Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
27
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 17:40link do post | comentar

Amanheci com náuseas. Não é infrequente que isso aconteça comigo: mesmo depois de ter removida a vesícula eu ainda passo por esses perrengues ocasionais. Especialmente depois de comer chocolate, ou frituras. Mas quem disse que eu vou deixar de comer um belo pastel de queijo só por causa de um fígado? Pois é, rendi-me à gula e amanheci mareado como um marujo de primeira viagem.

Só não vomitei. Talvez tenha sido o meu azar: os males materiais, tanto quanto os espirituais, nos deixam de atormentar quanto “postos para fora”. Uma confissão de culpa, um pedido de perdão, uma diarreia ou um berro pelo Juca. Todas são formas de purificação.

Mas melhorei um pouco depois de tomar um sal de fruta e um comprimido para enjoo e fui trabalhar. Má ideia, má ideia. Passei a manhã com calafrios, uma ligeira dor de cabeça, dificuldade para ficar de pé sem tontear e uma vaga vontade de algo que eu não sabia o que poderia ser. Lá pelas onze e quarenta da manhã eu desisti. Antes de sair para almoçar comuniquei ao gerente que eu positivamente não estava bem e que estava indo ao médico.

Sexta-feira, puxa vida! Coisa mais difícil é achar médico hoje! A não ser pelos que estão nos plantões, os outros certamente já estão viajando ou então com consultórios lotados. Mas tudo bem, para isso existe o pronto socorro e eu não estou exatamente morrendo neste momento. Depois de me certificar que a carteirinha do plano de saúde estava no bolso, encarei a subida.

Disse “subida” porque o hospital é conveniente situado no alto de um morro bem alto. Quem não tem dinheiro para táxi só chega lá se for de ambulância ou a pé, subindo uma escadaria maior que a que Jacó sonhou que levava ao céu. Pelo menos é o que você sente quando está passando mal e tentando galgar aqueles malditos degraus. Eu poderia ter ido de táxi, mas meu orgulho macho me impedia de pagar oito reais para um deslocamento de apenas duzentos e vinte e metros, ainda que fosse praticamente na vertical.

Meu primeiro desafio foi adivinha onde deveria me apresentar para o atendimento. Cada vez que venho aqui me indicam uma porta diferente. São apenas duas entradas, mas eu consigo sempre escolher da primeira vez a porta errada. Não é curioso isso? Parece que, como a maioria dos humanos, eu só faço a coisa certa depois de esgotadas as outras possibilidades. Pensando bem o mundo seria um lugar melhor se não houvesse tantas opções…

Eu já mal conseguia falar quando entreguei meus documentos para a recepcionista. Por sorte ela conseguiu compreender os meus grunhidos. Ou talvez ela apenas tenha tido a inteligência de imaginar que eu estava ali procurando atendimento. Digo “inteligência” porque houve outras vezes e lugares em que eu não tive a sorte de ser compreendido com tanta facilidade.

Esperei cerca de duas revistas semanais inteiras. Duas vezes me apresentei de novo ao balcão, para espanto da recepcionista: “Mas você não foi atendido ainda? Aguarde só mais um momento que eu vou verificar se o Doutor já pode recebê-lo”. Mesmo com vontade de vomitar no saguão eu conseguia achar estranho que ela colocasse os pronomes com tanta competência.

Por fim me vi diante do médico. Imagino que ele deve encarar umas trinta pessoas por semana sentindo o mesmo que eu. Para um médico experiente certos males devem quase deixar uma etiqueta na testa do paciente. Pálido, esverdeado, reclamando dor de cabeça, querendo vomitar mas não conseguindo, zonzo.

— Muito bem, meu filho, você comeu alguma coisa estranha ontem?

— Lembro vagamente de ter comido um pastel de queijo, doutor.

Ele me recriminou com um olhar penetrante:

— Foi só isso?

Diante da argúcia quase sacerdotal daquele homem eu tive de confessar:

— Também uns biscoitos recheados de chocolate. Mea culpa, mea grandissima culpa.

— Você devia saber que não deve abusar. Seu fígado não aguenta tudo isso, meu filho.

Ele rabiscou seus hieróglifos nos formulários e me indicou a uma enfermeira. Ela, porém, se limitou a me instalar em uma cama na enfermaria. Deitei-me ainda calçado de sapatos, com a gravata afrouxada, a carteira no bolso da camisa, o relógio no braço, o celular no bolso esquerdo da calça e o chaveiro no direito.

Longos minutos depois apareceu um enfermeiro para me pôr no soro. Não gostei. De alguma forma sempre acho que as agulhadas dadas pelas enfermeiras doem menos. Ele até que tentou facilitar as coisas, contando umas piadinhas e tentando fingir que me conhecia de algum lugar, mas eu quase lhe mandei para aquele lugar quando ele enfiou a agulha no dorso da mão. Detesto agulhas, detesto injeção, detesto soro, detesto coleta de amostras, detesto tudo isso. E não detesto por frescura, mas por excessivo costume.

Ele queria também que eu mijasse num potinho para fazer o exame de urina. Confesso que nunca na minha vida mijei na frente de um homem. Deve ter tido uma vez ou duas em que fiz isso diante de uma mulher — e nem assim gostei. De qualquer forma eu não tinha nada na bexiga ainda, porque meu estômago andava tão embrulhado que até água me fazia enjoar. Ele então me disse que voltaria quinze minutos depois para colher sangue e eu teria uma segunda chance. Não me empolguei com essa perspectiva.

Não foi ele que voltou, foi um enfermeiro com cara de lutador de jiu-jitsu. O tamanho do braço do cara me fez tremer mais do que o meu fígado empesteado. Só de pensar que seria ele a colher amostra do meu sangue eu tive vontade de levantar da cama, dizer que já estava bom e rolar morro abaixo até em casa.

Meu braço esquerdo estava com o soro, por isso ele resolveu fazer a coleta no direito. Como a cama ficava encostada na parede e a posição ficava meio desajeitada, ele resolveu o problema simplesmente eguendo-a, comigo em cima, e deslocando um metro para o lado, sem sequer fazer careta. Depois disso pegou a seringa e se preparou para coletar o sangue. Eu devia estar passando mal a ponto de estar fora de meu juízo, pois nesse momento ao escrever eu tenho mais medo do que senti na cena ao vivo. Mas ele tinha uma mão surpreendentemente leve, e colheu o sangue sem que eu quase sentisse. Muita mocinha bonita de sorriso meigo me causou mais dor do que aquele homem que erguera uma cama de ferro com meus cem quilos em cima. Mesmo assim, quando ele me perguntou se eu já estava pronto para a amostra de urina eu disse que não. Jurei que não. Por nada nesse mundo admitiria que sim.

O soro estava previsto para vinte minutos. Durou quarenta e cinco. Em parte porque eu mesmo, prevendo que iam demorar a me visitar de novo, fui ajustando as gotas para diminuírem de ritmo. Mas acabei cochilando e quando acordei o meu sangue havia subido até a metade do tubo. Não havia campainha ali, nem qualquer meio para chamar socorro. Fechei rapidamente o torniquete e levantei da cama para buscar alguém. O corredor da enfermaria estava vazio, a não ser por dois pedreiros fazendo uma reforma. Alguns pacientes e seus acompanhantes murmuravam nos outros quartos.

Deitei de novo, por alguns minutos, e então a bexiga começou a me incomodar. Olhei no relógio, já eram quase duas horas da tarde, o soro tinha acabado quase quarenta minutos antes. Peguei o potinho de plástico e me arrastei até o banheiro carregando o poste do soro. Urinei uma amostra e tentei acertar o resto no vaso, mas molhei a mão, o pote, o tubo de soro e o meu sapato. E ainda sobrou um pouco para a cueca. Sempre sobra. Lavei as mãos na pia, tentei limpar a calça e não me incomodei nem com o inalcançável sapato e nem com o tubo do soro.

Então me dirigi ao balcão, onde a enfermeira distraída preenchia uma ficha. Eu tinha chamado tantas vezes e ela não me ouvira. Por sorte meu caso não era grave, ou ela só teria ouvido o choro da família no dia seguinte. Entreguei-lhe o pote todo molhado de urina, com a metade de um sorriso no rosto. Uma doce vingança. Ela me fuzilou com os olhos e eu comecei a ter dificuldades para segurar o resto do riso.

No meio do caminho até o quarto encontrei o primeiro enfermeiro, o que me pusera no soro. Ao ver minha situação ele me pediu calma e disse que iria logo me tirar daquela situação. O “logo” demorou quase um quarto de hora. Mas enfim ele tirou a agulha da minha mão, não sem outro xingamento abafado de minha parte.

O doutor estava ocupado. Me pediram que aguardasse, pois o exame de sangue ficaria logo pronto. Dentro de uma hora mais ou menos eu saberia se não estava com dengue ou alguma “virose” e poderia ir para casa. Ainda estava enjoado, bastante enjoado, e sentia uma forte dor de cabeça. Mas tudo isso acompanhado de uma sonolência intensa, e a cabeça não doía quando eu fechava os olhos. A consequência natural desse conjunto de sintomas foi eu dormir logo, tão logo me vi sem soro no braço para me incomodar. Aninhei-me no leito em posição fetal e dormi de babar na fronha do travesseiro.

Quando acordei a luz mortiça do entardecer entrava obliquamente pela janela. Pardais chilreavam nas árvores próximas à janela. Assustei-me com a hora. Será que me fariam passar a noite? Saí ao corredor em busca de respostas e fiquei ainda mais estupefato de saber que ninguém da turma que me atendera estava ainda por lá. O médico era outro, inclusive um velho conhecido meu, as enfermeiras eram outras. Eles me viram até com certa surpresa, como se eu fosse uma espécie de aparição. Por um momento eu tive a vaga impressão de que eles não sabiam quem eu era e o que eu estava fazendo ali. Se eu não estivesse amarrotado da soneca eles talvez achassem que eu estava chegando. Ou talvez ainda assim achassem, pois bêbados costumam chegar amarrotados.

Depois que me expliquei com o médico, quase pedindo desculpas, ele finalmente achou meu prontuário, mas não conseguiu saber o que fazer comigo. Não sei se foi porque não leu os hieróglifos do outro ou se os registros estavam incompletos. Os exames ainda não estavam prontos àquela hora, ou estavam, não sei. Ele tampouco. Chamou-me ao consultório, mediu-me a pressão e a temperatura e me fez algumas perguntas, sempre insistindo em perguntar se eu estava me sentindo bem, afinal. Respondi que sim em duas das três vezes e ele concluiu, então, que eu devia ir embora.

Saí pela porta da frente do hospital, cambaleando como quem sai de uma festa sozinho. Desci o morro com cuidado para não tropeçar e enfim cheguei em casa. Houve um tempo em que morar perto do hospital já foi considerado um conforto. Tomei um banho rápido, porque ainda me sentia tonto de ficar em pé, e caí na cama para dormir ainda mais. Quem me curou foi o tempo: amanheci melhor no dia seguinte.


13
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 15:32link do post | comentar | ver comentários (3)

“Severo Snape” (nome fictício) era proprietário de uma empresa que ia razoavelmente bem. Era, no entanto, dotado de um ego maior do que sua grandeza e de uma insegurança que lhe obrigava a reinar sozinho. Por isso tratava de aproveitar-se do poder de todas as formas, submetendo seus empregados a um regime de intimidação e represálias, cuja principal finalidade era impedir que algum deles se destacasse mais que o proprietário. Era também amante de três funcionárias (e supostamente de um funcionário também). Seus relacionamentos se misturavam ao serviço, pois dava privilégios a quem lhe dava e distribuía todo tipo de benesses e influências e aumentos de forma a privilegiar seus protegidos.

Como o clima na empresa era ruim, a rotatividade dos funcionários era alta. Toda semana havia alguém que não aguentava e se demitia ou não suportava mais e era demitido. Toda semana chegavam novos funcionários e a empresa ia seguindo. Não crescia, mas continuava. Ela era grande o bastante para ser atraente e havia sempre jovens ingênuos dispostos a entrar. Não perdia dinheiro, mas faturava menos do que poderia.

Um dia Severo desapareceu. Surgiram boatos de que teria sido forçado a vender a empresa para pagar dívidas. Reapareceu dias depois, usando o humilde uniforme dos auxiliares de escritório, para espanto de todo mundo. Que obra do destino obrigara o antigo ogro a arranjar um emprego reles na própria empresa que um dia fora sua?

Os primeiros dias foram de incredulidade. Ninguém acreditava que fosse verdade. Na surdina todos comentavam com cem por cento de certeza informações de que tudo não passava de uma farsa. Mas à medida em que foram se acostumando com a situação, os empregados começaram a se sentir mais à vontade. Mesmo os mais céticos passaram a duvidar do ceticismo. Por fim, algumas das vítimas do tirano caído aproveitaram para ir à forra do, xingando-lhe de nomes ou armando-lhe arapucas diversas. As suas amantes se recusaram: sem o dinheiro o homem está reduzido à sua idade e à sua feiúra. Seus poucos amigos, embora inicialmente fieis, começaram a ficar incomodados com o fato de que, mesmo empobrecido, ainda esperava ser tratado com a mesma deferência de antes, chegando ao cúmulo do “você sabe com quem está falando?”. Como antes, quando obtinha o respeito pelo terror.

Depois de nove dias o clima na empresa era de balbúrdia. Todas as regras um dia estabelecidas por Severo eram ativamente quebradas. A disciplina tinha desaparecido. Para tentar defender a empresa os diretores amigos de Severo tiveram que tomar atitudes com as quais ele não poderia concordar, uma delas dizer que se ele não se enquadrasse como empregado e fizesse o seu serviço teria de ser demitido.

Foi outra semana de caos generalizado. Mas, enfim, as coisas pareciam encaminhar-se para uma solução. Então, subitamente, ele apareceu na cadeira da presidência de novo.

Começou a caça às bruxas. Demissões em massa. A linha de montagem ficou paralisada por falta de braços enquanto eram contratados novos empregados, ou treinaods em suas funções. Diretores foram escorraçados simplesmente porque não haviam sido subservientes ao auxiliar de escritório Severo durante as três semanas.

«Eu fiz tudo isso para testar quem seria fiel a mim na adversidade — ele dizia — e descobri que ninguém foi.»

Sozinho em sua sala, sem amantes e sem amigos, Severo voltou a tiranizar a empresa, sem se importar se isso era bom ou não para os negócios. Na sua solidão a própria sobrevivência do negócio se tornava secundária. A conjuntura não lhe dizia nada, apenas acreditava que tudo ficaria bem no fim:

«Meu negócio cresce sozinho. Essa empresa ganha dinheiro praticamente sem precisar fazer nada.»

Ao fim de dois anos a empresa hoje possui imensos estoques de produtos que ninguém quer comprar, a sede está cada vez mais arruinada e pouca gente aparece para realmente trabalhar. Severo não vai à linha de produção, apenas crê que os milhares de empregados registrados estão fazendo bons produtos e os novos diretores, raramente presentes, estão sempre em viagem de negócios, fazendo preciosos contatos.

Alguém lhe recomendou que usasse óculos, ele finalmente acreditou que poderia estar enxergando errado, e saiu pela porta da fábrica um dia, grisalho e tateante, em busca da visão perdida, deixando para trás o deserto de um antigo sonho, as ruínas de coisas que poderiam ter sido.

Requiescat in pacem, Severus.


18
Jul 11
publicado por José Geraldo, às 22:30link do post | comentar | ver comentários (1)

Uma semelhança entre a realidade e sonho é que as duas coisas não tem começo. Da mesma forma como não nos recordamos das primeiras cenas de um sonho, tampouco nos recordamos das primerias coisas que vimos, sentimos, cheiramos, bebemos, pensamos. Cada um de nós vive como em um interminável sonho, do qual talvez acordemos um dia bêbados do cansaço da noite. E se morrer em meu sonho, o que acontecerá comigo na invisível cama na qual, calmamente, eu repouso?

Eu não sei exatamente quem sou. Venho me tornando, esta é a verdade. A minha vida teve muitos episódios estranhos e a primeira coisa de que me lembro é um pijaminha de macia flanela, estampado com figurinhas desbotadas de animais. Estava vestido assim, calçado de um par de sandálias fortes de couro e montado em um velocípede de metal. Não lembro bem o que acontecera antes, mas sei que, por uma razão qualquer, naquele dia fresco de inverno tropical, eu saí pela estrada afora de velocípede, empregando toda a força das minhas pernas gordinhas. Tinha dois anos de vida e muita vontade de ver o mundo, ou de fugir para algum lugar além das montanhas que tapavam o horizonte, como um mar de mãos erguidas com os dedos contra o céu.

Lembro dos odores desse dia: eu cheirava fortemente a leite fresco e a estrada possuía um aroma penetrante de capim gordura. Lembro do cheiro do ar quente cortando as minhas narinas com o esforço das pedaladas. Mas não me lembro da razão pela qual saí de casa, não lembro tampouco aonde fui. Houve um tempo em que eu lembrava, mas hoje não consigo mais discernir exatamente que lembranças são de fatos realmente que aconteceram, quais de coisas que eu somente imaginei. Então esse episódio aparece cortado na minha mente, como uma figura retirada duma revisa: eu era menino e queria enfrentar a estrada e pus toda minha força nos pedais de um velocípede. Segundo a minha mãe eu cheguei à casa da vizinha, que me deu uma broa de fubá e mandou um empregado chamar meu pai para buscar-me. Pode ser verdade. Pode não ser. Eu fui muitas vezes à casa de Deuslira, não lembro da broa de fubá, não tenho motivos para duvidar de minha mãe, mas a memória é traidora em qualquer idade.

Eu estive pensando em maneiras de começar a contar a minha história, essa que todas as pessoas acham que está contada em minha ficção. Pensei durante semanas e não tinha uma maneira de começar. Ontem, então eu me dei conta da semelhança que há entre a vida e o sonho, percebi como as minhas memórias mais antigas aparecem tênues como sonhos, quase derretendo com o passar dos dias. Já tive uma lembrança muito mais rica deste antigo e enigmático dia, hoje só lembro do pijama de flanela, o velocípede, os cheiros de leite e de capim gordura. Nem sei mais da cor do velocípede. Talvez se demorasse mais quatro anos para contar isso para alguém, nem teria mais o que contar. Eu tinha pouco mais de dois anos quando saí de casa vestido apenas com um pijaminha e pedalando um velocípede de metal. Hoje para sair de casa tenho necessidade de levar tanta coisa que a força de minhas pernas parece muito menor do que a que eu tive naquele dia.


07
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 17:00link do post | comentar

“O passado nos condena, Ismaël.” Ainda posso ouvir rasgando minha alma essas palavras proferidas pelo velho, com seu porte de capitão Ahab, como se estivesse à armurada de um velho navio contemplando o mar absoluto, à espera de alguma incompreensível fera. Chamo-me realmente Ismaël, mas ele não se chamava Ahab, e não estávamos embarcados em navio algum, mas perdidos nas montanhas poeirentas do Teto do Mundo, fugitivos da impiedosa inquisição de um inimigo invisível e distante, quase incompreensível.

Eu nasci longe desta terra triste em que estou morrendo. Voei sobre o mar e cruzei desertos e florestas para chegar até aqui e poder ouvir as palavras do velho profeta. Sou parte de um grupo de escolhidos, eu levo a morte estampada na testa, em verde, estou pronto para ela, como um kamikaze nos mares do Oriente. Apenas não sigo imperador algum deste mundo. Não tenho a permissão de chamar o velho, nosso líder, pelo seu nome verdadeiro. Eu o chamo apenas de “chefe” e entre nós, os puros, criou-se o hábito de chamar-lhe “Ahab”, em homenagem a outro homem, este fictício, que também enfrentava o desconhecido de peito aberto, como o velho o fez, mais de uma vez.

Nossa luta deixou marcas na alma e no corpo. Perdemos tantos amigos que nem contamos mais. Preferimos ser amigos apenas de Deus, porque ele não será nunca morto pelo inimigo. Quem tem amigos demais não quer morrer, o herói precisa da mais absoluta solidão. E estamos sozinhos nestas montanhas desoladas, e nem sei exatamente porque chegamos a tal situação. Vivo isolado aqui há tantos anos que perdi a noção da realidade. Desde que sigo “Ahab” eu não leio mais jornais e nem tenho acesso ao rádio. Somos ascetas, buscamos a pureza, esperamos que a morte nos encontre prontos. Heróis não têm tempo a perder com as pequenezas do mundo. Suponho que Ahab saiba mais sobre o inimigo do que nós, mas nos poupa disso. Talvez tivéssemos menos esperança se soubéssemos exatamente contra qual Moby Dick estamos tocaiando as montanhas, como se fossem as ondas do mar. Tal como a lendária baleia, o inimigo está além. Não vamos até ele, é ele que nos vem.

Ahab não tem esperanças, tem um destino. Tal como todos nós, ele também sabe que vai morrer cedo. Preparou-se para isso. Teme isso. Seu corpo é frágil e precocemente encurvado pelo peso de uma idade que ele não tem. Mas a sua alma é como um sabre de aço, afiada e luzidia, inatacável pela poeira ou pela umidade, e brilha sob o sol quando ele nos fala. De sua boca saem palavras calmas, confortantes. Quando ele fala nós esquecemos que estamos precariamente sobre a terra, tal como o Pequod singrava precariamente as ondas bravas do grande mar. Ahab nos inspira a dar de nosso sangue para forjar o grande arpão com que trespassará o coração do inimigo quando ele saltar sobre nós. Morreremos com a queda de seu cadáver, e isto será glorioso.

Seguimos Ahab pelos desertos, como marujos de uma expedição sem rumo pelos sete mares. Estivemos em tantas cidades que nem pude guardar seus nomes. Cada nova cidade era um amigo a menos. Ahab, meu herói e minha inspiração, é um profeta cujas palavras não têm mais trazido novos conversos. Noss grupo diminui e nossos inimigos se tornam numerosos. Vivemos ultimamente de favor, quase como prisioneiros, em uma casa que nenhum de nós escolheria. “Nosso passado nos condena, Ismaël” — as palavras do velho ecoam na minha cabeça com sílabas de metralhadora.

Era de madrugada quando acordei sobressaltado. Havia um silêncio pesado e amordaçante no mundo. As montanhas dormiam sufocadas como se uma manzorra enorme estivesse apertada sobre a boca da cidade. O ar arranhava nas narinas e eu tinha uma vontade de chorar ou de sair correndo. Nada disso era incomum, eu vinha sentindo todas essas coisas com relativa frequencia. Alguns chamariam isso de covardia, outros de arrependimento, outros ainda diriam que eu estava voltando à racionalidade. Penar nessas montanhas, sem um sentido definido, mesmo na presença constante de um profeta, é algo que abala a fé do mais firme dos crentes.

Eu não sabia ainda exatamente o que estava me incomodando naquele silêncio, que parecia diferente, como se vibrasse algo monstruoso, em uma faixa inaudível pelo homem, mas sensível pela alma que há dentro do homem. Saí ao terraço para tomar ar, mas era inútil até isso: o ar estava quente, as montanhas sopravam opressão e as luzes das casas pareciam delimitar as cercas de uma prisão. Respirei com força, violentando os meus pulmões com aquele ar cortante e grosso, depois entrei, resignado, e fui procurar um lugar quieto onde dormir.

No térreo encontrei Fátima, ainda de pé, preparando bilhas de água fresca para levar aos nossos quartos, para a purificação matinal. Estava vestida de negro e tinha os olhos tristes como de costume, como os de alguém arrancada de toda perspectiva de felicidade e atirada naquele beco sem saída entre as montanhas. “Nosso passado nos condena, Ismaël”. Tive pena de Fátima. Gostaria de ter sido seu marido, se ainda houvesse tempo no mundo para constituir famílias e criar filhos. Acredito que ela também teria gostado, muito embora para isso devêssemos ter fugido, de Deus e de nossas fidelidades. Viver como renegados, em uma pátria alheia, um pensamento mais agradável do que morrer nas montanhas da Casa da Paz. Viver…

Saudei Fátima respeitosamente e saí ao quintal. Apesar do calor que fazia e da quietude opressiva eu me sentia bem. Saudei o garoto de olhos verdes que estava na guarda. Não sabia o nome daquele curioso espécime. Ninguém sabia. Ele nunca o dizia a ninguém. Soubemos apenas que viera do leste, como tantos, e que não tinha esperança alguma neste mundo. Somente os que haviam perdido a esperança a vinham sorver da boca de Ahab, que lhes dava algum motivo para viver ainda, à espera do instante de glória.

— Quer que eu fique em seu turno, garoto? Não estou conseguindo dormir mesmo.

— Não carece, não, Ismaël. Nenhum de nós vai precisar amanhecer descansado mesmo… Então que pelo menos eu cumpra meu turno fielmente, como deve ser. Por que você não sai para um passeio, para relaxar um pouco?

Dei de ombros, conformado, e me preparei para sair. Aconteceu algo, porém, que me fez estacar ao portão, congelado de medo: uma sombra pareceu cruzar a fímbria de céu despejado que aparecia entre as montanhas ao sul. “A morte por lá voa como um dragão assombrando os céus, Ismaël.” Não foram palavras de Ahab, mas de meu falecido pai, no dia em que lhe contei de minha vontade de seguir o caminho dos heróis. Eu não me importei naquele dia porque tinha pressa de morrer, para esquecer toda culpa, todo arrependimento e toda frustração. Mas aquela forma fantasmagórica entre, como o rabo de dragão derrubando as estrelas do céu, me fez tremer e chorar. Era ela que vinha, e eu não estava preparado. Eu tinha me acovardado.

— O que foi isso, Ismaël? — perguntou o garoto de olhos verdes.

— Eu não sei, garoto, só tive um poderoso pressentimento de algo muito ruim.

O garoto me encarou, com medo no olhar, e disse:

— Vamos fugir, Ismaël.

Eu não fugi com ele. Entrei correndo pelo portão, enquanto ele abria o portão que dava para os arrozais. O som surdo do voo do dragão se aproximava, desorientando-me. Encontrei Fátima descendo dos quartos, depois de entregar as bilhas de todos os homens. Agarrei-a como pude, pressionando minha mão sobre sua boca com toda a força que conseguia ter, enquanto ela esperneava, desesperada por gritar, como se eu a estivesse prestes a estuprar. Subi com ela ao meu quarto, no segundo andar, e me tranquei, ainda segurando a boca trancada, porque meu coração pulava loucamente querendo cair dela.

Aliviei lentamente a pressão dos dedos sobre os lábios de Fátima. Ela não gritou quando os removi. Não gritou porque também ela conseguia distinguir o ruído sobre nós, algo indistinto e maligno. Os cães dos vizinhos começaram a ladrar furiosamente. Sussurrei-lhe baixinho aos ouvidos:

— Não sei o que está acontecendo, meu amor, mas eu vou tentar lhe proteger de alguma forma.

Ela assentiu com a cabeça. Apenas murmurando um rogo entre os dentes doloridos, para que Deus teria piedade dela e que eu poupasse sua pureza. Os instantes foram passando, o ruído foi persistindo e eu continuei sem atacá-la. Ela foi aos poucos entendendo que não se tratava de uma ameaça de violação.

Lá fora se ouviram ruídos de disparos repetidos. Alguma arma automática moderna. Tiros isolados de fuzil e um longo grito agoniado, que terminava morrendo num engasgo:

— Deus é grande, Ismaël. E eu me chamo Khali&hellip

Passos soaram apressados pelas escadas. Mais tiros. Portas arrombadas como se fossem de papelão. Os cachorros lá fora latindo. Mais tiros. Poucos gritos. Os heróis não morrem berrando como cabritos.

Os invasores gritavam apressada e nervosamente. Eram estrangeiros e impacientes. Nem sempre esperavam a resposta para atirar. Uma mulher soluçou e foi calada por um tiro no meio de um grito que não consegui distinguir.

Então eu percebi o quanto eu estava exposto ali naquele quarto. Embora a porta dele ficasse meio oculta debaixo do lance da escada, dificilmente escaparia da vista dos invasores se eles simplesmente não fossem estúpidos e desastrados. Ninguém sobrevive contando que o inimigo será estúpido e desastrado. Olhei para o rosto de Fátima. Ela estava pálida e seus lábios, machucados pelo peso de minha mão, tremiam num choro silencioso. A pobrezinha queria chorar, mas não tinha coragem nem para isso.

Era preciso sair do quarto e encontrar um lugar seguro. A primeira coisa em que pensei foi em saltar para o chão. A janela do segundo andar não era tão alta que nos quebrasse as pernas. Só havia um problema: ela ficava fora do quarto. Por isso era preciso pensar rápido. O lado bom era que ela ficava sempre aberta para ventilar a casa, e havia de palha de arroz e grama seca ao longo de todo muro. Com alguma sorte escaparíamos com alguns arranhões apenas, se Deus nos permitisse cruzar três metros de corredor e saltar por ela sem que os invasores vissem.

Abri a porta de uma vez: não adianta ter medo numa hora de desespero. Se houvesse algum maldito cão infiel do lado de fora ele atiraria na porta assim que eu girasse a maçaneta. Só não devia fazer barulho, e isso não fiz porque a porta era nova e não rangia. Lá estava a janela: um metro e vinte por um e dez. Suficiente espaço para pularmos sem segurança, mas com facilidade, mesmo Fátima estando um pouco acima do peso.

Não dava tempo para pensar em mais nada. Não havia plano alternativo. Não era possível nem mesmo explicar à coitada o que eu estava pensando em fazer. Só podia contar que ela fosse esperta o bastante para entender. Saí correndo pela porta, arrastando-a atabalhoadamente pelo braço, enquanto ouvia os passos dos inimigos que trotavam pela escada acima, vindo para o segundo andar. Saltei no vazio, esperando morrer ou miseravelmente quebrar as pernas ou ainda ser esmagado pelo peso de Fátima caindo sobre mim. Nada disso, felizmente. Caímos os dois sobre a palha e rapidamente eu me envolvi nela, aproveitando que a cor de minha roupa era clara. Não tendo a mesma sorte, Fátima mostrou agilidade para correr até as sombras das árvores e se ocultar atrás do tronco de uma delas.

Eu não tinha nem acabado de cair quando tiros se ouviram no segundo andar. Algumas balas saíram pela janela, faiscando como dardos de Satanás. Cães ladravam novamente em volta, mas nenhum naquela estrada, nenhum que viesse me farejar. Um a um os homens que defendiam o chefe foram caindo. Mas lutaram bravamente. Foram muitos tiros, de dentro e de fora. Uma das aeronaves inimigas girou em parafuso, com o motor atingido e o tanque de combustível vazando, e caiu no quintal. Poderia ter sido meu tiro a derrubá-la: ninguém era tão bom quanto eu em artilharia quando fora veterano na guerra. Mas eu estava acovardado, cansado de morte, cansado de tudo, mas não de viver. Então os tiros pararam. Os bravos estavam todos mortos, apenas o covarde respirava, escondido no meio de palha, capim seco e esterco de vaca.

Os estrangeiros tagarelavam. Eu não conseguia entender o que diziam, mas era evidente a sua excitação. Eu não imaginava o que poderia ter acontecido, não até ouvir a própria voz de Ahab, cansada e conformada de uma maneira que eu nunca sonhara que ele seria capaz de dizer, quase num gemido subserviente:

<— Então está bem, vocês me pegaram, finalmente. Aqui está o seu troféu, malditos.

A ira densamente espremida naquelas palavras me cortou o coração. Não era somente eu, o covarde, que sobrevivia. Ahab estava destinado à humilhação. Não morreria na tentativa quixotesca de exterminar o monstro que assombrava os mares. Teria simplesmente seu Pequod arrestado em um porto qualquer. Terminaria seus dias pensando na liberdade de Moby Dick, mas ele preso e impotente, um homem precocemente vergado, sofrendo de rins, de varizes e de cáries. Não há heroísmo algum em morrer de velhice num mundo em guerra. Mesmo uma velhice de prisioneiro.

Desceram com ele pelas escadas. As botas dos inimigos soavam como tambores. Ahab gritou-lhes algo em sua língua. Eles não responderam. Gritaram-lhe de volta, e riram. De repente ouvi uma longa rajada de tiros, e não ouvi mais a voz de Ahab, a não ser em meus sonhos.

O dia amanheceu bonito nas montanhas perfumadas de papoula e bétel. Fátima e eu caminhávamos com cuidado, sempre no rumo norte, rumo ao teto do mundo. Ela não falava nada. Ela sabia que eu era um covarde, mas não me acusava porque não queria estar morta. Estava grata por sua vida, grata demais para me achar um covarde.

— Na Índia, querida, na Índia seremos felizes. Diremos que somos sikhs e nos deixarão ficar. Diremos que estamos fugindo da perseguição dos fanáticos.

Não me lembro quantas vezes repeti isso, na esperança de que falando muitas vezes a mesma esperança eu conseguisse condensá-la, como se fosse possível extrair esperança do ar e engarrafá-la. Mas eu sabia que as coisas seriam muito diferentes. Sabia que provavelmente os guardas indianos nos matariam se tentássemos chegar à fronteira, sabia que se um dia puséssmos os pés do outro lado Fátima me abandonaria. Mas eu queria viver, com mil diabos! Por que saltara por aquela janela? Para entregar-me ao punhal vingativo de um guarda sikh que olhava por sobre a fronteira com sangue nos dentes de tanto morder por dentro da bochecha na ansiedade de purgar a terra de nossa raça? Para ser deixado velho e mendigo nas ruas de Amritsar, comendo a refeição da caridade que os meus inimigos do passado distribuíam aos pobres? Não, não era para nada disso. Por isso, secretamente, em vez de me dirigir à esperança que jazia ao leste, meus passos sutilmente me levavam, como seu fosse atraído por uma lâmpada, rumo à maldição e a vingança, rumo às terras controladas pelo ódio. Eu era um guerreiro ainda. Ainda havia tempo para purgar minha covardia. E Fátima seria minha, mesmo que à força.


10
Nov 10
publicado por José Geraldo, às 23:33link do post | comentar

Texto classificado para a fase final do II Festival Cultural Banco do Brasil.

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— Mulher, não é justo.

— O que não é justo, Valdir?

— Tinha que chover? Justo hoje, agora!?

A mulher deu de ombros, conformada:

— Paciência. Marque para outro dia.

— Como assim? «Marque para outro dia»? Vendi convites, reservei bar. Não dá para desmarcar em cima da hora e «marcar para outro dia». Vai ser um fiasco.

— Então enfrente, homem.

— É o que vou fazer.

Então Valdir deixou a mulher em casa com as crianças e se enfiou na capa de chuva, abotoou a gola bem firme e botou debaixo do braço o livro de partituras. O violão, esse já ia devidamente ensacado às costas.

— Vai a pé, Valdir? Olha a chuva que vem aí!

— Vou sim. Perdido, perdido e meio — ele respondeu, enigmaticamente.

Afinal, Valdir José da Silva, sambista interiorano, paladino da cultura nacional, não teria medo de qualquer chuva. Não na noite de lançamento do seu disco, gravado ao preço de quase um carro. Tinha de chegar ao bar, talvez houvesse gente à espera. Mesmo que não houvesse, tinha de estar lá.

Quando chegou à rua o coração já estava apertado. Não de medo, mas de decepção e tristeza. O céu coriscava e as nuvens gordas regurgitavam trovões e ameças. Um ventinho frio soprava do sul. As primeiras gotinhas, ainda leves, caíam de um céu que parecia pronto a rasgar-se num dilúvio.

Valdir apertou o passo, pensando nos fãs que talvez esperassem. Andava apressado, por uma rua imensa de tão vazia, povoada de corajosos cães que aproveitavam a última chance de revirar lixeiras e por estúpidos carros que não sabiam aonde esconder-se. Um relâmpago mais forte arrebentou no céu, de um canto a outro, trazendo um rugido áspero. Estava escuro e o ar cheirava a umidade e a elétrons.

Entrou na Avenida, rezando para o rio não subir com a chuva. Felizmente o rio era grande e vinha de bem longe. Mas a avenida, mesmo assim, virava outro rio se chovesse muito — e a chuva de verão prometia muita água. Enquanto pensava nisso a tempestade veio, grossa e gelada, batucando nos telhados como um milhão de bolinhas de gude, molhando até a alma de quem estava na rua.

Chegou mais triste e molhado que um pinto sem mãe. Os sapatos vazavam pelas solas que já descolavam, a barra da calça tinha meio metro de uma mancha de umidade escura que esfriava as canelas. Olhou em volta, sentindo a boca amarga como se tivesse andado mastigando boldo: não havia nenhuma viva alma. Estaria, aliás, bem contente se houvesse alguma alma morta pelo menos, mas nem isso.

Chovia a ponto de se poder perguntar se alguém fizera uma arca. A enxurrada vermelha descia dos morros e afogava a avenida. Carros passavam esguichando água a dois metros de altura, entortando na correnteza. Os coriscos faiscavam de todo lado, transformadores explodiam e as árvores loucamente balançavam seus braços contra o céu. Mas sobre o palco de madeira, calmamente, Valdir Silva desembrulhava seu violão, depositava o livro de partituras e abria o caixote cheio de discos que havia deixado lá durante a tarde, após o último ensaio.

Depois de pigarrear para tentar ouvir o eco no salão vazio, folheou o álbum de partituras e achou ali alguma inspiração. Começou a cantar um clássico. Clássicos fazem bem numa hora destas. Toda vez que terminava um verso, ouvia outro trovão. Cada hiato trazia um relâmpago, cada dedilhado respondia ao chuá-chuá da tempestade.

Valdir chorava. A garganta seguia firme, os dedos não se enrolavam, mas os olhos não aguentavam a decepção. As cinquenta mesas, cobertas de impecável branco, encaravam, cruéis, os seus olhos que já começavam a empanar com a idade.

Mas a chuva passou, meia hora ou quarenta minutos depois, tempo apenas o suficiente para acabar com o programa. Deixou no ar aquele delicioso cheiro de terra, e de sangue. A enxurrada foi passando, junto com a sexta canção. A sétima encontrou lá fora o silêncio, começando a ser cortado pelos primeiros carros. Valdir parou de cantar, pegou o copo de água mineral, como se estivesse diante de uma grande plateia, e ligou o violão à tomada.

O dono do bar se aproximou, tão respeitosamente como quem visita um defunto:

— Seu Valdir. Se o senhor não se importar, vou abrir para o meu público. O senhor sabe, eles talvez não venham mais…

Valdir, impotente, assentiu com a cabeça. Enquanto o dono do bar se afastava par ir dispensar o serviço de portaria e levantar as portas, contemplou as cinquenta mesas, com suas impecáveis toalhas brancas. Continuou cantando, cada vez com a voz mais branda e o peito mais estreito.

Chegaram alguns fregueses. Desconhecidos que ocuparam a mesa que seria da Ana e do Alfredo, colegas de agência. Chegaram mais pessoas, frequentadores normais do lugar. Sentaram-se na mesa do José Carlos e da Rute, vizinhos do prédio. Apareceram estudantes da faculdade, gente que nunca vira, com quem nunca falara. Trataram de juntar as mesas que Valdir tinha reservado para Jurema e Miguel, que tinham uma loja no mesmo prédio em que ele trabalhava de segunda a sexta feira. Valdir cantava para os desconhecidos, consolando-se em ter, pelo menos, quem o ouvisse — e eles o ouviam, distraídos, bebendo suas cervejas.

Era impossível continuar. Mas ele continuava desfiando sambas melancólicos de Cartola, Clara Nunes, Paulinho da Viola e Jackson do Pandeiro. Lá pelas nove e meia, o salão estava quase cheio. Poucos rostos reconhecíveis, nenhum realmente familiar. Todos ocupados com suas conversas e com suas cervejas.

Terminou a décima canção, ouviu aplausos tímidos. Começou outra, acompanhada de um ligeiro murmúrio. Terminou-a ainda diante de palmas que tinham medo de se ouvir.

O dono do bar se aproximou de novo. Pediu licença do palco. Valdir humildemente curvou a cabeça, preparado para ser expulso. Mas quando já se empertigava para empacotar o violão, seus ouvidos o fizeram erguer de novo o rosto:

— Amigos, como vocês sabem pelo cartaz lá fora, hoje é o lançamento do primeiro disco de Valdir Silva, cantor e compositor de nossa terra, que está aqui se apresentando para vocês e autografando sua obra para os que vieram prestigiá-lo. O show vai ser interrompido agora para os autógrafos, mas ele vai retornar mais tarde para vocês, se vocês aplaudirem o suficiente! Agora, aplausos para nosso artista, Valdir Silva!

Aplausos soaram, densos como a chuva. Foi só então que Valdir se deu conta de que o lugar estava quase cheio. Era a hora em que normalmente o bar abria para o movimento regular. Aquelas pessoas que ali estavam, nenhuma especialmente convidada para assisti-lo em sua grande noite, aplaudiam com a sinceridade dos desconhecidos. Valdir chorava ainda, mas não mais de decepção ou revolta contra deus e o mundo. Chorava a calma alegria dos desavisados que se surpreendem consigo mesmos.


28
Out 10
publicado por José Geraldo, às 21:35link do post | comentar
a bolinha é de papelpapel é de madeirade madeira é a estacaque mata o vampiro.mas como na bolinharesta pouco da madeirasó causa um mal estar,uma vontade frouxa.a bolinha justiceirakriptonita improvisadabala de prata precisamatou a candidatura.

19
Set 10
publicado por José Geraldo, às 19:35link do post | comentar

De qualquer ponto da cidade se pode ver a Montanha com sua ampla face de granito, uma larga presença a esconder o horizonte. Seu cume coberto de ralas árvores e rochas menores não é tão imponente, a não ser por estar tão alto. Subindo imponente como uma muralha, firmeza de séculos, sem flores nem poemas, é mais que um acidente geográfico, tornou-se parte da personalidade de Santa Cruz do Monte.

Ao pé da montanha cresceu a cidade, contemplando o granito e se agarrando à lama incerta do vale do Pardo. Santa Cruz do Monte sempre foi lembrada como uma cidade à sombra de uma montanha, não pelo rio nem pela floresta. Formou-se à base da Montanha como outras se formaram ao longo de rios, à margem de lagos ou no encontro de estradas.

Os primeiros habitantes, gente religiosa e nem sempre imune a lendas, aprenderam dos índios que o imenso rochedo guardava mistérios e era o lar de seres sombrios que não andavam pelos caminhos de Deus. Houvesse outra opção eles teriam mudado seu pouso para mais longe, mas a lógica do mundo não obedece aos impulsos da fé. Aquele lugar que transpirava a paganismo era um marco de referência visível desde muitas léguas, por ele as tropas de burros que varavam o sertão do século XIX entre o Rio de Janeiro e o interior de Minas Gerais precisavam orientar-se. Ali os tropeiros acampavam, reuniam-se a contar histórias e a fazer seus negócios. Por isso nasceu a cidade: a serviço das tropas, fruto do comércio desafiando as superstições e os séculos fechados nas matas ainda virgens do Sudeste de Minas, que um dia viria a ser chamado de Zona da Mata justamente por isso.

A gente que ia ficando era uma gente sem grande anseio de aventuras: eram pessoas que ganhavam suas vidas pacatas vendendo e comprando em torno das rotas do sertão. Lar de gente simples, o lugar era abrigo fértil para velhas lendas e superstições, facilitadas pela presença feminina das matas e pela proximidade intensa daquela gigante rocha de fúnebre aspecto.

Da inevitabilidade da convivência surgiu cedo a necessidade de conquista. Os homens que viviam junto àquele grandioso monumento natural não se sentiam tranquilos ao olhar para cima e ver apenas na crista do morro a fímbria do céu e as cores das nuvens. Por isso trataram de arranjar-se com Cristo para apor sua marca visível no sertão, aquela cruz de madeira negra que teve de ser tantas vezes refeita.

Não existem histórias de como ou quando pela primeira vez desbravaram as perigosas encostas ocidentais, através das quais, unicamente, se pode subir, a custo e ao longo de quilômetros, até o topo da Montanha. Não existem estas histórias, mas imagina-se que tenha sido há muito tempo que alguém teve a ideia de estender os caminhos até o cume e lá plantar uma cruz bem grande, visível desde muitas léguas, uma intervenção divina na paisagem pagã e natural do interior.

Não se sabe se foi antes ou depois da primeira capela, o que sabemos é que a primeira cruz estava lá muito, muito antes de alguém pela primeira vez deixar escrito algum relato, antes até de haverem resolvido mudar o antigo e terrível nome índio do lugar para o cristianíssimo Santa Cruz do Monte.

A fé daqueles homens rudes levou-os a cumprir estes desígnios, batizando a machado e a fogo a terra antiga e úmida, arrancando as árvores que vestiam a terra e expondo ao céu o vermelho de sua carne o negro de seus ossos de granito. No ano de 1917 a povoação, já chamada Santa Cruz do Monte, erguia um pequeno templo, que futuramente seria a paróquia de São Jerônimo e comemorava seu jubileu de diamantes. No alto da Montanha homens piedosos implantaram a marca definitiva da conquista daqueles sertões para a Igreja: o primeiro cruzeiro, simples estrutura de madeira enegrecida a fogo, obra tosca de marceneiros que não estavam acostumados a sutilezas, foi substituído por um potente e duradouro outro, gigantesco monumento feito de concreto e feiura, assentado sobre uma irremovível base de rochas prisioneiras do cimento.

A cruz, porém, como toda obra humana, foi pequena diante da imensa extensão que se descortinava desde a Montanha. Mesmo medindo cinco metros de altura e gastando mais cimento que muitas casas, só mesmo de muito perto podiam os viajantes perceber sua existência. Mas ainda assim ele dava aos habitantes a boa sensação de segurança no regaço do Senhor. Já haviam passado os antigos tempos em que os homens cruzavam com medo os sertões e as primeiras estradas já estavam riscando com suas cicatrizes cor-de-rosa a pele do país. Quando a catedral foi construída, décadas depois, a Montanha já não inspirava aquele velho receio e se transformara meramente em uma atração particular do município, apenas outro ponto a ser admirado pelos que passavam pela recém-construída rodovia.

Muito tempo passou e a cidade foi crescendo aos pés da Montanha, ocupou outros vales e outros montes, nenhum deles mais alto que a sombra dela. Com as décadas a paisagem foi se despindo de árvores, de pássaros, de brejos, daquele perfume doce úmido de mata. Ficou mais quente, predominou o cheiro impuro das pessoas e de suas coisas, de seus animais trazidos de longe. Vacas conquistaram as colinas, galinhas eram mais abundantes que jacus, camundongos competiam com as preás e mesmo as vidas das pessoas foram se normalizando, sua fala perdeu o jeito antigo e ganhou modismos trazidos pelo rádio, iguais aos que há em todo lugar.

A primeira vez em que vi a Montanha eu devia ter meus seis anos ou pouco mais ou menos. Lembro-me de tê-la acompanhado da janela do ônibus que me levava a Santo Antônio. Observei com maravilha nos olhos até que não fosse mais possível virar o pescoço. No caminho havia outras montanhas, havia serras imponentes e vales largos. Mas não havia nenhuma montanha majestosa como o Morro da Cruz. Por isso guardei cada detalhe de sua fisionomia, fui lembrando através da viagem e por muito tempo ainda pensava no tamanho daquela selvagem beleza que as crianças não entendem quando veem, apenas veem e lembram.

Ao longo dos anos passei ainda muitas vezes por Santa Cruz do Monte. Eu era uma criança pobre e doente e nunca pude passear muito, a não ser nas vezes em que ia a Santo Antônio consultar um médico famoso que dizia que eu tinha uma doença de nome estranho e fazia meus pais me darem muitos remédios de nomes compridos, um luxo que muitas vezes nos pôs em graves dificuldades financeiras mas não me curou.

Nunca entrava na cidade nessas vezes em que viajava — a não ser nas raras vezes em que dávamos o azar de embarcar num ônibus comercial. Minha mãe detestava quando isto acontecia porque a viagem demorava três horas ou mais, de tanto irmos parando em cada cidadezinha, em cada guarita de beira de estrada. Eu confesso que gostava, pois só assim podia ver ainda mais gente, ver mais lugares diferentes, às vezes até crianças brincando felizes. Nunca entendi porque a minha mãe sempre tinha tanta pressa de chegar. Para mim, e para todas as crianças felizes, a pressa ainda era um mau hábito que só o futuro ensinaria; naquela época eu ainda tinha tempo para ver as belezas do mundo em seu próprio ritmo.

No entanto, a minha infância infeliz, para minha felicidade, acabou por durar bastante tempo, pelo menos o suficiente para que eu conseguisse vir a ser feliz, embora não o bastante para que eu pudesse ser saudável. Ela acabou bem tarde, num belo dia em que descobri que namorar e montar robozinhos com pinos mágicos não eram atividades compatíveis…

Um dia um médico bem menos famoso descobriu que eu não tinha nenhuma doença de nome complicado, que não precisava tomar nenhum remédio de nome comprido. Ele dispensou-me de tudo aquilo e me permitiu fazer Educação Física pela primeira vez. Depois disso eu cresci, terminei os meus estudos e fui trabalhar. Minha vida passou a ser uma vida adulta e eu não tinha mais tempo para coisas tolas como enxergar a beleza do mundo. Piorou ainda mais depois que comecei a namorar. Tantas mulheres, tantos lugares para ir, tantas noites de sábado e nenhum tempo para olhar estrelas. Fui esquecendo as belezas velhas do mundo, as coisas trágicas e incríveis que existem desde sempre. Precisei ficar pobre para perder um pouco destas manhas e mumunhas de adulto e poder ver de novo o que há de bom em coisas simples.

Foi há poucos anos que a Montanha voltou a fazer parte de minha vida. Havia deixado um emprego de muitos anos e estava ganhando a vida como um simples professor contratado. Era uma vida com bem menos dinheiro, mas eu tinha bem mais tempo para pensar em coisas boas como amar, gostar de Deus e ver a beleza das coisas. Também acabei vivendo relações em vão, me esquecendo de Deus e outros medos de infância e enxerguei a fenomenal feiura que pode haver, especialmente nas cidades. Tive bons amigos nesta época, pude fazer com bem pouco dinheiro muita coisa que eu sempre sonhava e não tinha tempo. Aprendi a gostar de Guilherme Arantes e de gente que canta boas músicas, com letras cheias de sentido e melodias agradáveis aos cinco sentidos.

Nessa época eu tinha muitos empregos, nenhum que me prendesse. Um deles era justamente em Santa Cruz do Monte e ele me dava a chance de ir lá algumas vezes por semana, geralmente nas terças, quintas e sábados. Minhas idas repetidas, quase quotidianas, fizeram de Santa Cruz um lugar como qualquer outro. Por isso eu deixei de ver a Montanha com aqueles olhos maravilhados de quando eu era criança: eu passava tanto tempo lá, conhecia tanta gente de lá, fazia tantos lanches no bar da esquina olhando para a parede de granito que não via nada de mais naquela presença toda que lá estava a fazer sombra sobre metade da cidade, emparedando um lado do horizonte. E de repente a Montanha não era mais nada de estranho, de repente ela fazia parte da paisagem, como uma coisa qualquer em que ninguém quase prestava atenção. Nessa época também eu já sabia que a Montanha não era tão maravilhosa quanto fora. Não era mais aquela imponência virgem do passado: haviam derrubado a maior parte das matas, haviam feitos cercas que subiam pelas encostas íngremes, haviam posto postes, torres e antenas em sua crista alta, mais alto até que o cruzeiro. Essa visão de natureza profanada derrubava um pouco o poder de atrair que antes lá houvera.

Já não era mais sentido como aventura haver visitado o topo da Montanha. Na verdade eram bem poucos os jovens santa-cruzenses que não o haviam feito. Namorando ou para outras finalidades menos saudáveis e felizes, muitos subiam pelas estradinhas de terra que levavam ao cume para aproveitar a cada vez mais rara solidão de lá. Frequentemente viam-se faróis brilhando lá no alto quando era alta madrugada, indicando alguma travessura em curso. Nessas circunstâncias os pais se desesperavam querendo que as filhas já tivessem voltado para casa.

Naquele tempo ainda se usava ir de carro a lugares ermos para ouvir música e namorar. Parece que hoje já não ousam mais fazer isto, pois em cada lugar parece que pende uma insegurança, um clima de ameaça que não havia então. Ou talvez fôssemos apenas jovens e loucos, incapazes de enxergar perigos. Bastava entrar pela Avenida Getúlio Vargas e lá pela terceira ou quarta esquina chegava-se ao entroncamento da estrada que, sabíamos, subia até lá em cima, a estrada por onde todos os carros passavam rápido, tarde da noite, com os vidros erguidos mesmo no verão.

Um dia foi o meu carro que subiu por lá, mais ou menos no começo da fase louca de minha segunda adolescência. Dirigi pela estrada íngreme, estreita, empoeirada e deserta. Subindo sempre, até sentir a pressão do ar contra os tímpanos. O último relance de subida era perigoso, um escorregadio lance calçado de paralelepípedos, ainda por cima estreito de caber um carro só. A minha namorada respondia com risos a cada derrapada, no nervosismo alegre de estar numa aventura. Flávia tinha dessas coisas, talvez por isso eu gostava tanto dela: gosto dos que mudam o seu medo em respeito e usam de cautela para brigar contra os limites. Ao lado dela eu tive coragem de acelerar sem medo, hoje penso se faria de novo, numa noite úmida de sereno como aquela, junto a um barranco medonho como aquele. E eu não estava bêbado. Talvez só de amor.

Do alto uma visão quase que mágica: salpicadas pelo horizonte as luzes das cidades vizinhas rompiam o manto negro dos campos na lua nova. Uma, duas, três, quatro. Dependendo da transparência da atmosfera se poderia, talvez, contar mais delas. Pelo menos uma das cidadezinhas deixava transparecer a teia de ruas de um bairro. Dava para imaginar porque os primeiros brancos a andar por esses sertões tinham tanto receio.

A cruz de concreto não estava no cume, ao contrário do que pensávamos. Se estivesse, seria bem pouco visível lá de baixo. Por isso haviam-na colocado à beira do rochedo em um lance de descida da última escarpa do lado mais íngreme, abrindo seus braços brancos para saudar o vale amplo que de lá se abria. E ela que parecia estar contra o céu, posta no alto mais alto da Montanha, inalcançável e tão imensa quando vista de baixo, vista de perto era apenas um pequeno monumento de concreto, sem beleza nem imponência.

Foi muito boa a sensação de sentar no chão da encosta, acima do cruzeiro, sentindo um pouco como se estivéssemos acima de tudo e de lá pudéssemos contemplar um leque bem grande da superfície plana do mundo. Flávia teve naquele momento uma sensação parecida com a minha, parece que fomos crianças por algumas horas lá, ou anjos. Andamos por todo o terreno semiplano, coberto de pasto ralo, sob o escuro da lua nova. Víamos muito mais estrelas naquela noite sem lâmpadas, silenciosa e escura; não ouvíamos, além de nossos risos, nada que pudesse assustar. Eu sorri quando disse a Flávia que a felicidade é bem perto do abismo. Ela sorriu de volta e me chamou para bem perto da escarpa de trezentos metros pelo menos, de lá olhamos a cidade lá embaixo, parecendo tão murcha e adormecida.

Tivemos coragem de beijar por muito tempo, de fazer amor, de demorar por lá, de cheirar bastante o perfume imaculado daqueles ventos frios à beira do abismo. Mas não tivemos coragem de ligar o rádio do carro. Por mais bela que fosse a música, não seria mais bela que aquela oportunidade tão rara de escutar o silêncio.

Voltamos à Montanha ainda algumas vezes, cada vez mais fascinados por aquele escuro silêncio, lá mais perto das nuvens, longe das pacatas vidas das pessoas. Mas começamos a perceber que não éramos os únicos, e aos poucos fomos perdendo a coragem de ficar mais tempo, de sair andando pelo pasto admirando estrelas, de fazer amor no carro ouvindo a calada da noite. Nas últimas vezes nem tivemos mais coragem de chegar. Foi nessa época que fizeram as primeiras construções, para abrigar os instrumentos automáticos das torres de transmissão de televisão e de telefone.

Visitamos algumas vezes durante o dia, mas a mágica não era a mesma, parecia nem existir. Claro, se podia ver um horizonte enorme, uma luz intensa e as cores da distância graduadas como numa pintura da Renascença. Mas a imponência da montanha ficava menor porque não podíamos ver os fantasmas das luzes das cidades, porque não podíamos perceber que ali havia mais estrelas que as que víamos das janelas quadradas de nossas casas no vale.

Nessa época a Montanha perdeu seu resto de selvageria. Depois das torres de transmissão vieram as casas de fazendas e as cancelas nas estradas. Então puseram mirantes, construíram quiosques e fizeram do lugar um ponto turístico; o que quase sempre significa destruir o encanto e transformar a paisagem em um “cercadinho” para gente que não vem sonhar, mas gastar dinheiro. A beleza sempre é de graça, mas o turismo custa dinheiro.

O último golpe contra a montanha foi quando algum desses ricaços construiu sua mansão junto à escarpa, de forma a dominar o vale com sua feia imponência arquitetônica. Uma destas casas feitas para gordos fins de semana de churrascos, para a criação de cães de raça e para festas com mulheres ou amantes. Aquela construção feiosa, com suas telhas e janelas pseudo coloniais, apareceu lá em cima como um castelo medieval dominando uma planície. Para que a fizessem foi preciso cortar a trator um trecho plano na encosta, deixando uma cicatriz vermelha que desmoronou manchando o granito milenar, e foi preciso derrubar bastante da última mancha de mata para que da varanda o proprietário pudesse contemplar a paisagem, como um barão a vigiar os seus domínios.

Nesta época minha tristeza coincidiu com muitas coisas, com o fim dos dias de ingênuo amor com Flávia, breve intervalo infantil e feliz que eu pude ter de novo aos trinta anos. Cada vez que eu olhava para o alto e via aquela casa eu me sentia como se alguém houvesse invadido e destruído o meu mundinho, se assenhorado de meus antigos sonhos e me despejado deles. Aos poucos fui detestando aquela construção, mesmo sem nunca tê-la visto de perto e sem nunca ter conhecido o seu dono. Na verdade eu comecei a perceber que odeio cada coisa que muda o mundo, cada coisa que me lembra de que a vida passa, que os dias de inocência acabaram e agora tudo que me resta é ter momentos de beleza em meio a aridez do dia, flores brotando do calçamento, sujas da poeira, prestes a serem arrancadas pela primeira mão que passe.

E de repente vemos surgirem estas coisas mundanas e sem espírito, casas feitas segundo riscos de arquitetos que copiam de outros arquitetos, torres e antenas fabricadas com peças de montar que vêm de longe e são feitas, idênticas, em milhões de unidades. E percebemos que elas venceram com sua torpe e grandiosa monstruosidade, que conseguiram marcar com mais força a presença da mão humana que dominou e destrói aquele gesto de potência que Deus deixou no meio desta terra que um dia foi chamada de “sertão”.

Imperceptivelmente, porém, uma mudança maior aconteceu. Talvez um velho espírito que por lá vivia resolveu mudar-se, ou talvez morreu. Temos visto nos últimos anos que o granito já não é tão negro, que o verde das encostas desbotou em cinza. E neste último abril uma fenda se partiu na face do rochedo, uma lasca desprendeu-se e desceu a trovejar. Oficialmente dizem que a única vítima foi uma vaca infeliz. Sabemos, porém, no fundo de nós mesmos, que há outras vítimas pelo menos: a beleza do velho marco que já não resiste a ser domado como outra montanha qualquer e a velha graça de uma cidade ousada que o homem plantou no meio do sertão e que hoje é apenas uma cidade comum, até bem perto da civilização graças aos trens, às estradas e aos aviões.

Mas ainda há os que, como eu, olham para a parede de granito e veem na cicatriz da pedra que caiu a evidência de que a saudade não é inofensiva.

Leopoldina, 20 a 22 de julho de 2005


07
Set 10
publicado por José Geraldo, às 09:01link do post | comentar

Vão dizer que sou viúva da Ditadura só por eu dizer isso, mas a verdade é que tenho saudades dos antigos desfiles do Sete de Setembro, dos desfiles que havia quando eu era moleque de escola lá em Cataguases. Eram os tempos da Ditadura, sim, e muita gente sofria, mas eu era criança e não tinha que saber disso. O que me importa nessa saudade é que, naquela época, o Sete de Setembro era algo bonito de se ver, e não esse espetáculo desorganizado e deprimente que passa agora pela porta de minha casa.

O significado do feriado se perdeu: hoje em dia as crianças que estão lá marchando nem sabem o que estão fazendo porque praticamente não se ensina mais História na escola (hoje em dia você nem precisa ser professor dessa matéria para lecioná-la, segundo decreto de nosso digníssimo governador). Ninguém sabe que se está celebrando a Independência de nosso país, poucas pessoas sequer têm ideia de que “independência” seja algo importante e a maioria das pessoas que eu conheço venderiam a sua por um prato de lentilhas, cruas. Não é de admirar, portanto, que fiquem constrangidas, e não orgulhosas, de marchar pela rua no Sete de Setembro envergando o uniforme de sua escola.

O uniforme, aliás, é outra razão pela qual o feriado perdeu sua glória. Desde o fim da ditadura gostar de uniforme parece que ficou sendo um defeito de caráter ou um fetiche sexual de minorias. As escolas vão todas com uniformes muito chinfrins e muito iguais, em muitos casos encardidos pelo uso. Mas no Sete de Setembro de minha infância ninguém ousava sair no desfile com um uniforme que não fosse impecável: era preciso estrear um uniforme completo, novo, cheirando a sabão em pó e goma arábica. Mesmo as escolas “da plebe” tentavam se mostrar bonitas. A minha escola tinha o uniforme padrão das escolas estaduais mineiras — camisa branca e calça azul — mas a gente tentava melhorar a aparência sempre de alguma forma: um lenço verde-amarelo no bolso (sim, a camisa tinha bolso), botões azuis em vez de brancos, o tecido da calça em tergal em vez de brim…

Mesmo assim a gente invejava as escolas que tinham uniformes especiais. O Colégio Cataguases, com seus vistosos coletes vermelhos e suas calças pregueadas! O SENAI com seus jaquetões estilo cadete, com quepes de penacho! O Carmo, com suas boinas de pompom e suas camisas de mangas compridas! O Antônio Amaro, todo vestido de bege e cáqui! Nós nos sentíamos tão pobrezinhos por usar camisa branca e calça azul, tão comuns. Ficávamos depois de desfilar aguardando a passagem das outras escolas, invejando o dia em que estudaríamos lá.

Desfilar não era para qualquer um: era algo que intimidava. Intimidava tanto que era preciso convencer os alunos a aceitarem passar por isso. Os argumentos em geral eram na forma de pontos extras. Certa vez passei de ano por causa de um ponto extra obtido em Matemática graças ao Sete de Setembro (sim, no meu tempo ainda existia a reprovação, e ela era vista como falha do aluno e não como incompetência do professor). Desfilar intimidava porque era quase um rito de passagem, uma espécie de “baile de formatura” simulado: eram os machos mostrando seus penachos paras as fêmeas, uma espécie de dança de acasalamento em forma de marcha à frente pela avenida. Escorregar, tropeçar, dar uma topada ou perder o ritmo eram vergonhas que marcavam para todo o sempre.

Desfilávamos diante das autoridades e diante de um grande público, para o qual eram montadas arquibancadas de madeira ao largo da Avenida Astolfo Dutra. As arquibancadas ficavam lotadas, principalmente dos pais dos alunos que desfilavam, mas também de militares aposentados, patriotas de fim de semana e garotas querendo ver-nos em nossas vistosas vestes patrióticas. Desfilávamos cantando, para manter o passo firme no ritmo ditado pelos pulmões: “Nós somos da Pátria a guarda, fieis soldados por ela amados. Nas cores da nossa farda rebrilha a glória, fulge a vitória.” Alguns pervertiam esses versos para xingar os militares: “Os filhos da puta, os guardas, fieis ferrados, morrendo aguados. Nos cascos de suas patas rebrilha a gosma, foge a história”. Não se pensava em marchar ao som de música popular, como estão fazendo nesse momento lá fora. Muito menos ao som de música estrangeira. Afinal, é o Sete de Setembro e não o Quatro de Julho (que vai acabar sendo feriado do jeito que o pessoal anda lambendo as botas dos ianques).

Sabíamos que se alguém nos pegasse cantando isso haveria problemas. Naquele tempo ainda havia censura e histórias feias sobre o regime. Mas mesmo assim nós gostávamos da Pátria, que jogava futebol tão bem e era tão injustiçada na Copa do Mundo. E desfilávamos com orgulho nossos uniformes limpinhos, começando às sete da manhã e terminando às onze. Depois encontrávamos nossos pais no fim da Avenida e íamos comer pasteizinhos na Praça Santa Rita antes de ir para casa.

Hoje, bem, hoje ser patriota saiu de moda e uniforme é coisa de sauna gay. O desfile que passa pela minha porta tem uns poucos gatos pingados usando os mesmos uniformes do ano inteiro e caminhando aos tropeções, sem nem tentativa de marchar. Ninguém canta nada, a multidãozinha vai aos trancos e barrancos, tendo que ser praticamente tangida por uma professora, ou será pastora, através da rua. Pouca gente assiste, separada por uma mera corda e ninguém guarda no álbum com orgulho uma foto sua em uniforme de Sete de Setembro.

Eu não tenho nenhuma moral para atribuir a essa crônica. Não estou aqui para dizer que o mundo melhorou e nem que piorou, apenas desfilando minhas saudades e dizendo que hoje ninguém dá importância suficiente à Independência ou à Pátria para sequer comprar um uniforme novo para o Sete de Setembro.


25
Ago 10
publicado por José Geraldo, às 07:43link do post | comentar

Uma das noites que lembro com mais carinho é uma noite perdida no tempo, entre 1990 ou pouco depois, em que houve uma noite de música no teatro do Colégio, sob o pretexto de comemorar o Halloween — essa absurda tradição anglo-saxônica que nosso servilismo nos está levando a adotar. Pouco lembro do que aconteceu naquela noite, exceto que tocaram muito da boa estirpe de uma outra absurda tradição anglo-saxônica que nem o meu pretenso nacionalismo pôde evitar que eu adotasse — o rock’n’roll.

Depois daquele noite algo mudou dentro de mim, embora eu não saiba muito bem o quê. Algo ficou para trás, perdido e pendente, sem que eu trouxesse foto alguma de lembrança. E dessas coisas indefinidas é que se tem mais saudade.

Anos mais tarde eu estou conversando com um amigo e eis que ele, de passagem por outros assuntos se refere a essa noite em especial. Ele foi o baterista do primeiro grupo que subiu ao palco, ainda pouco depois das nove, e diz ele que foi um dos momentos mais legais de toda a sua vida.

Sempre que algum músico ameaça me contar coisas assim eu estimulo a confidência com avidez e reverência de quem sofre por não ter aprendido um instrumento. Como se faltasse em mim uma peça que eu sei que deveria ter.

Porque me faz falta nunca ter tido a chance de participar de nada assim… Mas eu, se nunca pude ter essa memória de mim mesmo, às vezes a tenho através de outros. Que sorte têm, quando faltam sonhos vivos, aqueles que têm amigos! Se você não tem a própria vida para se lembrar, invente uma!

Percebendo ou não o tamanho de meu interesse, o meu amigo desfiou a memória de seus dias de palco. Era como alimentar a um faminto. Enquanto ele me contava cada detalhe, eu me punha em seu lugar, vampirizando a emoção que ele me transferia, como se assim eu pudesse viver também um pouco aquilo.

Até que, de repente, eu me vi imerso uma outra vez na atmosfera densa da década de oitenta, época em que ser livre ainda era uma arte e estar vivo ainda não era tão perigoso. Época em que o amor ainda não precisava de escudos, em que as deusas não pareciam bonecas de plástico.

De repente me sinto subindo ao palco com eles, como se o espírito de um ex-roqueiro baixasse em mim. Ouço o rugido das guitarras, escuto lá fora a agitação do público. Uma dose de uísque virada de um gole só para esquentar o peito e demolir o muro que travava os movimentos. Quatro rapazes ainda com espinhas no rosto entram carregando instrumentos enormes, andando desajeitados enquanto são caçados com frieza pelos olhares de uma plateia que cobrava uma atitude.

Nessa hora Johnny Walker engrossa a coragem que fraqueja e os três se põem em seus lugares, engatilharam suas armas, dão um último retoque em afinações empíricas. Vaias e aplausos dão as agridoces boas-vindas, respondidas com sorrisos simples. Cada um é um guerreiro em uma grande aventura rumo ao desconhecido: a vida.

A pequena transgressão, uma garrafa de rótulo negro. Com ela desafiamos as regulamentações e as leis. Com ela desobedecemos às recomendações de nossos pais. A garrafa se transforma em um símbolo. Um símbolo que é ostentado com orgulho quase equivalente ao orgulho de ostentar o instrumento. Erguer a garrafa e sorver direto do gargalo, arrancando aplausos de crianças que querem pecar um pouco hoje.

Até que, saciado o desejo feroz de intensidade, depositam o Graal no solo e atacam um primeiro acorde para a glória. O ritmo rompe o murmúrio da multidão. Imediatamente as fronteiras de um universo que não acaba no horizonte se abrem aos que querem ouvir. E, repetindo Pink Floyd, decretam que é confortável estar mudo, e a vida não é mais que o roteiro para as lágrimas de um bufão. E todos pareceram estar fora de seus corpos, movimentando-se ao ritmo dos rifes.

A música é um pranto, um acalanto, um ato de instinto com metáforas terríveis e uma grandeza vil. Submergimos em cada acorde como se cada instante fosse o último e nunca fosse amanhecer. Nada mais somos que sonhadores. Cada segundo tinha de durar além de si mesmo, cada nota tinha de suster-se na memória do ouvinte como um convite eterno.

De repente eu acordei. Aquela noite foi uma das últimas noites. Não haverá outra. Aqueles sonhos foram dos últimos daqueles sonhos. Não se sonha mais assim.

Tempos difíceis vieram, esmagaram nossos sonhos e nos empurraram pelas ruas até um beco sem saída. Pessoas que faziam parte de nossas vidas de repente estão morando muito longe e ficaram tristes. Gente que nos amava está morta, mudou de rumo ou perdeu seu brilho. Quantas vezes eu vivi eternidades falsas que nem amanheceram; promessas de substituir cada vaga lembrança que sumiam antes que eu pudesse ter tédio.

Por isso o grupo acabou. Um deles passou num concurso, trabalhou em um banco, adquiriu tendinite, perdeu seu sorriso e hoje, nas noites de lua, toca para sua amada que sempre foi um guerreiro de aluguel e nunca teve tempo de lutar por suas próprias causas. A cada dia é maior o acúmulo de dejetos e circunstâncias entre nós mesmos e quem quisemos ser.

Outro está casado e só Johnny Walker resta para ocasional lembrança de um tempo em que a vida, a música e os amigos eram tudo que importava. A bateria talvez enferrujando num canto. Mas os amigos sempre serão amigos.

Outro sumiu. Casou? Teve filhos? Mudou-se para a Grécia ou foi catar coquinho em algum lugar? Nunca se fica sabendo. Perder o rumo é quase como perder a vida.

Fico pensando de que modo será que se sentem quando param para pensar no passado. Ganhar a vida sem sonho nos transforma em tristes, em carne morta que se move e dói.

Há maneiras aparentemente alegres de sofrer, como há tristes formas de felicidade também.

Ou será que, ao contrário de mim — que nunca na verdade vivi profundamente nada disso — eles vivem felizes e não lamentam que o mundo mudou?

Hoje, ao contrário de meus ídolos, eu estou jovem demais para o rock’n’roll, embora não velho o bastante para morrer. Mas talvez alguém ainda ache de viver. Eu tenho saudades de um mundo de que só vi o crepúsculo. Um mundo em que a juventude não era a platéia de um programa de auditório e não éramos revistados por seguranças para entrar nos locais de diversão porque todo mundo ia lá para se divertir apenas.

Tenho saudades de não ter estado nos grandes momentos do pequeno pequeno mundo de que tenho tanta saudade. Tenho saudades de não ter saudades de verdade. Lamento o encanto que nunca encontrei, a noite em que poderia ter ido com Adriana à feira de Santa Rita mas, com medo da bronca de minha avó, preferi ir para casa dormir o sono dos anjos.

Poderia ter conseguido, talvez, conquistar o coração de Simone, não fosse tão ingênuo? Lembro-me como hoje da noite em que o dia de ano novo rompeu subitamente a mediocridade e me transformou num medíocre que se acha possuidor de um bom gosto.

Lamento não existir mais ninguém capaz de compor uma canção à beira-mar ou de filosofar sobre o tempo que perde a cada dia.

Porque agora a luta de cada noite e dia não tem a mesma capacidade de afogar-nos num mar de aromas e sonhos.

É difícil saber se realmente é felicidade esta vida feliz que levamos porque não temos como sentar na varando ouvindo no rádio a canção que nos lembra o primeiro beijo, a primeira noite, o primeiro dia, o último instante, que nos remete ao próximo, que…

Em homenagem a Luiz Fernando Valverde.


15
Ago 10
publicado por José Geraldo, às 13:54link do post | comentar

Dia desses eu vi uma cena deprimente. Saindo do banco vi um pastor pregando na praça. Ele tinha uma bíblia esgarçada, um terno puído e uma gravata vários números maiores que o dele pendendo do pescoço magro.

Eu conheço esse pastor, é um homem solteiro e solitário, já além dos quarenta anos de idade, que trabalha como marceneiro. Todos os domingos e eventualmente durante a semana ele pega sua velha bíblia, um caixote de madeira e seu terno preto já quase perdido e vai para a praça. Lá ele sobe no caixote, abre a Bíblia em um livro qualquer, lê e começa a pregar.

Pregará durante horas, faça chuva ou sol, sempre entre o horário do almoço e o do jantar. Raramente alguém parará para ouvi-lo, geralmente as mesmas pessoas: uma senhora gorda e morena, um velho negro curvado e de ar tristonho e uma adolescente feiosa e vesga que manca de uma perna. Levam-lhe água, café e pão.

Ele prega sem parar, até a garganta doer e as palavras se misturarem em sua boca, até lágrimas correrem de seus olhos e ele quase desfalecer no chão. Há muitos anos que ele faz isso. Sua voz já está prejudicada por calos nas cordas vocais, sua pele está cheia de queimaduras de sol, mas ele insiste.

Conclama ao arrependimento e à crença, mas recebe a dura indiferença deste país onde supostamente 98% da população crê em Deus. As meninas passam fazendo-lhe piadas, os meninos lhe atiram cascas de frutas, os adultos passam rindo ou olhando com ironia nos olhos.

Raramente alguém lhe dará alguma recompensa. Dizem que um conhecido comerciante certa vez lhe deu o terno, com a condição de que não mais pregasse diante de sua loja. Não tenho notícia de que jamais tenha convertido alguém pois também conheço a igreja que ele freqüenta: é um miserável cubículo de nove metros quadrados no subterrâneo de um barraco em um bairro miserável onde só aparecem a moça vesga, a senhora morena e o negro idoso. Nunca o vi pregar em outro lugar.

Quando vejo este homem pregando na praça, destruindo sua voz e sua saúde sob o inclemente sol de Minas Gerais em dezembro, eu também me pergunto o que o leva a isto. Que espécie de desgraça o tornou tão desesperadoramente infeliz, matou suas esperanças de felicidade terrena, negou-lhe o desejo do amor, acabou com planos de filhos?

É preciso ser profundamente infeliz para render-se a uma vida tão miserável, tão santa. Os santos são infelizes, e são loucos. Com sua infelicidade eles compram sua esperança de céu, com sua loucura eles acham que são felizes enquanto sofrem caninamente.

Tenho muita pena do pastor que prega na praça.


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