipto e a brachiaria. O uso frequente da queimada enfraqueceu a terra, salinizou-a, acidificou-a. Queimada proposital, ou queimada acidental, causada por balões, raios, acidentes domésticos ou, em dias excepcionalmente quentes, pedaços de vidro perdidos em moitas secas. Nos lugares mais queimados já não cresce mais nada: a terra está pelada, mostrando sua derme, vermelha ou amarela. Sem cobertura a chuva arranca e arrasta: surgem erosões imensas. A terra solta vai para os riachos, que ficam rasos e largos. As nascentes são sufocadas, riachos secam na estiagem, coisa que nunca se imaginou acontecer por aqui.

E este desastre acontece aos poucos, sem que ninguém proteste. Os jornais não comentam. A televisão não fala. O cadáver vai apodrecendo e é como se ninguém sentisse o cheiro. As pessoas dirigem pelas estradas olhando exclusivamente para o asfalto, sem ver as feias marcas de destruição que perfilam ao redor. Tal como, nas cidades, ignoram os mendigos, ao sair delas ignoram a destruição.

Ninguém quer ver, porque ninguém quer admitir que tem alguma responsabilidade. Não fomos nós, foram nossos pais, avós e bisavós. Nossos netos e bisnetos também dirão que não foram eles, mas que fomos nós – mas nós estaremos mortos então, o que significa que não veremos seus dedos apontados em nossas caras, e não precisaremos ter vergonha da acusação. Por isso podemos ficar inertes, sem nada fazer, sem nada dizer.

Nascemos em uma cultura violenta, uma cultura de genocídio, estupro, desmatamento, queimada e depredação. Matamos ou “pegamos a laço” os índios, arrancamos as árvores, secamos os brejos, queimamos os montes, destruímos os sinais de tudo que houve antes de nós. Tomamos posse da terra através da terraplenagem e da espólio. Esfolamos a terra, tiramos sua pele, para que crescesse outra, nova, nossa. Agora vemos essa pele que nasceu, ressecada, feia, cicatrizada, e não a queremos. Eis o fruto da ira e da cobiça de nossos antepassados. Até quando os desculparemos, até quando nos desculparemos?

Eu poderia também estar quieto, mas me dói cada vez que vejo uma nova erosão, que noto que esqueci outra cantiga que fez parte de minha infância. Dói quando vejo que a colonização continua, sempre em novas vagas, cada uma determinada a suplantar a que havia antes, sob camadas sucessivas de esquecimento. Rompendo a continuidade, para que tenhamos a ilusão de que o mal lá fora não é fruto nosso: queremos ser novos, fingimos ser outros, porque não queremos saber que matamos os bichos, que laçamos os índios e que limpamos o mato.

Eu não estou quieto porque todo escritor é consciência de sua era. Eu sei muito bem que a perfeição, possível ou não, é apenas um ideal vazio, apenas outra forma de não olhar lá para fora e ver o vazio, de árvores, de bichos e de índios, que o nosso passado produziu. Se eu ficasse obcecado apenas em contar, do melhor modo possível, as histórias e os sentimentos que agradam aos outros, eu estaria sendo apenas outro colono, que vive aqui, mas tem a cabeça no Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar. A mentalidade do colono é transitória. Ele não ama a terra, ela não tem família: seu coração está em outro lugar, para onde quer ir ou voltar, quando arrancar da terra o que seja preciso para viver lá como patrão, ele que veio como ladrão. O colono não é um cidadão.

Então eu começo, aos poucos, a falar disso, e de outras coisas que sinto, da raiva que sinto. Posso estar escrevendo mal, mas cada dia que passa tenho mais definida esta sensação de que é preciso vocalizar esta frustração. Falar em nome das árvores, dos bichos e dos índios. Falar em nome do que esta terra foi antes de ter sido reduzida ao que é.


22
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 00:45link do post | comentar

Subíamos a muito custo, por falta de costume, de equipamento. Mas subíamoscom muita vontade, com máquina fotográfica e a esperança de ver na face do valea pegada da civilização. A montanha estava à nossa espera ali, onde sempreestivera, sua face sul vincada como um punho erguido, desafio aos nossos pésacostumados a planícies.

A trilha ondeava como uma veia rosada a romper overde grosso da floresta original, que se estendia sobre nós a ponto de, àsvezes, não termos a cor do céu para medir as horas. Chovera um pouco durante asubida, essa chuvinha fina que mal molha o chão. Normalmente um grupo como onosso pararia, mas enquanto as pernas não doíam nem as botas machucavam, nossasalmas imploravam pelo fim da sufocante trilha.

— Novehoras.

— Caramba, parece uma eternidade. Meus pulmões estãocomeçando a queimar.

— Não tenham medo, gente — esclareceu oguia, quando não der mais para subir a gente para e descansa meiahora.

— Se eu parar por meia hora tenho que voltarrolando.

Todos riram. Todos voltariam rolando se parassem meia hora. Masenquanto ainda tínhamos fôlego e tempo, seguimos subindo a passos cada vez maisespaçados, pela trilha enforcada de tanta árvore, como formigas escalando ummuro.

— Vamos parar, pessoal — pedi, depois que o ar quasefaltou quando meu peito o pediu. O coração bombeava com uma força de tambor emmeus ouvidos e eu só não suava porque estava ainda fresco da manhã recente,naquela mata onde raramente o sol pousava.

O guia se aproximou, me deu amão, ajudou-me a terminar de subir mais um barranco e descortinamos umdescampado um pouco mais tranquilo no altiplano.

— Podemos pararagora, são nove e dez. Saímos de novo às nove e meia.

De um grupo de dozepessoas ouviu-se uma voz ou outra resmungando. O silêncio aliviado de outras dezou onze sufocou qualquer reclamação.

Peguei minha garrafa de água e sorvium gole longo, «camelídeo», como costumava dizer Estefânia, que o diabo a tenha.Bebi mais meia garrafa, desejando que fosse rum, mas era só água mineralgasosa.

O guia aproveitou a parada para rever os planos:

—Temos já cinquenta e quatro minutos de caminhada. Já percorremos quatroquilômetros e setecentos e vinte metros e subimos cento e noventa metros acimado nível do vale.

Eram números impressionantes, mas abstratos. Eu nãotinha ânimo para questionar o que ele dissesse. Fossem quatro quilômetros oudoze eu não conseguia mais distinguir se estava certo. Só tinha a impressão deque cento e noventa metros parecia muito pouco: era como se tivéssemos subidoaté as grimpas das montanhas da serra, mas estávamos ainda arranhando o sopé deuma delas, nem sequer a maior, apenas a mais próxima.

— Vamos, vamos— interrompi meus doloridos pensamentos por causa das palmas batidas peloguia.

Sacudindo a parca mochila nos ombros, pus-me à vontade para caminharde novo.

Continuamos subindo, agora bem mais devagar. No novo passo queadotamos teríamos andado os mesmos quatro quilômetros em um tempo quase duasvezes maior. Mas a montanha ficava cada vez mais a pique diante de nós, eu játemia pelo momento em que teria que usar uma corda. Montanhas são cruéis,guardam seus trechos mais difíceis para quando os ossos já estão falhando. E asescaladas são como dizia o cantor: «quando o cansaço e a estafa bater, o sol domeio-dia espera você».*

Eram dez e quarenta quando o primeiro de nóscomeçou a passar mal, um turista gringo de cabelo cor de cenoura que falava umportuguês quase bom, mas puxava um esse carioca que soava sempre engraçado.Quando ele desmaiou e o guia correu para acudir eu me lembrei do quanto forarelapso no briefing antes da subida. Fôramos apresentados, um a um, pornome e profissão. Cada um confessara quantas vezes antes escalara, e que tipo demontanhas. Calhara de ser o primeiro e, depois de me abrir o mínimo possível,gastara o resto do tempo contemplando as copas verde-negras das árvorescentenárias, de troncos grossos e nomes arcanos que eu ainda não conseguidecorar. Então o gringo desmaiou e eu, que fui o primeiro a ver, não pude sequerlembrar seu nome e apenas gritei:

— Tem alguém passando malaqui.

Senti-me culpado por isso. Imaginei que, do além, ficaria bastantechateado se no meu velório os meus colegas de trabalho apenas comentassem «temum morto ali». Quando ele começou a voltar a si, resolvi compensar minha faltade tato com um gesto de consideração. Aproximei-me do cabeleira de cenoura,perguntei se estava bem e pedi-lhe que me confirmasse seu nome.

Não sei oque ele me respondeu. Seja qual for o nome pelo qual seus pais o chamaram quandoo registraram em algum cartório da Holanda ou da Bélgica, não foi um nomereconhecível pelos meus ouvidos interioranos.

— Bem, você tem algumapelido mais fácil de pronunciar? Posso, por exemplo, chamá-lo de Hans?

Ocabeleira de cenoura sorriu timidamente, esse sorriso curto e envergonhado queos gringos têm quando estão tentando enturmar-se:

— Hansh não é meuapelido de verdade, mash acho que você também terria dificuldadesh com meuapelido.

Tive mesmo. A pronúncia parecia fácil, mas não consegui repetirnenhuma vez sequer direito. Diante da ameaça de ser chamado de «Cenoura» ogringo preferiu ser chamado de Hans.

Ajudei Hans a se manter de pé depoisque o guia o largou para organizar mais um pouco da subida. Ele reclamava dedores nas pernas, certamente câimbras como as minhas. Mas ainda tinha vontade desubir mais.

— Dez e quarenta e cinco, dez e quarenta e cinco —alertou-nos o guia — descontando uma parada de vinte minutos e mais dezminutos desta, pelo meu relógio, temos uma hora e quinze de caminhada total.Nesse tempo nós percorremos seis quilômetros e meio, e subimos duzentos esessenta e sete metros, pelo meus cálculos.

— Quantos metros temmesmo essa montanha da peste? — perguntou uma voz com vago sotaquenortista ou nordestino.

— Quinhentos e setenta e quatro —informou-nos o guia.

Uma vaga de desânimos se manifestou em suspiros,resmungos e bocejos.

— Sem drama, gente — provocou o guia— porque se fosse fácil, todo mundo vinha.

Tentei calcularmentalmente quantos grupos de turistas não tentavam aquela mesma escalada todomês. A trilha era tão larga e limpa que parecia que um exército espartano subiae descia por ela todos os dias — mas não encontráramos ninguém mais,talvez fosse a época do ano.

— Vamos fazer outraparada?

Resmungos e murmúrios de assentimento apoiaram a sugestão. O guia,então, consultou o seu bom-senso e recomendou que sim.

— Todo mundorepondo líquido e comendo uma barra de cereal, somente uma.

Oestalar de doze invólucros de barras alimentares xexelentas perturbou osilêncio, sufocando o pio dos pássaros. Quinze minutos depois, com os músculosalongados e os ânimos melhorados um pouquinho, a subida recomeçou.

Eradifícil conversar, tendo que fornecer alento a um corpo tão precário em umajornada tão difícil. Hans pareceu entender o meu silêncio lendo a careta em meurosto. Ele também não parecia nada bonito com as suas sobrancelhas amarelaspingando gotas grossas e cada ruga precoce de sua pele de pergaminho preenchidade sal e suor. Pobre Hans, vindo de um país onde não há montanhas, o que fazaqui nessa terra onde as planícies se esgueiram com tanto medo por entre osmorros?

Atingíramos um trecho quase horizontal do caminho, que pareciacircular em torno do pico como uma linha enrolada no carretel. Não poderia serde outra forma: à nossa direita a rocha se erguia como uma parede. Andávamos comas pernas soltas, ousadas, mas já sabendo que teríamos à frente outra subidamalvada. Mesmo andando assim os nossos pulmões andavam carregados de fogo e Hanssuava muito mais do que antes.

Isso porque saíramos do mato e estávamos aosol, seguindo por uma estrada que riscava em torno do morro e nos expunha àclaridade impiedosa. A pedra esquentava e um mormaço desconfortável nos faziaquerer ficar longe dela, mas a trilha era estreita e o parapeito, inconfiável.

Começou a ventar. Um vento fresco de outono, mas mesmo assim um vento quenão nos confortava muito. Vinha em guaspadas decididas, súbitas, surpreendentes.Assobiava nas folhas e nas gretas como uma gaita dos infernos. O vento vinha dosul-sudoeste, um sinal sempre péssimo. Vinha chuva. Chuva longa, chuva fria.Chuva para dias. A descida prometia ser pior que a subida, a menos que chovesselogo, e a subida ficasse tão ruim quanto possível.

— Ninguém olhou aprevisão do tempo, gente? — questionei em voz alta.

O guia gargalhoue perguntou, querendo fazer graça:

— E por causa de uma chuvinhabesta a gente deixava de subir essa montanha linda?

Disse isso arrancandouma flor de capim e tentando parecer leve na subida, mas não teria conseguidoimitar nenhum passo de bailarino.

— Vamos voltar!?

—Por que, Antônio? Sei que lá no Ceará não chove muito, mas não precisa ter medo,que não faz mal! — o guia começava a parecer impertinente, querendo quesubíssemos de qualquer jeito.

— Ele tem razão — interrompeu oHans — em qualquer lugar morro abaixo estarremos sem prroteção contrra achuva. Deve haver um abrrigo mais adiante.

Hans estava certo, claro.Descer só parecia melhor porque a alma da planície sempre pensa que uma desgraçaem baixa altitude é melhor do que num píncaro. Andamos então com o passo maisjusto, tentando vencer logo aquele trecho maldito e exposto em que a trilhabordejava a pedra nua. Mas foi em vão.

A chuva se formou com uma rapidezque deu até medo. Logo nuvens pesadas se formaram no horizonte, e o vento astrouxe para abraçar a montanha. O dia foi ficando escuro, os passarinhos calaramseus bicos no fundo dos ninhos, o vento foi ficando forte, arrancandopedregulhos, arrastando folhas pelo chão, arrepiando nossas nucas.

—Valha-me Santa Bárbara!

A visão do vale se dissolveu na névoa. De repentetrovões se ouviram perto, muito perto. O ar coriscou subitamente e o assobiogorgorejante do vento nas locas e gretas do rochedo pareceu ainda maismefistofélico que antes. Desgraçou a chover assim como se tivessem aberto umatorneira. Chuva gelada, misturada com granizo fino e com um vento que batiacordas de chuva contra a pedra, nos empurrando e empapando.

— Nãotem para onde ir aqui — berrou o guia, no meio da borrasca — temosque continuar subindo porque mais a frente tem um acampamen....

Outrotrovão, dessa vez mais violento ainda. Meus ouvidos doíam, minha pele estava tãogelada que minhas roupas pareciam quentes, mesmo molhadas da mesma água. Cadapelo de meu corpo de eriçara, eletrificado, pavoroso. Trovões, trovões, e achuva ficando quase tão densa que era difícil respirar sem por a mão diante dasnarinas.

— Todo mundo dando as mãos, e vamos devagar.

Todosaconchegados na proximidade segura da pedra. Todos andando com as botas repletasde água, rangendo como queijo verde no dente.

Nenhuma onomatopeia descreveaqueles trovões, nenhum adjetivo serve para tanto relâmpago. Além de nossospróprios medos, só conseguíamos escutar a tempestade, e enxergar dois ou trêsmetros diante do nariz. Estávamos dentro de uma nuvem de chuva, enfrentando osraios de bem perto.

Por fim chegamos a um lugar escuro, que depoissoubemos ser a sombra de um pau-brasil secular. Ali os hippies costumavamacampar. Era o último lugar da montanha aonde se podia chegar em um veículo:quem fosse bastante louco poderia subir até ali em uma moto ou triciclo. Alihaviam construído banheiros, captavam água de uma nascente e serviam-na numtanque. Ali havia um galpão permanente, onde os guias de escalada mantinhamalgum equipamento.

Debaixo do galpão, no seco e ao abrigo dos relâmpagos,começamos a pensar em secar os nossos corpos. Apareceu um fogareiro e outro,acenderam logo uma fogueira. Logo o lugar estava mais aconchegante, mas aindaficamos mais de meia hora tiritando, alguns espirrando, outros tossindo, todoscertamente resfriados até o último poro.

O aguaceiro despejou aindadurante uns dez minutos, depois se reduziu a uma chuva dessas que fazem a gentedormir na roça, depois uma neblina fina que apenas enodoava o horizonte. Até quepassou a água e ficou a umidade, ficou o frio. Eram mais de uma da tarde quandofinalmente o sol reapareceu.

Saímos do galpão ainda sacudindo água doscabelos, como cachorros recém lavados. O sol era melhor do que qualquerfogueira, mesmo um sol ainda atenuado por tanta nuvem.

A chuva dera umbanho de cores em tudo quanto era mato ou flor. O vermelho das pétalas pareciamais aceso, mais líquido, mais feito. Cada folha gotejava, cada lâmina de capim.Tanta beleza justificava as câimbras todas. Hans sacou de sua máquina, ainda comos dedos molhados e as sobrancelhas parecendo tufos de flores. Mirava edisparava sem pensar direito, como se achasse tudo belo, até a lagartixa quebotou a cabeça para fora de sua loca.

Então nos demos conta da fome.Aquecemos nossas pequenas refeições nos fogos que tínhamos e comemos em silênciorespeitoso diante da natureza. Quando o tapete de neblina de dissolveu,finalmente, pudemos ver as cicatrizes da infestação humana nas montanhas maisdistantes. Mas isso não diminuiu a beleza de nenhuma flor sequer, somente nosfez temer melancolicamente por cada uma delas.

* O verso é de uma canção do mineiro (como eu) Zé Geraldo.

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22
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 23:15link do post | comentar | ver comentários (1)

Anteontem concluí a postagem do nova e melhorada versão do conto Os Estranhos e achei melhor mover todas as informações sobre ele para um texto em separado, se possível acrescentando um pouco mais de informação.

Os Estranhos é um conto de terror do gênero pós-apocalíptico inteiramente baseado em dois sonhos que eu tive, ao longo de uma mesma noite, em 1996. No primeiro sonho eu estava no jardim de uma casa estranha, no alto de uma montanha, acompanhado de pessoas desconhecidas, ocupado em livrar-me de um cadáver enquanto contemplava, cheio de pavor, a presença de criaturas que voejavam sobre o vale abaixo, deitando sua sombra sobre a cidade de onde, no sonho, eu tinha saído. No segundo sonho eu estava esgueirando pelas sombras de minha própria cidade, tentando sair dela a pé, sem saber como entrara, e encontrava sinais preocupantes de uma presença maligna.

Primeiro texto meu publicado após onze anos de afastamento da literatura, sua versão original saiu na coletânea «Solarium», da Editora Multifoco, em 2009, representando um momento importante na minha vida, por três razões. Foi a minha primeira obra publicada em onze anos, a minha primeira incursão no terror e o início de minha relação com a Editora Multifoco, que viria a publicar o meu primeiro romance, Praia do Sossego.

Sobre meu afastamento da literatura, isto será assunto para a minha autobiografia, se um dia quiserem que eu escreva uma. Sobre minha incursão no gênero terror, isto tem a ver com as minhas leituras de então: Lovecraft e Poe, principalmente. Além disso, eu estava envolvido com uma comunidade de literatura no Orkut e encontrava lá muita gente interessada no gênero: acabou sendo natural que eu me interessasse por ele na busca de leitores.

Foi ummomento marcante para mim, não apenas porque eu superei uma fase na qual eu me limitava a apenas blogar ocasionalmente coisas que escrevia, mas também porque foi a primeira vez que me disseram ter selecionado um texto meu para publicação. Não creio que eu mesmo teria selecionado aquela versão dOs Estranhos, mas gosto realmente é algo que não se discute: vários dos leitores da antologia Solarium lembraram do meu conto na hora de citar os melhores do livro.

De qualquer forma, nunca fiquei satisfeito com a maneira como conduzi a versão preliminar. Obcecado com a ideia de agradar a um público mais amplo, tentara incluir um núcleo romântico: dois casais em crise que acabam se “trocando.” Foi uma péssima ideia, segundo o que hoje penso, porque eu não dediquei à construção do relacionamento complicado dos quatro personagens toda a atenção que era necessária para dar credibilidade à mudança de parceria. Nem haveria espaço, em tão poucas páginas, para ser bem-sucedido nesta tarefa. Por isso esperei até esgotar-se a primeira tiragem da coletânea e pedi licença à editora para retrabalhar o texto e publicar uma versão revista e expandida. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que os termos do contrato não proíbem a republicação nestas condições, nem sequer para as coletâneas cujos contratos ainda estão na vigência (dois anos)!

Devidamente autorizado, fiz todas as modificações que gostaria, inclusive restaurando o argumento original da história, no qual a casa no alto do morro não era um refúgio proposital dos protagonistas, mas apenas um lugar aleatório, poupado da invasão dos Estranhos, e não havia nenhum relacionamento romântico conturbado. A versão aqui publicada é mais fiel aos dois pesadelos que me serviram de base e, apesar de mais longa, é mais enxuta e fácil de ler.

Se algum dia publicar este conto em livro, ele deverá formar uma obra única, sem qualquer divisão em partes. Só fiz diferente aqui no blog porque reconheço que meus leitores não teriam boa vontade em ler uma obra de sete mil palavras de um fôlego só.

Parte IParte IIParte III

20
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 18:00link do post | comentar

A Montanha pontificava sobre o vale como um farol no mar de morros do interior de Minas Gerais. Inexplicavelmente os Estranhos não haviam se ocupado dela. Era lá que ficava o refúgio que abandonáramos, era lá que… «Mas, que merda é essa?»

A menos de duzentos metros de nós, uma das coisas voadoras veio pousar, com uma levez realmente Estranha e dobrando-se e estalando sobre si mesma como um origami diabólico. Por fim aquela forma surreal, reduzida a um mero pacote do que fora, caiu pelo chão como uma concha de lesma e foi rapidamente conduzida para dentro de um galpão por alguns seres vestidos com albornozes negros. O ciclo se fechava ali: eu havia presenciado tudo o que precisava para entender muita coisa que me intrigara desde o alto do morro, minha aventura louca fora recompensada.

O sol continuou subindo, estalando nas folhas ressequidas da grama de inverno e nos dando a impressão de que poderia sanear aquela pústula que se abatera sobre o mundo, mas essa esperança vaga começou a morrer quando me dei conta de que nenhum carro passara pelo asfalto desde dias antes, e nenhum passava naquele momento.

Continuamos andando em uma direção qualquer, para longe da cidade, seguindo o caminho de menos esforço. Antes de virarmos a curva seguinte, tive tempo ainda para olhar para trás e ver, sendo rolada para forma do mesmo galpão, outra daquelas dobraduras loucas, que logo adquiriu asas e decolou, para amaldiçoar com sua sombra o que um dia fora um belo vale, sede de uma cidadezinha razoável.

Logo adiante percebemos que não seria fácil chegar a algum lugar: os fios de luz cortados, postes telefônicos tombados, os radares da polícia rodoviária explodidos e estranhas listras escuras marcadas na face dos morros, listras onde o pasto morrera e se transformara em pó, onde as árvores pareciam desesperados carvões acenando para um vento inútil.

Um carro estava parado exatamente sobre a ponte, parecia ter sido queimado. De perto vimos que não era bem isso: ele estava inteiro por dentro e por fora, apenas sua pintura esfarelenta denunciava algum tipo de acelerada corrupção. Os pneus rachados haviam deixado escapar todo ar, e se desfaziam aos cavacos, como a borracha estivesse irremediavelmente leprosa. Ao volante, um esqueleto limpo, com os ossos ligeiramente alaranjados.

Madalena não me perguntou nada sobre o carro. Pobre coitada, imagino como se sentia. Eu mesmo não conseguia falar coisa nenhuma. Em mim, porém, brotou naquele momento a constatação da raride de restos mortais, humanos ou não, desde que penetráramos a cidade. Era muito pouco tempo desde o aparecimento dos estranhos, pouco mais de uma semana, deveria haver uma fedentina insuportável de corpos em decomposição, mas não havia nada. O que poderia haver de mais sinistro nesta constatação eu nem tentei imaginar. Apenas respirei fundo, sentindo-me sortudo por ter conseguido atravessar o vale das sombras da morte como se o Senhor fosse o meu pastor.

Continuamos andando, porém, como se a própria vida dependesse disso. Apesar do peito ofegante, do corpo suado de medo que esquentava à medida em que o sol subia, apesar da alma carregada de dúvidas e das pernas doendo da caminhada de já quase sete quilômetros, traçada entre tantas interrupções, com calma e pavor. Deviam ser seis da manhã, ou menos ainda. No verão o sol nasce muito cedo.

Olhei para Madalena com curiosidade. Ela estava fitando o caminho à frente, com teimosia de quem quer viver. Seu cabelo estava tão empapado de suor que se transformar numa túnica negra que caia sobre as suas costas. O desodorante vencera dias antes e um cheiro forte saía de seu corpo, mas um cheiro que não me repelia totalmente, um cheiro de deserto, de idade da pedra. Fosse outra circunstância eu teria me sentido excitado, mas diante dos fatos o meu cérebro desligou esta emoção. Procriar seria inútil se não achássemos segurança.

O riacho corria preguiçoso e o mundo andava tão silencioso que eu conseguia ouvir o barulhinho da água. O mau cheiro que ele exalara dias antes estava quase inteiramente dissipado. Esta constatação me encheu de esperança, e eu acabei dizendo que era bom estar vivo, afinal, pois o mundo parecia ter sobrevivido.

Passada a curva seguinte encontramos o primeiro automóvel intacto. Ou quase. Estava cuidosamente estacionado em uma entrada que dava para um matagal, ponto conhecido de meus anos loucos de juventude: quando não tinha dinheiro eu estacionava ali para transar. Uma listra negra cruzava o asfalto alguns metros antes, a primeira que pisaríamos em vários dias. Sobre ela estava o que parecia ser outro resto incendiado de automóvel. Mas aquele, escondido entre as folhas ainda vivas daquela moita de beira de estrada, não fora tocado por nenhum fogo divino.

— Parece que tem alguém lá dentro — observou Madalena, que, obviamente, estava enxergando melhor do que eu, pois tinha olhos naturalmente bons enquanto eu lutava contra a gordura acumulada em minhas lentes.

Tentei limpar os óculos no lenço já ensebado de suor, só piorando a situação. Lambi-os em desespero, melhorando um pouco sua transparência, mas criando um cheiro horroroso de mau hálito em torno de meu nariz. E enquanto isso Madalena e eu nos aproximamos cuidadosamente do veículo para ver quem estava dentro.

Era um casal de namorados, obviamente, mas ambos mortos. Hediondamente mortos por balaços através da cabeça.

— Morte matada — novamente Madalena se adiantava, deixando transparecer a leve influência de seu falar.

Nunca lhe perguntara de onde viera. Não se pode conversar muito com putas, ou se corre o risco de descobrir sua humanidade, ou talvez até de brotar uma paixão vexaminosa dessas. Mas aquela expressão, aquele jeito diferente de rolar as vogais, tudo me sugeria que ela vinha de longe, bem longe, ou estivera por lá durante muito tempo. Isso, porém, já não fazia sentido algum. Ainda existiria o «longe»?

Madalena tapava o nariz, contrariada pelo cheiro e pelas moscas nojentas que voejavam em torno dos cadáveres, que já começavam a sorrir, expostos que estavam à umidade e aos vermes.

— Enterramos esses pobres diabos? — perguntei.

— Pelo amor de Deus, não!

— Não é nada humano deixar dois cadáveres assim sem socorro.

— Não se preocupe com esses, não se importam mais. Eles tiveram foi sorte.

Tive de concordar. A única sorte maior que a de estar vivo era ter morrido. Não sabíamos qual era a terceira alternativa, mas nossa passagem por dentro da cidade sugeria que pudesse ser algo bem pior.

Deixamos aquele carro servir de esquife para os dois, apenas tendo o cuidado de usar a gasolina para atear-lhe fogo. Foi um funeral limpo e puro no alto daquela elevação de beira de estrada, coberta por um ralo matagal. As chamas subiram feias e misturadas com a negra mancha do hidrocarboneto, mas o cheiro daquela combustão purificava o ar da putrefação daquelas pobres vidas.

Uma série de estalos graves vindos da direção da cidade me despertou para o perigo. Agarrei Madalena pelo braço e nos atiramos barranco abaixo, através dos galhos e cipós. Caímos estatelados e arranhados à sombra de uma goiabeira e olhamos para cima, apavorados. Duas enormes e negras sombras voejavam em círculos sobre o incêndio, como urubus. Nunca vira os Estranhos tão de perto, nem mesmo em nosso encontro ao amanhecer, na saída da cidade.

Ele voejou e voejou, como se perscrutasse a cena, mas não pareceu nos ver. Talvez o calor forte da queima de tanta gasolina o inebriasse, ou ofuscasse. Lembrei-me da cena na escola e tive esperanças de escapar. Estas esperanças me fizeram congelar de novo, sem dizer palavra. Mas quando Madalena sentiu o vento movido pelo farfalhar abjeto daquelas asas inomináveis ela surtou e se levantou e saiu correndo e chorando em direção ao córrego.

O Estanho logo abandonou seu movimento circular em torno do carro em chamas e soltou um longo assobio que me estalou nos ouvidos e confundiu totalmente os meus sentidos. Senti grogue, tive vontade de vomitar. Voltei o rosto para o lado, preparado para isto, e vi Madalena tropeçar e cair.

No instante a seguir eu acordei em uma poça de vômito. Não havia nenhum Estranho voejando por perto. Levantei-me do chão tão rápido quanto consegui e olhei na direção onde Madalena caíra. Havia algo lá.

A custo movi o primeiro passo. Minhas pernas estavam pesadas, embora me obedecessem. Levantar-me fora relativamente fácil, mas ficar de pé não era. Minha cabeça estava estranhamente confusa e eu não sabia exatamente o que deveria fazer a seguir. Sentia-me como se tivesse estado fortemente sedado, mas só me lembrava daquele longo assobio. E lembrar dele me fez ter novamente vontade de vomitar.

O que estava caído no chão era mesmo Madalena. Ela respirava. Embora tivesse o rosto imerso no próprio vômito, não sufocava porque caíra com metade do rosto sobre o barranco do córrego. Levantei-a daquela posição vexaminosa e atirei na água, para purificá-la do que tivesse acontecido. Desci junto, lembrando da mancha esverdeada entre a minha cara e o peito.

Madalena acordou com água fria e me olhou, soluçando.

— Perdão, perdão, eu não aguentava mais.

— Não tem problema, Madalena, não foi nada.

Na verdade não tinha nenhuma noção do que poderia ter sido. Difícil asseverar que não fora nada.

Apontei-lhe uma casa ali perto, oculta entre as folhagens densas de árvores frutíferas:

— Devemos nos esconder, eles podem voltar.

— Ali não — ela disse. Aquele carrou chamou a atenção deles, não duvido que procurem aqui em volta. Nossa única chance é conseguirmos sair daqui.

E assim, trôpegos e enfraquecidos pelo efeito sonoro inesperado e pelo vômito que provocara, nos levantamos e seguimos o leito do rio, fracos demais para escalar o barranco até o asfalto. Mais abaixo a estrada e a vargem se encontravam em uma ponte, ali seria mais fácil buscar a estrada de novo e tentar achar mais gente, talvez um carro funcionando. Com sorte um carro cujo ocupante tivera a educação de não se matar sentado ao volante para enlamear com sua carne putrescente o estofamento. Talvez de lá conseguíssemos fugir para mais longe, talvez encontrar um lugar onde houvesse mais gente como nós, onde fosse possível cultivar uma simples horta e resistir vivendo, apesar do Inesperado. Seria difícil conseguir isso. A vargem não era nenhuma mesa de bilhar, e não havia árvores que nos servissem de esconderijo.

Enquanto arrastava Madelana comigo — ela estava bem mais enfraquecida — eu olhei para o céu e notei as nuvens negras que se formavam:

— Tomara que seja chuva.

— O que será que nos pega primeiro — perguntou Madalena, algo cínica — a chuva ou os Estranhos?

— Tomara que seja a chuva.

Atrás de nós, na distância, ouvíamos os tétricos estalos daquelas asas malditas. Ao mesmo tempo em que o ar carregado anunciava um aguaceiro de verão a caminho.

— Se tivermos sorte, Madalena, a chuva vai confundir os Estranhos, e nos dará a chance de escapar. Se não chover, querida, essa vargem transformada em pasto não esconde nem um sapo.

— De qualquer forma, com chuva ou sem, vamos andando.

E continuamos andando, torcendo para vir logo a chuva.


18
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 11:00link do post | comentar

À medida em que nos aproximávamos da cidade, sentíamos o ar mais opressivo, mais parado, mais agônico no peito, como se uma mão forte pousasse sobre nossos corações, segurando o tórax em cada inspiração. O ar parecia partido em flocos, granulando nossa visão, ou seria apenas a ilusão que a penumbra traz aos olhos despreparados de quem, como nós, viveu uma vida inteira sob luzes artificiais?

Quando chegamos à primeira rua, pudemos ver a primeira alteração significativa da realidade: tudo parecia muito abandonado, como se as coisas novas não fizessem mais sentido. Como se o tempo estivesse avançando rápido, ou recuando, como se uma espécie de putrefação tivesse vindo com os Estranhos.

O primeiro edifício significativo por que passamos foi uma oficina mecânica. Vários veículos ali estavam abandonados, alguns com as entranhas extirpadas, como pacientes em meio a uma operação. Minha reação diante deles foi paradoxal: fiz-lhes um respeitoso aceno e balbuciei uma oração automática. Na ausência dos cadáveres de seus donos eu reverenciava aquelas máquinas, que podiam servir-lhes de cenotáfios.

Mais abaixo pela avenida chegávamos ao estranho monumento a que chamáramos de "Caldeirão da Bruxa" quando crianças. Normalmente uma rotatória movimentada, com todo tipo de veículo chegando e saindo da cidade por ali. Mas desde nossa entrada na cidade já esperávamos que estaria silencioso e calmo de podermos andar pelo meio da pista. Foi só um pouco mais adiante que começamos a ver sinais preocupantes de coisas que haviam realmente acontecido: ossadas, humanos, caídas pelo chão, incompletas, com sinais de justiça sumária. Aqui e ali fogueiras extintas. A brancura daqueles ossos, quase luminosa sob a rara luz de uma noite de lua nova, me fazia pensar em seres asquerosos que os teriam limpado de uma maneira horrível.

Porém, na avenida não parecia ser possível que ainda acontecesse violência alguma. Passamos diante de uma padaria saqueada, imaginei os ossos do padeiro caídos por detrás do balcão. Um avental azul ensanguentando me fez pensar na balconista vesga que tinha um namorado tatuado e sonhos de se tornar dentista fazendo uma faculdade que não teria nunca como pagar trabalhando ali. Uma pequena tragédia terminada, certamente, com a chegada deles.

Foi então que Madalena, falando com cuidado para que as palavras mal fossem audíveis, me fez perceber o que eu já pressentia, mas não aceitava:

— Não vamos achar nada útil nessa visita.

— A não ser o que pudermos aprender, não é?

— A morte não ensina nada a quem morre.

Não lhe respondi, continuei olhando à esquerda e à direita, tentando imaginar lugares de onde pudesse extrair suprimentos ou objetos úteis. Mas suspeitava que cada faca estivesse cega, que cada lanterna estivesse quebrada, que cada pilha estivesse sem carga.

Porque era incrível a rapidez com que a decrepitude se instalara. Havia erva crescendo sobre os prédios e casas, arrebentando por entre os paralelepípedos, as raízes das casas estavam crescidas medonhamente e sombras escuras corriam pelos cantos, de sombra a sombra.

— Ratos…

Não eram ainda nem nove da noite quando chegamos à praça ao pé do morro e miramos as árvores que ladeavam a Catedral.

— Ainda tem coragem? — perguntou-me Madalena.

Não lhe disse que sim nem que não. Estava ocupando percebendo como o mundo andava estranho. Amassando folhas de árvores para ver se estavam mais secas, pisando no chão com força para ver se não estava esfarelando sob meus pés.

— Ratos, morcegos, insetos…

— Também percebi — ela disse — que tudo que era cultivado está morrendo. Flores plantações, toda forma de cultura. Mas não é surpresa isso, não há ninguém mais cultivando.

— Só não quero que o dia nos surpreenda nessa cidade de pesadelo. Vamos logo ver o que viemos ver, e embora depois.

Subimos o Morro da Catedral mais cuidadosamente ainda. Com o resto da bateria da máquina fotográfica eu registrava tudo que pudesse ser interessante, mesmo sem saber se um dia encontraria fotógrafo onde revelar as imagens ou mesmo computador para descarregá-las. Também evitava vê-las pela tela para não gastar a bateria. Não me lembro quantos flashes foram: havia, de fato, muita coisa interessante para se fotografar. Mas Madalena me chamou à razão:

— Podem perceber-nos pelo flash.

Guardei a câmera em minha sacola, com muito pesar, e continuei trocando passos mecânicos e decidos pelos degraus da escadaria acima. Como se tivessem me hipnotizado.

Chegando à praça percebemos, então, que não estava deserta como o resto da cidade. Apesar de escura como uma cisterna, havia nela um contínuo movimento de sombras fúnebres, cada uma parecendo ter algo a fazer num maquinismo infernal. Dezenas ou centenas de Estranhos perambulavam como formigas, entrando e saindo das ruas laterais, carregando pequenas sacolas e caixas. Foi só então que percebi que eles, apesar de sua aparência diurna formidável, eram pequenos e tinham uma forma quase humana.

A imensa porta da Catedral estava escancarada, abria-se como uma boca monstruosa em direção à cidade, como se faminta por ela. De dentro vinham murmúrios e sopros que pareciam musicais. E pelas portas laterais entravam e saíam os Estranhos, leves sobre o chão, como se já não pertencessem a este mundo.

Tive medo de que pudessem ver-nos. Madalena me abraçou, já temendo o momento em que todos nos cercariam para um linchamento ou pior, mas logo até ela se acalmou: aquelas criaturas passavam por nós sem perceber-nos, pareciam passar até através de nossos corpos, cegas e insensíveis à nossa existência, pelo menos enquanto não dizíamos nada. Não, não tive a coragem de dizer coisa alguma, muito menos Madalena.

Ela me levou pela beira da praça até o muro do Colégio, onde nos escondemos na sombra para descansar, ainda sem coragem de dizer palavra alguma. Depois me arrastou até uma das janelas, cujo vidral se quebrara com alguma pedra ou violência parecida. Dentro estava uma algazarra de mantos, albornozes e vestidos. Faces idênticas, plácidas, pálidas, contritas em alguma forma de emoção incompreensível. Todos vestidos de cores escuras e misturadas, como se um acidente de tinturaria houvesse manchado de luto todas as cores floridas.

Mas os Estranhos eram, como eu pude então perceber, pelo menos parecidos com humanos. Talvez humanos até! Mas como?

Permancemos ali, olhando para eles por quase meia hora. Não havia sentido no que faziam, no que diziam. Aos poucos o medo de que nos vissem foi passando, substituído pela impressão de que não nos veriam nem se deixássemos uma bomba na Catedral. Por fim, enjoado daquilo, puxei Madalena pela mão e saímos da praça.

Descemos de novo pela longa escadaria e passamos em frente à Prefeitura, em cuja fachada, pendurada como um corte de carne no açougue, estava imóvel e úmida, sem oscilar um milímetro no ar parado da noite, uma rota e suja Bandeira Nacional. Saudei o sofrido Pavilhão Auriverde com saudades do que ele representara, mas o que ali estava era o cadáver de um ideal antigo.

Quando já nos sentíamos totalmente perdidos, vimos uma luz brilhar na escuridão. Era uma luz pequena e rútila, que mal conseguia se filtrar por cortinas escuras e gretas, uma luz presa num porão. Procuramos em torno do prédio até acharmos uma porta. Com certa facilidade Madalena a abriu usando alguma coisa que extraiu de sua cabeleira, demonstrando habilidades que eu não conhecia.

Entramos pisando com leveza, tentando não acordar nenhum espírito do local, mas foi uma precaução quase desnecessária diante do ruído incessante que perpassava os corredores daquele prédio. O local havia sido uma escola, conforme me lembrava vagamente. Longos corredores cheios de eco, ladeados de portas que se sucediam como as notas de uma flauta, terminando em uma sombra sinistra, onde nenhuma estava aberta, mas apenas gretas de luz filtravam por ao rés do chão. Em condições normais, teríamos medo. Mas a certeza da morte nos havia despido disso. Tínhamos apenas cuidado e curiosidade.

A porta da primeira sala estava aberta. A luz que víramos não era de nenhuma espécie de lâmpada ou artefato de intenção semelhante. Provinha do zumbido de uma complexa aparelhagem de vidro e metal, que era manipulada com uma vagareza terna por mãos pálidas e magras, que saíam de albornozes escuros.

Havia vários dos Estranhos naquela sala, cumprindo tarefas diversas, todas de alguma forma girando em torno do misterioso maquinismo. Todos estavam completamente cobertos pelas roupas negras, todos tinham pesadas máscaras cobrindo suas faces, como a proteger-se da toxicidade daquela luz que nos atraíra. Olhando melhor, tive a impressão de que a palidez daquelas mãos não era natural, era do material com que haviam feito luvas, também para guardar-se dos efeitos daquele aparelho.

Madalena me puxou pelo braço, sinalizando à frente. Obedeci sem perguntar. Quando tomei o primeiro passo, um dos Estranhos olhou exatamente em minha direção, como se alertado pelo meu movimento, ou por algum ruído meu, ou pela simples agitação do ar. Eu me plantei, apavorado, sem conseguir erguer o pé para continuar andando. Porém, a expressão no seu rosto, se possuía uma, ficava oculta por detrás de uma máscara negra e brilhante que obscenamente evocava traços humanóides, mas não exatamente humanos. Direcionei toda a minha vontade para congelar os meus músculos e impedir que eu fraquejasse. Naquele instante o juízo me voltou e eu percebi o quanto fora louco de buscar entrar no antro dos Estranhos. Maldita a minha curiosidade. Eu não temia pela minha vida, mas por algo muito pior que poderia acontecer.

Aos poucos, a fixidez da expressão do Estranho, isenta de qualquer menção a levantar-se ou a chamar algum dos outros, pelo menos de forma visível, me fez ver que ele não estava me vendo. Talvez estivesse ofuscado pelo excesso de luz que havia naquela sala, ou talvez fosse mesmo cego. Sei que me mantive ali imóvel, segurando a respiração devagar, torcendo para meu coração bater o mais baixo possível. Minhas pernas começaram a doer, mas aquele olhar gélido ainda me encarava, e eu o encarava de volta, como quem mergulha no abismo. «Maldito, está esperando acostumar-se à luz para poder me ver.»

Fui salvo pelo que, na hora, pensei ter sido um simples acaso feliz: a máquina, por alguma razão, pareceu desconcertar-se e começou a produzir fumaça e forte cheiro de ozônio penetrou o ar. Seguiu-se uma série de silvos baixos e ritmados, como sussurro muito apertados. O Estranho volveu os olhos para a aparelhagem que começava a piscar em muitas cores e eu aproveitei aquela nesga de instante para avançar os pés e chegar a Margarida, que estava paralisada na sombra providencial entre duas portas. Mas ela certamente sabia, tão bem quanto eu, que a sombra nada significava para os Estranhos. Foi a minha vez de puxá-la pelo braço. Arrastei-a pela porta de banheiro. Não sei o que foi que me levou à conclusão, que se mostrou correta, de que o banheiro não teria nenhuma serventia para eles.

Encostei a porta com muito cuidado e ficamos sozinhos na privacidade precária daquele banheiro escuro. Sem podermos sequer sonhar a possibilidade de acionar um interruptor de luz. Tateei pelas paredes de azulejos e levei-nos até uma das privadas, no canto oposto, suficientemente distantes da porta para podermos ofegar em paz relativa.

Nenhum de nós tinha coragem de falar. O medo retornara. Os Estranhos tinham deixado de ser figuras fantasmagóricas de crepom negro que voavam sobre o vale, ou fantasmas de pessoas partidas, ou aparições inexplicáveis. Haviam adquirido uma apavorante materialidade, uma maldade que era difícil negar. Uma maldade que não derivava de suas intenções desconhecidas, mas de sua mera e total Estranheza.

Após conseguirmos regular um pouco a força da respiração, tratamos de sair da arapuca em que nos metêramos. Subimos em um dos vasos e alcançamos a janela. Com dificuldade a abrimos, mais por não querermos fazer nenhum ruído do que por sua resistência. E então saímos para o jardim da escola, próximos ao muro.

Para saltar o muro não tivemos tanto cuidado, mas tivemos a sorte de a escada do zelador ainda estar funcional, apesar da grossa camada de ferrugem que a cobria. Pisamos de novo em liberdade, a horrível liberdade, no gramado fedorento das margens do córrego. Felizmente ele era estreito e pudemos saltar à outra margem, escalar o barranco até a rua e tomar o caminho mais rápido para fora daquele inferno de cidade.

Andávamos devagar, querendo muito evitar que nossos calçados fizessem ruído no chão. A partir daquele ponto percebemos que muitas das casas ainda eram «habitadas» — se é que os estranhos podem ser considerados habitantes de algum lugar. Em uma das casas, pudemos ver, pela janela escancarada, um grupo deles examinando um violino, torturando-o para que produzisse grunhidos horrendos, para aparente satisfação do grupo. Estavam tão absortos nisso que não nos notaram passando. Tinham por aquele pobre violino um interesse que me pareceu tão genuíno e humano que quase tive esperanças.

Havíamos chegado à parte mais plana do vale onde a cidade se erguera. Ali era uma antiga praça de comércio, transformada num apinhado estacionamento onde os automóveis pareciam caramujos abandonados por moluscos mortos. Passamos por eles sem reverência, buscando sair da cidade pelo caminho mais curto. Quando pisávamos o asfalto, enfim, olhamos para trás e vimos todo o vale negro, sem luz nenhuma que denunciasse o frêmito ininteligível dos Estranhos. Erguia-se um sol mortiço detrás da Montanha, filtrando raios magros através de nuvens lerdas e gordas que se amontoavam no horizonte. Atravessáramos a cidade, a pé e temerariamente, em uma única noite.


11
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 22:32link do post | comentar

As silhuetas deles poluem agora a visão do horizonte. Há dias que têm estado assim: patrulhando o céu de uma forma quase apática, mas voejando pelo vale como ilhas de escuridão, rutilantes, intangíveis, deitando sombras sobre casas e árvores, fazendo-nos tremer por dentro como se soubéssemos de algo. Mas não sabemos de nada.

Apareceram do nada, sem que estivéssemos preparados para qualquer uma reação. Cortaram-nos uns dos outros, como peças de um tabuleiro cujas casas apareceram subitamente muradas. Estamos presos onde estamos, cada um dentro de onde estava quando tudo aconteceu. Apenas acenos nos contam de quem há nas outras casas, todos trancados e em silêncio, à espera de que a sombra passe e o sol brilhe de novo no jardim.

Devo dizer que nós, cá nesta casa, tivemos sorte. Por estranho que possa parecer estávamos no fim de uma festa, perto do amanhecer. Quando percebemos o acontecido, aqui ficamos, contemplando. Os estranhos nadando na límpida atmosfera da manhã, insondáveis, indiferentes, e todos aqui imersos na poeira e na fumaça de um fim de festa, cansados, sonados, de hálito pesado na boca e suor pregado na roupa.

Ficamos porque tínhamos medo, claro. Não vou inventar nenhuma estratégia, nenhuma razão psicológica ou curiosidade científica. Ninguém aqui é desse tipo. Éramos apenas clientes de um clube de strippers isolado na segurança de uma montanha, fora dos limites da cidade. Lugar privilegiado para contemplá-la, para antecipar quando a polícia vem. Cá estamos nós, alguns homens perdidos, algumas mulheres perdidas. E como o mesmo adjetivo é diferente em cada sexo!

Os Estranhos chegaram, como eu disse, de uma forma tão súbita que nem mesmo os notamos. Tentamos entender algum propósito, algum plano, mas eles não parecem possuir nenhum. Agem de uma forma quase vegetal, flutuam preguiçosamente, como poças de estagnação transformadas em balões, em silêncio, com uma lentidão que apavora.

Madalena chegou à janela na terceira manhã, pela primeira vez. Tinha sido das mais assustadas, mais cheia de culpas, mais supersticiosa. Agarrara-se com seus ícones de bolso e suas figurinhas de gesso e balbuciara tantas palavras que ficara rouca. Tinha medo de demônios e de anjos, de morrer cedo ou de viver "daquele jeito". Seu profundo medo a purificou, deu-lhe uma forma estranha de pudor, de dignidade. Limpou-se de toda pintura e escovou os dentes até remover deles todo resto ou gosto de pecado. Depois pendurou um crucifixo no peito, por fora de uma camiseta de malha escura, e andou entre nós, de cabelos soltos e desgrenhados, quase como uma sacerdotisa.

Mas dizia que ela chegou à janela naquela terceira manhã e observou longamente os espasmos dos Estranhos, ouviu indiferentemente os estalos da estática no rádio, como um espectro irritante de um além tão próximo. E naquele momento, de seu peito socado de tanto choro e vela, brotou uma conversa coerente, finalmente:

— Desta distância é quase impossível saber quantos são.

O senhor grisalho a quem ela se dirigiu não pareceu compreender, preocupado que estava em engolir o máximo do uísque barato, como se esperasse pela redenção de um coma alcoólico antes que o destino o rendesse. Mas eu estava perto, compreendi o esforço que ela fazia para romper o casulo do medo, e lhe recebi com palavras tranquilas:

— Também tenho dificuldade para contar. Às vezes a gente fica com a impressão de que parecem enxamear pelo mundo, outras vezes, que são só alguns que ficam se revezando aqui em volta. Não sei, o que eu sei é que eles parecem dominar os dias, e não há nada que eu saiba que a gente possa fazer.

Os olhos dela continuaram vidrados na paisagem, enquanto a boca falava com uma coerência típica dos traumatizados:

— Parecem grandes pedaços de cartolina, ou de feltro fosco, ou de camurça negra, não sei. Parecem bater asas, contorcer-se, como se estivessem vivos, quase os escuto estalando, como morcegos voando na escuridão do meio dia.

No momento em que ela o disse, também tive, pela primeira vez, a impressão de que ouvia um estalo. E mais ainda:

— Mesmo eles sendo tão completamente negros, dá para sentir, bem de vez em quando, um leve brilho negro, como se o sol os afetasse.

Madalena não me ouvia, ou não dava sinais de me ouvir.

— Parecem bailando no ar, tão inocentes, tão sem maldade, num ritmo lento e seguro, até bonito, como se nem pudessem voar.

Interrompeu-nos um ruído de cadeira caindo. Madalena acordou de seu transe místico e eu finalmente consegui parar de encarar seus olhos negros. O farmacêutico se enforcara. Amarrara o currião na trave da mão francesa e em torno do pescoço, depois chutara a cadeira em que subira, e seu largo corpo, flácido e pálido, saco de vícios e vaidades, estendeu o couro até quase os seus pés tocarem o chão. Havia uma curiosa ironia em ver aquilo: mais três ou quatro milímetros e ponta de seu sapato poderia tocar o chão, se ele quisesse ainda tocar o chão.

Tentamos ainda socorrê-lo, mas não havia o que fazer: os cento e sessenta quilos desajeitados do suicida não eram fáceis de carregar, não depois de dois dias sem uma refeição de verdade, não pelas duas únicas mulheres que estavam na sala, junto comigo, o velho bêbado e o bibliotecário cego — homens inválidos e putas cansadas, reduzidos à feminilidade da espera enquanto os másculos heróis se divertiam com baralho e boquetes no andar de cima. Quando finalmente desceram para ver o que era, os dois olhos do farmacêutico já estavam esbugalhados e a sua língua, roxa e roliça como uma berinjela, mal cabia em sua boca.

— Mas que merda! Esse pacote de banha tinha que se matar bem aqui na sala, no meio do bar! — berrou o Tenente Marcelo, ainda se achando um digno militar, apesar das calças mal abotoadas e do bafo grosso de álcool que espalhava no ar.

Com gestos rápidos ele determinou: cortaram o cinto e deixaram o amontoado humano se estender no chão, sobre a poça de urina e fezes líquidas que descera no momento final. Depois enrolaram o tapete e o levaram para fora. Mas como era dia e as sombras haviam se agitado temporariamente, não ousaram muito mais que abandonarem-no diante da casa, no gramado próximo à piscina que ninguém mais tinha coragem de usar.

A experiência pareceu afetar a todos, pelo menos temporariamente, mesmo os mais empedernidos, os que ainda esperavam, usando o resto de seu dinheiro para pagar por favores sexuais, mesmo as mais alienadas, que ainda se vendiam esperando ter algo a fazer com as joias e as notas de cem. Ninguém subiu para o segundo andar naquela tarde, em vez disso gastaram longos banhos, como se o corpo do pobre farmacêutico obeso lhes houvesse contaminado com algo incompreensível.

Madalena, que voltara à janela para contemplar os Estranhos, atraiu-me até lá. O senhor grisalho, ainda preocupado em beber até a inconsciência, retomara seu assento junto à parede e encarava a garrafa de Orloff como um desafio. Mergulhava a cereja em calda, como se para adoçar a própria morte, e sorvia goles curtos.

Os outros foram vindo, depois de seus banhos, e se instalando no saguão para beber. O assoalho de madeira estava ligeiramente mais claro no lugar onde se estendera o tapete, restando como sinal da morte que ali pousara. Do lado de fora, o cadáver jazia enrolado, próximo à piscina.

Os Estranhos pareciam comportar-se de uma forma ligeiramente diferente. Com movimentos ligeiramente mais rápidos, com uma tendência incômoda de fazerem círculos que pareciam aproximar-se da montanha, como se ela, de repente, lhes atraísse algum interesse. Como se eles já não tivessem a antiga inocência, a indiferença que notáramos. Não sei se fui o primeiro a perceber isso, mas o disse a Madalena:

— Tenho a impressão de que estão querendo ocupar o vale inteiro. Estão circulando mais longe, como urubus procurando carniça.

— Não tenho certeza se sabem da carniça — ela me interrompeu — mas é bem claro que estão circulando uma área mais larga. Dá para ver que estão mais longe uns dos outros.

Naquele momento um grupo, em estratégica fila, como uma esquadrilha decolando para a guerra, subiu do chão junto a um galpão distante, ao lado de uma soturna igreja aonde eu, funcionário burguês, ateu e forasteiro, nunca pusera os pés. Vê-los sair de lá me fez ver, talvez pela primeira vez, que eles eram menores do que pareciam quando voavam pelo céu, tão desfraldados e escuros.

Subiam do chão se desdobrando, se espalhando, jogando vestes imateriais em torno de algum vácuo igualmente ralo. E quando chegavam à altura das nuvens, já pareciam pipas monstruosas que tapavam o sol, sem que sequer uma gota perfurasse sua seda.

Enervado com a movimentação dos Estranhos, que parecia ter se tornado ameaçadora, procurei outras coisas para olhar, seres em que pensar. Mas apenas encontrava o tapete enrolado perto da piscina. Enquanto engolia em seco e criava coragem para sair da janela e buscar água morna para aliviar a garganta irritada, percebi que alguém mais notara o morto: um grande tatu, de pernas peludas e orelhas frenéticas, correu do mato até ele, sem temer nenhuma presença de humanos, como se soubesse já que nós não sairíamos da casa por nada desse mundo. E ao aproximar-se do pacote fúnebre que enfeitava o jardim do bordel, ele encostou o seu focinho na fibra antiga, ansioso como quem entra num banquete, e foi se enfiando pelo túnel de tecido adentro, produzindo movimentos asquerosos, repetitivos, mastigatórios.

Madalena fez uma careta de horror, imaginando o que poderia estar acontecendo ali, quando, então, um horror maior aconteceu: o tapete, deixado numa posição quase precária do jardim, perturbado pelo fossar do animal, começou a girar lentamente sobre si, ganhando velocidade no declive, cada vez mais velocidade, aproximando-se da grande ribanceira, desenrolando-se inominavelmente enquanto se movia, até que o corpo volumoso do farmacêutico apareceu sob o sol, e ainda instável, rolou pela montanha abaixo, para espanto e tristeza do tatu, que o olhou caindo como quem vê meio pão com manteiga caído da mesa com o lado cortado para baixo.

Os Estranhos ficaram ainda mais agitados. Naquele momento eles definitivamente pareceram perceber a casa. Mas, para nossa sorte, era já uma tarde velha, que se carcomia em noite.

— Madalena, eu vou embora.

— Para onde?

— Dentro de duas horas terá anoitecido, e eu não quero ver outro dia aqui dentro nem por nada nesse mundo. Vou pegar o carro e seguir para Juiz de Fora.

— O que você espera ver em Juiz de Fora?

— Não sei, mas não vou ficar aqui esperando a morte chegar, porque é o que vai chegar amanhã.

— Será que ainda existe Juiz de Fora?

— Não sei, pode ser que os Estranhos estejam somente aqui.

— Nesse caso, você tem certa razão em querer ir. Faz sentido querer avisar o mundo.

— Mas o mundo não precisa de aviso. O mundo já deve saber. Quando começou, quem tinha internet mandou o seu recado. Quem tinha telefone, telefonou. Quem pôde fugir, fugiu.

— Pensando bem, a linha telefônica tem estado muda desde que aconteceu. Não tem eletricidade, não tem nada no rádio.

— Sem eletricidade não tem como saber se ainda existe televisão, se a internet está no ar, se o até mundo ainda existe. Mas, principalmente, não dá para saber se é só aqui, ou se foi no mundo inteiro.

— Gostaria de ter um binóculo.

— Já não viu o bastante?

— Nesta vida  já vi tudo que não queria, mas ainda tem muita coisa que eu queria ver.

— Uma saída daqui, por exemplo?

— Não, o que são as manchas brancas lá embaixo no asfalto.

Saí de perto dela para buscar água. Só mesmo muita sede me força a beber água morna. Mas estendi minha saída até a garagem, lá fora. Uma temeridade. Por alguma razão eu deixara de ter medo dos Estranhos. Entrei em meu carro, abri o porta-luvas e retirei de lá a minha câmera fotográfica. Não era um binóculo, mas tinha uma teleobjetiva bastante poderosa. Suficiente para satisfazer Madalena, ela, que tinha fama de se satisfazer com substitutos do que a maioria das mulheres quer. Minha barriga estava tão cheia d'água que a sentia sacolejar quando andava. Com dificuldade a água morna se agarrava em meu estômago, só a força de vontade a impedia de subir.

— Não é um binóculo, mas deve alcançar uma imagem boa lá de baixo no asfalto, Madalena.

Ela tomou a câmera de minhas mãos, eu me aproximei de seu rosto, para ensiná-la a manipular os maquinismos analógicos daquele monstro fora de moda, do tipo que ainda funcionava com filmes. De tão perto o perfume dela não parecia tão vulgar, havia algo de doce nele, cheiro de xampu barato, de suor de puta, mas cheiro que convidava.

Aos poucos as lentes foram perfeitamente ajustadas à distância, e as manchas brancas se discerniram em ossos limpos, humanos. O sol brilhava neles, como em flores de margaridas em um prado verde, o gramado da minha escolinha de infância, coalhado de florezinhas brancas, o gramado onde, um dia, uma outra Madalena, negrinha e bonita, mais velha e mais sabida, me agarra pelo pé, me derrubara como um bezerro de rodeio, e me roubara vinte beijos, para depois sair andando, rindo, dizendo que os havia roubado e não devolveria nunca. Tinha sido um dia divertido quando eu chegara em casa, ainda chorando, traumatizado, dizendo ao meu pai que ela me havia roubado tantos beijos, e não os queria devolver. A risada de meu pai ecoou na minha lembrança. Aumentou a tristeza de ver aqueles ossos. Haveria ainda um dia para as crianças correrem livres sobre os prados?

— Madalena, não vou passar outra noite aqui. Vem comigo?

— Vou. Aonde?

— Quero ir ao centro da cidade, descobrir o que fazem os Estranhos durante a noite.

— É loucura.

— E é exatamente por isso que eu vou fazer. De que adiante ficar aqui em companhia de tanta gente mentalmente sã?

Ao dizer-lhe isso nos viramos para ver os outros homens, quase estuporados de tanto beber. As outras prostitutas se injetavam coisas inomináveis nas veias.

— Eu quase poderia ir agora. Não quero morrer aqui dentro como um passarinho abandonado na gaiola pelo dono. Não sei se Juiz de Fora existe ainda, por isso eu não vou lá, vou ao centro da cidade ver o que fazem à noite esses Estranhos. Acho uma resposta ou uma morte rápida, qualquer coisa é melhor que isso aí.

Madalena fez que sim.

— O que levamos?

— Uma moeda de ouro sob a língua seria uma boa ideia.

Mas levamos mais do que isso: banhados e vestidos com adequadas roupas negras, saímos da casa tão logo a primeira estrela veio. Logo notamos como o fundo do vale, onde a cidade se deitava, parecia tão mais escuro do que deveria. Era a falta absoluta da iluminação.

Descemos, em silêncio e bem devagar, a mesma encosta que o farmacêutico descera com tanto estrépito. Cadáveres adiados são mais lentos que os cumpridos para certas coisas. Era difícil tentar falar: o ar tinha um peso, um cheiro de medo que embriagava. Apesar disso, escolhemos o caminho mais rápido, mesmo sendo o mais devassado. À luz do dia, qualquer coisa que tivesse olhos nos veria descendo pela encosta do morro e seríamos ossos no dia seguinte, mas era noitinha e eu não tinha medo de olhos.


23
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 14:57link do post | comentar | ver comentários (1)

Em algum momento, em 2003, eu tive um sonho no qual me via seguindo uma mulher a cavalo, vestida de negro. Na época eu ainda não conhecia o som do Uriah Heep e não poderia ter feito a ligação com “Lady in Black”. Em vez disso, o sonho se referia mais à uma figura existente na capa da edição de “As Brumas de Avalon” que eu tinha comprado naquela época. A “Senhora da Magia” levando Excalibur à mão e cavalgando um cavalo branco.

Este sonho acabou se conectando, pelas tortas vias da inspiração, com outro que eu tive no dia seguinte, no qual me via na pele de um perseguido político, ameaçado de tortura. A conexão dos dois resulta no argumento inicial do conto. A segunda parte, escrita cerca de duas semanas depois, procurou relacionar os episódios algo sobrenaturais narrados na primeira a algum tipo de acontecimento histórico conhecido. Eu planejava fazer outras conexões mais amplas, usando, por exemplo, um outro conto que eu intitulava “História de uns Fantasmas” (que acabou resultando em “Inocência Assassina”). O plano que eu tinha era de um romance, ou um ciclo de contos, baseado em um universo paralelo conectado com o interior de Minas Gerais.

Mas o projeto não prosseguiu. Em parte isso foi porque eu não gostava muito de histórias de fantasia e terror, mas a principal razão foi eu não vislumbrar maneiras de dar prosseguimento à história. Durante muito tempo os contos “A Cabana ao Pé da Montanha” (atual Parte I) e “A Mansão Além da Montanha” (núcleo da Parte II) figuraram como duas histórias independentes e inacabadas em meu antigo site. Porém, durante o ano de 2009, eu resolvi retomar o projeto do “Grande Romance Místico Mineiro” e acabei revisitando os dois contos. Na época escrevi um terceiro conto, chamado “O Círculo Entre as Montanhas”, que foi o esqueleto da Parte III. Este conto nunca foi publicado.

Por fim, agora no comecinho de 2011, numa tarde razoavelmente inspirada, eu revisei os três contos, consertei as conexões entre eles, tornando-os efetivamente partes de uma mesma história, e os publiquei no blog (usando a ferramenta de agendamento de postagens).

A “Cabana ao Pé da Montanha” ainda será revisado algumas vezes, certamente aumentado em talvez até 50%, mas já está em uma forma apresentável. Ele será, futuramente, uma espécie de introdução ao universo da “Serra da Estrela”, no qual vou ambientar um romance e alguns contos. Nesse universo, as lendas brasileiras existem, de certa forma, e algumas maldições portuguesas foram desterradas.


20
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 20:00link do post | comentar
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<div class="nav"><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha.html" rel="noopener">Parte I</a> <em>·</em> <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha-parte-ii.html" rel="noopener">Parte II</a> <em>·</em> <a anchor"."="anchor&quot;.&quot;" rel="noopener">Parte III</a></div><p>A desolação escaldante da paisagem parecia piorar à medida em que o sol subia no céu, e os fatos da noite, ainda queimando na minha memória, me impediam de pensar com propriedade. Que maldito lugar era aquele? Por que as malditas sepulturas estavam esvaziadas? Quem era a Inês, que se parecia tanto com a mulher que se matara na colina? Tantas perguntas. Nenhuma resposta.</p><p>Fui perdendo o medo de ficar por ali e retornei à casa. Seus longos corredores de paredes sem pintura tinham uma frieza cavernosa, apesar do sol que vergastava a terra lá fora. Uma formidável construção, feita para resistir às intempéries dos trópicos. Curiosamente, uma construção da qual eu nunca ouvira falar, mesmo residindo, em teoria, a menos de cem quilômetros dali.</p><p>O lugar realmente se parecia com um mosteiro abandonado. Os demais quartos, que permaneciam fechados, tinham o seu ar de claustro mais preservado, com móveis ainda mais rústicos e até mesmo um ocasional rosário de contas negras pendurado na parede. Boa parte do que normalmente se encontra em um tal lugar estava, porém, faltando. Não havia biblioteca e a capela estava ausente. Apenas um terreno pavimentado de pedras encaixadas, bem ao lado da construção maior, dava a ideia de que ali existira um templo cristão. O que motivara sua completa destruição era algo que me escapava. A igreja maior, localizada onde deveria ter sido a aldeia, ainda estava lá, mesmo arruinada e coberta de ervas. Apenas a capela dos monges tinha sido obliterada da face da terra.</p><p><a name="more" rel="noopener"></a>Vasculhei o prédio durante todo o dia, na esperança de encontrar algum registro deixado por algum dos antigos moradores. Mas não havia nada. Nenhum livro, caderno ou simples calendário com anotações. Na verdade, à medida em que eu percorria aquele lugar, ficava com a impressão mais forte de que ele estava se desfazendo diante de mim, como se os séculos tivessem resolvido finalmente andar.</p><p>Vendo, então, que não havia nada que pudesse me dar notícia do lugar onde estava, decidi que era melhor mesmo retornar ao único lugar onde encontrara alguém com respostas: a cabana ao pé da montanha. Quem sabe a jovem grisalha estaria lá, embora tivesse me alertado para não permanecer naquele lugar por muito tempo?</p><p>Fiz uma trouxa com comida para alguns dias, escolhendo com cuidado na despensa pouco provida. Montei o cavalo sentindo medo, talvez, de algo mais grave que a morte ou mais dolorido que o pau de arara. Deixei que o animal me levasse, e notei com estranheza que ele parecia não ter mais nenhum tipo de receio, nem de ir e nem de voltar. Como se alguma sombra que antes o assustava tivesse sido removida.</p><p>O caminho de volta à montanha não teve aventuras. Passei com cuidado pelas encruzilhadas que não conhecia, temendo especificamente aquela que me faria dobrar a crista do monte e entrar de volta na pequena estrada vicinal que me trouxera, fugido, do mundo onde eu era um criminoso. A custo localizei a entrada da picada na parede fechada da mata virgem, através da qual cheguei ao prado florido à beira do regato, ao vau por onde se podia cruzar a pé a correnteza e à estrada pavimentada de pedras chatas pela qual se subia ao cume fatal da Montanha.</p><p>Não sei que horas eram, porque meu relógio de corda andava louco desde que deixara a civilização. Sem outros com que conferi-lo, poderia estar marcando qualquer hora. Mas eu sabia que devia ser por volta de seis da tarde, ou pouco mais, porque o sol já ia tocando as serras, o ar já tinha um sopro frio que descia pelas árvores, um vento que fazia os troncos estalarem fantasmagoricamente.</p><p>Encontrei a jovem grisalha, vestindo sua longa túnica negra, sentada em torno de uma mesa de madeira rústica, à sombra de uma alta árvore, cuja copa se perdia acima das copas menos notáveis de outras árvores: um centenário pau-brasil, cuja casca rescendia um aroma suave no ar. Ela me acompanhava com os olhos, sem demonstrar emoções. Aproximei-me calado, sem ter mesmo ideia de como dar início à conversa.</p><p>Quando me aproximei dela, a ponto de poder perceber que ela não era, de fato, tão jovem — mas não tão velha que devesse ter aquela cor lunar nos cabelos.</p><p>— Estou confuso — foi o que eu consegui dizer, depois de algum tempo.</p><p>Ela me mostrou um sorriso, ou rosnado, e olhou para os lados e para cima, como se tivesse algo que eu devesse ver. Mas não havia nada, apenas o silêncio e os estalos dos troncos movidos pelos ventos e o murmúrio da água do regato.</p><p>— Como eu pude ter encontrado Inês ontem se a vi matar-se anteontem?</p><p>A jovem grisalha se levantou e caminhou até mim, sem que seus pés descalços quebrassem as folhas secas do chão. Ela me estendeu os braços, cobertos de marcas azuis de tatuagens e maldições milenares. Os olhos dela tinham uma tristeza tão profunda que eu tive vontade de abraçá-la.</p><p>— Ah, querido. Tudo é tão complicado. Tudo seria tão mais simples. Eu mesma não entendo tudo. Não entendo onde estou mais, é como se eu vivesse um círculo eterno. Uma solidão que nunca passa. Desde que vieram os homens de branco, com aquele maldito ritual. Parece que o tempo sempre volta e vem, e vai e está. As coisas acontecem depois de suas consequências, as vidas e mortes sempre se repetem e eu sempre permaneço aqui em torno desta cabana, tentando ir e nunca indo, tendo de testemunhar através das décadas e dos séculos a traição e a morte que tanto me magoaram.</p><p>— Quem é você? O que é você?</p><p>A jovem grisalha me olhou desolada.</p><p>— Quem eu sou não importa mais, nem o que eu era. Tu és apenas mais um que chega, para enfiar outro espinho no meu coração. Quantas vezes não contei minha história a homens como tu, ou mulheres! Quantas vezes não os amei, matei ou ignorei! Nada importa. Vivos, mortos, amados, feridos, abandonados. O tempo continua sua dança em torno de mim e outros vêm.</p><p>Quando disse que muitas vezes havia matado, não pude deixar de notar a adaga de lâmina curva que levava à cintura: distintivo certamente de uma ordem hermética. Estava diante de uma bruxa, de uma proverbial bruxa das histórias infantis. Das que são capazes de matar ou amar com a mesma intensidade e indistintamente. Isto explicava o livro em língua estranha, língua de bruxa. E por isso aparecia ao anoitecer.</p><p>Recuei dois passos enquanto ela falava. Começava a acreditar em toda aquela loucura. Ela não percebeu, ou fingiu não perceber. Minha curiosidade ainda me queimava, mas não tanto quanto o ferro em brasa dos torturadores:</p><p>— Eu não sei quem és. Mas eu quero, eu preciso ficar por aqui. Eu não entendo onde estou, não sei o que estou fazendo. Mas quero e preciso ficar.</p><p>Ela me olhou sem surpresa:</p><p>— Outros antes quiseram ficar.</p><p>— E não é bom que de vez em quando alguns queiram ficar? Se é como você diz, a solidão das décadas já deve ter se acumulado demais.</p><p>— Oh, querido. Tu não entendes nada, e o que dizes é loucura!</p><p>— Se o que digo é loucura, então ouça o que digo: eu preciso de ajuda. Preciso de um lugar onde possa ficar escondido, por alguns anos, talvez para sempre. Dizem que as irmãs sempre ajudam quem as procura com sinceridade e sem desejar o mal.</p><p>Ao ouvir-me mencionar “as irmãs” a jovem grisalha se empertigou subitamente, como se lhe tivessem cutucado em uma parte sensível do corpo.</p><p>— O que sabes, profano? Como reconheces o nome secreto!?</p><p>Se fosse verdade que ela estava há séculos presa naquele canto perdido de Minas Gerais, fazia sentido que ela não imaginasse a facilidade com que se podia ter acesso aos grimórios do passado.</p><p>— Calma, irmã. É em paz que venho.</p><p>— Quia est nomem tuus?</p><p>— Johannes</p><p>A bruxa pronunciou com uma rapidez quase cômica uma série de imprecações em alguma língua mais antiga e mais assustadora que o latim, durante a qual a forma latinizada de meu nome foi repetida várias vezes. Então ela sentou e começou a chorar:</p><p>— Já não funciona mais. Já nada funciona.</p><p>— O que não funciona?</p><p>Aproximei-me dela com cuidado, mas sinceramente comovido, e acariciei os seus cabelos descoloridos pela dor da solidão eterna. Ela permitiu que eu o fizesse, murmurando entre soluços:</p><p>— Oh, tu sabias, velho maldito. Tu o sabias! A carne é frágil diante da solidão e do tempo. Tu o sabias, maldito!</p><p>A bruxa me conduziu de volta à cabana, à sua cabana. Ali ela me preparou um chá, que eu bebi com receio e vagareza, temendo que ela me envenenasse. Mas não era nada disso: apenas hortelã-brava fervida em pura água da montanha e adoçada com o mel das abelhas selvagens.</p><p>Então ela me contou a sua história. Contou-me que se chamava Júlia Carneiro, que realmente fora bruxa em Portugal, que por isso recebera o degredo para o Brasil, casada à força com um proprietário de terras, que parecia ter a missão de espancá-la, mas que nunca ousara tocá-la, talvez por receios de sua fama de bruxa. Havia histórias horríveis sobre lábios com dentes e sobre escorpiões escondidos no útero. Em vez dela, o bronco engravidava as negras e as índias e se enchia de aguardente e de maldades. Um dia os negros e os índios da fazenda se revoltaram, os empregados não puderam resistir muito, pois uma enchente molhara os paióis de pólvora. Foi assim que ela se tornara viúva, vendo o marido ser esquartejado, “como um porco”, pelos vingativos negros, cujas costas tanto haviam sofrido a mando dele.</p><p>Sobrevivera ao massacre atirando-se no rio gordo e turbulento. Deveria ter morrido, mas salvou-se graças à arte mágica da natação, que bem poucas mulheres daquele século sabiam: só as que tinham sido raparigas de navio ou mulheres de pescadores.</p><p>Os índios a acolheram quando ela demonstrou algumas de suas artes. Mas uma pajé mulher era algo que não fazia sentido e ela acabou tendo de deixar a aldeia. Conseguiu retornar à civilização graças a um convento que estava sendo construído bem no centro da Serra da Estrela, a poucos quilômetros do Pico da Mesa, que dominava dezenas de quilômetros quadrados de planície pantanosa e pedregosa: o perigoso vale do Rio Vermelho.</p><p>Nesse ponto da história, fez uma longa pausa. Seu rosto, mal iluminado pela vela de sebo, parecia corar um pouco ao lembrar dos detalhes.</p><p>— Acreditas no amor?</p><p>— Sim.</p><p>— Acreditas no amor absolutamente sem fronteiras, no amor entre almas, ou crês que o amor está preso a corpos?</p><p>— Não sei o que dizer, mas acredito que o amor não pede licença e nem se explica.</p><p>— Eu ainda tenho receio de falar sobre o que aconteceu.</p><p>— Mas não me disseste, há pouco, que é uma história que já te cansaste de contar?</p><p>— Mesmo que a conte mil vezes, sempre terei receio de que a maldição se renove.</p><p>— Então somente me fales sobre isto se houver necessidade. E se quiseres falar. Eu não te cobro respostas. Tudo que desejo é abrigo na tempestade.</p><p>Lá fora soou um trovão distante.</p><p>— Um dia certamente eu te contarei a parte que mais me enluta. Mas por enquanto te baste saber que os padres descobriram tudo, acharam que havia obras do demônio em curso nesta região. Eles já tinham ouvido histórias, dos índios, dos negros, dos brancos supersticiosos que evitavam estas montanhas. Disseram que havia sido imenso o sacrilégio, tão imenso que havia contaminado toda a terra e que somente arrancando, como um tumor, o foco de infestação, seria possível evitar a “gangrena do mundo”. Foi assim que eles fizeram. Não sei a quem recorreram. Artes escuras de todas as partes foram conjuradas pelos homens de branco, a pedido dos padres e suas crenças. Não foi o Deus deles que fez isto. De uma forma sacrílega e estranha eles acharam que valeria até mesmo o recurso aos maiores inimigos da humanidade para poder fazer algo que a Cristo agradaria. E foi o que fizeram.</p><p>— O que foi que fizeram? Eu não consigo entender!</p><p>— Oh, querido. Não vês este emaranhado do tempo em que estamos? Aqueles malditos sacerdotes do Inominável fizeram o que os padres pediram. Amputaram todo esse território do mundo dos vivos, do presente, do passado e do futuro. Estamos aqui fora da geografia, fora da história, fora de tudo.</p><p>— Como assim? Isso não faz sentido? Como eu entrei aqui?</p><p>— A Arte deles não é perfeita, é claro. Ela não tinha que ser. Bastava que cumprisse o que havia sido pedido: não poderíamos jamais morrer ou sair, nem Inês e nem eu. Deveríamos viver a eternidade experimentando e expiando a culpa de nosso sacrilégio.</p><p>— Então é possível entrar?</p><p>— Sim. Muitos entraram antes. De vez em quando alguém entra. Quase todos acabam saltando do Pico, como você viu Inês fazer. Tu mesmo um dia o farás, quando estiveres cansado de mim e não puderes mais sair. Outros acham outros meios. Não sei de nenhum que saiu, mas deve ser possível sair, tanto quanto é possível entrar. Mas a quantidade de corpos no fundo do vale sugere que achar uma saída não é tão fácil.</p><p>Júlia foi me contando sua história naquela noite e eu tomando o chá de hortelã, segurando a xícara com cuidado para não queimar a mão. As palavras dela eram amargas, amargas como o chá que o mel não conseguia adoçar.</p><p>Foram muitas noites como aquela, na cabana ao pé da montanha. A cabana que Júlia construíra com suas próprias mãos para tentar parar a marcha cíclica do destino.</p><p>Muitas outras vezes nós vimos Inês passar, sem parecer vê-la, ou até mesmo a mim. Ela sempre subia ao alto do Pico e de lá se atirava ao abismo. Cada vez que isso acontecia eu pensava ver brotar um fio branco na cabeleira de Júlia. A contar pelos outros que já tinha entre os seus, eram dois séculos ou mais daquela agonia.</p><p>Todos os domingos, à tarde, ela subia a montanha e se atirava, sem dar mostra de nos ver. Júlia chorava ao ouvir o ruído do corpo dela corpo contra o chão e entrava a recolher-se, mesmo sem conseguir dormir. Lá pela madrugada velha ela acordava e saía, sem nunca dizer aonde ia. Assistir aquele espetáculo era uma terrível forma de começar a noite, praticamente impedindo que Júlia e eu tivéssemos qualquer atração.</p><p>De fato um dia eu não suportei mais tudo aquilo. Permanecera ao lado de Júlia querendo ter alguma explicação. Mas nunca tivera mais do que novas perguntas. Não sei quanto tempo demorou para que me cansasse, mas podem ter sido dois anos, ou vinte. Não quis, porém, atirar-me do alto do pico: preferi procurar uma saída. Afinal, eu já tinha uma vaga ideia de onde poderia haver uma.</p><p>Uma manhã, logo depois que Júlia retornou de seus misteriosos passeios noturnos e foi dormir, como sempre envolta naquela túnica de luto, roubei o caderno encapado em couro, que roubara do cadáver de Inês, e saí pela estrada levando uma magra trouxa com o resto de minhas roupas e alguma comida.</p><p>Cheguei à encruzilhada ao pé do morro. Durante o tempo em que vivera na cabana ao pé da montanha, passara muitas vezes por ali, sem nunca criar coragem para subir o morro e conhecer o que haveria do outro lado. Eu vivia com o pavor de haverem soldados espreitando para localizar-me e prender-me tão logo eu saísse detrás de alguma árvore e pusesse o pé na estrada.</p><p>Mas naquele dia o medo não existia mais: certamente a ditadura acabara e eu não teria mais que fugir de soldados e temer torturas. Subi o morro devagar, conquistando cada metro como se fosse um território inimigo. Esperava chegar ao alto e encontrar a beira de uma estrada, alguns carros passando. Ali talvez haveria o ruído de música e de vida urbana filtrado pela distância.</p><p>Não foi o que vi. O que havia diante de mim era o brejo sem fim do vale do Rio Vermelho, dominado pela presença tétrica do Pico da Mesa. Não fazia sentido: o caminho era praticamente em linha reta em direção ao leste, margeando o rio. Dava para acompanhar pelo sol. Mas eu estava ali, encarando de frente aquela paisagem que eu só deveria ver se viesse do sul. Era como se tivessem recortado aquele pedaço do mundo e emendado em torno de si mesmo, num eterno círculo ou buraco negro, cujos caminhos são todos espirais em torno de um ponto. “O Pico da Mesa domina uma região de dezenas de léguas”, dissera Júlia. Era fato.</p><p>Sentei-me em uma pedra e abri o caderno de Inês. Ele devia conter alguma pista adicional sobre o acontecido, mas estava coberto de garatujas angulosas.</p><p>— Meu Deus, são … são caracteres cuneiformes!</p><p>Ali estavam, desenhados com um tipo secular de pena, símbolos malditos e esquecidos de uma civilização extinta, anteriores à Bíblia e a Jesus. Símbolos anteriores às penas e aos livros, que eram antigamente gravados no barro usando estiletes de cana.</p><p>Guardei o livro no bolso, reconhecendo enfim que haveria uma solução para o mistério algum dia, se conseguisse sair daquele poço no tempo em que me metera. Sim, eu sempre temera sair e ser pego, mas nunca pudera, de fato sair. E no momento em que o queria, e muito, percebia que a saída era uma ilusão como outra qualquer.</p><p>Assim derrotado, saí caminhando a esmo por aquele mundo em redoma, procurando alguma brecha por onde pudesse saltar. Quando finalmente o cansaço me derrotou, e já era noite velha isso, achei uma pedra razoavelmente plana, à beira de uma encruzilhada, e ali me deitei, usando a trouxa como travesseiro.</p><div style="text-align: center;">***</div><p>Acordei na manhã seguinte completamente derrotado. Passara o dia anterior sem sonhar como sair. Depois dormira uma noite de pavores, ao relento e sobre uma pedra desconfortável. Sonhara com monstros que passavam em torno, carregando imensos cascos nas costas. Sonhara com monstros de olhos flamejantes, com homens de túnicas brancas que evocavam forças desconhecidas, fazendo o mal em nome do bem.</p><p>Mas quando amanheci e meus olhos doeram com o sol, percebi que estava à beira de uma rodovia maior do que as que conhecera antes. Por ela passavam continuamente imensos caminhões e inumeráveis automóveis, de modelos que pareciam saídos de filmes futuristas.</p><p>— Deus seja louvado! Voltei!</p><p>A encruzilhada já não existia. A pedra estava longe, empilhada com outras à beira do caminho.</p><p>Aos poucos fui me familiarizando com o mundo. Muita coisa havia mudado, mas não tanto assim. Consegui entrar em contato com a minha família e vieram me buscar. Para eles voltei como voltaria um defunto: receberam-me com uma incredulidade que somente minha semelhança com as fotos e a memória fiel de muitos acontecimentos foi capaz de convencer.</p><p>Havia pouca coisa que eu pudesse fazer. Felizmente eu tinha um irmão que era advogado e ele conseguiu-me uma indenização do governo, em nome dos anos de prisão e tortura que eu supostamente passara. Nunca consegui convencer ninguém da minha história alternativa. Com o tempo desisti de tentar. Aliás, o que me passou naquelas montanhas foi de fato prisão e tortura, mereço esse dinheiro.</p><p>Com ele reconstruí minha vida. Casei-me, tive filhos. Esqueci aquela história, guardei o caderno de Inês em uma gaveta da memória e toquei a vida. Hoje tenho sessenta e cinco anos e passei a ter certos sonhos que me incomodam.</p><p>Foi por causa desses sonhos que eu mandei uma cópia das notas do caderno para um especialista em línguas antigas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Não posso dizer o nome desse homem: ele não leciona as disciplinas proibidas a que recorreu para fazer-me a tradução. Soube dele através de meus contatos com maçons amigos.</p><p>Recebi ontem a tradução. Foi por causa dela que resolvi contar a história que agora termino. O caderno contém muita coisa que não ousarei transcrever. Coisas, porém, que não deveriam condenar nem a Júlia e nem a Inês.</p><p>Deus não deve ter gostado mesmo que se amassem. A demolição da capela certamente serviria para purificar o lugar da mancha do que os padres assistiram naquela noite. Até o mosteiro teve que mudar de lugar, até os mortos já enterrados tiveram de ir junto. Porque o que veio a seguir afetaria a eternidade.</p><p>O motivo de meus pesadelos recorrentes é que eu passei a imaginar, veja só que loucura, a possibilidade de retornar. Amo a minha pobre mulher, claro. Amo aos meus filhos também. Mas este mundo em que tenho vivido parece tão alheio quanto o outro. A diferença é que neste eu envelheço e tenho um câncer.</p><p>Se eu puder retornar à Serra da Estrela, estarei condenado à eternidade. Desde que ache outra entrada, em algum acaso da estrada. Desde que Júlia me perdoe e não me sangre com seu punhal.</p><div class="nav"><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha.html" rel="noopener">Parte I</a> <em>·</em> <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha-parte-ii.html" rel="noopener">Parte II</a> <em>·</em> <a anchor"."="anchor&quot;.&quot;" rel="noopener">Parte III</a></div>

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Jan 11
publicado por José Geraldo, às 19:51link do post | comentar

Ela se foi e eu fiquei sozinho o resto da noite naquela casinha de pedras no meio do nada. Não tive, porém, tempo para sonhos loucos ou terrores noturnos: apesar do breve sono da tarde, eu estava cansado demais pelos três ou quatro dias de estrada para negar-me a dormir na cama macia e segura, apesar de suja.

Acordei na manhã seguinte com um sobressalto: nos últimos estertores do sono eu havia encontrado uma abertura para ter um pesadelo e lembrei da misteriosa mulher que se jogara no abismo.

Ao me levantar, deparei-me com o fogo aceso e com a mesa posta para o desjejum. Era curioso que isso acontecesse, visto que eu fora dormir sozinho naquela cabana. Mas sobre a mesa estava um envelope rústico contendo um bilhete numa caligrafia que parecia saída de um manuscrito medieval:

Tente não demorar muito nessa casa: ela não o salvará de si mesmo, e o exporá a muitos perigos que você não conhece. Não deixe que minha irmã Lua o engane.

O caderno que eu subtraíra da suicida estava dentro do envelope: sua capa de couro marrom estava úmida, como se manchada de sangue, do sangue dela. Mas não estivera assim quando o pegara. O cheiro dele era quase insuportável, como se o seu texto revelasse horrendos e imemoriais segredos. Coloquei-o na mochila pensando em tentar ler depois.

Tomei do amargo café e comi dos pães duros, untados de manteiga rançosa, e fui ver o que havia do lado de fora. O cavalo da desconhecida estava pastando no relvado próximo à cabana, e pareceu dócil à minha aproximação. Abracei-o carinhosamente, lembrando a pele áspera, mas feminina, de sua dona morta. O cavalo me olhou profundamente, como se tivesse inteligência em vez de ser apenas uma besta de carga.

Selei e montei aquele animal com o respeito que merecem os cavalos, pelo menos no mundo estranho em que eu tão de repente me perdera. Saímos pelas estradas

A estrada era larga, maltratada e pedregosa. Um cavalo poderia facilmente derrapar e cair naquele chão traiçoeiro. Ninguém seguia no rumo oposto, ou no mesmo, e o silêncio da paisagem conspirava como se todo o mundo se tivesse desabitado de seres humanos e das trevas o mal me espreitasse. Cavalgava por horas sem destino, observando cada traço da paisagem, sempre buscando alguma indicação de rumo.

Quando o sol estava alto no céu, parei à sombra de um imenso pau-ferro à margem da estrada e roí algum pão enquanto observava as estranhas runas do caderno. À luz do sol elas pareciam bem menos misteriosas, dava para ver que estavam em alguma língua humana, embora talvez antiga demais para que eu a reconhecesse. Montei novamente e segui meu rumo sem sentido.

Ao cruzar a crista de um morro bastante íngreme, entrei em um território onde parecia ter chovido recentemente. As folhas estavam tão viçosas que dava vontade de fazer-lhes carícias, e os grilos por toda parte se preparavam para a noite que em breve cairia.

Todo o meu dia foi passado em uma estrada interminável, serpenteando por entre montanhas e vales e matas e rochas. Nenhuma casa, nenhuma viva alma, nenhuma encruzilhada. Mas quando já começava a cair à noite, num raro trecho de vargem à beira de um rio largo, limpo e tão silencioso quanto um lago cheio de sapos, eis que achei a primeira bifurcação da estrada desde que entrara naquele mundo. Lembrei-me dela imediatamente, pois fora através dela que eu entrara naquele lugar.

Contemplar aquele lugar me fez sentir firmeza novamente: ali estava o elo que me levaria de volta aos lugares conhecidos, onde as coisas todas têm explicação. Bastava guinar o cavalo à direita e subir aquele morro baixo e triste, tão cheio de feridas avermelhadas. Do outro lado, salvo engano, haveria a cachoeira onde eu me banhara pouco após sair do cemitério da cidade sem nome.

Porém não havia força no universo capaz de me forçar a tomar aquele caminho. Por ele certamente eu retornava ao mundo conhecido, mas por ele eu igualmente retornava ao mundo no qual havia homens cruéis determinados a me conduzir à presença da lei arbitrária que me enquadrava como um facínora. Permanecer naquele mundo estranho era permanecer longe do pau de arara e da cadeira do dragão.

Por isso não tomei nenhuma atitude, apenas deixei que o cavalo, preguiçosamente, seguisse o caminho do menor esforço, o caminho através do qual eu continuaria margeando o rio e me dirigindo à noite que nascia com a lua entre duas montanhas redondas como seios.

Não demorou que começassem a surgir outras encruzilhadas. Estas, porém, eu não conhecia. Cada uma delas poderia ter me levado de volta, ou ainda para mais longe. Mas nelas eu não tive de deixar que apenas o meu livre arbítrio me guiasse.

Logo na primeira delas havia um lenço dependurado em um galho de goiabeira. Poderia ter sido uma indicação, ou poderia ter sido apenas um pedaço de roupa rasgado quando um cavaleiro passara em disparada. Aquele alvo pedaço de pano já estava tão úmido pelo tempo que não guardava traço algum do perfume ou da catinga de quem o usara um dia.

Na encruzilhada seguinte havia uma pedra grande. De cada lado havia uma fratura que se assemelhava a um assento. Mas somente em um dos lados havia algo diferente: um livro, também mostrando sinais de ter sofrido com a chuva. Apeei e fui buscá-lo, pensando nas informações que ele poderia ter, mas era somente um daqueles livros baratos com histórias para moças.

A noite começava a se desdobrar, como um vestido escuro cobrindo a linda nudez da paisagem. O livro tinha a capa arrancada, indício de que fora talvez comprado a quilo em um encalhe de banca de jornal. Mas ao folheá-lho percebi que a sua presença ali poderia não ser casual: havia frases sublinhadas, palavras isoladas marcadas a tinta. Concatenando os trechos soltos parecia haver uma mensagem, mas ela fazia pouco sentido:

Vivendo em uma linda casa … morrendo por … isso a … enganara … pensava talvez em fugir … enfeitiçar … quem vier …

Segui pelo caminho sugerido por aquele livro. Notei sem espanto que ali a noite caía silenciosa, nenhuma viva alma passava, nenhum pássaro piava. Uma negra solidão foi me envolvendo ao mesmo tempo em que eu sentia uma necessidade absurda de fazer amor outra vez, com a misteriosa morta.

Na virada do morro seguinte se descortinava um vale desolado, um amontoado de construções de pedra muito mal acabadas com um ar mais de fortaleza que de residência. Uma alta torre encimada por uma cruz inscrita dentro de um círculo predominava sobre as demais construções, mais baixas, indicando que aquele lugar, em algum momento perdido de um passado, fora consagrado. Ao lado da enorme e negra igreja de pedra nua, coberta de trepadeiras, um mar de cruzes quebradas e lápides gastas indicava que aquelas colinas cobertas de touças altas de capim haviam sido, num passado distante, uma aldeia populosa.

Mas quando me aproximei eu vi que todas as covas haviam sido escavadas, sabe Deus quando, e que os antigos residentes delas tinham sido levados, somente Ele sabe para onde. O cavalo trotava com familiaridade por aquele terreno, como se tivesse sido apascentado ali desde que fora um potrilho. Depois de passar pelo cemitério o caminho passava a ser calçado de lajotas irregulares de pedra calcária, muito gastas pela chuva de séculos e por cascos e pés de todas as espécies. Detrás da igreja aparecia uma construção que destoava do resto: baixa, clara, geométrica e aparentando modernidade. Estava silenciosa como tudo, e escura também. Outra construção, um imenso paralelepípedo negro com janelas, repousava na parte mais baixa, já perto de um regato que quase não murmurava. Uma luz acesa ali indicava que alguém vivia, ou vegetava, naquele lugar.

Mal podendo imaginar o que me aguardava, em vez disso agradecendo a sorte de um pouso — e talvez até de um lugar onde ficar pelo tempo que fosse preciso — eu me dirigi à porta daquela medonha habitação. A sua porta alta indicava uma construção totalmente fora dos padrões de hoje, com um pé-direito de três metros ou mais. A pesada madeira nem se moveu quando a toquei, nem pareceu sentir quando a pesada aldrava de ferro soou.

Um homem veio atender, macérrimo e pálido. Tinha a fisionomia desolada e os lábios finos. As suas unhas estavam crescidas e as suas costas eram curvadas. Ele poderia ter oitenta anos ou mais.

— O que deseja?

— Encontrei o cavalo por aí venho saber se não pertence a esta propriedade.

— Não criamos cavalos — ele respondeu secamente.

— E nem ao menos pode me dizer de onde é o animal?

O homem deu dois passos para fora e olhou o triste cavalo em que eu viera. Ao vê-lo a besta curvou a cabeça e soltou um relincho de reconhecimento. O homem resmungou alguma coisa que eu não entendi, acariciou o cavalo com uma doçura surpreendente e tirou do bolso algo que lhe deu. Mas quando se voltou tinha os olhos cheios de lágrimas.

— Então o cavalo é daqui?! — eu devolvi secamente.

Ele permaneceu ainda em silêncio por um tempo. Por fim acenou com a cabeça.

— Reconheço a criatura, mas ela não pertence a nenhum proprietário das redondezas.

— Não compreendo.

— O que lhe importa, com mil demônios?! Pode deixá-lo comigo. Quanto à recompensa, receberá do diabo.

— Sua falta de educação finalmente me irritou. Com que então eu tenho a boa vontade de trazer um animal perdido e o senhor me manda buscar recompensa com o demo! Vá à merda e que ele o leve!

A intensidade da minha rudeza surpreendeu-me. Nunca antes me imaginara sendo tão agressivo com alguém, especialmente com alguém que parecia estar visivelmente assustado e agindo contra sua vontade. Mas era bom exercer minha prepotência depois de tantos dias humilhado na estrada, mesmo que ela me atirasse de volta ao desamparo.

— Você não sabe o que diz!

Ele respondeu com um desprezo e uma expressão de desolação tão profunda no rosto que por um momento eu quase me arrependi. Mas logo recompus minha dureza. Nesse momento, uma voz familiar gritou de cima perguntando quem era e simplesmente ao ouvi-la eu retomei minha firmeza absoluta. Uma chuva fina e fria começara a cair, um vento cortante assobiava nas árvores e uma mulher apareceu à porta, com uma expressão gelada no rosto, como se jamais me houvesse conhecido. Ela era loura bela, como a jovem grisalha que eu vira na descida da montanha fatal.

— Jorge!?

— Ele trouxe o cavalo — disse num fio de voz o Jorge.

— Muito obrigada — disse a mulher, estendendo-me a mão com um sorriso — serás recompensado. Jorge, não vamos deixar que este homem siga viagem sob esta chuva cruel e este frio que vem com a noite, faça-o entrar e lhe prepare um quarto de visitas.

— Realmente, senhora, não é de bom-tom deixar que ele atravesse esta noite inclemente a pé…

E me fez entrar.

A aparência interna do lugar não era melhor que seu exterior desolado. Os móveis eram todos muito grandes e de desenho bruto, o chão era de lajotas enceradas e as paredes caiadas não ostentavam nenhum ornamento. Prepararam-me uma mesa na cozinha e comi alimento recém-preparado pela primeira vez em muitas semanas. Jorge e sua mulher, uma criatura gorda e sorridente, eram os únicos empregados daquela imensa casa.

Depois de terminar, me conduziram escada acima até um pequenino quarto de hóspedes localizado logo à direita, antes de um imenso portão de ferro trancado com um cadeado maior que a minha cabeça. Além do portão um longo corredor com várias portas. Seguramente aquele edifício fora um convento e aquelas eram as celas em que dormiam solitariamente os frades ou as freiras do lugar.

Depois que me fez entrar em meu quarto, pude ouvi-lo girar a chave na fechadura e tive medo pela primeira vez em muito tempo. Segurei a maçaneta, mas já era tarde: Estava trancado! O quarto, uma das celas do antigo monastério, era grande o bastante para caber um guarda-roupa, uma cama e uma mesa de cabeceira. Para mais nada, porém. Havia uma única janela vazando as paredes muito grossas que davam para o exterior. Apesar de estreita, era larga o bastante para que eu pudesse debruçar-me nela e contemplar a noite de lua crescente sobre os campos.

Um ar pesado soprava do norte, como se alguma coisa horrível estivesse vindo. A janela, localizada do lado que dava para o riacho, se abria sobre uma escuridão difícil de avaliar. A luz da lua não chegava até ali porque as montanhas e as construções mais altas se interpunham obliquamente no caminho do luar.

Apesar disso, dispus-me a dormir. Mesmo porque não havia remédio. Despi-me parcialmente e me estendi na pequena cama de colchão duro. Quando estava semi-adormecido, apesar do nervosismo, ouvi uma janela batendo, senti o frio da madrugada beijando meu rosto e levantei-me para ver o que era. Minha janela estava aberta. Enquanto imaginava como pudera ela abrir-se, senti uma presença familiar atrás de mim e me voltei.

— Que bom que vieste…

Era a mulher loura que me recebera à porta. Olhei-a de alto a baixo, apreciando cada detalhe de seu corpo entrevisto através da camisola diáfana que usava. Ela sorriu-me e desprendeu-a de seus ombros, fazendo-a cair e deixar diante de mim uma nudez fulgurante. Então abriu os braços e me chamou ao seu seio e fizemos amor com uma intensidade maior que a da vida.

Em dado momento, ouvimos um ruído ecoar pelos campos, um ruído de tiro. Os olhos dela se iluminaram.

— Ei-lo que chega!

A cancela da entrada rangeu e minhas pernas amoleceram. Suei frio e ergui-me num sobressalto. Um ríspido diálogo se travou embaixo na cozinha:

— De quem o cavalo? — pergunta uma voz estrondosa.

— Não sabemos, um cavalheiro chegou nele, dizendo tê-lo encontrado pelos campos. Veio perguntar pelo dono porque quer a sua recompensa. — Respondeu servilmente Jorge.

— E por que pousou aqui em minha casa este estranho?

— Choveu depois que ele chegou e ficamos constrangidos de ordenar-lhe que seguisse viagem sob tão cruel tempo.

Uma torrente de palavrões ribombou pelo salão, simultânea a dois tiros. Catarina, que até então estivera radiante, rompeu em pranto convulso, levantou-se da cama e atirou-se pela janela antes que eu a pudesse impedir! Pesa segunda vez ela me escapava! Assustado, vesti-me rapidamente e, instintivamente, abri o armário. Lá encontrei, por obra de Deus ou de Satanás, não sei, um rifle carregado!

Enquanto o engatilhava ouvi os passos pesados do recém-chegado logo além da porta e o chocalhar de chaves. Apaguei a única vela que havia no quarto e cerrei a cortina. A escuridão mais completa se fez. Apontei a arma para a porta e aguardei que ela se abrisse para atirar duas vezes no peito do desconhecido, antes que ele tivesse tempo de me ver.

O homem arregalou os olhos, deixou cair a pesada carabina que carregava e tombou pesadamente para trás. Fui até seu cadáver e, reacendendo a mesma vela do castiçal ao lado da cama, pus-me a mirar-lhe. Era uma criatura formidável aquele homem: teria mais de dois metros de altura e uma musculatura firme e poderosa. Seu rosto estava tomado por uma cicatriz que lhe dava um ar cruel e os seus dentes eram bastante ruins. Vestia uma espécie de hábito de tecido rústico, bem pouco suficiente para abrigar-lhe do frio que fazia naquela noite. Toquei-lhe a fronte para certificar-me de seu falecimento e, comprovado este fato, desci as escadas.

No salão estava o pobre Jorge com a cabeça aberta pelo rombo do único tiro que levara. A arma usada para isso teria matado um elefante. A sua pobre mulher fora atingida no meio das costas, mas ainda respirava. Aproximei-me dela e dei-lhe a mão. Ela olhou-me nos olhos, lacrimejando de medo na presença do frio do Juízo próximo e disse:

— Maldito seja ele, maldito!

Eu não tinha nada que fazer por aquela pobre criatura. Apenas acariciei o seu rosto com ternura. Ao sentir a sinceridade de meu toque ela me disse:

— Cuida de Inês.

Imaginei imediatamente que este seria o verdadeiro nome da loura e, não desejando aumentar a tristeza da agonizante, informei que Inês estava bem e que eu cuidaria dela. A mulher cuspia sangue pela boca, indicando que seus pulmões haviam sido atingidos. Num último esforço, olhou-me e disse “pobre coitado de ti!”, vindo a morrer em seguida.

Saí em busca de Inês logo em seguida — e não a encontrei. Não havia nenhum corpo abaixo das janelas daquela construção sinistra, nenhum sinal que indicasse qualquer coisa semelhante à remoção de um cadáver. Para mais estranheza ainda, a provável janela de meu quarto era sobre uma horta, cujas alfaces intactas eram ainda mais intrigantes que o formato barroco daquela lua que parecia uma gargalhada no céu.

Pela manhã, sepultei Jorge e sua esposa em duas das covas vazias do cemitério. As armas, eu achei prudente enterrar no solo fofo do fundo da horta, a fim de que aquela noite ficasse esquecida. E tendo feito isso, enquanto tomava da salobra água do único poço que servia à casa, me perguntei o que deveria fazer em seguida. O sol me respondeu que era preciso descansar. Mas descansar não me parecia nada sábio, diante das circunstâncias.


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