Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
02
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 11:28link do post | comentar

A Zona da Mata Mineira vive hoje uma crise – humana, econômica e ecológica. Por toda parte onde se vá, encontramos a descaracterização cultural, a perda das tradições orais, o esquecimento do artesanato (e da própria história) e, mais grave que tudo, uma absurda destruição da natureza que, de tão arraigada, deixou de significar apenas a remoção da vegetação nativa e agora está chegando à remoção do próprio solo e das montanhas: percorrendo a região vemos morros pelados, terra aparente, erosões, cursos d'água assoreados. A Zona da Mata deixou de merecer esse nome: hoje é uma região em processo incipiente de desertificação.

“No começo isso aqui era só mato, bicho e índio. Mas nós limpamos a terra e a fizemos produzir.” A frase foi dita, de verdade, por um proprietário de terras da Zona da Mata Mineira, em algum momento nublado de minha infância. Ele certamente não se lembrava de quando chegaram os primeiros colonos, procedentes do norte do estado do Rio de Janeiro ou dos Campos das Vertentes, mas a presença dos três elementos definidores – mato, bicho e índio – perdurou durante décadas depois, permaneceu no imaginário do povo até bem há pouco tempo. E eu sempre achei curioso como a gente de minha terra contava sua história.

Conheci pessoas que diziam que um ou outro de seus antepassados havia sido “índio pego a laço no mato” – uma referência oblíqua a indivíduos sobreviventes dos massacres dos grupos isolados de tapuias, puris, goitacazes e outros povos ameríndios que aqui viviam. Quando os colonos brancos vieram, trazendo seus escravos e seus machados, a presença dos índios foi sendo extirpada, junto com o mato e com os bichos. As três palavras foram sempre empregadas em um tom pejorativo.

“Mato” era, no português coloquial de antigamente, uma palavra carregada de negatividade. Dizer que algo “era mato” era como dizer que era vulgar, que era encontrado em qualquer lugar. O “mato” era, também, o lugar desorganizado, o caos primevo. “Bola para o mato, que o jogo é de campeonato” e “fugir para o mato” são expressões que mencionam esse sentido. Joga-se a bola para onde ela desaparecerá, para retardar o jogo. Foge-se para longe do alcance do braço da lei. No meu tempo de criança ainda corriam histórias de pessoas que fugiam das cidades e vinham “para o mato” trabalhar em terras de coronéis, e que não eram presas se esses não deixassem, porque a polícia não entrava nas propriedades. Remover o “mato” era um processo civilizatório. Lembro-me de como a professora leiga, de minha escolinha rural, me contou, embevecida, como seus antepassados “desbravaram” a terra. “Desbravar” é cognato de “bravio”. Envolve um sentido de “doma”. Desbravar é amansar a terra. É tirar o mato, o bicho e o índio. E eu me lembro até hoje do desenho que fiz, de um colono enxugando o suor da testa, apoiado em seu machado, no meio da lida hercúlea de derrubar árvores em um campo imenso.

Meus antepassados odiavam árvores. Tanto que construíam suas casas em clareiras lisas, os “terreiros”. O tamanho do terreiro estava vinculado ao poder do proprietário. Viver em uma casa isolada no meio de um terreiro imenso era para os coronéis, ou quem tinha dinheiro equivalente. Manter o terreiro limpo envolvia o trabalho de muitos homens, para remover as folhas do mato, arrancar as ervas que teimavam em nascer. O terreiro era também uma proteção natural contra emboscadas. À noite, mesmo sem lua, era mais fácil ver alguém tentando atravessá-lo para atacar a casa. Mais fácil do que seria se em vez de terreiro a casa fosse cercada de árvores.

“Bicho” tinha um sentido ainda mais forte. A palavra “animal” era reservada para as bestas domesticadas: cavalos, mulas, vacas, jumentos, cabras, ovelhas. Pequenos animais domesticados, ou que viviam próximos à casa – como gatos, ratos e lagartixas – eram chamados de “bichos”, assim como os insetos (bicho-de-pé, por exemplo). Os outros eram os “bichos do mato”, vistos como “invasores” e predestinados à caça ou ao mero extermínio porque interferiam na economia. E o colono sabia muito bem que remover o mato era uma maneira eficiente de afastar o bicho, sem ter que matar cada um, correndo risco. Por isso as grandes queimadas, por isso “desbravar” até mesmo encostas de ângulo impossível para a agricultura e a pecuária. Era preciso “limpar” a terra, para que o bicho não ficasse perto. A onça, o quati, o piriá, a jaguatirica, o guará, o guaxinim, o maracajá, o mão pelada, o caboclo d'água, a lontra – todos bichos que, embora fossem bonitos alguns, tinham o infeliz hábito de ver nas galinhas das fazendas uma caça mais gorda e mais fácil do que os magros e velozes pássaros “do mato”.

E o “índio”, por fim, era o “bicho” por excelência. Dotado de uma inteligência “quase humana”, reunia a ferocidade e a matreirice. Por isso o ódio que despertava no colono, de forma espontânea e natural. Se algum era capturado e trazido à fazenda, era para ser simplesmente morto ou escravizado. Poucos comentam, mas os antepassados pegos a laço eram, em geral, mulheres. Estuprar a índia e fazer filhos nela era uma forma de subjugar este animal estranhamente humano que vivia em torno das regiões de colonização incipiente. Mas uma vez trazido à civilização, se “aprendesse a falar” (o que geralmente só acontecia com crianças) e conseguisse aprender uma profissão, o índio não era mais um inimigo, apenas outro elemento subjugado, na estrutura de poder da grande fazenda.

Não podemos esquecer essa mentalidade se quisermos entender o desastre. Os colonos removeram a mata para afastar o bicho e para exterminar o índio. Removeram a mata até mesmo nos lugares onde isso nem era necessário, como encostas de pedreiras com ângulo de sessenta graus. No lugar da mata plantaram monoculturas que não ofereceram cobertura ao solo, as mais recentes são o eucalipto e a brachiaria. O uso frequente da queimada enfraqueceu a terra, salinizou-a, acidificou-a. Queimada proposital, ou queimada acidental, causada por balões, raios, acidentes domésticos ou, em dias excepcionalmente quentes, pedaços de vidro perdidos em moitas secas. Nos lugares mais queimados já não cresce mais nada: a terra está pelada, mostrando sua derme, vermelha ou amarela. Sem cobertura a chuva arranca e arrasta: surgem erosões imensas. A terra solta vai para os riachos, que ficam rasos e largos. As nascentes são sufocadas, riachos secam na estiagem, coisa que nunca se imaginou acontecer por aqui.

E este desastre acontece aos poucos, sem que ninguém proteste. Os jornais não comentam. A televisão não fala. O cadáver vai apodrecendo e é como se ninguém sentisse o cheiro. As pessoas dirigem pelas estradas olhando exclusivamente para o asfalto, sem ver as feias marcas de destruição que perfilam ao redor. Tal como, nas cidades, ignoram os mendigos, ao sair delas ignoram a destruição.

Ninguém quer ver, porque ninguém quer admitir que tem alguma responsabilidade. Não fomos nós, foram nossos pais, avós e bisavós. Nossos netos e bisnetos também dirão que não foram eles, mas que fomos nós – mas nós estaremos mortos então, o que significa que não veremos seus dedos apontados em nossas caras, e não precisaremos ter vergonha da acusação. Por isso podemos ficar inertes, sem nada fazer, sem nada dizer.

Nascemos em uma cultura violenta, uma cultura de genocídio, estupro, desmatamento, queimada e depredação. Matamos ou “pegamos a laço” os índios, arrancamos as árvores, secamos os brejos, queimamos os montes, destruímos os sinais de tudo que houve antes de nós. Tomamos posse da terra através da terraplenagem e da espólio. Esfolamos a terra, tiramos sua pele, para que crescesse outra, nova, nossa. Agora vemos essa pele que nasceu, ressecada, feia, cicatrizada, e não a queremos. Eis o fruto da ira e da cobiça de nossos antepassados. Até quando os desculparemos, até quando nos desculparemos?

Eu poderia também estar quieto, mas me dói cada vez que vejo uma nova erosão, que noto que esqueci outra cantiga que fez parte de minha infância. Dói quando vejo que a colonização continua, sempre em novas vagas, cada uma determinada a suplantar a que havia antes, sob camadas sucessivas de esquecimento. Rompendo a continuidade, para que tenhamos a ilusão de que o mal lá fora não é fruto nosso: queremos ser novos, fingimos ser outros, porque não queremos saber que matamos os bichos, que laçamos os índios e que limpamos o mato.

Eu não estou quieto porque todo escritor é consciência de sua era. Eu sei muito bem que a perfeição, possível ou não, é apenas um ideal vazio, apenas outra forma de não olhar lá para fora e ver o vazio, de árvores, de bichos e de índios, que o nosso passado produziu. Se eu ficasse obcecado apenas em contar, do melhor modo possível, as histórias e os sentimentos que agradam aos outros, eu estaria sendo apenas outro colono, que vive aqui, mas tem a cabeça no Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar. A mentalidade do colono é transitória. Ele não ama a terra, ela não tem família: seu coração está em outro lugar, para onde quer ir ou voltar, quando arrancar da terra o que seja preciso para viver lá como patrão, ele que veio como ladrão. O colono não é um cidadão.

Então eu começo, aos poucos, a falar disso, e de outras coisas que sinto, da raiva que sinto. Posso estar escrevendo mal, mas cada dia que passa tenho mais definida esta sensação de que é preciso vocalizar esta frustração. Falar em nome das árvores, dos bichos e dos índios. Falar em nome do que esta terra foi antes de ter sido reduzida ao que é.


22
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 00:45link do post | comentar

Subíamos a muito custo, por falta de costume, de equipamento. Mas subíamoscom muita vontade, com máquina fotográfica e a esperança de ver na face do valea pegada da civilização. A montanha estava à nossa espera ali, onde sempreestivera, sua face sul vincada como um punho erguido, desafio aos nossos pésacostumados a planícies.

A trilha ondeava como uma veia rosada a romper overde grosso da floresta original, que se estendia sobre nós a ponto de, àsvezes, não termos a cor do céu para medir as horas. Chovera um pouco durante asubida, essa chuvinha fina que mal molha o chão. Normalmente um grupo como onosso pararia, mas enquanto as pernas não doíam nem as botas machucavam, nossasalmas imploravam pelo fim da sufocante trilha.

— Novehoras.

— Caramba, parece uma eternidade. Meus pulmões estãocomeçando a queimar.

— Não tenham medo, gente — esclareceu oguia, quando não der mais para subir a gente para e descansa meiahora.

— Se eu parar por meia hora tenho que voltarrolando.

Todos riram. Todos voltariam rolando se parassem meia hora. Masenquanto ainda tínhamos fôlego e tempo, seguimos subindo a passos cada vez maisespaçados, pela trilha enforcada de tanta árvore, como formigas escalando ummuro.

— Vamos parar, pessoal — pedi, depois que o ar quasefaltou quando meu peito o pediu. O coração bombeava com uma força de tambor emmeus ouvidos e eu só não suava porque estava ainda fresco da manhã recente,naquela mata onde raramente o sol pousava.

O guia se aproximou, me deu amão, ajudou-me a terminar de subir mais um barranco e descortinamos umdescampado um pouco mais tranquilo no altiplano.

— Podemos pararagora, são nove e dez. Saímos de novo às nove e meia.

De um grupo de dozepessoas ouviu-se uma voz ou outra resmungando. O silêncio aliviado de outras dezou onze sufocou qualquer reclamação.

Peguei minha garrafa de água e sorvium gole longo, «camelídeo», como costumava dizer Estefânia, que o diabo a tenha.Bebi mais meia garrafa, desejando que fosse rum, mas era só água mineralgasosa.

O guia aproveitou a parada para rever os planos:

—Temos já cinquenta e quatro minutos de caminhada. Já percorremos quatroquilômetros e setecentos e vinte metros e subimos cento e noventa metros acimado nível do vale.

Eram números impressionantes, mas abstratos. Eu nãotinha ânimo para questionar o que ele dissesse. Fossem quatro quilômetros oudoze eu não conseguia mais distinguir se estava certo. Só tinha a impressão deque cento e noventa metros parecia muito pouco: era como se tivéssemos subidoaté as grimpas das montanhas da serra, mas estávamos ainda arranhando o sopé deuma delas, nem sequer a maior, apenas a mais próxima.

— Vamos, vamos— interrompi meus doloridos pensamentos por causa das palmas batidas peloguia.

Sacudindo a parca mochila nos ombros, pus-me à vontade para caminharde novo.

Continuamos subindo, agora bem mais devagar. No novo passo queadotamos teríamos andado os mesmos quatro quilômetros em um tempo quase duasvezes maior. Mas a montanha ficava cada vez mais a pique diante de nós, eu játemia pelo momento em que teria que usar uma corda. Montanhas são cruéis,guardam seus trechos mais difíceis para quando os ossos já estão falhando. E asescaladas são como dizia o cantor: «quando o cansaço e a estafa bater, o sol domeio-dia espera você».*

Eram dez e quarenta quando o primeiro de nóscomeçou a passar mal, um turista gringo de cabelo cor de cenoura que falava umportuguês quase bom, mas puxava um esse carioca que soava sempre engraçado.Quando ele desmaiou e o guia correu para acudir eu me lembrei do quanto forarelapso no briefing antes da subida. Fôramos apresentados, um a um, pornome e profissão. Cada um confessara quantas vezes antes escalara, e que tipo demontanhas. Calhara de ser o primeiro e, depois de me abrir o mínimo possível,gastara o resto do tempo contemplando as copas verde-negras das árvorescentenárias, de troncos grossos e nomes arcanos que eu ainda não conseguidecorar. Então o gringo desmaiou e eu, que fui o primeiro a ver, não pude sequerlembrar seu nome e apenas gritei:

— Tem alguém passando malaqui.

Senti-me culpado por isso. Imaginei que, do além, ficaria bastantechateado se no meu velório os meus colegas de trabalho apenas comentassem «temum morto ali». Quando ele começou a voltar a si, resolvi compensar minha faltade tato com um gesto de consideração. Aproximei-me do cabeleira de cenoura,perguntei se estava bem e pedi-lhe que me confirmasse seu nome.

Não sei oque ele me respondeu. Seja qual for o nome pelo qual seus pais o chamaram quandoo registraram em algum cartório da Holanda ou da Bélgica, não foi um nomereconhecível pelos meus ouvidos interioranos.

— Bem, você tem algumapelido mais fácil de pronunciar? Posso, por exemplo, chamá-lo de Hans?

Ocabeleira de cenoura sorriu timidamente, esse sorriso curto e envergonhado queos gringos têm quando estão tentando enturmar-se:

— Hansh não é meuapelido de verdade, mash acho que você também terria dificuldadesh com meuapelido.

Tive mesmo. A pronúncia parecia fácil, mas não consegui repetirnenhuma vez sequer direito. Diante da ameaça de ser chamado de «Cenoura» ogringo preferiu ser chamado de Hans.

Ajudei Hans a se manter de pé depoisque o guia o largou para organizar mais um pouco da subida. Ele reclamava dedores nas pernas, certamente câimbras como as minhas. Mas ainda tinha vontade desubir mais.

— Dez e quarenta e cinco, dez e quarenta e cinco —alertou-nos o guia — descontando uma parada de vinte minutos e mais dezminutos desta, pelo meu relógio, temos uma hora e quinze de caminhada total.Nesse tempo nós percorremos seis quilômetros e meio, e subimos duzentos esessenta e sete metros, pelo meus cálculos.

— Quantos metros temmesmo essa montanha da peste? — perguntou uma voz com vago sotaquenortista ou nordestino.

— Quinhentos e setenta e quatro —informou-nos o guia.

Uma vaga de desânimos se manifestou em suspiros,resmungos e bocejos.

— Sem drama, gente — provocou o guia— porque se fosse fácil, todo mundo vinha.

Tentei calcularmentalmente quantos grupos de turistas não tentavam aquela mesma escalada todomês. A trilha era tão larga e limpa que parecia que um exército espartano subiae descia por ela todos os dias — mas não encontráramos ninguém mais,talvez fosse a época do ano.

— Vamos fazer outraparada?

Resmungos e murmúrios de assentimento apoiaram a sugestão. O guia,então, consultou o seu bom-senso e recomendou que sim.

— Todo mundorepondo líquido e comendo uma barra de cereal, somente uma.

Oestalar de doze invólucros de barras alimentares xexelentas perturbou osilêncio, sufocando o pio dos pássaros. Quinze minutos depois, com os músculosalongados e os ânimos melhorados um pouquinho, a subida recomeçou.

Eradifícil conversar, tendo que fornecer alento a um corpo tão precário em umajornada tão difícil. Hans pareceu entender o meu silêncio lendo a careta em meurosto. Ele também não parecia nada bonito com as suas sobrancelhas amarelaspingando gotas grossas e cada ruga precoce de sua pele de pergaminho preenchidade sal e suor. Pobre Hans, vindo de um país onde não há montanhas, o que fazaqui nessa terra onde as planícies se esgueiram com tanto medo por entre osmorros?

Atingíramos um trecho quase horizontal do caminho, que pareciacircular em torno do pico como uma linha enrolada no carretel. Não poderia serde outra forma: à nossa direita a rocha se erguia como uma parede. Andávamos comas pernas soltas, ousadas, mas já sabendo que teríamos à frente outra subidamalvada. Mesmo andando assim os nossos pulmões andavam carregados de fogo e Hanssuava muito mais do que antes.

Isso porque saíramos do mato e estávamos aosol, seguindo por uma estrada que riscava em torno do morro e nos expunha àclaridade impiedosa. A pedra esquentava e um mormaço desconfortável nos faziaquerer ficar longe dela, mas a trilha era estreita e o parapeito, inconfiável.

Começou a ventar. Um vento fresco de outono, mas mesmo assim um vento quenão nos confortava muito. Vinha em guaspadas decididas, súbitas, surpreendentes.Assobiava nas folhas e nas gretas como uma gaita dos infernos. O vento vinha dosul-sudoeste, um sinal sempre péssimo. Vinha chuva. Chuva longa, chuva fria.Chuva para dias. A descida prometia ser pior que a subida, a menos que chovesselogo, e a subida ficasse tão ruim quanto possível.

— Ninguém olhou aprevisão do tempo, gente? — questionei em voz alta.

O guia gargalhoue perguntou, querendo fazer graça:

— E por causa de uma chuvinhabesta a gente deixava de subir essa montanha linda?

Disse isso arrancandouma flor de capim e tentando parecer leve na subida, mas não teria conseguidoimitar nenhum passo de bailarino.

— Vamos voltar!?

—Por que, Antônio? Sei que lá no Ceará não chove muito, mas não precisa ter medo,que não faz mal! — o guia começava a parecer impertinente, querendo quesubíssemos de qualquer jeito.

— Ele tem razão — interrompeu oHans — em qualquer lugar morro abaixo estarremos sem prroteção contrra achuva. Deve haver um abrrigo mais adiante.

Hans estava certo, claro.Descer só parecia melhor porque a alma da planície sempre pensa que uma desgraçaem baixa altitude é melhor do que num píncaro. Andamos então com o passo maisjusto, tentando vencer logo aquele trecho maldito e exposto em que a trilhabordejava a pedra nua. Mas foi em vão.

A chuva se formou com uma rapidezque deu até medo. Logo nuvens pesadas se formaram no horizonte, e o vento astrouxe para abraçar a montanha. O dia foi ficando escuro, os passarinhos calaramseus bicos no fundo dos ninhos, o vento foi ficando forte, arrancandopedregulhos, arrastando folhas pelo chão, arrepiando nossas nucas.

—Valha-me Santa Bárbara!

A visão do vale se dissolveu na névoa. De repentetrovões se ouviram perto, muito perto. O ar coriscou subitamente e o assobiogorgorejante do vento nas locas e gretas do rochedo pareceu ainda maismefistofélico que antes. Desgraçou a chover assim como se tivessem aberto umatorneira. Chuva gelada, misturada com granizo fino e com um vento que batiacordas de chuva contra a pedra, nos empurrando e empapando.

— Nãotem para onde ir aqui — berrou o guia, no meio da borrasca — temosque continuar subindo porque mais a frente tem um acampamen....

Outrotrovão, dessa vez mais violento ainda. Meus ouvidos doíam, minha pele estava tãogelada que minhas roupas pareciam quentes, mesmo molhadas da mesma água. Cadapelo de meu corpo de eriçara, eletrificado, pavoroso. Trovões, trovões, e achuva ficando quase tão densa que era difícil respirar sem por a mão diante dasnarinas.

— Todo mundo dando as mãos, e vamos devagar.

Todosaconchegados na proximidade segura da pedra. Todos andando com as botas repletasde água, rangendo como queijo verde no dente.

Nenhuma onomatopeia descreveaqueles trovões, nenhum adjetivo serve para tanto relâmpago. Além de nossospróprios medos, só conseguíamos escutar a tempestade, e enxergar dois ou trêsmetros diante do nariz. Estávamos dentro de uma nuvem de chuva, enfrentando osraios de bem perto.

Por fim chegamos a um lugar escuro, que depoissoubemos ser a sombra de um pau-brasil secular. Ali os hippies costumavamacampar. Era o último lugar da montanha aonde se podia chegar em um veículo:quem fosse bastante louco poderia subir até ali em uma moto ou triciclo. Alihaviam construído banheiros, captavam água de uma nascente e serviam-na numtanque. Ali havia um galpão permanente, onde os guias de escalada mantinhamalgum equipamento.

Debaixo do galpão, no seco e ao abrigo dos relâmpagos,começamos a pensar em secar os nossos corpos. Apareceu um fogareiro e outro,acenderam logo uma fogueira. Logo o lugar estava mais aconchegante, mas aindaficamos mais de meia hora tiritando, alguns espirrando, outros tossindo, todoscertamente resfriados até o último poro.

O aguaceiro despejou aindadurante uns dez minutos, depois se reduziu a uma chuva dessas que fazem a gentedormir na roça, depois uma neblina fina que apenas enodoava o horizonte. Até quepassou a água e ficou a umidade, ficou o frio. Eram mais de uma da tarde quandofinalmente o sol reapareceu.

Saímos do galpão ainda sacudindo água doscabelos, como cachorros recém lavados. O sol era melhor do que qualquerfogueira, mesmo um sol ainda atenuado por tanta nuvem.

A chuva dera umbanho de cores em tudo quanto era mato ou flor. O vermelho das pétalas pareciamais aceso, mais líquido, mais feito. Cada folha gotejava, cada lâmina de capim.Tanta beleza justificava as câimbras todas. Hans sacou de sua máquina, ainda comos dedos molhados e as sobrancelhas parecendo tufos de flores. Mirava edisparava sem pensar direito, como se achasse tudo belo, até a lagartixa quebotou a cabeça para fora de sua loca.

Então nos demos conta da fome.Aquecemos nossas pequenas refeições nos fogos que tínhamos e comemos em silênciorespeitoso diante da natureza. Quando o tapete de neblina de dissolveu,finalmente, pudemos ver as cicatrizes da infestação humana nas montanhas maisdistantes. Mas isso não diminuiu a beleza de nenhuma flor sequer, somente nosfez temer melancolicamente por cada uma delas.

* O verso é de uma canção do mineiro (como eu) Zé Geraldo.

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02
Out 11
publicado por José Geraldo, às 19:47link do post | comentar

Hoje estive visitando o sítio de meu pai, em Itamarati de Minas. A viagem foi deprimente, não só porque meu velho não anda muito bem de saúde, mas também porque a natureza não está.

Dói-me ver tantos morros pelados, a terra exausta de sucessivos incêndios e descuido, revelando-se como derme escarificada, vermelha entre os tufos secos de capim. Dói-me ver tantos topos de morros calvos pela ação estúpida do homem, que hoje pensa em depredar rapidamente antes que o governo queira proteger, tal como o especulador que demole o prédio histórico antes que o IPHAN o consiga tombar.

A seca está forte, as estradas estão ardendo em poeira amarelenta. Os pastos parecem estepes de filme americano, o gado está magro. Marcas pretas de incêndios recentes aparecem aqui e ali. Dói-me andar pela roça e ouvir tão poucos pios de pássaros, tão pouco arrulho de riachos.

Volto triste e com sede, com a pele ardendo de sol e ressequida da poeira e do vento. Volto deprimido com os rumos desse mundo que parece caminhar rapidamente para a própria extinção da beleza.


03
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 11:37link do post | comentar
Você tem exatamente três mil horas para parar de me beijar – Cazuza.

Estava escuro ainda quando Manoel acordou. A cerração ainda recobria as encostas da serra e as estrelas estavam sumidas no meio de tanta umidade no céu. Mas tinha ficado difícil continuar dormindo, e ele não sabia porque. Dentro da barraca o frio não entrava tanto, o saco de dormir isolava bem a umidade, mas de alguma forma ele acordou e foi se sentar, ainda enrolado nos agasalhos que catou da mochila. Acendeu o fogareiro e começou a esquentar água para preparar um café solúvel. Reparou então que as outras barracas estavam vazias.

“Mas com mil diabos, aonde esse pessoal foi parar no meio da noite?”

Subitamente lembrou de um sonho que tivera, um sonho molhado com algum tipo de criatura sensual. Por alguma razão inexplicável, no sonho, os seus companheiros de acampamento fugiam esbaforidos, como ratos diante do ronronar de um gato esfomeado. Mas ele ficara. Sentiu retornar à boca o estranho gosto de água de mina, de caneca de latão, de colher oxidada. Gosto rico em ferro.

“Devo ter mordido o lábio, ou estou com as gengivas inflamadas outra vez.”

A água começou a formar bolhas na caneca.

“Onde estará o maldito pote de café?”

Saiu tateando pela escuridão, tentando que a pouca luz das labaredas lhe mostrasse o caminho. Então sentiu novamente arrepiar a nuca, uma sensação que lhe lembrou o sonho. Virou-se assustado, poderia ser uma onça. Mas não era, era só uma mulher. Uma mulher bonita, embora não extraordinariamente bela. A mulher do sonho — ora bolas! Tinha um ar de camponesa, as unhas malfeitas, o cabelo ligeiramente emplastado de umidade.

— De onde você veio?

A mulher não deu sinais de compreender o que ele dizia. Repetiu a pergunta. Ela pelo menos pareceu perceber que tinha sido uma pergunta. Disse-lhe algumas frases em uma língua desconhecida:

— Nu înţeleg ce spui, draga.

— Hem? O que…?

Então era uma gringa. Inútil esperar que ela mantivesse uma conversa normal. Aproximou-se do fogareiro e finalmente viu a lata de café, tombada junto à mochila de um dos companheiros de acampamento. Abriu-a e já se preparava para derramar um pouco na água que já estava prestes a ferver quando resolveu tentar alguma mímica para falar com a estranha. Esfregou a mão no braço, tentando dizer que estava frio e apontou-lhe a água quente e o café.

— Café?

— Da, o cafea mica. Vă rugăm să…

O café ficou pronto instantaneamente, tal como a embalagem prometia. Só não ficou bom. Mas no alto da serra qualquer bebida quente era maravilhosa àquela hora da madrugada velha.

Por alguma razão não conseguia evitar os arrepios na nuca e os nós na garganta. Tinha vontade de correr, de chorar ou de pelo menos dar um berro animalesco. Mas não o fazia. Não sabia porque deveria. Não conseguia entender como se segurava. Terminou de tomar o café, ainda esfregando os olhos para espantar o sono. A mulher ali estava.

Aproximou-se dela com cuidado e curiosidade e loucura. Ousou tocar seu queixo duro, era frio como uma das pedras. Puxou seu rosto para cima e mirou naqueles olhos que redemoinhavam como o Estige e o Aqueronte. Veio puxando lentamente para perto de si aqueles lábios rasgados na carne pálida. Ela não resistiu, ainda que o deslocar de seu rosto fosse pesado, e voluntário. Havia momentos em que até lhe parecia que era o queixo dela que empurrava a sua mão.

Dois pares de lábios se tocaram. A troca de calor parecia provocar oscilações coloridas em sua imaginação. Lembrou-se de uma letra de música, queria que o beijo nunca terminasse. “Estamos, meu bem, por um triz, pro dia nascer feliz.”

Seus olhos queriam fechar-se, mas sua mente, arrepiada como os cabelos de um cavalo assustado por um lobo, insistia que não. Então, por uma sorte destas que ampara aos tolos, conseguiu contemplar a própria mão e notou nela veias saltadas que antes ela não possuía. Então o sonho voltou com mais força à sua lembrança e descobriu por que todo o seu ser queria gritar e fugir da presença da estranha.

Atirou-se ao chão como pôde, desprendendo os seus lábios dos dela. Mas ela não o soltou. Apenas conseguiu, por efeito da surpresa, fazer com que o equilíbrio de ambos oscilasse no mesmo instante. Caíram sobre o fogareiro, o gás escapou e envolveu-os em chamas, brevemente. Ela o soltou, deixando um rugido demoníaco sair de sua boca. Enquanto ela gritava, rolou sobre a grama úmida, apagando as chamas. Ela batia as mãos contra as vestes negras, completamente atarantada.

Se tivesse juízo, teria fugido como os demais. Teria aproveitado o sol que dentro em pouco assombraria a paisagem, como prometia a nesga láctea no horizonte. Mas como fazer isso com aquela beldade? Encheu a caneca de água fria da fonte e atirou sobre ela, apagando as chamas.

Ela se calou, intrigada. Uma fumaça branca ainda subia do tecido, a pele estava avermelhada em vários pontos, talvez do fogo, talvez do jorro de energia adquirido. Um forte cheiro de cabelo queimado empestava o ambiente.

— De ce am fost salvat? De ce am fost salvat, draga?

Um comprido raio de sol atravessou as nuvens e atingiu a encosta da montanha desolada. A mulher deu um gemido e cobriu o rosto com os cabelos falhados pelas queimaduras. Depois disso Manuel não se lembra mais de nada. Lembra-se apenas de ter acordado com tapas no rosto e gotas de uma água fria que parecia flocos de geada que derretiam com o calor de sua pele.

— Quem é o veado que está me molhando…?

Nem acabou a frase. Os seus amigos estavam todos em volta, assustados.

— Que merda foi essa que você fez, Manuel?

O fogareiro estava derrubado, e um largo trecho de grama seca estava queimado.

— Vocês não tinham ido embora?

— Embora para onde? Acordamos com os seus gritos, maluco!

Manuel já se erguia, confuso e imaginando que estava louco. Então sentiu outra vez o arrepio na nuca, com uma força tão grande que era como se lhe socassem pelas costas: como não reparara antes em tantos fios grisalhos e tantas rugas de expressão no rosto dos colegas de faculdade? Olhou a própria mão, vincada de veias. E notou, com um horror que nem teve a coragem de mencionar, pedaços de tecido preto ao lado da pedra à beira do barranco.


23
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 14:57link do post | comentar | ver comentários (1)

Em algum momento, em 2003, eu tive um sonho no qual me via seguindo uma mulher a cavalo, vestida de negro. Na época eu ainda não conhecia o som do Uriah Heep e não poderia ter feito a ligação com “Lady in Black”. Em vez disso, o sonho se referia mais à uma figura existente na capa da edição de “As Brumas de Avalon” que eu tinha comprado naquela época. A “Senhora da Magia” levando Excalibur à mão e cavalgando um cavalo branco.

Este sonho acabou se conectando, pelas tortas vias da inspiração, com outro que eu tive no dia seguinte, no qual me via na pele de um perseguido político, ameaçado de tortura. A conexão dos dois resulta no argumento inicial do conto. A segunda parte, escrita cerca de duas semanas depois, procurou relacionar os episódios algo sobrenaturais narrados na primeira a algum tipo de acontecimento histórico conhecido. Eu planejava fazer outras conexões mais amplas, usando, por exemplo, um outro conto que eu intitulava “História de uns Fantasmas” (que acabou resultando em “Inocência Assassina”). O plano que eu tinha era de um romance, ou um ciclo de contos, baseado em um universo paralelo conectado com o interior de Minas Gerais.

Mas o projeto não prosseguiu. Em parte isso foi porque eu não gostava muito de histórias de fantasia e terror, mas a principal razão foi eu não vislumbrar maneiras de dar prosseguimento à história. Durante muito tempo os contos “A Cabana ao Pé da Montanha” (atual Parte I) e “A Mansão Além da Montanha” (núcleo da Parte II) figuraram como duas histórias independentes e inacabadas em meu antigo site. Porém, durante o ano de 2009, eu resolvi retomar o projeto do “Grande Romance Místico Mineiro” e acabei revisitando os dois contos. Na época escrevi um terceiro conto, chamado “O Círculo Entre as Montanhas”, que foi o esqueleto da Parte III. Este conto nunca foi publicado.

Por fim, agora no comecinho de 2011, numa tarde razoavelmente inspirada, eu revisei os três contos, consertei as conexões entre eles, tornando-os efetivamente partes de uma mesma história, e os publiquei no blog (usando a ferramenta de agendamento de postagens).

A “Cabana ao Pé da Montanha” ainda será revisado algumas vezes, certamente aumentado em talvez até 50%, mas já está em uma forma apresentável. Ele será, futuramente, uma espécie de introdução ao universo da “Serra da Estrela”, no qual vou ambientar um romance e alguns contos. Nesse universo, as lendas brasileiras existem, de certa forma, e algumas maldições portuguesas foram desterradas.


12
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 19:51link do post | comentar

Ela se foi e eu fiquei sozinho o resto da noite naquela casinha de pedras no meio do nada. Não tive, porém, tempo para sonhos loucos ou terrores noturnos: apesar do breve sono da tarde, eu estava cansado demais pelos três ou quatro dias de estrada para negar-me a dormir na cama macia e segura, apesar de suja.

Acordei na manhã seguinte com um sobressalto: nos últimos estertores do sono eu havia encontrado uma abertura para ter um pesadelo e lembrei da misteriosa mulher que se jogara no abismo.

Ao me levantar, deparei-me com o fogo aceso e com a mesa posta para o desjejum. Era curioso que isso acontecesse, visto que eu fora dormir sozinho naquela cabana. Mas sobre a mesa estava um envelope rústico contendo um bilhete numa caligrafia que parecia saída de um manuscrito medieval:

Tente não demorar muito nessa casa: ela não o salvará de si mesmo, e o exporá a muitos perigos que você não conhece. Não deixe que minha irmã Lua o engane.

O caderno que eu subtraíra da suicida estava dentro do envelope: sua capa de couro marrom estava úmida, como se manchada de sangue, do sangue dela. Mas não estivera assim quando o pegara. O cheiro dele era quase insuportável, como se o seu texto revelasse horrendos e imemoriais segredos. Coloquei-o na mochila pensando em tentar ler depois.

Tomei do amargo café e comi dos pães duros, untados de manteiga rançosa, e fui ver o que havia do lado de fora. O cavalo da desconhecida estava pastando no relvado próximo à cabana, e pareceu dócil à minha aproximação. Abracei-o carinhosamente, lembrando a pele áspera, mas feminina, de sua dona morta. O cavalo me olhou profundamente, como se tivesse inteligência em vez de ser apenas uma besta de carga.

Selei e montei aquele animal com o respeito que merecem os cavalos, pelo menos no mundo estranho em que eu tão de repente me perdera. Saímos pelas estradas

A estrada era larga, maltratada e pedregosa. Um cavalo poderia facilmente derrapar e cair naquele chão traiçoeiro. Ninguém seguia no rumo oposto, ou no mesmo, e o silêncio da paisagem conspirava como se todo o mundo se tivesse desabitado de seres humanos e das trevas o mal me espreitasse. Cavalgava por horas sem destino, observando cada traço da paisagem, sempre buscando alguma indicação de rumo.

Quando o sol estava alto no céu, parei à sombra de um imenso pau-ferro à margem da estrada e roí algum pão enquanto observava as estranhas runas do caderno. À luz do sol elas pareciam bem menos misteriosas, dava para ver que estavam em alguma língua humana, embora talvez antiga demais para que eu a reconhecesse. Montei novamente e segui meu rumo sem sentido.

Ao cruzar a crista de um morro bastante íngreme, entrei em um território onde parecia ter chovido recentemente. As folhas estavam tão viçosas que dava vontade de fazer-lhes carícias, e os grilos por toda parte se preparavam para a noite que em breve cairia.

Todo o meu dia foi passado em uma estrada interminável, serpenteando por entre montanhas e vales e matas e rochas. Nenhuma casa, nenhuma viva alma, nenhuma encruzilhada. Mas quando já começava a cair à noite, num raro trecho de vargem à beira de um rio largo, limpo e tão silencioso quanto um lago cheio de sapos, eis que achei a primeira bifurcação da estrada desde que entrara naquele mundo. Lembrei-me dela imediatamente, pois fora através dela que eu entrara naquele lugar.

Contemplar aquele lugar me fez sentir firmeza novamente: ali estava o elo que me levaria de volta aos lugares conhecidos, onde as coisas todas têm explicação. Bastava guinar o cavalo à direita e subir aquele morro baixo e triste, tão cheio de feridas avermelhadas. Do outro lado, salvo engano, haveria a cachoeira onde eu me banhara pouco após sair do cemitério da cidade sem nome.

Porém não havia força no universo capaz de me forçar a tomar aquele caminho. Por ele certamente eu retornava ao mundo conhecido, mas por ele eu igualmente retornava ao mundo no qual havia homens cruéis determinados a me conduzir à presença da lei arbitrária que me enquadrava como um facínora. Permanecer naquele mundo estranho era permanecer longe do pau de arara e da cadeira do dragão.

Por isso não tomei nenhuma atitude, apenas deixei que o cavalo, preguiçosamente, seguisse o caminho do menor esforço, o caminho através do qual eu continuaria margeando o rio e me dirigindo à noite que nascia com a lua entre duas montanhas redondas como seios.

Não demorou que começassem a surgir outras encruzilhadas. Estas, porém, eu não conhecia. Cada uma delas poderia ter me levado de volta, ou ainda para mais longe. Mas nelas eu não tive de deixar que apenas o meu livre arbítrio me guiasse.

Logo na primeira delas havia um lenço dependurado em um galho de goiabeira. Poderia ter sido uma indicação, ou poderia ter sido apenas um pedaço de roupa rasgado quando um cavaleiro passara em disparada. Aquele alvo pedaço de pano já estava tão úmido pelo tempo que não guardava traço algum do perfume ou da catinga de quem o usara um dia.

Na encruzilhada seguinte havia uma pedra grande. De cada lado havia uma fratura que se assemelhava a um assento. Mas somente em um dos lados havia algo diferente: um livro, também mostrando sinais de ter sofrido com a chuva. Apeei e fui buscá-lo, pensando nas informações que ele poderia ter, mas era somente um daqueles livros baratos com histórias para moças.

A noite começava a se desdobrar, como um vestido escuro cobrindo a linda nudez da paisagem. O livro tinha a capa arrancada, indício de que fora talvez comprado a quilo em um encalhe de banca de jornal. Mas ao folheá-lho percebi que a sua presença ali poderia não ser casual: havia frases sublinhadas, palavras isoladas marcadas a tinta. Concatenando os trechos soltos parecia haver uma mensagem, mas ela fazia pouco sentido:

Vivendo em uma linda casa … morrendo por … isso a … enganara … pensava talvez em fugir … enfeitiçar … quem vier …

Segui pelo caminho sugerido por aquele livro. Notei sem espanto que ali a noite caía silenciosa, nenhuma viva alma passava, nenhum pássaro piava. Uma negra solidão foi me envolvendo ao mesmo tempo em que eu sentia uma necessidade absurda de fazer amor outra vez, com a misteriosa morta.

Na virada do morro seguinte se descortinava um vale desolado, um amontoado de construções de pedra muito mal acabadas com um ar mais de fortaleza que de residência. Uma alta torre encimada por uma cruz inscrita dentro de um círculo predominava sobre as demais construções, mais baixas, indicando que aquele lugar, em algum momento perdido de um passado, fora consagrado. Ao lado da enorme e negra igreja de pedra nua, coberta de trepadeiras, um mar de cruzes quebradas e lápides gastas indicava que aquelas colinas cobertas de touças altas de capim haviam sido, num passado distante, uma aldeia populosa.

Mas quando me aproximei eu vi que todas as covas haviam sido escavadas, sabe Deus quando, e que os antigos residentes delas tinham sido levados, somente Ele sabe para onde. O cavalo trotava com familiaridade por aquele terreno, como se tivesse sido apascentado ali desde que fora um potrilho. Depois de passar pelo cemitério o caminho passava a ser calçado de lajotas irregulares de pedra calcária, muito gastas pela chuva de séculos e por cascos e pés de todas as espécies. Detrás da igreja aparecia uma construção que destoava do resto: baixa, clara, geométrica e aparentando modernidade. Estava silenciosa como tudo, e escura também. Outra construção, um imenso paralelepípedo negro com janelas, repousava na parte mais baixa, já perto de um regato que quase não murmurava. Uma luz acesa ali indicava que alguém vivia, ou vegetava, naquele lugar.

Mal podendo imaginar o que me aguardava, em vez disso agradecendo a sorte de um pouso — e talvez até de um lugar onde ficar pelo tempo que fosse preciso — eu me dirigi à porta daquela medonha habitação. A sua porta alta indicava uma construção totalmente fora dos padrões de hoje, com um pé-direito de três metros ou mais. A pesada madeira nem se moveu quando a toquei, nem pareceu sentir quando a pesada aldrava de ferro soou.

Um homem veio atender, macérrimo e pálido. Tinha a fisionomia desolada e os lábios finos. As suas unhas estavam crescidas e as suas costas eram curvadas. Ele poderia ter oitenta anos ou mais.

— O que deseja?

— Encontrei o cavalo por aí venho saber se não pertence a esta propriedade.

— Não criamos cavalos — ele respondeu secamente.

— E nem ao menos pode me dizer de onde é o animal?

O homem deu dois passos para fora e olhou o triste cavalo em que eu viera. Ao vê-lo a besta curvou a cabeça e soltou um relincho de reconhecimento. O homem resmungou alguma coisa que eu não entendi, acariciou o cavalo com uma doçura surpreendente e tirou do bolso algo que lhe deu. Mas quando se voltou tinha os olhos cheios de lágrimas.

— Então o cavalo é daqui?! — eu devolvi secamente.

Ele permaneceu ainda em silêncio por um tempo. Por fim acenou com a cabeça.

— Reconheço a criatura, mas ela não pertence a nenhum proprietário das redondezas.

— Não compreendo.

— O que lhe importa, com mil demônios?! Pode deixá-lo comigo. Quanto à recompensa, receberá do diabo.

— Sua falta de educação finalmente me irritou. Com que então eu tenho a boa vontade de trazer um animal perdido e o senhor me manda buscar recompensa com o demo! Vá à merda e que ele o leve!

A intensidade da minha rudeza surpreendeu-me. Nunca antes me imaginara sendo tão agressivo com alguém, especialmente com alguém que parecia estar visivelmente assustado e agindo contra sua vontade. Mas era bom exercer minha prepotência depois de tantos dias humilhado na estrada, mesmo que ela me atirasse de volta ao desamparo.

— Você não sabe o que diz!

Ele respondeu com um desprezo e uma expressão de desolação tão profunda no rosto que por um momento eu quase me arrependi. Mas logo recompus minha dureza. Nesse momento, uma voz familiar gritou de cima perguntando quem era e simplesmente ao ouvi-la eu retomei minha firmeza absoluta. Uma chuva fina e fria começara a cair, um vento cortante assobiava nas árvores e uma mulher apareceu à porta, com uma expressão gelada no rosto, como se jamais me houvesse conhecido. Ela era loura bela, como a jovem grisalha que eu vira na descida da montanha fatal.

— Jorge!?

— Ele trouxe o cavalo — disse num fio de voz o Jorge.

— Muito obrigada — disse a mulher, estendendo-me a mão com um sorriso — serás recompensado. Jorge, não vamos deixar que este homem siga viagem sob esta chuva cruel e este frio que vem com a noite, faça-o entrar e lhe prepare um quarto de visitas.

— Realmente, senhora, não é de bom-tom deixar que ele atravesse esta noite inclemente a pé…

E me fez entrar.

A aparência interna do lugar não era melhor que seu exterior desolado. Os móveis eram todos muito grandes e de desenho bruto, o chão era de lajotas enceradas e as paredes caiadas não ostentavam nenhum ornamento. Prepararam-me uma mesa na cozinha e comi alimento recém-preparado pela primeira vez em muitas semanas. Jorge e sua mulher, uma criatura gorda e sorridente, eram os únicos empregados daquela imensa casa.

Depois de terminar, me conduziram escada acima até um pequenino quarto de hóspedes localizado logo à direita, antes de um imenso portão de ferro trancado com um cadeado maior que a minha cabeça. Além do portão um longo corredor com várias portas. Seguramente aquele edifício fora um convento e aquelas eram as celas em que dormiam solitariamente os frades ou as freiras do lugar.

Depois que me fez entrar em meu quarto, pude ouvi-lo girar a chave na fechadura e tive medo pela primeira vez em muito tempo. Segurei a maçaneta, mas já era tarde: Estava trancado! O quarto, uma das celas do antigo monastério, era grande o bastante para caber um guarda-roupa, uma cama e uma mesa de cabeceira. Para mais nada, porém. Havia uma única janela vazando as paredes muito grossas que davam para o exterior. Apesar de estreita, era larga o bastante para que eu pudesse debruçar-me nela e contemplar a noite de lua crescente sobre os campos.

Um ar pesado soprava do norte, como se alguma coisa horrível estivesse vindo. A janela, localizada do lado que dava para o riacho, se abria sobre uma escuridão difícil de avaliar. A luz da lua não chegava até ali porque as montanhas e as construções mais altas se interpunham obliquamente no caminho do luar.

Apesar disso, dispus-me a dormir. Mesmo porque não havia remédio. Despi-me parcialmente e me estendi na pequena cama de colchão duro. Quando estava semi-adormecido, apesar do nervosismo, ouvi uma janela batendo, senti o frio da madrugada beijando meu rosto e levantei-me para ver o que era. Minha janela estava aberta. Enquanto imaginava como pudera ela abrir-se, senti uma presença familiar atrás de mim e me voltei.

— Que bom que vieste…

Era a mulher loura que me recebera à porta. Olhei-a de alto a baixo, apreciando cada detalhe de seu corpo entrevisto através da camisola diáfana que usava. Ela sorriu-me e desprendeu-a de seus ombros, fazendo-a cair e deixar diante de mim uma nudez fulgurante. Então abriu os braços e me chamou ao seu seio e fizemos amor com uma intensidade maior que a da vida.

Em dado momento, ouvimos um ruído ecoar pelos campos, um ruído de tiro. Os olhos dela se iluminaram.

— Ei-lo que chega!

A cancela da entrada rangeu e minhas pernas amoleceram. Suei frio e ergui-me num sobressalto. Um ríspido diálogo se travou embaixo na cozinha:

— De quem o cavalo? — pergunta uma voz estrondosa.

— Não sabemos, um cavalheiro chegou nele, dizendo tê-lo encontrado pelos campos. Veio perguntar pelo dono porque quer a sua recompensa. — Respondeu servilmente Jorge.

— E por que pousou aqui em minha casa este estranho?

— Choveu depois que ele chegou e ficamos constrangidos de ordenar-lhe que seguisse viagem sob tão cruel tempo.

Uma torrente de palavrões ribombou pelo salão, simultânea a dois tiros. Catarina, que até então estivera radiante, rompeu em pranto convulso, levantou-se da cama e atirou-se pela janela antes que eu a pudesse impedir! Pesa segunda vez ela me escapava! Assustado, vesti-me rapidamente e, instintivamente, abri o armário. Lá encontrei, por obra de Deus ou de Satanás, não sei, um rifle carregado!

Enquanto o engatilhava ouvi os passos pesados do recém-chegado logo além da porta e o chocalhar de chaves. Apaguei a única vela que havia no quarto e cerrei a cortina. A escuridão mais completa se fez. Apontei a arma para a porta e aguardei que ela se abrisse para atirar duas vezes no peito do desconhecido, antes que ele tivesse tempo de me ver.

O homem arregalou os olhos, deixou cair a pesada carabina que carregava e tombou pesadamente para trás. Fui até seu cadáver e, reacendendo a mesma vela do castiçal ao lado da cama, pus-me a mirar-lhe. Era uma criatura formidável aquele homem: teria mais de dois metros de altura e uma musculatura firme e poderosa. Seu rosto estava tomado por uma cicatriz que lhe dava um ar cruel e os seus dentes eram bastante ruins. Vestia uma espécie de hábito de tecido rústico, bem pouco suficiente para abrigar-lhe do frio que fazia naquela noite. Toquei-lhe a fronte para certificar-me de seu falecimento e, comprovado este fato, desci as escadas.

No salão estava o pobre Jorge com a cabeça aberta pelo rombo do único tiro que levara. A arma usada para isso teria matado um elefante. A sua pobre mulher fora atingida no meio das costas, mas ainda respirava. Aproximei-me dela e dei-lhe a mão. Ela olhou-me nos olhos, lacrimejando de medo na presença do frio do Juízo próximo e disse:

— Maldito seja ele, maldito!

Eu não tinha nada que fazer por aquela pobre criatura. Apenas acariciei o seu rosto com ternura. Ao sentir a sinceridade de meu toque ela me disse:

— Cuida de Inês.

Imaginei imediatamente que este seria o verdadeiro nome da loura e, não desejando aumentar a tristeza da agonizante, informei que Inês estava bem e que eu cuidaria dela. A mulher cuspia sangue pela boca, indicando que seus pulmões haviam sido atingidos. Num último esforço, olhou-me e disse “pobre coitado de ti!”, vindo a morrer em seguida.

Saí em busca de Inês logo em seguida — e não a encontrei. Não havia nenhum corpo abaixo das janelas daquela construção sinistra, nenhum sinal que indicasse qualquer coisa semelhante à remoção de um cadáver. Para mais estranheza ainda, a provável janela de meu quarto era sobre uma horta, cujas alfaces intactas eram ainda mais intrigantes que o formato barroco daquela lua que parecia uma gargalhada no céu.

Pela manhã, sepultei Jorge e sua esposa em duas das covas vazias do cemitério. As armas, eu achei prudente enterrar no solo fofo do fundo da horta, a fim de que aquela noite ficasse esquecida. E tendo feito isso, enquanto tomava da salobra água do único poço que servia à casa, me perguntei o que deveria fazer em seguida. O sol me respondeu que era preciso descansar. Mas descansar não me parecia nada sábio, diante das circunstâncias.


09
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 09:47link do post | comentar

O que estou prestes a contar pode parecer sem pé e nem cabeça a você que me lê (porque a mim mesmo parece), mas sinto algo que me pressiona a falar e não posso desviar-me da missão de te dizer as coisas que vivi naqueles dias.

cabana de madeira

Às vezes tenho a impressão de que, na verdade, tenho sonhado isto que parece ser minha vida — e ainda não consegui acordar. Depois de haver guardado nas gavetas do esquecimento os traços deste pesadelo por muitas semanas, ele volta a me perseguir. Não dá mais para carregar este peso nos ombros, espero que você me ajude a pousá-lo no chão.

Contar essa memória que não me abandona é dividir esta saca pesada de medos e angústia para que, talvez por um breve momento que seja, eu possa tentar reorganizar meus sentimentos e livrar-me dessas imagens intermitentes e insanas.

Em um dia quente e desesperado eu me achei caminhando por uma estrada empoeirada sob um sol abrasador. Nem pássaros ousavam cantar diante da pressão que o ar exercia sobre as montanhas desbotadas.

Às minhas costas eu levava uma mochila pesada de culpas e projetos, alguns já malogrados em broto. Estava fugindo nem me lembro mais de que e temia que todos os meus amigos estivessem mortos ou presos. Tempos depois tive a certeza. Ou será que nunca, de verdade, tive amigos?

Para não ter de enfrentar nenhum dos doidos destinos que se me apresentavam eu saí de casa no meio da noite, furtando apenas roupas, comida para dias e uma Bíblia.

A comida se esgotara rápido, e já eram três dias que eu passava a roer-me de fome, tendo de roubar de comer.

As roupas, não podia trocar porque estava imundo, suado e coberto de pó e a comarca estéril em que estava vagando padecia de seca e infelicidade.

A Bíblia eu trocara por um pão com salame.

Depois de mais alguns dias de caminhada sem rumo pelos lugares aonde ninguém nunca vai, eu já estava exausto e bastante desesperado para fazer qualquer coisa. Mas só havia frutas murchas da estação fracassada nos galhos despojados das raríssimas propriedades habitadas.

Certa noite cheguei a uma cidade cujo nome não se dava a conhecer em nenhuma placa, em nenhuma saudação, em nenhum monumento. Um lugar pequeno, afastado das estradas principais e de Deus, incrustado numa encosta de morro onde não havia nenhum aspecto de beleza a ser ressaltado.

Uma cidade feia e cinzenta, com cerâmica industrial barata cobrindo as paredes das casas, ornadas com estéreis motivos geométricos, parecidas com monumentos funerários. Havia casas abandonadas e decadentes até mesmo nas ruas principais, ruínas ao lado da prefeitura, calçamento revirado na própria praça da matriz. As luzes estavam apagadas para economizar o gerador porque todos dormitam tranquilamente, seguros dentro de suas edificações residenciais sem vida.

Passeei pelo deserto urbano como um fantasma através de uma cerimônia, invisível e suave. E em nenhuma parte vi hotel, lugar nenhum em que se desse pouso a quem se perdesse por lá. Meus últimos trocados lamentaram de dentro do bolso não poderem dar para uma boa cama e um banho tépido, capaz de atravessar as teias de vertigem e o cansaço do tédio.

Com ossos doloridos de um longo dia e ainda por cima faminto, imaginava meios de dormir. Havia bancos na praça, mas me recusei a entregar-me ao nível dos pedintes reles. A dignidade vociferava em mim e me obrigou buscar onde ao menos pudesse ocultar a situação em que estava, e foi no cemitério que vi um lugar perfeito para terminar aquele dia de pesadelo.

Não me pareceu provável que o lugar fosse visitado durante a noite, ou mesmo pela manhã, já que era afastado e mal cuidado. Além do fato óbvio de ser um cemitério de uma cidade que parecia estar morrendo em vez de crescer. Apenas corujas piavam na escuridão e não havia sequer uma vela acesa em túmulo algum.

Buscando um lugar para deitar, encontrei no fim da alameda mais larga um mausoléu imponente cujo portão de ferro estava apenas encostado. Dentro, algumas velas ali postas a arder anos antes e muita, muita poeira e teias de aranha. Apesar disso, não podia negar que era um dos lugares melhores para deixar-me dormir e me rendi a uma grande mesa de mármore junto à entrada, usando minha mochila como travesseiro, e dormi sem pesadelos e nem esperanças.

Despertei com o sol agraciando meu rosto e sentindo a brisa leve e fresca. Pus às costas a mochila e saí pelo mundo para ver onde estava.

As cidades, a dos mortos e a dos que morriam, estavam em um morro um pouco mais ou menos alto do que os outros em torno. Todos morros redondos, pastos nus e salpicados de feridas avermelhadas, inteiramente desprovidos de árvores e imersos na cinza tristeza do outono-inverno, essa espécie de devastação que acomete o interior de Minas Gerais todos os anos a partir de abril.

O cemitério estava fora dos limites, cerca de uns quinhentos metros acima da última rua e apenas um muro baixo o isolava da terra secular. Temeroso de que alguém testemunhasse a minha vergonha apressei-me a sair e continuar a caminhada.

Tendo caminhado cerca de três quilômetros para além, pude ouvir o estrondo de água em pedras e me dei subitamente conta da delícia de poder lavar-me após… quantos dias?

Um segundo depois sorri ao dar-me conta de que minha vida de andarilho me estava devolvendo a sensibilidade aos ouvidos, podia ouvir os grilos no capim, as aves piando a uma distância considerável e o rumor do mundo em movimento. Mesmo na desgraça o ser humano tem motivos para sorrir.

Desci a encosta em direção a um fundo de vale arborizado onde havia a água que criava aquele som familiar. Seguindo a direção do ruído, encontrei uma pequena maravilha à minha espera: uma cascata de uns dois metros de altura que caía sobre um poço com fundo de areia, em meio a árvores que pareciam ter estado ali durante muitos milênios.

Despi-me e brinquei alegre como criança durante algum tempo, finalmente abri o sabonete que trazia de casa e me dei um banho como poucas vezes. Depois de escovar os dentes pela primeira vez em dias e de usar desodorante pela primeira vez desde que saíra de casa eu vesti uma roupa limpa, mesmo calçando os mesmos surrados sapatos e olhei para mim mesmo com um pouco mais de orgulho. Apenas a fome atentava contra a minha auto-estima.

Com tristeza deixei o pequeno pedaço de paraíso onde, apesar da beleza, não havia alimento e voltei ao caminho. Devagar para não suar muito, tão sem destino quanto antes, mas sentindo-me mais limpo e mais leve. Nisso ouvi um cauteloso trotar de cavalo atrás de mim e me virei para averiguar quem caía em meu mundo.

Uma mulher, montando um cavalo castanho e usando um vestido e um chapéu. Bela mulher. Aparentemente apenas o vestido e o chapéu denunciavam alguma irregularidade. Teria trinta anos mais ou menos, mas logo percebi que não era uma das mulheres comuns da região. As mulheres do interior não têm no olhar aquela malícia e nem no semblante aquela firmeza indômita e algo cruel. “Também não usam roupas desse jeito e nem um chapéu assim”. Toda ela me pareceu recuada do tempo, alheia ao mesmo mundo meu. Dominava o cavalo com displicência, mantendo um silêncio ardoroso em seus gestos. Quando me viu, me chamou com um sorriso e fez diminuir o andar do animal, audácia que me chocou.

“Senhora, boa tarde”, eu disse, com palavras que me soaram raras depois que saíram de minha boca porque não pareceram minhas, mas a fala de um personagem de uma lenda antiga.

Ela respondeu com um aceno aberto mostrando dentes claros de padrão algo feroz. Ela continuou e me mantive entre envergonhado e excitado até que finalmente resolvi segui-la.

Ela não olhava para trás, mas para os lados, fingindo ver a paisagem, como para certificar-se de que a estava seguindo. Naquele momento em que a inspiração me faltava e meu olhar vacilava, eu era capaz de dizer qualquer besteira, mas não disse.

Ela não deixou o cavalo parar e nem esperou que eu a alcançasse. Sem o que dizer, eu apressei o passo, vendo que o cavalo soprava com ansiedade, tentando ir mais rápido.

Os passos do animal eram contidos por uma mão mais firme que a minha e por olhos que viam aonde eu não sabia. Mas lentamente estas mãos meticulosas libertaram o trote e tive de cada vez ir mais rápido para não ficar para trás.

A rapidez cada vez maior de meus pés pareceu cancelar as precauções que eu devia ter em minha mente. Logo eu já me havia esquecido de meus pensamentos e até de onde andava. Era como se não enxergasse nada à esquerda ou à direita. Depois de meia hora de perseguição eu estava suado, ofegante, desidratado e com cada músculo esvaído e doendo demais.

Então ela se embrenhou por uma trilha à esquerda, uma que se abria quase imperceptível na parede de galhos que orlava o caminho. Entrei após, pisando folhas e arbustos. Meus passos estalam nos gravetos e ecoavam no ar vazio como se o mundo inteiro estivesse dentro de uma redoma.

Acordei horas depois de um sono impreciso que tive. Estava nu, deitado sobre um gramado pontilhado de flores amarelas à beira de um riacho. Ao meu lado, também nua, a mulher que eu perseguira, adormecida e indefesa.

Olhei em torno num relance e nada reconheci. O murmúrio da água parecia renovar a minha sonolência e eu não conseguia ter noção do tempo — a não ser que, talvez, estivesse terminando o dia; pela brisa fresca que soprava lá.

Não consigo imaginar como cheguei a esse lugar estranho e nem porque subitamente aquela mulher, cujo nome eu ainda não sei, jazia nua ao meu lado, salpicada de pétalas amarelas e com o sol da tarde fazendo luzirem as gotas de suor em sua pele (como se muito recentemente tivesse terminado um grandes esforço! Um esforço comparável ao do amor!).

Quis fugir dali! Mas como? Olhei outra vez em torno e não vi montanhas no horizonte. A clareira estava cercada de escuras paredes de árvores e trepadeiras e eu nem mesmo imaginei por onde deveria tentar sair para estar de volta… À estrada que seguia sozinho e sem saber para onde ir?! Sufoquei-me pensando que não havia nenhum motivo para fugir, nenhuma alternativa que me convencesse de que vale a pena fugir da presença daquela mulher, que de resto era tão bela.

Não consegui senão render-me à contemplação de sua nudez tão bela e simples. Uma sensualidade clássica e farta, com pernas grossas, braços roliços, seios bem feitos e cintura larga. O rosto de uma Vênus de Rubens com mãos maltratadas de serviços, unhas roídas e irregulares, nódoas nos dedos. O seu sexo era coberto de uma penugem macia que parecia não haver sido jamais raspada de tão suave e curta. O seu corpo era de uma cor que parecia não ter jamais tomado sol. De uma cor que não existe mais.

Enquanto eu permaneci atônito a contemplá-la, esqueci o tempo e não vi se anoiteceu ou não (deveria?). Foi com muda surpresa que a vi acordar e espreguiçar-se.

Ela olhou em torno, viu-se e me viu. Cobriu-se subitamente envergonhada e me atingiu:

— Que fizeste, bandido?!

— Nada que eu saiba. Diz-me tu que fizeste comigo?!

— Nada que ferisse. Agora responde que fizeste comigo!

— Nada que te acordasse.

Ela se pôs a chorar, acusando-me de ter tirado proveito do sono que a rendera. Embora certo de minha inocência, não tentei abrir a boca para dizer coisa alguma, ao mesmo tempo em que me embebedava em sua beleza.

Depois de lamentar por um tempo, ela se levantou, tomou as suas roupas e se vestiu  vagarosamente. Assobiou e o cavalo pareceu aparecer do nada. Manso e arreado. Veio pacatamente receber de suas mãos um carinho e um “venha, menino”.

— Você não devia ter tentado me interromper.

— Mas não tentei fazer nada!

— Não pense que isso mudou alguma coisa. Só vai trazer-lhe mais

sofrimento.

— Quem é você, e onde estamos?

Ela montou sem me responder e cavalgou, muda, rumo ao riacho. O animal não hesitou em achar uma travessia através dos bancos de areia enquanto eu me ocupava em vestir-me tão rápido quanto podia para poder tentar acompanhá-la ainda. Sabia que onde estava não podia continuar e que voltar era impossível.

Após o rio e além da primeira curva se erguia uma casa de pedras com teto de folhas de sapé, que eu apenas observei de passagem. Dentro da casa algumas pessoas pareciam ocupadas em talvez um tipo de piquenique.

Passada a curva e seguindo a segunda estrada pelo morro acima, terminei numa clareira ampla entre árvores, com mesinhas de pedra, próprias para piqueniques ou bruxaria. Uma longa escada de lajes de pedra dispostas através da encosta permitia que se subisse ao topo da montanha coberta de relva verdejante (“nessa época do ano? Estranho!”). É pela escada que ela subia a pé — e eu a segui.

Não a tempo de conseguir impedir que chegasse ao alto do mirante antes de mim. Ela olhou para trás, viu que eu estava chegando, disse alto algo que não ouvi, me acenou um gesto que não reconheci… e se deixou cair!

Eu gritei mas não acordei porque não estava dormindo. Eu corri, mas não pude chegar lá a tempo porque não era sonho. O mirante se abria sobre um abismo imenso, cujo fundo era de pedra viva. Lá estava, ensanguentado, o cadáver da mulher que eu seguira e amara sem nem saber por que.

Havia uma escadinha perigosa esculpida na parede de granito. Movido sei lá por que mórbida curiosidade eu a desci em direção ao poço, que fedia a sangue de muitos corpos e a culpas de muitas almas. Noto que havia muitos ossos, mas raramente alguma joia ou coisa de valor.

A misteriosa estava morta. Vasculhei seu corpo e percebi que não trazia brincos, nem pulseiras, nem relógio, nem cordões, nem tatuagens, nem obturações, nem nada de ouro ou prata. Não trazia bolsa e nem dinheiro.

Sua roupa era um vestido negro e largo, por baixo umas anáguas rendadas em branco. O único objeto que portava era um pequeno envelope pardo. Continha um pequeno livro em papel tão fino e letras tão miúdas que mal daria para tentar ler, ainda que fosse escrito em nossa língua. Em vez de uma carta contendo explicações ou qualquer outra coisa, eu encontrei uma escrita estranha e angulosa (ou será que neste sonho ou vida era analfabeto?).

Havia também uma espécie de talismã costurado em couro, com alguma coisa macia por dentro e pendente de um cordãozinho trançado em palha. Tomei aqueles objetos na mão e olhei para cima. A Lua ia alta no céu, embora ainda não fosse escuro.

Pus o conteúdo todo do envelope em meu bolso. Olhei em volta e me vi mais perdido do que jamais antes estivera. Não havia nenhum sentido em estar ali entre aqueles mortos.

“Que diabos vim fazer aqui? Por que raios eu saí de casa?” Deixei a estranha morta lá entre aqueles outros cadáveres mais antigos. Lá onde esperaria as chuvas que o decomporiam e purificariam sua alma de seu gesto.

E subi outra vez, cuidadosamente, pela perigosa escada na pedra. No alto do mirante me dei conta de que estava anoitecendo ainda. Gastei mais uns minutos olhando a paisagem, como se lembrá-la valesse a pena depois e desci de volta ao vale entre as árvores, pensando em que fazer de minha vida a partir de então.

No meio da descida encontrei seu cavalo. Ele pastava tranquilamente e, aparentemente, não me rejeitava enquanto eu me aproximava. Tomei-o pelas rédeas e continuei a descer.

Os que faziam piquenique já haviam ido todos embora. Restava apenas uma jovem de cabelos grisalhos.

“Que estranha essa mulher também!” Ela tinha olhos que pareciam uvas, tão escuros e brilhantes mas ao mesmo tempo cheios de uma luz azulada ou roxa. Usava um vestido semelhante ao da morta e também subia. Sem cavalo.

Olhou-me com uma expressão de espanto no rosto:

— O que está fazendo? Por que está descendo esta montanha e de quem é esse cavalo?

— Boas perguntas. Eu estava atrás de alguém que pudesse me salvar, mas esta pessoa queria se matar. Estou descendo a montanha porque não quero morrer e nem ficar entre os mortos. E esse cavalo ficou sem dono, portanto pode ser meu.

— Que audácia a sua vir até aqui! Você não sabe o que está acontecendo! Aliás você nem devia ter conseguido encontrar esse lugar! Quem o trouxe?

— Eu já contei a verdade. Creia se quiser. Mas não me ofenda porque não sou um ladrão e nem profanador de corpos.

— Este cavalo não poderá nunca ser seu!

— Tudo bem. Então fique com ele se quiser, mas eu peço, por favor me ajude! Eu estou perdido!

— Muito mais perdido do que imagina!

Por um momento um pouco de doçura veio a seus olhos.

Então um certo sentimento de culpa passou em mim. Abri meu bolso e lhe entreguei o envelope:

— Desculpe-me, acho que menti ao dizer que não sou um profanador de corpos. Tirei isso do cadáver da estranha.

— Você nem tem ideia do que é isso, tem?

— Está em alguma língua estranha. Nem é útil para mim. Trouxe porque pensei que poderia obter alguma resposta.

— Querer respostas não é sempre uma boa ideia.

— Mas é melhor uma resposta que continuar vagando sem rumo pelo mundo.

Ela me olhou pensativa:

— Eu posso te oferecer umas respostas, mas isso vai ter um preço. E o preço é que deverás viver aqui entre nós.

— “Nós”?

— Só posso dizer se concordas com o que cobramos.

Lembrei-me dos agentes do governo que queriam o meu sangue e até confesso que senti certa tranquilidade. Tendo alimento, saúde e paz; diante das circunstâncias; eu achei que podia me dar por feliz.

— Está bem.

— Então vamos subir de volta.

Lá do alto, sob o luar estranho que nos banhava, ela me mostrou um horizonte muito largo, sem nenhuma luz que denunciasse a presença da humanidade. Muito profundo era o silêncio daquela noite e muito pesado o cicio dos pássaros e o cricri dos grilos.

De repente, sem que ela precisasse me dizer coisa alguma, eu comecei a perceber.

— Por isso temos este lugar. Nem todos são fortes.

— Eu a tentei salvar!

— Eu li isto em você. Talvez isso me tenha convencido.

Descemos de volta à casa. Ela me mostrou um quarto e me disse que eu deveria viver ali por algum tempo.

— E alguém virá — continuou.

— Quanto tempo?

— Não se sabe. O que for necessário.

— Tenho medo.

— Todos temos.


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