Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
25
Mai 12
publicado por José Geraldo, às 00:23link do post | comentar | ver comentários (2)

Américo dizia-se amargo de propósito: queria treinar rabugice para quando fosse famoso. Então poderia esnobar entrevistas e desfilar namoradas bonitas em carros do ano. Não conseguia nem ficar famoso e nem realmente ser amargo: era apenas triste e apagadiço. Sentava-se na primeira das carteiras para fingir ser estudioso, mas andava sempre com notas ruins e sapatos rigorosamente engraxados. Meticuloso em suas escolhas, enquanto não ficava famoso e amante de modelos perfeitas deixou-se namorar por Jaqueline, que era vesga, magra, sardenta, desconjuntada e fanha. Casou com ela inclusive, pensando em abandoná-la quando finalmente um estúdio de cinema comprasse os direitos de suas histórias ou quando ganhasse na loteria esportiva. Não entendia de futebol nem de cinema: suas histórias não tinham pé nem cabeça e seus palpites eram desastrosamente azarados. Em um famoso teste caracterizado por oito incríveis zebras, acertou os oito resultados, mas falhou em adivinhar que o Flamengo ganharia do Olaria e que o Atlético venceria o Democrata de Sete Lagoas. Nunca abandonaria Jaqueline, nem sequer a traiu, embora jurasse que não a amava muito.

Quando o conheci, no segundo ano do secundário, ele já tinha uma cara de velho, velhíssimo. Talvez tivesse repetido umas três séries. Estava impaciente: tinha que formar-se logo, pois tinha um futuro promissor no comércio.Precisava aprender muito, antes que o tio Jacinto batesse as botas. Tio Jacinto era velhinho e viúvo. Tivera dois filhos, ambos mortos: um de câncer antes dos trinta, outro de desgosto na curva dos quarenta. Não tinha netos. Não tinha ninguém, somente a amizade da irmã e o carinho de Américo, que se dizia interessado na herança, mas chorou profundamente no enterro. Tio Jacinto morreu antes que Américo tivesse aprendido o suficiente. Ninguém teve a ideia de deixar-lhe a loja. Em vez disso, venderam o estoque, dilapidaram o prédio, teriam demolido até o terreno. As aves de rapina que voejam em torno dos cadáveres dos pobres velhos ricos que morrem solitários. Não sobrou o suficiente. A mãe de Américo usou seu quinhão para comprar uma linha telefônica, necessidade da família. Isso foi em 1994. Poucos anos depois o governo privatizou a telefonia e até o cachorro que quisesse podia instalar um aparelho em seu canil. A única herança que Américo jamais recebeu foi a de Jaqueline. Morta cedo: ele sempre fora fraquinha, tortinha, esquisita. Uma pneumonia galopante. Américo ficou prostrado no cemitério até muito depois que o penúltimo parente fosse embora. Talvez tenha sido só então que ele percebeu que seu afeto pela esposa tinha sido sincero. Tarde demais para demonstrar isso, para tê-la feito realmente feliz, para ter sido realmente entregue.

Foi nesse dia que o reencontrei. Tínhamos estado separados por vários anos: ele trabalhando em chão de fábrica e economizando tudo, até unhas. Eu fugira de nossa cidadezinha em busca de algo mais. Passava férias em casa quando me contaram do acontecido. Fui ao enterro em consideração a ambos: tinha sido também um namorado de Jaqueline, antes dele. Nunca lhe contei, é claro. Ainda tenho vergonha disso. Não de não ter contado: de ter sido ela quem me deixou. Depois de um beijo: ainda não entendo o que foi, ela apenas disse que seu anjo da guarda lhe soprara, exatamente no instante de nosso beijo, que algo estava errado e que não daríamos certo. Não deu. Saiu de minha vida e seguiu mancando mais uns anos pela adolescência afora, crescendo e se enredando em si mesma e suas ilusões. Até chegarmos ao segundo ano e encontrarmos lá o Américo, que tinha muito que aprender para um dia herdar a loja do tio solitário e ganhar muito dinheiro, tornar-se dono de uma rede de armarinhos, comprar os concorrentes, ficar famoso, namorar modelos e morrer de tédio.

Mas cheguei atrasado: o cemitério já esvaziado, Américo sozinho lá, perto da tumba, sem coragem até para ajoelhar-se. Eu também não soube o que fazer:  não se sabe nunca o que fazer diante da dor sincera de um homem, mesmo que este homem nem seja exatamente amigo. Mas ele me ouviu, sapatos rangendo de novos na calçada de calhaus arrebentados a marteladas. Não me olhou: não precisava saber quem era. Quem chega atrasado não faz mesmo nenhuma diferença. Mas depois de tempo suficiente para entender que algo não estava certo eu levei um braço ao seu ombro e disse-lhe: «vamos, homem, vamos que a vida segue.» Ele me viu finalmente, com os olhos calejados de tanta lágrima que até a pele em volta deles parecia sangrando. «Não, Geraldo, a vida não segue.»

Mas ele veio comigo. Para onde iria? O que faria? Esperaria fecharem o cemitério? Convidariam-no a sair sem muita educação e ele ficaria sozinho na rua naquela tarde de sábado, vendo os carros insolentes dos ricaços passando, tocando música alta, carregando mulheres bonitas e vulgares rumo a discotecas, festivais ou simplesmente bares. E ele então se veria sozinho, triste, feio. Principalmente triste, órfão de todos os seus sonhos velhos. Velhísssimos.

Já disse que não sei dizer coisas bonitas e nem filosofar. Se não disse, que tenho péssima a memória para coisas recentes, digo agora. Se disse mais de uma vez, que se repita para guardar melhor: ser homem é uma espécie de insensibilidade que se aprende na adolescência. Aprendi muito: por isso sei não ajudar um amigo em um momento de catástrofe. Não, não havia outra palavra. Américo parecia um robô desligado. Depois daquela frase curta e amarga ele não conseguiu, durante horas, dizer nada mais do que acenos, resmungos e uma dor corrente que mantinha fundos os seus olhos, perdidos em poças de tristeza em seu rosto magro e sardento.

Levei-o a praça e nos sentamos lá, como se fôssemos conversar. Veio o sino da igreja, passaram passarinhos, a tarde também se deitou detrás do morro da matriz e a noite foi se desenrolando devagar. Jaqueline estava lá conosco, uma muralha que nos separava. Américo talvez soubesse, ou nunca. Se homem pudesse chorar eu estaria com ele naquela hora: como ele eu também tive um futuro promissor, também fiz planos de poder magoar todos os meus amigos e pisar nos meus inimigos. Por fim estava fingindo férias longas para disfarçar que estava demitido, sobravam-me apenas os meus amigos e nenhuma mulher. Eu nem podia, diferente do Américo, ter saudades de uma morta. Não há tempo para ter sido feliz quando se precisa ganhar muito dinheiro, para tentar comprar a lua que se sonhou quando menino.

Por fim, desisti de ser homem e conformei-me em ser humano. Disse a Américo, com rudeza de palavras, que entendia como ele estava arrasado e que, como ele, eu tinha às vezes até ideias de me matar. Ele se assustou com isso: «Isso não, Geraldo, isso não.» Não compreendi sua rejeição: não fora ele que dissera antes que a vida não continuava? Tudo muda, tudo muda. A vida não continua: ela é um monte de folhas sacudidas pelo vento. A gente vai pulando de folha em folha esperando finalmente cair no chão. Todo mundo tem a ilusão de que alguma folha voará para sempre, que alguma folha não vai nunca chegar na terra, que a tarde será imensamente longa. Todo mundo tem essa sensação de que a vida não são minutos. Américo estava ali, sentindo-se montado em outra folha, ainda não sabia que estava mais perto do chão.

«Você que enterra a sua mulher, e eu que não sei para onde ir.»

Américo sabia, ao contrário de mim, que o que nos torna mais perdidos não é saber para onde vamos, mas não entender de onde, diabos, saímos. Apesar de suas ilusões trituradas pelos dedos duros da vida, ele sabia de onde vinha. Eu estava mais pobre do que ele, perdido até de minha origem, órfão de um passado. Não tinha nem mesmo uma esposa morta para amar com culpa e arrependimento. Não tinha nem remorsos para ilustrar minhas noites. Em mim cabia a frase tanto quanto nele, um futuro promissor transformado em futuro do pretérito, mas a minha dor seria sempre maior que qualquer outra, justificando até eu poluir o luto arrependido de um amigo. Sim, não tinha mais aquele futuro, não tinha nem mesmo escrúpulos de contar a verdade à minha família, de procurar um emprego por lá mesmo, de procurar uma das antigas colegas de escola, talvez a Luciana, que me deixara um bilhete apaixonado dentro de um caderno na noite de formatura: um caderno que eu só fui abrir anos depois, em uma faxina. Então naquele instante, para monstrar a crueldade imensa da sincronicidade, passou a própria, de mãos dadas com um menino. Éramos velhos demais para viver amores de infância: ela tinha uma franja grisalha no rosto ainda bonito e eu escondia uma barriga com a jaqueta dobrada sobre o colo. Tive vontade de segui-la, mas não tive coragem. No meu futuro do pretérito eu tinha.


17
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 22:29link do post | comentar

No feriado saí para uma caminhada em companhia de mim mesmo e, como eu sempre faço nessas ocasiões, desfrutei de uma animada prosa que ninguém ouviu e cujo registro inicial, aliás, se perdeu graças aos desígnios arcanos dos arcanjos que regem a literatura. Hoje, aqui mais tranquilo, apesar de ainda sofrendo a perda daquelas palavras apagadas para sempre, sofrendo o aborto daquele texto como o de um filho aos oito meses e meio, relembro vagamente os raciocínios que me passaram pela mente.

Escrevia eu, antes de ser tão bruscamente interrompido pelo destino, que no dia me sentira tão à vontade para falar de poesia que até mesmo tivera ideias sobre isso. Ideias causadas pela sensação de conversar com o meu alter ego, cuidadosamente sem mover os lábios, para que as pessoas em volta não pensassem que, afinal, eu era mesmo louco como se diz que os poetas são.

Era como estar numa roda literária, dizendo todas estas coisas vazias e sem sentido que os intelectuais dizem quando não estão ocupados pronunciando os nomes de outros intelectuais estrangeiros ou dizendo como o mundo antigamente era melhor. Antigamente os intelectuais não eram tão metidos a bestas, como se pode ver nas obras de Foucault, Kierkgaard e Rímsky-Korsakov.

O meu interlocutor era poeta, ou assim se dizia.1 Estava falando sobre simplicidades muito complicadas que me faziam a cabeça doer e eu me sentia meio alheio àquele ninho tão culto, eu que bebi leite de vaca quando menino e sei qual é o cheiro que tem o capim gordura. Olhei em volta de mim mesmo, imaginariamente, vi a multidão de gente e de carros transformar-se na plateia classuda, mas rala, de um evento cheio de grife, e tive medo de não saber o que dizer. A minha sorte é que toda vez que o desconforto piorava eu abria os olhos, apertava o passo, suava mais e me confortava estar tentando atingir o quinto quilômetro, jogando as pernas em um forte passo lipolítico.

Quando meu deram a vez de falar eu já estava mais calmo e gentilmente pedi desculpas a todos por não mais fazer poesia. Contei que havia um vizinho nosso, nos meus tempos de infância na roça, que zombava de sua lustrosa careca e de seu peito preto de pelagem alta dizendo que na vida dera o azar de crescer demais e passar do cabelo. Ele não era tão alto, mas sempre completava dizendo que na sua família o cabelo também não era. E tendo arrancado alguns risos complacentes com esta história, contei-lhes que cresci demais e passei da poesia. Vinda de mim a frase soou pretensiosa, pois eu cresci até um metro e noventa, mas os poetas devem ter gostado, pois ficou implícito que a poesia não está ao alcance do cocuruto de qualquer um.

Mas sempre que um ser folclórico, como este ogro que aqui escreve, tem a chance de dizer alguma coisa, os presentes, mesmo que imaginários, se sentem à vontade para rir, pois ogros sempre são engraçados, em seu exotismo tão complacente e adequado. Tudo aquilo que eu dissera aos meus interlocutores inexistentes eu já dissera outras vezes, para diversos ouvidos atentos, mas as frases espedaçadas ao longo da vida, quando reunidas com uma pretensa coerência resultaram num atestado autenticado de óbito da poesia, da minha pelo menos.

Mas me perguntou então o meu alter ego se eu não poderia dar à plateia que eu não via, ou que não havia, o prazer de explicar como eu tivera a infelicidade, ou a felicidade, dependendo de quem diga, de ter crescido demais e ultrapassado a poesia. Lembro-me de ter, então, dito alguma coisa mais ou menos assim.

Tudo começou quando começou, eu tinha dezoito anos. Tinha também nenhum plano, doía na alma uma coisa que eu bem sabia o que, mas que poeticamente não convém dar um nome. Então, expulso da realidade, achei meu conforto no amor perfeito, o de uma morta, e escrevi-lhe trinta e nove versos cortantes que, se não eram afiados no romantismo, pelo menos continham lágrimas suficientes para lavar deles a tinta nova do século vinte e fazê-los parecidos com desbotados faqueiros de museu. Quando eu terminei estava quase chorando, todos os meus poemas tinham esse calor que só se tem quando ainda é cedo. Eram versos dispensáveis e melados, do tipo que nem a minha mãe leria, mas eu não tinha escrito uma Ilíada, apenas confessara meus pecados ao papel e para mim aqueles rabiscos tinham mais valor do que o Paraíso Perdido.

O poeta estremeceu-se ao me ouvir dizer um número tão grande. “Trinta e nove”, quase uma blasfêmia. Imagino que se eu estivesse em um debate de verdade haveria alguns vates que recuariam os seus troncos, pasmos, como eu exalasse uma pestilência.

— Trinta e nove versos! Eis aí um exagero! Não me admira que lhe tenha morrido a poesia. Você a afogou em uma torrente de vocabulário, como um padre que afoga a criança em um lago no dia do batizado, em vez de apenas molhar-lhe a cabeça.

Tive de explicar ao poeta que eu creio noutra poesia. Há muitos poetas que pretendem um poema vácuo, brevíssimo, relampejado. Eu porém, prefiro que seja intenso (mesmo que precise ser extenso) e sem nenhum pejo de uma voz que grite o que penso. Não deixo flor branco nas minhas paisagens, para que os leitores usem seus lápis de cores. Que o leitor recubra com sua tinta a cor que escolhi, gerando outro matiz, que encontre ele mesmo onde enfiar a sua flor, que arranque alguma minha se necessário.

Fazer a poesia é como sair pelo mundo a catar poedras. Eu não procuro poedregulhos. Há quem aceite até fezes secas, sementinhas secas. Eu procuro o que nunca foi úmido, porque o ressecado me entristece. Não importo de carregar um: não vou polir grãozinhos de granito para fazer um colar que ninguém use.

Pois nisso morreu minha poesia. Não morreu quando escrevi meus trinta e nove versos de amor à minha amada morta, mas quando terminei de lapidar a obra que lhe dedicava. Eu comecei com uma poedra generosa e tanto martelei e meditei que encontrei dentro dela, timidamente, a semente de outra poedra. E então descobri, na poedrinha ali oculta desde o início, não apenas uma coisa nova, mas a coisa original, perdida, eterna, que eu sempre quisera ter dito. Os versos que achei não apenas eram, e são, o resumo do conjunto de todos os outros mas, muito mais importante do que isto, são a expressão exata de tudo.2 Foi tão chocante a experiência disso que eu não tenho mais escrito nenhuma poesia desde o dia em que me acertou aquela poedra.

Meu interlocutor imaginário ficou tão surpreso quanto eu, exatamente tanto quanto eu. Porque de fato, naquele instante de um feriado cívico que eu nem tenho razão para comemorar, enquanto eu suava penosas calorias numa manhã que prometia chuva, eu descobri uma coisa que eu não sabia. Até segunda feira eu sabia que não escrevia poesia. Desde terça feira eu sei porque.

O que acontece é que, instintivamente, eu não tenho guardada em gaveta alguma a versão colhida, a versão comprida, a versão cheia, a versão original destes trinta e nove versos. Mas tenho duas versões mais completas, verdadeiramente poedras:

Minha morte, tua morte
Outras que virão.
O pássaro morre
Apesar da canção.

E uma versão ainda mais completa:

O pássaro morre
Apesar da canção.

Quando dei-me conta do processo inteiro, que tardou para extrair uma poedra de uma massa disforme de versos, morri com a minha poesia. Não havia como continuar tentando, ou estaria fadado a produzir um livreto de quarenta e nove páginas — e ele talvez fosse mais relevante do que os outros que ainda poderei escrever. Hoje prefiro usar o meu talento para erguer frases mais cheias. Gosto de poluir o mundo com muitas palavras, cresci demais, passei da poesia.

1 Dizemos que são poetas os escritores quando eles se ocupam em fazer livros fininhos, sem um assunto definido, muitas vezes tipograficamente compostos de uma forma estranha, cheios de desvios propositais de ortografia (que são sempre bons para fazer com que os involuntários se percam no meio) e com prefácios, dedicatórias, sumários e biografias que, juntos, perfazem mais palavras que todo o conteúdo.

2 Eu devo dizer que não acredito em resumos tanto quanto não acredito em beijos breves, em pequenas doses, em “rapidinhas” ou em livros que não parem de pé na estante.


03
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 00:17link do post | comentar

Ele a acorda com um sussurro no ouvido. Está nervoso e cochicha baixo, como se temesse tudo. Ele a acalma, antes que grite, e diz cheio de medo:

“Há um barulho na cozinha, amor. Está ouvindo? Fale mais baixo, pode ser alguém que nos ouça. Está ouvindo agora? Então fique bem quietinha aí, só escute. Há um barulho na cozinha, amor."

O silêncio se adensa, o ar parece aparado. O silêncio assobia no ouvido, como uma broca giratória penetrando até o cérebro, um chiado de estática, como se a alma estivesse fora do ar.

Quem quer que esteja na cozinha percebeu que está sendo percebido e parou com o ruído. O marido continua deitado, imperceptivelmente puxando as cobertas para o peito, no escuro.

“Parece que... ouvi alguma coisa”.

“Tem alguém lá na cozinha, querida”.

Os segundos gotejam grossos, todas as paredes parecem apertar o espaço, como os dedos de uma mão monstruosa e implacável, no escuro.

“Vai lá ver o que é?”

“Está louca!? Pode ser um... bandido”.

“Ou pode não ser nada. Vai lá ver o que é, ou não vamos conseguir dormir mais”.

“Mas...”

“Vai lá, homem. Honre esse troço que tem no meio das pernas”.

O marido deu de ombros, derrotado, conformado. Não adiantava mesmo discutir naquela hora. Cabia-lhe, como macho da casa, enfrentar o desconhecido. Igualdade de direitos, ninguém lembra na hora do perigo.

Levantou-se como de um túmulo. Sair de dentro do calor das cobertas foi agônico. Caçou os chinelos, mas acabou mancando, descalço, pelo piso, deixando cada pé tocar o taco com remorso, e saudades do calor da cama.

Abriu a porta preparado para dar de cara com um machado e render o espírito. Não havia nada além daquela escuridão horrível no corredor. Poderia haver ali qualquer coisa, desde aranhas gigantescas até ninjas assassinos, de olhos fechados, escondendo o brilho de uma adaga na dobra de um quimono negro.

Normalmente acionaria o interruptor e uma festa de luz encharcaria tudo, revelando os segredos do breu absoluto. Mas não ousava fazer isso, não. Poderia haver mesmo algum ninja. Poderia haver um ladrão.

Deu dois passos. Pesados como pilares de prédios. Plantou os dedos no chão, quase marcando a madeira com um beliscão. Respirava ríspido, apertado no peito, tentando conservar o silêncio. Se houvesse alguma coisa ali no escuro, já estaria sob mira, ou sendo calculado em calorias.

O corredor se alongava desde a porta do quarto, passando pela cozinha. Espichou o pescoço para ver além da esquina. Não havia nenhuma alteração no pano preto de sua visão. Maldita noite de lua nova. Maldito sono leve que lhe traíra daquela forma. Por que o bendito ladrão não era mais cuidadoso? Que levasse o faqueiro de prata, presente de casamento, mas que o levasse sem fazer barulho.

Abriu os ouvidos tudo quanto pôde: nenhuma lastimável nota interrompia a uniformidade do silêncio. Somente lá fora, na rua, raros carros passavam. Maldita noite de terça feira.

Por fim criou coragem. Não haveria caranguejeiras gigantescas, nem ninjas furtivos, nem ladrão. Acionou o interruptor e deixou que a luz o enxaguasse de seus medos: na cozinha irretocavelmente limpa não havia nenhum traço de movimento estranho. Nem presente nem passado.

Respirando mais leve, encostou-se à parede. Como era medroso. Pobre coitado! Não havia tarântulas nos cantos, nem executores encomendados, nem arrombadores desastrados.

Tratou de dissipar os medos restantes acendendo as luzes dos outros cômodos do apartamento. Todos vazios, arrumados, silenciosos. Nenhum livro fora de lugar na estante. Nenhuma gota de sangue em nenhum tapete. Nenhuma faca esquecida à vista. Nenhum vivente que justificasse que se sonho tivesse sido espantado.

Voltou à cozinha, encheu um copo com água do filtro e bebeu de um gole, ávido, vitorioso. “Meu Deus, como sou medroso”. Voltou ao quarto confiante, balançando a cabeça para si mesmo enquanto se recriminava.

Abriu a porta sorridente. “Querida, não era nada...”

Era o nada. Que estava na cama ao seu lado. Não havia ninguém ali tampouco. Sob a luz morta da lâmpada fluorescente as cortinas não esboçavam nenhum movimento. Metade da cama, intocada, lhe contava que algo realmente estava errado. Nele.

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07
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 17:00link do post | comentar

“O passado nos condena, Ismaël.” Ainda posso ouvir rasgando minha alma essas palavras proferidas pelo velho, com seu porte de capitão Ahab, como se estivesse à armurada de um velho navio contemplando o mar absoluto, à espera de alguma incompreensível fera. Chamo-me realmente Ismaël, mas ele não se chamava Ahab, e não estávamos embarcados em navio algum, mas perdidos nas montanhas poeirentas do Teto do Mundo, fugitivos da impiedosa inquisição de um inimigo invisível e distante, quase incompreensível.

Eu nasci longe desta terra triste em que estou morrendo. Voei sobre o mar e cruzei desertos e florestas para chegar até aqui e poder ouvir as palavras do velho profeta. Sou parte de um grupo de escolhidos, eu levo a morte estampada na testa, em verde, estou pronto para ela, como um kamikaze nos mares do Oriente. Apenas não sigo imperador algum deste mundo. Não tenho a permissão de chamar o velho, nosso líder, pelo seu nome verdadeiro. Eu o chamo apenas de “chefe” e entre nós, os puros, criou-se o hábito de chamar-lhe “Ahab”, em homenagem a outro homem, este fictício, que também enfrentava o desconhecido de peito aberto, como o velho o fez, mais de uma vez.

Nossa luta deixou marcas na alma e no corpo. Perdemos tantos amigos que nem contamos mais. Preferimos ser amigos apenas de Deus, porque ele não será nunca morto pelo inimigo. Quem tem amigos demais não quer morrer, o herói precisa da mais absoluta solidão. E estamos sozinhos nestas montanhas desoladas, e nem sei exatamente porque chegamos a tal situação. Vivo isolado aqui há tantos anos que perdi a noção da realidade. Desde que sigo “Ahab” eu não leio mais jornais e nem tenho acesso ao rádio. Somos ascetas, buscamos a pureza, esperamos que a morte nos encontre prontos. Heróis não têm tempo a perder com as pequenezas do mundo. Suponho que Ahab saiba mais sobre o inimigo do que nós, mas nos poupa disso. Talvez tivéssemos menos esperança se soubéssemos exatamente contra qual Moby Dick estamos tocaiando as montanhas, como se fossem as ondas do mar. Tal como a lendária baleia, o inimigo está além. Não vamos até ele, é ele que nos vem.

Ahab não tem esperanças, tem um destino. Tal como todos nós, ele também sabe que vai morrer cedo. Preparou-se para isso. Teme isso. Seu corpo é frágil e precocemente encurvado pelo peso de uma idade que ele não tem. Mas a sua alma é como um sabre de aço, afiada e luzidia, inatacável pela poeira ou pela umidade, e brilha sob o sol quando ele nos fala. De sua boca saem palavras calmas, confortantes. Quando ele fala nós esquecemos que estamos precariamente sobre a terra, tal como o Pequod singrava precariamente as ondas bravas do grande mar. Ahab nos inspira a dar de nosso sangue para forjar o grande arpão com que trespassará o coração do inimigo quando ele saltar sobre nós. Morreremos com a queda de seu cadáver, e isto será glorioso.

Seguimos Ahab pelos desertos, como marujos de uma expedição sem rumo pelos sete mares. Estivemos em tantas cidades que nem pude guardar seus nomes. Cada nova cidade era um amigo a menos. Ahab, meu herói e minha inspiração, é um profeta cujas palavras não têm mais trazido novos conversos. Noss grupo diminui e nossos inimigos se tornam numerosos. Vivemos ultimamente de favor, quase como prisioneiros, em uma casa que nenhum de nós escolheria. “Nosso passado nos condena, Ismaël” — as palavras do velho ecoam na minha cabeça com sílabas de metralhadora.

Era de madrugada quando acordei sobressaltado. Havia um silêncio pesado e amordaçante no mundo. As montanhas dormiam sufocadas como se uma manzorra enorme estivesse apertada sobre a boca da cidade. O ar arranhava nas narinas e eu tinha uma vontade de chorar ou de sair correndo. Nada disso era incomum, eu vinha sentindo todas essas coisas com relativa frequencia. Alguns chamariam isso de covardia, outros de arrependimento, outros ainda diriam que eu estava voltando à racionalidade. Penar nessas montanhas, sem um sentido definido, mesmo na presença constante de um profeta, é algo que abala a fé do mais firme dos crentes.

Eu não sabia ainda exatamente o que estava me incomodando naquele silêncio, que parecia diferente, como se vibrasse algo monstruoso, em uma faixa inaudível pelo homem, mas sensível pela alma que há dentro do homem. Saí ao terraço para tomar ar, mas era inútil até isso: o ar estava quente, as montanhas sopravam opressão e as luzes das casas pareciam delimitar as cercas de uma prisão. Respirei com força, violentando os meus pulmões com aquele ar cortante e grosso, depois entrei, resignado, e fui procurar um lugar quieto onde dormir.

No térreo encontrei Fátima, ainda de pé, preparando bilhas de água fresca para levar aos nossos quartos, para a purificação matinal. Estava vestida de negro e tinha os olhos tristes como de costume, como os de alguém arrancada de toda perspectiva de felicidade e atirada naquele beco sem saída entre as montanhas. “Nosso passado nos condena, Ismaël”. Tive pena de Fátima. Gostaria de ter sido seu marido, se ainda houvesse tempo no mundo para constituir famílias e criar filhos. Acredito que ela também teria gostado, muito embora para isso devêssemos ter fugido, de Deus e de nossas fidelidades. Viver como renegados, em uma pátria alheia, um pensamento mais agradável do que morrer nas montanhas da Casa da Paz. Viver…

Saudei Fátima respeitosamente e saí ao quintal. Apesar do calor que fazia e da quietude opressiva eu me sentia bem. Saudei o garoto de olhos verdes que estava na guarda. Não sabia o nome daquele curioso espécime. Ninguém sabia. Ele nunca o dizia a ninguém. Soubemos apenas que viera do leste, como tantos, e que não tinha esperança alguma neste mundo. Somente os que haviam perdido a esperança a vinham sorver da boca de Ahab, que lhes dava algum motivo para viver ainda, à espera do instante de glória.

— Quer que eu fique em seu turno, garoto? Não estou conseguindo dormir mesmo.

— Não carece, não, Ismaël. Nenhum de nós vai precisar amanhecer descansado mesmo… Então que pelo menos eu cumpra meu turno fielmente, como deve ser. Por que você não sai para um passeio, para relaxar um pouco?

Dei de ombros, conformado, e me preparei para sair. Aconteceu algo, porém, que me fez estacar ao portão, congelado de medo: uma sombra pareceu cruzar a fímbria de céu despejado que aparecia entre as montanhas ao sul. “A morte por lá voa como um dragão assombrando os céus, Ismaël.” Não foram palavras de Ahab, mas de meu falecido pai, no dia em que lhe contei de minha vontade de seguir o caminho dos heróis. Eu não me importei naquele dia porque tinha pressa de morrer, para esquecer toda culpa, todo arrependimento e toda frustração. Mas aquela forma fantasmagórica entre, como o rabo de dragão derrubando as estrelas do céu, me fez tremer e chorar. Era ela que vinha, e eu não estava preparado. Eu tinha me acovardado.

— O que foi isso, Ismaël? — perguntou o garoto de olhos verdes.

— Eu não sei, garoto, só tive um poderoso pressentimento de algo muito ruim.

O garoto me encarou, com medo no olhar, e disse:

— Vamos fugir, Ismaël.

Eu não fugi com ele. Entrei correndo pelo portão, enquanto ele abria o portão que dava para os arrozais. O som surdo do voo do dragão se aproximava, desorientando-me. Encontrei Fátima descendo dos quartos, depois de entregar as bilhas de todos os homens. Agarrei-a como pude, pressionando minha mão sobre sua boca com toda a força que conseguia ter, enquanto ela esperneava, desesperada por gritar, como se eu a estivesse prestes a estuprar. Subi com ela ao meu quarto, no segundo andar, e me tranquei, ainda segurando a boca trancada, porque meu coração pulava loucamente querendo cair dela.

Aliviei lentamente a pressão dos dedos sobre os lábios de Fátima. Ela não gritou quando os removi. Não gritou porque também ela conseguia distinguir o ruído sobre nós, algo indistinto e maligno. Os cães dos vizinhos começaram a ladrar furiosamente. Sussurrei-lhe baixinho aos ouvidos:

— Não sei o que está acontecendo, meu amor, mas eu vou tentar lhe proteger de alguma forma.

Ela assentiu com a cabeça. Apenas murmurando um rogo entre os dentes doloridos, para que Deus teria piedade dela e que eu poupasse sua pureza. Os instantes foram passando, o ruído foi persistindo e eu continuei sem atacá-la. Ela foi aos poucos entendendo que não se tratava de uma ameaça de violação.

Lá fora se ouviram ruídos de disparos repetidos. Alguma arma automática moderna. Tiros isolados de fuzil e um longo grito agoniado, que terminava morrendo num engasgo:

— Deus é grande, Ismaël. E eu me chamo Khali&hellip

Passos soaram apressados pelas escadas. Mais tiros. Portas arrombadas como se fossem de papelão. Os cachorros lá fora latindo. Mais tiros. Poucos gritos. Os heróis não morrem berrando como cabritos.

Os invasores gritavam apressada e nervosamente. Eram estrangeiros e impacientes. Nem sempre esperavam a resposta para atirar. Uma mulher soluçou e foi calada por um tiro no meio de um grito que não consegui distinguir.

Então eu percebi o quanto eu estava exposto ali naquele quarto. Embora a porta dele ficasse meio oculta debaixo do lance da escada, dificilmente escaparia da vista dos invasores se eles simplesmente não fossem estúpidos e desastrados. Ninguém sobrevive contando que o inimigo será estúpido e desastrado. Olhei para o rosto de Fátima. Ela estava pálida e seus lábios, machucados pelo peso de minha mão, tremiam num choro silencioso. A pobrezinha queria chorar, mas não tinha coragem nem para isso.

Era preciso sair do quarto e encontrar um lugar seguro. A primeira coisa em que pensei foi em saltar para o chão. A janela do segundo andar não era tão alta que nos quebrasse as pernas. Só havia um problema: ela ficava fora do quarto. Por isso era preciso pensar rápido. O lado bom era que ela ficava sempre aberta para ventilar a casa, e havia de palha de arroz e grama seca ao longo de todo muro. Com alguma sorte escaparíamos com alguns arranhões apenas, se Deus nos permitisse cruzar três metros de corredor e saltar por ela sem que os invasores vissem.

Abri a porta de uma vez: não adianta ter medo numa hora de desespero. Se houvesse algum maldito cão infiel do lado de fora ele atiraria na porta assim que eu girasse a maçaneta. Só não devia fazer barulho, e isso não fiz porque a porta era nova e não rangia. Lá estava a janela: um metro e vinte por um e dez. Suficiente espaço para pularmos sem segurança, mas com facilidade, mesmo Fátima estando um pouco acima do peso.

Não dava tempo para pensar em mais nada. Não havia plano alternativo. Não era possível nem mesmo explicar à coitada o que eu estava pensando em fazer. Só podia contar que ela fosse esperta o bastante para entender. Saí correndo pela porta, arrastando-a atabalhoadamente pelo braço, enquanto ouvia os passos dos inimigos que trotavam pela escada acima, vindo para o segundo andar. Saltei no vazio, esperando morrer ou miseravelmente quebrar as pernas ou ainda ser esmagado pelo peso de Fátima caindo sobre mim. Nada disso, felizmente. Caímos os dois sobre a palha e rapidamente eu me envolvi nela, aproveitando que a cor de minha roupa era clara. Não tendo a mesma sorte, Fátima mostrou agilidade para correr até as sombras das árvores e se ocultar atrás do tronco de uma delas.

Eu não tinha nem acabado de cair quando tiros se ouviram no segundo andar. Algumas balas saíram pela janela, faiscando como dardos de Satanás. Cães ladravam novamente em volta, mas nenhum naquela estrada, nenhum que viesse me farejar. Um a um os homens que defendiam o chefe foram caindo. Mas lutaram bravamente. Foram muitos tiros, de dentro e de fora. Uma das aeronaves inimigas girou em parafuso, com o motor atingido e o tanque de combustível vazando, e caiu no quintal. Poderia ter sido meu tiro a derrubá-la: ninguém era tão bom quanto eu em artilharia quando fora veterano na guerra. Mas eu estava acovardado, cansado de morte, cansado de tudo, mas não de viver. Então os tiros pararam. Os bravos estavam todos mortos, apenas o covarde respirava, escondido no meio de palha, capim seco e esterco de vaca.

Os estrangeiros tagarelavam. Eu não conseguia entender o que diziam, mas era evidente a sua excitação. Eu não imaginava o que poderia ter acontecido, não até ouvir a própria voz de Ahab, cansada e conformada de uma maneira que eu nunca sonhara que ele seria capaz de dizer, quase num gemido subserviente:

<— Então está bem, vocês me pegaram, finalmente. Aqui está o seu troféu, malditos.

A ira densamente espremida naquelas palavras me cortou o coração. Não era somente eu, o covarde, que sobrevivia. Ahab estava destinado à humilhação. Não morreria na tentativa quixotesca de exterminar o monstro que assombrava os mares. Teria simplesmente seu Pequod arrestado em um porto qualquer. Terminaria seus dias pensando na liberdade de Moby Dick, mas ele preso e impotente, um homem precocemente vergado, sofrendo de rins, de varizes e de cáries. Não há heroísmo algum em morrer de velhice num mundo em guerra. Mesmo uma velhice de prisioneiro.

Desceram com ele pelas escadas. As botas dos inimigos soavam como tambores. Ahab gritou-lhes algo em sua língua. Eles não responderam. Gritaram-lhe de volta, e riram. De repente ouvi uma longa rajada de tiros, e não ouvi mais a voz de Ahab, a não ser em meus sonhos.

O dia amanheceu bonito nas montanhas perfumadas de papoula e bétel. Fátima e eu caminhávamos com cuidado, sempre no rumo norte, rumo ao teto do mundo. Ela não falava nada. Ela sabia que eu era um covarde, mas não me acusava porque não queria estar morta. Estava grata por sua vida, grata demais para me achar um covarde.

— Na Índia, querida, na Índia seremos felizes. Diremos que somos sikhs e nos deixarão ficar. Diremos que estamos fugindo da perseguição dos fanáticos.

Não me lembro quantas vezes repeti isso, na esperança de que falando muitas vezes a mesma esperança eu conseguisse condensá-la, como se fosse possível extrair esperança do ar e engarrafá-la. Mas eu sabia que as coisas seriam muito diferentes. Sabia que provavelmente os guardas indianos nos matariam se tentássemos chegar à fronteira, sabia que se um dia puséssmos os pés do outro lado Fátima me abandonaria. Mas eu queria viver, com mil diabos! Por que saltara por aquela janela? Para entregar-me ao punhal vingativo de um guarda sikh que olhava por sobre a fronteira com sangue nos dentes de tanto morder por dentro da bochecha na ansiedade de purgar a terra de nossa raça? Para ser deixado velho e mendigo nas ruas de Amritsar, comendo a refeição da caridade que os meus inimigos do passado distribuíam aos pobres? Não, não era para nada disso. Por isso, secretamente, em vez de me dirigir à esperança que jazia ao leste, meus passos sutilmente me levavam, como seu fosse atraído por uma lâmpada, rumo à maldição e a vingança, rumo às terras controladas pelo ódio. Eu era um guerreiro ainda. Ainda havia tempo para purgar minha covardia. E Fátima seria minha, mesmo que à força.


21
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 00:45link do post | comentar

Há neste blog uma postagem datada de 19/04/2011. Não haveria nada de extraordinário nisso se neste horário eu não estivesse internado no Hospital de Catagauses para realizar em caráter de emergência um procedimento de extração de cálculo renal por ureterotripsia. Portanto, aquela postagem não foi feita por mim naquele momento. A história dela é curiosa.

Hoje, ao chegar do Hospital, sentei diante do computador para me distrair das dores (sinceramente eu não desejo o que me aconteceu nem ao meu inimigo mais ferrenho) eu li esta postagem no Bule Voador, postada sob o título Advocati Fidei (acho que o latim certo seria advocatvs fidei, mas isso não é importante). A coincidência me chamou a atenção porque justamente minha mãe andou me “admoestando” por meu ateísmo, entre outras coisas dizendo que estas coisas ruins me estão acontecendo porque eu não creio no bondoso deus cristão (este ser de infinita bondade que coloca dolorosos cálculos renais nas pessoas que não creem nele, pois “se não for pelo amor, haverá de ser pela dor”). E justamente ao voltar dolorido do Hospital eu dou com a coincidência da postagem da tradução de uma música pró-religião em um site cético-ateu. Se eu fosse supersticioso, veria nessa coincidência um “sinal” e me arrependeria de minha impiedade (portanto, caras do “Bule Voador”, parem com essas postagens aí porque está parecendo que vocês estão anunciando as ofertas da concorrência).

Achei a música bonita (a beleza da arte sempre está acima e além de ideologias, em minha opinião) e me diverti fazendo uma outra versão (a que está no site, embora semanticamente correta, não está suficientemente “poética” ao meu gosto). Como eu já tinha uma postagem feita no dia 20/04/2011, optei por preencher a data do dia anterior com uma postagem que seria adequada ao “estado de espírito” de alguém que estivesse por internar-se para uma complicada operação. Não venham pensar, por causa disso, que eu estou “traindo o movimento ateu” (Dado Dollabela copyrights), apenas que tenho suficiente largueza de “espírito” para apreciar a arte que não joga no meu time, tal como tenho para conviver com pessoas que optam por estilos de vida diferentes dos meus. Não creio, porém, que um site evangélico topasse divulgar versões de qualquer das canções a seguir (mas o desafio fica feito):


“Orgasmatron”, Motörhead (1983)

“Free Will”, Rush (1979)

“Time”, Pink Floyd (1973)

Um pós-escrito interessante. Este texto também não foi escrito em 21/04/2011. Como eu já tinha postado alguma coisa ontem, resolvi usar o recurso de agendamento de postagens para mover este texto para o dia seguinte (“hoje”). Com isso ainda ganho tempo para postar algo mais legal dia 22 (“amanhã”).


19
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 17:49link do post | comentar
Há cem bilhões de flocos de neve girando na fúria do cosmosCada um deles é uma galáxia, um bilhão de estrelas ou mais,E cada estrela, um milhão de terras, um gigantesco sol ardenteNo alto de algum céu, talvez brilhando sobre alguém.E bem no fundo de um floco de neve, flutuo em silêncio.Eu sou infinitesimal, impossível de ver.Sentado na pequenina cozinha de meu lar pequenino,Contemplo através da janela um universo de flocos de neve.Mas minha alma é muito maior do que este meu minúsculo eu,Estende-se pela nevasca, como uma rede pelo mar adentro.De todos os lugares adoráveis aonde meu corpo não pode ir,Eu toco a beleza e a abraço no seio de minha alma.E é tão breve e rápida esta minúscula vida minha,Como uma única semínima na marcha do tempo.Mas minha alma é a música, e vem desde tempos antigos.Antes de vestir a face humana, antes de levar meu nome.Porque minha alma é muito mais velha que o meu ser fugidioE sabe descrever a aurora do tempo como memórias de infância.Ela é uma fagulha produzida na escuridão tempos atrás,O que meu corpo esqueceu, continuo a lembrar em minha alma.Então vivemos juntos a vida, minha alma gigante e o mínimo eu.Uma aparência de eternidade, outra fumaça soprada na brisa.Uma oceano que permanente, outra uma onda súbita e fugaz.Contando as galáxias flocos de neve, juraria que somos iguais.Oh, minha alma pertence à beleza, me leva a alturas sublimes,Ensina-me histórias sagradas, santifica minha vida minúscula,Faz ponte entre as eras, dissolve as fronteiras dos ossos,Pinta para sempre uma face corajosa nesse momento passageiro.

06
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 10:00link do post | comentar

Na vida existem aqueles momentos que se tornam definitivos, para o bem ou para o mal. Olhando em retrospecto, você identifica: antes daquele dia eu ainda era um bobão, desde esse dia eu mudei para melhor, descobri naquela semana que eu amava aquela mulher, etc. Na maioria das vezes essas mudanças acontecem sem que consigamos acompanhar: é como uma lenta subida de enchente, que só o assusta quando a água vem à soleira da porta e você não sabe de verdade quando foi que começou. É muito fácil saber que o rio veio à porta, difícil é dizer quando o rio começou a subir.

Existem, porém, algumas mudanças que são mais rápidas, mais pesadas. Você não precisa esperar pela sabedoria dos anos para olhar o passado e notar o desvio. Basta, nesses casos, ter alguma sabedoria para notar que uma mão invisível o está entortando para determinado rumo, irresistivelmente. Tive a oportunidade de sentir isso em quatro oportunidades durante a minha vida. Duas destas oportunidades são coisas pessoais demais para que eu ouse mencionar aqui, mas duas delas eu posso discutir.

A primeira destas circunstâncias (na verdade a segunda, considerando as outras duas que não vou mencionar) foi em 1997. Não lembro a data exata e não vou consultar meu diário poético desses anos porque esta pesquisa me faria perder o fio do pensamento que me conduz nesse momento. Sei que coincidiu com uma forte cólica renal, que me deixou prostrado na emergência de um hospital em Cataguases durante horas, tomando anti-inflamatórios, analgésicos cavalares e calmantes. Ao despertar, finalmente expelindo um cálculo negro, espinhoso e duro, notei que o cheiro de meu corpo era diferente. Sim, o cheiro. Existem muitas coisas sutis que mudam em nossas vidas e não nos ligamos, não percebemos. Eu tenho alguma sensibilidade para estas pequenas coisas, talvez por isso me achem tão estranho. Naquele dia, ao despertar de horas de sedação e de dor, eu notei que meu suor mudara de natureza. Eu tinha meus vinte e três ou vinte e quatro anos e naquela manhã de inverno eu percebi que meu corpo já não exalava o tênue cheiro de leite que eu sempre havia sentido nele, mesmo quando suava, mesmo quando sujo. Em vez do cheiro adocicado e leve que me havia caracterizado antes, eu sentia um odor azedo e desagradável, que não saiu nem com os banhos que tomei. Naquele dia, refletindo sobre a mudança, eu identifiquei que havia biologicamente chegado à idade adulta.

A última destas mudanças súbitas ocorreu ao longo deste ano, entre janeiro e ontem. Foi neste ano que eu percebi o avanço inexorável dos pêlos brancos pela minha barba (especialmente nas três últimas semanas) e no ressecamento da pele de meus pés. Sim, estou envelhecendo. Se a mudança do cheiro de meu corpo sinalizou a idade adulta, estes dois outros sinais indicam que chegou ao fim o "planalto da juventude", que se estende entre meados dos vinte e meados dos trinta. Cheguei à beira dele e agora devo descer rumo ao vale da velhice.

Que me seja longa a descida. E que eu chegue lá.


31
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 12:04link do post | comentar

Cheguei de viagem cansado, ansioso por dormir. Deixei meu carro na garagem e saí pela noite anódina e sem lua. O ar estava profanado pela chuva ainda recente, exalando uma catinga de morrinha de cachorro molhado e os meus pés chapinhavam nas poças de água barrenta que salpicavam as calçadas. No céu parcialmente limpo algumas estrelas, nenhuma vencendo de todo a iluminação artificial.

Havia uma mulher sentada num banco de praça no meio do meu caminho, uma mulher vestida roupas negras e longos cabelos, com o rosto afundado entre as mãos. Estava imóvel como uma morta e meio apoiada, de um lado, sobre algo escuro e disforme. Observei que curvava a cabeça sobre os antebraços e as mãos ficavam perdidas entre as madeixas escuras, que a brisa da noite discretamente agitava.

Poderia ser uma mendiga, ou qualquer imagem sobrenatural, ou talvez apenas uma jovem drogada. Alguma coisa me fez simpatizar com sua solidão no vazio daquela madrugada perigosa. Por isso, contrariando o senso que sempre me mandava, de noite ou de madrugada, ignorar tudo que tivesse duas pernas e estivesse fora de mim, cheguei mais perto e lhe dei boa noite.

Foi como se rasgassem a mortalha de um féretro antigo. Ela ergueu o rosto pálido e macerado de lágrimas contra a luz apática das lâmpadas elétricas, mirou nos meus com uma devastadora expressão de luto em sua boca e uma potente tristeza torcendo seu cenho. Dava para ver que ela havia chorado recentemente. Não! Chorava ainda: um brilho perolado aparecia na pele ao redor dos olhos, pondo um apelo ainda mais puro aos misturados sentimentos que me acometiam. Percebi, surpreso, que seu rosto não levava maquiagem, que seus dedos não portavam aneis e que havia suspenso em seu pescoço somente um rústico pingente prateado em forma de luar.

A voz que respondeu ao cumprimento foi quase inaudível, como o sussurro de uma profecia em um sonho. Não, eu não poderia ajudar-lhe em nada. Sua expressão desolada certificou-me disso tão logo eu pensei perguntar se precisava de alguma coisa. Mas depois de refletir por um momento, talvez temendo que eu seguisse meu caminho, abordou-me com uma audácia ignorante:

— Tu me amas?

Aquelas palavras ventaram como uma vertigem em meus ouvidos. Como poderia pensar que alguém pudesse amar a quem nem sabe quem é? Disse-lhe isso: “Não a conheço”. Ela não gastou nenhum segundo antes de tentar de outra forma:

— Então me odeias?

Suas palavras saíam como se fossem antigas, com poeira de idades imemoriais, incineradas pela inclemência dos séculos. Achei graça nesse anacronismo e também joguei da mesma forma:

— Como odiaria a quem não pude ainda conhecer?

Ela deixou descer outra gota solitária de seus olhos e afirmou, como quem arranca o próprio fígado:

— Se me conheces, me odeias.

Esta afirmação de futuro usando o presente me parece fatalista além da conta. Mas eu era tolo e suficientemente ousado para uma noite só. Disse-lhe que ninguém odiaria uma mulher tão bela, não sem um motivo muito justo, não sem um ódio anterior da parte dela.

Essas palavras saíram de minha boca tão inesperadas que meus dentes se assustaram com elas e morderam minha língua. Ela então se levantou do banco da praça e disse, de uma forma infantilmente curiosa que não me odiava. Seu corpo exalava um perfume de gaveta, ou de casa abandonada, misturado talvez a ervas mortas. Mas quando ela se aproximou de mim esse cheiro de séculos e tumbas não me pareceu ruim. Era em vez disso um perfume de rosas secas, de sabonetes em gavetas.

Mas ela se movia como um fantasma, sua roupa imensamente negra revoava como as asas de uma alma penada. Havia algo muito estranho naqueles lábios roxos, uma doçura cadavérica e pecaminosa naquela palidez helênica. Ela me tocou o rosto com a mão direita, dizendo:

— Como é possível odiar a inocência? Eu não entendo! Eu apenas existo!

No fundo de minha mente alguma coisa começava a agitar-se, sinalizando às minhas pernas que corressem, enquanto outra parte de mim dizia que já era tarde para isso. Mas eu retribuí o toque, levando meus dedos à sua face. Era lisa como uma lápide de mármore, era fria como a água de um lago à noite, e era dura também, mas sua lisura era boa de tocar, meus dedos gostaram de correr por aquela pele que parecia não ter pelo nenhum. Naquele momento, vencendo meus instintos, eu a achei terrivelmente bela e quis amá-la.

— Por que está sozinha esta noite, nesta praça vazia e perigosa?

— Sozinha eu sempre estou, e certamente esta praça não me oferece nenhum perigo.

Algumas pessoas passaram pelo outro lado da praça, bêbadas, ruidosas, cantando obscenamente, uma felicidade ofensiva. Como era possível estarem felizes. Havia guerra, havia peste. Odiei aquelas pessoas. Como se tivesse lido os meus lábios imóveis, a mulher de negro me aconselhou:

— Ah, não os odeies. Eles apenas sentem a tensão dos últimos dias. Eles dançam e cantam porque em sua ignorância eles sabem que se aproxima o dia em que já não poderão. Felizes aqueles que dançam e cantam, porque os dias de cantar e dançar são muito poucos.

— Então venha beber comigo, cantar e dançar. Como todo mundo, você merece essa pouca felicidade que há.

— Então beija-me agora, se tens esta coragem.

Toquei seus lábios duros com os meus, beijamo-nos brevemente. Ela então aceitou que eu lhe tomasse a mão e a levasse da praça. Mas ao sairmos da sombra onde ela estivera, notei que trazia consigo um saco escuro e uma longa foice de lâmina curva. Naquele momento eu teria entrado em pânico, mas eu a beijara e ela era uma mulher tão linda. Então a beijei suavemente uma segunda vez, tentando envolver seu corpo magro em meus braços. Quando nossos lábios se afastaram ela quase sorriu, tentando talvez ser má, encarou-me de novo e disse:

— Eu sou a tua morte. Odeia-me agora!?

Contemplei-a novamente, ainda lutando com o medo inútil que ruflava no interior de minhas crenças e descrenças. Mas concluí que mesmo assim eu não conseguia.

— Não posso odiá-la. Como posso odiar a morte que nasci sabendo que um dia encontraria. Só não sabia que haveria de ser numa praça tão feia, na forma de uma alma tão linda. Mas não a odeio, nunca a odiei, na verdade fiz versos para ti por muitos anos.

— E não sentes medo?

— Tenho medo e desespero, mas não posso odiar a uma lei da natureza. Sobretudo não tenho ódio, tenho é pena de ti, que odeias a vida.

Ela me tomou a mão, como se uma geleira me tocasse, e disse numa voz dançante e cristalina:

— Na verdade, eis a monstruosidade de tudo, não sou eu quem odeia a vida, eu de fato a amo, talvez bem mais que vós que viveis. Eu amo a vida, esta coisa precária e bela que se destrói e se perpetua. Eu existo para destruir, destruo para existir, mas minha destruição abre caminhos, areja a existência para os que ainda vão nascer. Mas mesmo assim, mesmo sabendo que faço algo que é bom, ainda levo na alma uma culpa que não sei bem do que. E um cansaço nas mãos que já carregaram demais esta foice infernal que me deram.

— Tenho pena, então, por isso.

— Acima de tudo, estou cansada de destruir àquilo e a quem gostaria de amar.

— Mas é possível amar sem destruir? Se não ao objeto, ao amor em si?

— Não sei todas as coisas, sou apenas um anjo caído que tem uma missão.

— Tu tens a eternidade, então por que não podes ter algumas décadas?

Ela me olhou com esperança, um sentimento que talvez não tenha sido nunca pensado para os corações dos anjos. Uma esperança tão súbita que quase evaporou o resto da lágrima que ainda pendia.

— Eu pressinto verdade no que a tua boca diz. Teus olhos confessam, não posso negar.

— Então não posso dar-lhe boa noite e ir para casa, como antes. Vem comigo.

— Eu vou contigo. E vou ficar contigo até que me odeies, até que te destruas, até que a Ira dEle nos obrigue.

Seguimos para minha casa como se fôssemos qualquer casal de namorados. A morte me acompanhava, mas eu não tinha medo. Dormi um sono pesado, sofri com pesadelos e com sede. Quando amanheceu, havia um sol estranhamente silencioso atravessando a janela, uma quietude de se ouvir pássaros; mas não havia pássaros.

Preparei meu café da manhã ainda chocado pelas imagens bárbaras de um mundo que se acabava em trevas. Terminei minhas fatias com manteiga e meu café com leite vendo o relógio gotejar minutos como uma hemorragia. Então saí de casa para o trabalho.

Os meus passos ressoavam na escada como os de uma múmia num museu. Havia teias de aranha nas paredes que poderiam ser de semanas ou de meses. Havia um silêncio no ar que evocava os porões de uma pirâmide.

A rua estava deserta, cheia de árvores enferrujadas e redemoinhos de poeira que assobiavam como em antigos filmes americanos. As lojas estavam lacradas, silenciosas, como se seus donos tivessem morrido na cama, de madrugada, e nunca viessem mais para abrir suas portas corrediças. Nenhum cão percorria aquela avenida desolada, nenhum ruído ou música que evocasse vida.

Temi estar louco. Continuei pelo caminho até o meu serviço, sorvendo um ar estranhamente ácido. As vidraças de alguns estabelecimentos estavam deformadas, com marcas estranhas que pareciam mãos, mas não podiam ser. Na praça onde deixara a mulher de negro imperava a mesma mágica de amortecimento que embalara o mundo naquele sono estúpido.

Uma frase dita por detrás de minha orelha me arrepiou cada cabelo de meu corpo: “Tu me amas?” Repeti as perguntas comuns que todos os perdidos fazem nessas horas, era como se eu tivesse incorporado um roteiro de cinema de horror e todos os seus clichês. Quando voltei o rosto, ela estava lá e me olhava com aquela expressão gélida no rosto, brilhando sob o sol como uma blasfêmia.

— V-você. Eu pensei que tinha sido só um sonho.

— E me amas?

— Talvez, mas ainda tenho muito medo.

— Amor e medo se misturam bem, eu sei de prazeres que ninguém jamais lembrou nem aprendeu.

— Não gosto desses verbos, tenho muito que esquecer e muito medo de nunca aprender.

Ela se aproximou de mim, sem que seus pés sequer soassem no chão, apesar de todo o silêncio da rua inteira.

— Tu me amarias aqui, se eu tivesse a coragem de me despir?

Olhei em torno, novamente assustado. Não havia alma viva nem voz que aventasse testemunhas.

— Isso seria algo de meter mais medo ainda.

Então ela o fez, e nos amamos em pecado, ali mesmo.


23
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 14:57link do post | comentar | ver comentários (1)

Em algum momento, em 2003, eu tive um sonho no qual me via seguindo uma mulher a cavalo, vestida de negro. Na época eu ainda não conhecia o som do Uriah Heep e não poderia ter feito a ligação com “Lady in Black”. Em vez disso, o sonho se referia mais à uma figura existente na capa da edição de “As Brumas de Avalon” que eu tinha comprado naquela época. A “Senhora da Magia” levando Excalibur à mão e cavalgando um cavalo branco.

Este sonho acabou se conectando, pelas tortas vias da inspiração, com outro que eu tive no dia seguinte, no qual me via na pele de um perseguido político, ameaçado de tortura. A conexão dos dois resulta no argumento inicial do conto. A segunda parte, escrita cerca de duas semanas depois, procurou relacionar os episódios algo sobrenaturais narrados na primeira a algum tipo de acontecimento histórico conhecido. Eu planejava fazer outras conexões mais amplas, usando, por exemplo, um outro conto que eu intitulava “História de uns Fantasmas” (que acabou resultando em “Inocência Assassina”). O plano que eu tinha era de um romance, ou um ciclo de contos, baseado em um universo paralelo conectado com o interior de Minas Gerais.

Mas o projeto não prosseguiu. Em parte isso foi porque eu não gostava muito de histórias de fantasia e terror, mas a principal razão foi eu não vislumbrar maneiras de dar prosseguimento à história. Durante muito tempo os contos “A Cabana ao Pé da Montanha” (atual Parte I) e “A Mansão Além da Montanha” (núcleo da Parte II) figuraram como duas histórias independentes e inacabadas em meu antigo site. Porém, durante o ano de 2009, eu resolvi retomar o projeto do “Grande Romance Místico Mineiro” e acabei revisitando os dois contos. Na época escrevi um terceiro conto, chamado “O Círculo Entre as Montanhas”, que foi o esqueleto da Parte III. Este conto nunca foi publicado.

Por fim, agora no comecinho de 2011, numa tarde razoavelmente inspirada, eu revisei os três contos, consertei as conexões entre eles, tornando-os efetivamente partes de uma mesma história, e os publiquei no blog (usando a ferramenta de agendamento de postagens).

A “Cabana ao Pé da Montanha” ainda será revisado algumas vezes, certamente aumentado em talvez até 50%, mas já está em uma forma apresentável. Ele será, futuramente, uma espécie de introdução ao universo da “Serra da Estrela”, no qual vou ambientar um romance e alguns contos. Nesse universo, as lendas brasileiras existem, de certa forma, e algumas maldições portuguesas foram desterradas.


22
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 20:00link do post | comentar
Quando contemplas o abismo, o abismo também te contempla. — Nietzsche.

Quando Roberto e Teresa foram vistos a sair da cidade para um passeio no campo ninguém podia imaginar o que estava por acontecer naquela tarde. Naquele domingo nada de especial parecia estar ocorrendo aos olhos de quem os visse passar no jipe: eram os mesmos sorrisos, a mesma falta de precaução que é tão característica do amor.

Iam a um desses lugares calmos onde se pode nadar e permanecer por horas sem ser molestado pela presença de seres humanos. Havia uma piscina natural cercada de areia fina e pedras, próxima a umas colinas ermas de onde não se ouvia nenhum rumor de civilização e podiam ficar à vontade. Lá chegaram pelas duas ou três da tarde. Deixaram as roupas sob uma árvore e foram nadar. Ela despiu-se porque fez questão de, naquele momento, estar nua. Roberto nunca entendia estas insistências que lhe ocorriam. Para ele tanto fazia uma coisa ou outra, não entendia a magia da nudez. Nenhum prazer ele sentia nisso.

Ela saiu sorridente da água fria e estendeu uma toalha sobre um trecho de gramado e deitou-se. Tudo parecia estar tão bem. Mas não aos olhos de Roberto.

Ele foi até o jipe, tomou o embrulho de papel pardo que estava sob o banco do motorista e aproximou-se a passos curtos e leves. Estava pronto, ou assim pensava. Num gesto muitas vezes ensaiado rasgou o envelope com fantástica rapidez e segurou o revólver com firmeza.

Teresa estava entorpecida pelo calor gostoso do sol e deixava que seus raios dourassem sua pele. Nada percebera. Roberto então aproximou-se, saltou sobre ela, segurou sua boca com a mão esquerda e encostou o cano do revólver sobre o mamilo esquerdo, um pouco para dentro do peito. Disse friamente: “Você não vai me estragar a vida, sua piranha. E nem esse bastardo que você carrega no bucho e não é meu”.

Pôr um momento os cavalos ergueram suas cabeças sobressaltados, quando um grito tentava rasgar a tarde. Mas depois voltaram a pastar na mesma tranqüilidade de antes. A cidade não ouviu e o rio continuou a correr discretamente.

Roberto olhou as mãos, surpreso com o seu ato, mas faltou a coragem de punir-se. Olhou em torno e não havia mesmo testemunhas, a não ser os pássaros. Cerrou os olhos e saboreou de novo a intensidade de haver matado, não lhe sobreveio nenhum sabor especial. O sol brilhava igual, o mesmo vento sacudia as folhas, nenhum silêncio novo amaldiçoava o ar e nenhuma atmosfera diferente envolvia a paisagem.

Saciado nesta certeza, abriu de novo a sua perspectiva em direção à realidade e viu apenas o que viu. Apesar do estrondo da arma de fogo ninguém viera acudir e o eco tivera tempo de estender-se ininterrupto até morrer de repetir-se.

Agora estava incrivelmente só, mas o arrependimento não vinha. Teresa jazia a seus pés, uma flor vermelha amanhecia em seu peito e o vento não desistira de agir em seus cabelos. Soltou a arma, depois apanhou de volta, racionalizado: não poderia deixá-la onde poderiam encontrar.

Assim iniciou-se o trabalhoso processo de ocultação de toda prova que lhe fosse possível identificar. Embrulhou o corpo na toalha, nu mesmo, e ocultou-o entre duas pedras, sob uma árvore, dentro da corrente do rio. Era verão e muitas chuvas fortes costumavam ocorrer ao anoitecer. A próxima provavelmente a levaria água abaixo.

O resto dos pertences, embrulhou num saco de plástico e enterrou na margem, um buraco de um metro e pouco de fundura pareceu suficiente. Depois de alisar a areia o quanto pôde, achou que já estava bem perfeito. Escondeu a arma outra vez debaixo da poltrona do carro e deu as costas a quem fora seu amor.

Antes de chegar ao pé do morro olhou de volta como se quisesse confirmação de que ela não se levantara. Não havendo sinais de atividade, continuou andando em direção ao jipe. Ao tocar a fria maçaneta da porta lembrou-se subitamente do que realmente fizera, uma escuridão baixou em seus pensamentos e uma náusea cruel comprimiu o seu estômago até o almoço cair ao chão.

Respirou fundo, buscou forças e limpou o amargo-ácido que ficara na boca com um bochecho do resto de água mineral que ficara na garrafa de plástico. Então pôr um momento se deu conta de haver lágrimas em seus olhos.

Quis raiva, como se elas fossem uma cobrança injusta que Teresa ainda lhe fazia, mas já se sentia a pisar num pântano: o pranto saiu grosso e entrecortado, com dentes rangendo, calor no rosto e tremor nas mãos que apertaram-se no vazio até as unhas ferirem a pele. Chutou com fúria os duros pneus, cuspiu o resto do amargo, arrancou cabelos e sentou-se ao volante para acalmar-se. Quis ouvir uma canção, ou um ruído que rompesse a redoma de silêncio que o comprimia e acusava. Mas as mãos tremiam a ponto de não conseguirem sintonizar o rádio e a ponto de deixarem cair as fitas.

Olhou para cima, esperando que Deus mandasse o seu anjo para fender-lhe o crânio com uma espada flamejante mas havia apenas nuvens desmaiadas escorregando pelo céu azul-aço. Xingou e Deus não o puniu. Gritou e ouviu só o silêncio que insistia. Lembrou-se de estar a vinte quilômetros da estrada principal e este pensamento, que a princípio fora providencial e confortável, pareceu naquele momento desesperador. Apenas grilos denunciavam a sua premeditação.

Enquanto se vestia começou a refletir sobre as possíveis conseqüências de seu ato. Algumas nuvens negras a mais toldaram o horizonte, mas era apenas chuva.

Caminhou de volta sem saber porque o fazia. Talvez vontade de vê-la viva. Mas viu apenas a verdade e isto o fez ouvir mais alto o zumbido/grito do silêncio no fundo de seus ouvidos. Sentou-se numa pedra e pôs-se a contemplar o cadáver, como se nunca antes houvesse tomado consciência da beleza manifesta nela.

À medida que os lábios que beijara alteravam sua cor e exalavam últimos vestígios de calor e os olhos iam se vidrando até assumirem uma crueldade acusadora, relembrou cada instante de ciúme e ao reler seus atos a certeza que o movera dissipou-se em contradições que o fizeram rir. A morte parecia santificar o corpo profanado pelo amor torto que lhe dedicara e violado pelo tiro, última dádiva de quem pouco soubera dar. A inofensividade angelical que havia nela morta!…

Não suportou mais. Um mugido interrompeu a sua dor. Era uma boiada tocada por alguns cavaleiros. Então se deu conta da besteira de ainda estar ao lado do cadáver, levantou-se, desceu rapidamente o morro e tomou o jipe. Dirigiu com saudades e sentiu os solavancos no fígado e nos rins. Ao passar pela primeira ponte de madeira teve ganas de atirar fora o revólver, mas pensou a tempo de interromper o gesto: sendo ainda tão perto seria um lugar provável para que procurassem.

Passou por um homem de ar triste e dentes enegrecidos de cáries que ia em uma charrete, olhou-o com toda a naturalidade que foi possível, mas ainda assim levou a impressão de que ele retivera o seu rosto na memória. As árvores às vezes pareciam dobrar seus galhos sobre a estrada para decapitá-lo.

Atraído por um ruído de cachoeira tomou um desvio, metros depois parou à beira do abismo e contemplou um amplo vale em cujo outro lado despencava uma cascata formidável duma altura de uns setenta metros. A água se despedaçava nas pedras como um copo de vinho que cai da mão.

O sangue retornou à lembrança, Armando olhou suas mãos, certamente impregnadas do doce cheiro da pólvora. O estômago agora exigia alimento. Desceu. Sentir-se pisando o chão de novo deu-lhe de volta um pouco da sensação de estar vivo que parecera estar definitivamente perdida.

A cachoeira chamava e a grama estalava de prazer sob os seus pés. Sentou-se no chão, descalçou os pesados sapatos de motociclista, o súbito vento neles enterneceu-o a ponto de querer chorar, cada dedo gritava de felicidade ao pisar livre. As saudades desapareceram porque era um belo mundo novo, sequer relatado por testemunhas humanas. Muitas eram as novas terras a explorar, muitos os mares novos a navegar.

O vento se intensificou, como num convite. Arrancou a camisa com um ímpeto apaixonado, desfez-se da calça. Em torno ninguém estava. As vozes de Legião estavam no abismo e lhe contavam que os boiadeiros haviam encontrado o corpo, que na verdade havia um arraial perto da colina, que o homem da charrete era bom fisionomia, que muita gente os tinha visto deixar a cidade, e Deus também sabia. Mas o vento o acarinhava com uma ternura que o fazia chorar.

De repente acordou do devaneio se sentindo estúpido por estar lá nu e ouvindo pensamentos que não deviam ser os seus. Ergueu-se do chão para seguir fugindo. Se fosse pego, haveriam de pegá-lo longe. Havia esperança, apesar do medo.

Tirou o revólver de dentro do bolso da jaqueta, olhou-o firmemente amaldiçoando-o. Fora ele que possibilitara a loucura. Não fosse ele e Teresa estaria ainda viva. Arrojou-o longe dentro do abismo e abaixou-se para pegar de volta as roupas que estavam pelo chão. Afinal, não fora tudo mera deformação da realidade pelos seus sentidos enlouquecidos pela culpa?

Decidido a levar adiante a vida que quase fora desperdiçada por um simples escorregão, Armando tomou uma estrada diferente da que percorrera na vinda e voltou à civilização.

Texto escrito originalmente em 2002.

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