Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
03
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 13:17link do post | comentar
Ontem me dei conta da falta que faz visitar ocasionalmente uma livraria. Estive brevemente na Leitura “Megastore” em Juiz de Fora e pude compreender muito daquilo que tenho visto e lido na internet. Algumas conclusões foram animadoras, outras terríveis, a maioria apenas remete a uma neutra mudança de padrões, oscilações de modas que não mudam nada. Mudam-se as palavras, mudam-se os estilos, permanece uma falta de sentido que denuncia os tempos perigosos que vivemos.

A primeira coisa que notei foi a mudança de foco da literatura de auto ajuda. Ela já não predomina tanto nas prateleiras e parece mais focada em livros baseados em experiências reais. Um bom exemplo é a autobiografia de Nick Vujicić, da qual havia nada menos que uma pilha de exemplares. Esse tipo de auto ajuda que agora predomina parece explorar a culpa do indivíduo como um fator motivacional: olha só, esse cara tá todo fodido e ainda assim realiza mais coisas que você. O nome do site de Vujicić é sugestivo desse apelo: “From No Limbs to No Limits” (De Sem-Membros a Sem-Limites) e a sugestão é “você, com quatro membros, não é tão sensacional quanto o Nick”.

Há duas conclusões que eu tiro disso. A primeira é que Paulo Coelho é carta fora do baralho agora: o seu estilo de auto ajuda ficcional chupando antigos textos religiosos e lendas orientais não tem o mesmo apelo porque as pessoas estão procurando coisas reais, e não invenções de magos que fazem chover. Azar da Academia que o aceitou pensando em popularizar-se entre seus leitores. A página de Paulo está sendo virada e dentro de alguns anos ele voltará a ser lembrado apenas como o parceiro de Raul Seixas em algumas de suas melhores composições. Por sorte ele aproveitou seus quase vinte anos de berlinda para ganhar dinheiro a rodo e comprar imóveis em lugares nobres, como o interior da Suíça. Vai ter uma aposentadoria de rei, e morrerá se achando um gênio, enquanto eu vou continuar aqui desconhecido no interior de Minas Gerais, o que, na cabeça da maioria do povo, significa que ele é um “sucesso” e eu, um idiota. Argumentum ad crumenam, mas o povo não liga para falácias, o povo gosta de idolatrar o sucesso, seja qual for. A vida das “famosidades” instantâneas demonstra isso: “artista” no Brasil é quem aparece na TV.

A segunda conclusão é que a auto ajuda cada vez mais se afasta do que seria chamado de “literatura”. Isso é bom para a auto ajuda, porque a literatura está moribunda, e é bom também para a literatura, porque parte de sua doença esteve relacionada à sua contaminação pela auto ajuda. Separadas, veremos como evoluem.

O sintoma mais forte de que a literatura anda moribunda é o sensacionalismo baseado no tamanho. Hoje todo mundo quer escrever trilogias ou, no mínimo, tijolaços. Argumentum ad numerum, mas o povo não liga para falácias. Quanto mais grosso o livro, maior o desafio de escrevê-lo. Desafio é vencer limites físicos, não artísticos. A maioria dos leitores de hoje provavelmente acharia que uma obra breve, como  “O Apanhador no Campo de Centeio”,  é inferior a um peso de porta como “Herança”, último volume da tetralogia de Christopher Paolini. O fato de se poder contar toda a história da tetralogia em vinte ou trinta páginas não faz diferença: um livro de tantas páginas merece respeito, tanto quanto os músculos criados por anos de malhação. O esforço físico importa mais que o efeito. Vivemos uma era que idolatra a teimosia. Talvez por isso o karatê, a arte marcial que idealiza o golpe perfeito, tenha saído de moda, e hoje idolatremos aquela bosta do UFC, uma espécie de briga de rua com regras, tão cronometrada quanto a “luta livre” estilo “tele-catch”, só que com sangue, para “dar realismo”. O carateca “magrelo” é zombado hoje: o objetivo do treinamento é criar massa, tal como o objetivo da literatura é criar páginas.

Isso explica porque os jovens vivem obcecados com trilogias, tetralogias, pentalogias, hexalogias, heptalogias, enealogias, decalogias, fodasselogias. Eles não têm um estilo, mas um objetivo. A ideia é vencer um desafio, não produzir uma obra.

Eu mesmo acabei recaindo nisso ao dizer, zombeteiramente, quando do lançamento de meu romance de estreia: “não produzi mais uma apostila com ISBN para valer de título na Academia, produzi um livro que tem, pelo menos, a dignidade de parar em pé na estante.” Minha declaração maldosa tinha um alvo claro, se ele está me lendo deve estar me xingando, mas tinha uma falha: ao dizer isso eu estava legitimando essas obras que proliferam páginas como um câncer prolifera células. Se o meu livro para em pé na estante, tem gente querendo escrever livros sobre os quais a estante pare em pé. Andar com tais livros é chique, isso é que é livro de macho, mesmo que sua quantidade de páginas seja anabolizada por artifícios que não acrescentam conteúdo. A velha diferença entre crescer, inflar e inchar.

Outra coisa curiosa é que a ampla maioria das obras postas nas estantes de destaque, na entrada da loja, eram literatura de fantasia. Nem estou falando de ficção científica, porque essa exige estudo até para se entender. Estou falando de fantasia desbragadamente desconectada da realidade, ambientada em países fictícios para que o autor não precisa pesquisar sobre um real e o leitor não aprenda, por acidente, algo sobre um que exista. Houve uma época em que o exotismo estava na moda, e muito jovem autor brasileiro queria se chamar Johnny e escrevia histórias ambientadas nos Istêitis, mas o exotismo contém uma busca de conhecimento, da qual a literatura de fantasia está livre, graças a Deus. Se o país e a cultura são inventados a partir do nada, então vale de tudo, dane-se a lógica, foda-se a coerência histórica. Se tudo ficar complicado, aparece um deus ou anjo ou demônio ou dragão e conserta tudo. E sempre se pode ressuscitar o morto para mais um capítulo, ou dar um reboot na história inventando que o nó que a atava era um “sonho”. E vamos que vamos que duzentas páginas ainda está pouco. O bom da fantasia é que sempre se dá um jeito de se chegar aonde se quer, os limites da realidade não interferem.

Claro que a maioria desta fantasia é obra de autores estrangeiros, em sua maioria ianques. Não é um produto cultural, é um fast food que dá mais lucro por ser importado, vindo já de fora com a propaganda grátis das redes sociais e das séries veiculadas na TV por assinatura, onde a classe média se isola da “tosqueira” da TV aberta. Sinceramente, se eu fosse começar de novo a escrever, investiria mais no meu curso de inglês, batalharia um intercâmbio, inventaria um pseudônimo anglo-saxão (aliás, inventei: em certa época andei escrevendo “coisas” sob o nome fictício de Gerald Goldman) e fantasiaria alguma terra imaginária com personagens de nomes toscos baseados em latim macarrônico, pseudogrego ou pseudohebraico. Com um pouco de sorte eu me tornaria famoso, ou então tentaria a sorte dizendo que minha obra era Escritura Sagrada.

No fim de minha visita preferi comprar um pendrive. Saí e entrei num sebo, onde comprei a dez reais o quilo obras muito mais interessantes. O que me dá medo é que os sebos do futuro serão alimentados pelas obras adquiridas hoje. Essas obras abomináveis.

O título deste texto é uma alusão a este conto.

27
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 00:07link do post | comentar
Você não ouviu falar de Christopher Schewe. Dificilmente terá ouvido falar de “shoenice22” — seu nome de usuário no YouTube. Não perde grande coisa, mas a vida e as apresentações deste assim chamado “comediante” da internet podem servir de base para algumas reflexões interessantes sobre quão doentia é a psique coletiva da humanidade.

Sim, você que é bem informado provavelmente já tivera o primeiro vislumbre do real valor do ser humano ao saber que aproximadamente 55% de todo o tráfego da internet se refere a pornografia. Recentemente tomei conhecimento de informações mais precisas sobre o chamado “lado negro da web“, ou “Deep Web“, que corresponde a mais de 90% do conteúdo da internet, e é o domínio de toda espécie de seres ditos “humanos” (entre aspas) que nem deveriam ter o direito de estar vivos: traficantes de drogas, assassinos de aluguel, pedófilos, estupradores, traficantes de escravos, pervertidos sexuais, canibais etc.

Todas estas coisas existem porque há um público. Só quem pregou no deserto foi João Batista.

Mesmo na internet “normal” existem coisas que não parecem normais, que evocam o lado negro, ou simplesmente a filhadaputice encarcerada dentro de cada cavalheiro ou dama. E não é preciso procurar muito, porque parece que estamos chegando a uma “geléia geral” difusa, sem fronteiras entre o aceitável e o escroto.

Houve um tempo em que o povo não tinha nenhum controle sobre a programação do rádio ou da televisão que assistia.  As pessoas, sensatamente, sabiam que tudo aquilo era uma idealização da realidade — que, muitas vezes, recebiam a informação filtrada por olhos e mentes que haviam visto e pensado primeiro. Como dizia Raul Seixas: “Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz”. Sempre havia um tolo que acreditava na novela, mas era do tipo que a gente ria.

O povo, porém, consumia sem entusiasmo este feno pasteurizado que era produzido pelos meios de comunicação de massa. No fundo, as pessoas ansiavam por ver coisas mais viscerais. Lembro do entusiasmo com que meus coleguinhas de escola falavam dos golpes de “tele-catch” ou de filmes de terror como “Sexta Feira 13”, “A Hora do Espanto” e “Halloween”. Acredito até que foi o sucesso estrondoso deste último filme que impulsionou a popularidade das festinhas promovidas pelos cursinhos de inglês, que, enventualmente, sairam de lá e cairam no gosto do povo, como uma espécie de carnaval gótico fora de época.

No fundo sentíamos saudades dos monstros de circo e dos espetáculos extremos. Em séculos passados era possível ir à feira no domingo e ver uma bruxa sendo queimada ou um criminoso sendo estripado na praça. O populacho adorava estas cenas de sangue, nisso filmes históricos hiperviolentos, como “Coração Valente” não se enganaram.

Esse impulso inspirou Kafka a escrever uma de suas mais brilhantes histórias, “O Artista da Fome”, sobre um pobre diabo que atrai a atenção do público jejuando, possivelmente por dinheiro ou talvez por migalhas de atenção apenas. As pessoas querem vê-lo passar tempos cada vez maiores sem comer, trancado em sua jaula, como um miserável animal.

A Internet já nos brindou com algumas figuras tão melancólicas quanto o Artista da Fome, mas nenhuma tão semelhante a ele quanto “shoenice22”. Ele é o legítimo palhaço triste, em toda sua inglória. Com pouco mais de quarenta anos de idade, divorciado, pai de duas filhas, veterano da Guerra do Golfo, filho de hippies fumadores de maconha e concebido e criado num trailer sujo (suas próprias palavras, em um de seus primeiros vídeos). Seu rosto sempre crispado por uma agonia que pode ser física ou não, Christopher propõe e aceita desafios de seus “fãs” pelo mundo. Desafios que consistem em comer ou beber coisas que não deviam ser comidas ou bebidas, ou então comer ou beber coisas de uma maneira inatural e socialmente inaceitável.

Enquanto o francês Michel Lotito comia coisas (quase sempre de metal) cortadas em pequenos pedaços, ao longo de um grande espaço de tempo (levou dois anos para comer um monomotor Cessna 150), Christopher “ShoeNice” Schewe come coisas que possa cortar com os próprios dentes e engolir de forma rápida, filmadas em vídeos sem interrupção, que posta no YouTube com o subtítulo de “funniest man alive”. Mas não é engraçado.

Schewe já comeu uma barra de desodorante sólido, um rolo de papel higiênico, um cheeseburguer com plástico e tudo. Já bebeu vodca, absinto, álcool líquido e tequila. Já bebeu fluido de isqueiro e água de narguilé.

Eu deveria estar tecendo muitas considerações sobre ele, mas é tarde e meu cérebro já desligou. Continuo na quinta feira, amanhã.

10
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 23:49link do post | comentar | ver comentários (2)
ou «Porque os discursos superficiais de ódio ecoam com tanto vigor»
Acabo de me deparar no Facebook com alguém compartilhando a pequena história em quadrinhos acima. Logo que a li percebi que ali havia assunto para mais do que meramente um «Curtir» ou um «Compartilhar», mesmo porque não me senti impelido a nenhuma das duas coisas. Como aquela rede social não é muito receptiva a elucubrações mais compridas, preferi postar aqui, mesmo sabendo que menos gente lerá, curtirá ou compartilhará.


A tirinha expressa, de fato, muito mais do que está dito nas palavras de seu protagonista: ela é a vingança, possibilitada pela instantaneidade do fluxo de informações na internet, daqueles que sempre detestaram a poesia, mas sempre tiveram esse ressentimento represado pela inexistência de um canal que o amplificasse e difundisse. Estas pessoas a quem chamo de «ressentidas» sempre existiram, não passaram a surgir ontem, e possivelmente existiam antes em número muito mais significativo em relação à população em geral.

Portanto, que ninguém interprete esse texto como uma catilinária contra nossos tempos e costumes. Limitar-me a isso seria, de fato, dar eco à crítica, pois seria uma defesa estúpida de algo que, por si, não carece de defesa. Aquilo que existe por si não carece de justificativas. As coisas não têm, em si, nenhuma razão moral de ser, como muito bem disse Nietzsche, em um aforisma que é útil em múltiplos sentidos: não existem fenômenos morais, apenas derivações (ou explicações, segundo algumas traduções) morais dos fenômenos. Muita gente «odeia» a poesia, e no entanto a poesia existe, permanece e existirá. Como disse Mário Quintana, «toda essa gente que fica atravancando o meu caminho, eles passarão, eu passarinho».

O que cabe ser dito é, de fato, tentar entender a consistência desse «ódio» (que vai entre aspas doravante, posto que não é um ódio de fato, mas uma coisa outra, que obedece a leis diferentes do ódio em si, que é uma reação irracional momentânea). É preciso que investiguemos a natureza desse ódio, agora que ele extravasa dos bueiros por onde corria, pois já não é possível ignorarmos que algo cheira mal nessa metafórica Dinamarca.

A principal manifestação do «ódio» à poesia se dirige não contra o texto em si, mas contra o «poeta», este ser esfíngico, admirado de uma forma torta e inadequada, a ponto de a palavra ter sido tomada como epíteto por compositores populares (nem sempre poéticos) e apropriada até mesmo em ditos populares: «fulano, calado, é um poeta». Este «ódio» é, de fato, apenas uma faceta da discriminação agressiva (ou «bullying» como hoje se diz) contra os tipos sociais divergentes de uma norma impositiva. Em uma sociedade como a nossa, na qual a cultura originalmente foi apenas um verniz de civilização, tangibilizado por um diploma devidamente europeu ou pela prática de costumes importados daquelas latitudes, sempre foi natural que certos comportamentos fossem circunscritos a certos grupos sociais. Assim como se espera que o negro seja malemolente, que o suburbano seja esperto, que o interiorano seja ingênuo e que o baiano seja indolente; nunca se esperou que alguém do povo possuísse, de fato, os tiques e taques privativos da elite, entre os quais diplomas, erudição e talentos artísticos. Pobre não faz arte, faz artesanato, não faz poesia, mas faz letra de música. Mais ou menos assim.

Exceções acontecem, quando devidamente legitimadas pela elite, que está frequentemente em busca de ídolos, como um Machado de Assis. Mas quando o talento, mesmo equivalente, não encontra essa legitimação, por alguma razão nem sempre inteligível, o pobre artista, além de fustigado pela pobreza que persiste, ainda sofre o escárnio de uma sociedade que vê nele como postiça e ilegítima a mesma atitude que louva como visceral e própria em um dos luminares escolhidos. Um breve estudo comparativo das obras e biografias de artistas malditos, como Lima Barreto ou Cruz e Sousa, por exemplo, nos deixa com a pergunta incômoda sobre o motivo de não terem sido aceitos por um sistema que aceitava gente de talento evidentemente menor.

As explicações estão dadas acima: residem na divisão de classes de cunho pós-escravagista, divisão que só permite a ascensão social daqueles que são, por alguma razão, «aceitos» pelo sistema. Daqueles que são «branqueados» no processo, tal e qual os pecadores são «lavados no sangue do Cordeiro» para poderem entrar no Reino dos Céus.


Este quadrinho, porém, vai mais fundo do que esta manifestação de escárnio contra os «patinhos feios», que sempre existiu e pôde ser sentida por todos nós que escrevemos, pelo menos uma vez ou duas na vida, a menos que tenhamos sido abençoados com uma idiotice beatífica que nos impede de enxergar o desprezo alheio, ou tenhamos adquirido um calo sensorial que nos insensibiliza para isso. Vai mais fundo porque ele não se limita a zombar dos que «ousam» ser poetas sem terem sido, previamente, autorizados a isso, por um concurso, uma editora, uma academia ou a bênção de um figurão das nossas letras belas. Zomba da poesia em si,  e isso nos exige uma reflexão além.

Por que alguém odiaria poesia, a ponto de execrá-la publicamente, dizendo que «limparia a bunda» com a obra de Augusto dos Anjos? A escatologia é um argumento fácil para quem não tem argumentos. O macaco atira excrementos nos visitantes do zoológico. Não obstante ele continua sendo o macaco,  e os visitantes continuam sendo os visitantes. Atirar excrementos não modifica a situação de submissão e desumanidade do símio enjaulado e nem desumaniza os visitantes, que poderão lavar-se depois e ter uma divertida história para contar. E limpar a bunda com a poesia de Augusto dos Anjos em nada a modifica, e nem à bunda de quem a usou para tal fim. Evidentemente essa manifestação bárbara de desprezo pela obra de alguém que morreu há tanto tempo expressa algum tipo de sentimento mais profundo e duradouro do que o desprazer de não ter gostado de um ou dois sonetos. Qual a jaula mental onde se encontra este ser que recorre a excrementos para agredir aquilo que não entende?

Vivemos atualmente uma fase perigosa no mundo, após tantas décadas de triunfo da ciência, com suas conquistas e perigos, com os dois gumes de seus conhecimentos, com a exigência de responsabilidade diante das múltiplas possibilidades de cada conquista nova. Parece que muita gente se assusta com a obrigação de escolher se vai usar a radiação para curar o câncer ou para causá-lo, se vai usar o foguete para nos levar à Lua ou de volta à Idade da Pedra. Diante desses dilemas, há hoje quem reaja ao modo do avestruz mitológico (não o real), que enfia a cabeça na areia diante do susto. Refiro-me à reação anti intelectual que grassa pelo mundo e que, apesar de nossa ignorância de periferia deslumbrada, não começou aqui.

O modo de pensar anti intelectual, não irracional, não confundam por favor, surgiu, de fato, nos Estados Unidos, nos anos sessenta, e hoje podemos ver com clareza como. Alan Bloom já o havia percebido em 1986, ano em que escreveu uma obra hoje esquecida, mas que devia ser mais lida: The Closing of the American Mind («O Fechamento das Mentes Americanas», traduzido porcamente para o português como «O Declínio da Cultura Ocidental», refletindo a subserviência do tradutor e editores, prontos a aceitar o império ianque não apenas como centro do mundo, mas resumo dele). O anti intelectualismo é a crença de que as imperfeições da ciência significam que as soluções científicas não devem ser buscadas. Houve vários momentos de triunfo desta mentalidade, e talvez o mais significativo tenha sido a «luta antimanicomial», que ajudou a desmantelar toda tentativa de abordagem e tratamento científico das patologias da mente em nome de uma filosofia segundo a qual os limites entre a loucura e a normalidade seriam uma convenção social. Ora, vivemos em uma sociedade, e quase tudo nela é convenção social. O triunfo do anti intelectualismo consiste em convencer-nos de que o fato de vivermos sob convenções significa que as convenções são arbitrárias e políticas baseadas nelas são injustas. Em vez de buscar aperfeiçoar as convenções, devemos aboli-las. Com toda sua virtude humanista, a luta antimanicomial abriu caminho para o questionamento da ciência enquanto alternativa viável de abordagem dos problemas sociais. Isto acaba sendo útil aos sistemas de poder, especialmente quando surgem indícios de ação humana na modificação dos padrões climáticos da Terra. Se a ciência está em xeque, então as decisões políticas não precisam considerá-la. Eis o monstro criado pela luta antimanicomial a longo prazo. Tal como não precisamos tratar dos loucos, pois a loucura é uma categoria arbitrária imposta pela cultura, também não precisamos evitar as modificações ambientais que inadvertidamente causamos por nosso estilo de vida, pois os modelos e parâmetros usados pela ciência para determinar a realidade destas modificações são também arbitrários e sujeitos a influências culturais.

O anti intelectualismo é um populismo filosófico. Nada afaga mais o ego instável do ignorante do que ser chamado de sábio. Chame um homem por aquilo que não é e ele se sentirá feliz, desde que acredite sinceramente que não há malícia de sua parte. Desde que ele esteja seguro de que a calúnia é imerecida e o elogio é verdadeiro. Do contrário, se supuser a calúnia uma realidade e o elogio, uma falsidade, reagirá com agressividade. Eu já havia notado isso em 2010, quando escrevi «O Sábio Louco e o Ignorante Vigoroso», pequeno texto no qual observei que, como disse Caetano Veloso, «Narciso odeia tudo que não é espelho». O ignorante odeia o sábio por ele ser sábio, mas quer ter, ele mesmo, o nome de sábio. Diga ao ignorante que o sábio não o é, mas ele sim, e, caso a afirmativa inspire confiança, o afago ao ego do idiota produzirá um deslumbre genuíno.

O ignorante precisa acreditar que não há prejuízo em sua ignorância. De outra forma, sente-se incompleto, precário. Para combater esta sensação de vazio, que o inquieta mas ele não sabe expressar, ele busca o elogio, busca a sensação segura de que «sabe». Venda a este cara a ilusão de que «sabe», de que «pode saber em apenas cinco lições» ou, melhor ainda, que «já sabe». Olavo de Carvalho acredita que conseguiu desmentir Newton e Einstein. Muitos são os que o elogiam, fazendo com que ele se sinta, de fato, um injustiçado pelo Nobel. Dão-lhe até medalha para melhorar a ilusão. Que se multiplica através dos excrementos verbais que ele difunde, e que são assimilados e replicados por outros que, tão vazios quanto ele, aceitamo como sucedânea do conhecimento a mistificação que ele divulga.

Este fenômeno é reforçado quando o ignorante possui algum conhecimento, mas só um pouco. Temei ao homem de um livro só, disse o santo filósofo. Ele não conhece, de fato, quase nada do mundo, mas domina tão bem seu quase nada que adquire uma certeza, uma autoconfiança que intimida. E agarra-se a esta migalha, que lhe confere autoridade.

E onde entra nisso a poesia? Pobre poesia, pobre e inútil poesia. Que sempre sofreu com esta pecha de inutil, e graças a Deus que ela o é. A pior coisa que pode acontecer à literatura é que lhe encontrem alguma utilidade. Não há maior tédio do que nos livros julgados os mais adequados pelo sistema educacional. Se tachados de «educativos» então, aí se encontra um indutor de letargia mais poderoso que a mosca tsé-tsé.

A poesia entra nisso como mais uma manifestação de intelectualidade. Se vivemos uma reação contra a intelectualidade que é útil (ninguém duvida das previsões do tempo, ora bolas, nem da capacidade voadora dos aviões e foguetes), quanto mais contra as pobres formas inúteis de intelectualidade! É muito fácil falar contra a poesia: é algo que poucos entendem, que raros gostam, que poucos praticam. É um saco de pancadas tradicional daqueles que sempre satirizaram os pendores de questionamento que brotassem da boca do pobre. A poesia é o senhor gordo e lento no qual o macaco consegue acertar mais excrementos.

09
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 00:12link do post | comentar

O poetinha desceu do ônibus já suado e despenteado. O óculos empenado na cara, a camisa amassada pela viagem desajeitada, a umidade incomodando por debaixo da roupa, o hálito amargo devido ao nervoso e ao fígado. Bateu no peito para ter certeza de que seu poema, copiado com capricho na velha máquina de escrever, se encontrava ainda intacto. Não estava: tanto suor o amolecera. Retirou-o do bolso e desdobrou com cuidado, quase com lágrimas. O mesmo calor que o molhara não o secaria. Xingou algum palavrão absoluto, mas timidamente o fez. Preferiu cruzar a rua em direção ao humilde teatro onde teria lugar o concurso municipal de poesia, para o qual se inscrevera com aquelas gotejantes exalações das chagas de sua alma torturada. Esperava a glória, não meros três mil reais de prêmio. Mas na falta da glória, o dinheiro cairia bem. Não é verdade que se compra a glória com dinheiro, dinheiro é só uma desculpa que a gente usa, o consolo da glória inatingida, inatingível, definitivamente deixada em outra esquina, numa rua diferente da que tomamos, possivelmente noutro bairro, cidade ou planeta. Quando ganhamos dinheiro a saudade da glória dói um pouco menos, mas ainda dói.

Tinha “vinte e cinco anos de sonho, de sangue e de América do Sul” e “por força desse destino” ouvia o som dos gringos e lia a poesia dos mortos. Julgava-se inteligente o bastante: conhecia as antologias. Estava muito bem informado, de tudo que tocava no rádio ou saía no jornal. Estava na moda, em perfeita simetria com com a televisão e o cinema. Sei que, assim falando, dá para pensar que esse jeito era o óbvio de 93, mas de fato o poetinha era especial de uma maneira: não conseguira ser igual a todos os demais, então restava-lhe o destino de ser diferente. Não por escolha — que teria preferido uma cara mais bonita, uma família rica ou um pinto bem maior.

E estava ali diante do teatro municipal como se fosse receber um prêmio internacional.

Quando chegou ao outro lado da rua, já estranhando que houvesse tão pouca gente, percebeu que Isaura estava sob a sombra de um oiti, vigiando sua chegada como quem tocaia sua caça. Ele não a convidara, claro. Não supusera que poesia lhe interessasse mais do que a vida sexual das tarântulas. Mas ela soubera do concurso, de alguma forma, e viera. Sua primeira esperança foi o engano: talvez só fosse alguém parecida. Esperança falha:

—Boa noite, Isaura. Que surpresa vê-la por aqui?

—Boa noite, Cacai. Você não me convidou, mas eu vim.

—Desculpa não convidar, mas eu não sabia que você gostava de poesia.

—Eu gosto de você.

Então Isaura não viera atrás de poesia, viera mesmo para vigiá-lo, como imaginara.

—Veio sozinha?

—Desculpa não trazer plateia, querido, mas fiquei sabendo muito em cima da hora.

Tomou-a pelo braço e foi entrando. Isaura não era exatamente bonita, mas tinha um corpinho jeitoso, uma voz que não era excessivamente doce e uma dose cavalar de ciúmes injetada nos olhos.

Dentro do teatro fazia uma temparatura que agradaria a Lúcifer. Os ventiladores pareciam maçaricos e as janelas, bocas de fornalhas. Algumas senhoras da sociedade padeciam de leques fora de moda e de uma vontade impossível de falar, tão custoso o esforço de qualquer músculo naquelas circunstâncias. Por sorte anoitecia já, e logo aquele ambiente saariano melhoraria. Demoraria só o suficiente para sua camisa terminar de ficar molhada, seu cabelo arrepiado, seu rosto engordurado de transpiração, o papel ainda mais molengo e os óculos embaçados escorregando no nariz, querendo cair.

Sentaram-se o mais perto possível da porta, pois aquela parede do teatro ficava pelo menos meio oculta pelas copas gordas das árvores. Alguns loucos haviam se sentado junto à parede que acabara de receber o sol de toda a tarde. Mas eles não suavam tanto: não tinham vindo de ônibus e os tecidos caros de suas roupas eram mais porosos à temperatura.

O mestre de cerimônias subiu ao palco, fazendo o teste dos microfones e convidando quem ainda tivesse que entrar. Então apareceu gente de todos os lugares inimagináveis, bem poucos entrando pela porta frontal. Só faltou alguém entrar pela janela lateral, a que se debruçava sobre o fétido riacho, porque pelo menos de uma outra janela entrou alguém. Uma moça de vestido verde, cafona a ponto de parecer cortado de uma cortina velha, tomou a palavra e convidou os autores presentes a se dirigirem aos bastidores, para identificarem-se e tomar conhecimento do protocolo. O poetinha se levantou, pernas bambas e óculos quase caindo da ponta do nariz, e acompanhou-a, juntamente com vários outros, por uma porta ao lado do pequeno palco.

Os bastidores estavam razoavelmente frescos, graças a um aparelho de ar condicionado e ao isolamento termoacústico. Naquele ambiente tão controlado e silencioso o poetinha pôde contemplar os que, com ele, lutariam pela glória das musas.

Era um grupo bastante heterogêneo, com tantas idades, sexos e cores quanto possível. Havia um velhinho de terno que declamava em cochichos, parecendo ensaiar-se, uma garota que não parecia ter mais de quinze anos, um senhor gorducho que usava uma estranha camisa azul estampada de flores psicodélicas, um rapaz que aparentava algum tipo de deficiência mental, uma senhora empertigada, que olhava a todos com um jeito de professora, um sujeito cabeludo, desarrumado e de olhos tristes… e a moça de vestido azul voltou, pedindo a atenção de todos antes que o poetinha tivesse conseguido fixar-se mentalmente em cada um.

— Senhoras, senhores. Venham comigo.

Acompanharam-na até a orquestra, onde foram convidados a sentar-se.

— Permanecerão aqui aguardando a vez. Cada um se levantará quando chamado e se dirigirá ao palco, juntamente com os seus parceiros. Durante as apresentações, pedimos que os que estiverem aguardando, e os que já tiverem se apresentado, permaneçam em silêncio.

O palco, enfeitado de flores de plástico e papel crepom, tinha uma larga mesa para abrigar sete jurados. “Para que tantos?” — pensou o poetinha. Sentou num lugar tão obscuro quanto possível. Deu uma olhada para trás, para ver Irene lá, sentada e acenando. Os demais foram se aboletando cada um a seu gosto.

Resolveu que não os olharia. Fixar-se neles o faria nervoso. Abriu o papel e recomeçou a repetir os versos, que ele mesmo escrevera, mas que pareciam fugidios como se tivessem sido extraídos de uma bíblia marciana.

Não há um número de 0900para encomendar o que lhe falta,mas mesmo então mantenha calmae não quebre ainda o telefonese a noite conseguir inquietar-lhe.Ele é só uma máquina sem culpa,que por dinheiro você pode usar.Não há nenhum comando própriopara desligar da alma essa dor,mas ainda assim mantenha a calmae não quebre o seu computador.Se você lhe perguntar aonde irele não terá resposta para dar:ele é só uma máquina estúpidaque não mente para lhe agradar.Desligue a tomada da paredee todo o perigo vai passar.Não há nenhuma lata que contenhasabores similares ao amor que houve,mas não deprede nunca o mercadose o que mais lhe falta em casanão pode ser comprado lá.Ali é só um refúgio de consumo,templo de quem come em vez de amar.Está tudo certo se você sair,desde que não saia sem pagar.Mas não creia no que dizem esses rótulos,esqueça tudo, tudo está errado:nem prateleiras nem teclados lhe respondemse você lhes perguntar pelo passado.

Tinha receio de ter sido uma má escolha. Cada vez que olhava para trás, nos olhos do público pingado que comparecera, tinha menos certeza de que seus versos inquietos causariam bom impacto. A glória que lhe sorria em sonhos parecia rir-lhe então, e ria dele.

Chamaram a senhora com cara de professora. Ela subiu ao palco desvencilhando-se de uma bolsa que não teve aonde pôr, senão sobre a mesa do júri — pretexto para cumprimentar cada um, vários deles aparentando ser colegas seus na profissão. Postou-se como uma cantora de ópera, abriu os braços como uma estranha ave depenada que ainda quer voar, e começou a declamar versos duros, cortados a martelo e talhadeira, no material eterno da pedra: versos de soneto, mais perfeitos em suas rimas do que claros no que diziam. Terminou deixando em todos a convicção de que sua obra não tinha sequer um hemistíquio deslocado ou um hiato, essa indecência, mas ninguém conseguiu saber exatamente do que falara seu poema.

O rapaz que aparentava deficiência mental foi o segundo. Subiu ao palco ajudado por um bando de crianças e duas professoras de música com violões. As professoras dedilhavam peças pseudoflamencas enquanto as crianças, pelo menos aparentemente, tentavam cantar a Bachina número cinco de Villa-Lobos. Passado um minuto disto, o rapaz deu um desnecessário boa noite e uma criança descalça entrou no palco para lere o poema dele, alguma coisa singela que falava sobre andar descalço na grama. A ideia era piegas ao extremo, os versos eram de uma banalidade total. A menina que lia parecia tropeçar na falta de pontuação. Mas no fim ouviu-se uma salva de palmas ensurdecedora. O poetinha olhou para trás e viu umas dezenas a mais de pessoas: certamente parentes, conhecidos, professores, vizinhos, colegas do moço. Todos gritavam “Jair! Jair! Jair” como se os pés das musas tivessem tocado aquele palco.

Em seguida subiu o velhino de terno, que desfiou, no melhor estilo pregador de praça, uma chorumela religiosa que parecia interminável. E de fato era: ele extrapolou os cinco minutos dados a cada concorrente e, mesmo avisado duas vezes, ainda continuava. Por fim, pegaram-no pelo braço e o ajudaram a descer até seu lugar. Mesmo assim ele ainda andava olhando para trás, em direção ao microfone como a mulher de Ló sentindo saudades de Sodoma, e ainda defenestrando versos que já ninguém ouvia.

Seguiu-se uma sucessão de apresentações mais comedidas, umas duas ou três, todas tão sonolentas que o poetinha cochilou mesmo. Acordou com as palmas dadas à menina de quinze anos, que se curvava diante da platéia, imensamente agradecida, exibindo a bunda para os jurados, por causa de sua saia muito curta. O poeta maconheiro, que ainda não se apresentara, cometeu um ato de terrorismo poético que foi o melhor momento da noite: gritou à garota que agradecesse também aos jurados.

Talvez por vingança, ou sei lá o que, chamaram-no a seguir. Ele subiu ao palco acompanhado de um violão e de uma moça tatuada que lhe levou uma vara de incenso. Deixou-a acesa no chão e dedilhou o instrumento. Começou a declamar, deixando espaços compridos entre os versos, durante os quais as notas percutidas em cada sílaba ficavam reverberando misticamente no ar. Era um poema sobre natureza, discos voadores, sonhos, anjos, coisas psicodélicas e também sobre cogumelos e flores.

Então chamaram o poetinha. Subiu ao palco, amarfanhado e já malcheiroso de suor. Enquanto passava pelos bastidores deram-lhe uma cópia nova do poema, talvez por misericórdia. Mas ainda no caminho até o palco percebeu que haviam “corrigido” algumas coisas com que não concordava, então resolveu ignorar e lere mesmo a sua cópia molhada de suor, escondendo-a atrás da folha nova e rija que lhe haviam entregado.

Fechou os olhos e se imaginou sozinho no próprio quarto. O silêncio geral o ajudou. Olhou para os papéis, que tinha à mão esquerda, ergueu-os no ar e soltou. De repente teve a confiança de que precisava. As duas folhas, nova e velha, caíram dançando pelo ar enquanto ele declamava os versos devagar, parando nas ênfases, exaltando as metáforas, até as que não pusera lá. Como sempre, lembrou-se de fazer duas correções em trechos que soavam mal. Quando terminou, suando sobre as luzes fortes que iluminavam o palco, abriu os braços e se curvou, em agradecimento prévio aos aplausos que não vieram. Veio um silêncio quente, denso, úmido.

Ergueu-se meio eletrificado, mas embebido de uma decepção tranquilamente grande. Uma lágrima brotou escondida num canto do rosto, disfarçou-a limpando a testa e se vingou da moça de verde dando-lhe a mão suada para sair do palco.

O último a subir foi o senhor gorducho de camisa estampada. Este apareceu no palco verdadeiramente transfigurado. Durante o breve trânsito pelos bastidores, desabotoara a camisa e deixara ver sob ela uma outra, de malha, com uma estampa berrante que os óculos embaçados do poetinha não lhe deixaram ver direito. Ouviu-se música: um samba tocado com cuidado no piano do teatro, e o gorducho sapateou no ritmo justo.

O samba foi ralentando, adquirindo um outro andamento, ficando esvaziado como uma chuva que vai emagrecendo no fim da tarde. O homem abriu o peito que soou cavo e potente como um canhão, sua voz rasgou o teatro, com pouca ajuda do fraco microfone. E foi declamando uma série de trovas simples, com rimas do segundo verso com o quarto. Não parecia haver muito nexo entre elas, mas a última foi “matadora”, ao conseguir uma “improvável” rima do nome da amada Ivete com a necessidade de, por causa da distância, namorá-la pela internet. Uma onda de gargalhadas atravessou o teatro, dezenas de vozes de pessoas que achavam surpreendente alguma rima que não fosse do tipo “amor e dor”.

Os jurados, então, deram por encerrada a fase de apresentações e convidaram os presentes, autores inclusos, para o coquetel que estava servido na sala contígua. Após o coquetel seria feita a premiação.

O poetinha foi o último a deixar seu lugar. Não tinha vontadede comer ovo de codorna com fios de ovos, nem salaminho ao limão, nem azeitonas pretas no vinagre. Não beberia nada além de água com gás, possivelmente aceitaria uma rodela de limão no fundo.

Não aconteceu nada de extraordinário no coquetel, além do desfile de frivolidades simples. Meia hora apenas e os salgados se acabando quando finalmente anunciou-se o fim das deliberações dos jurados, que aparentavam a gravidade de quem vai condenar alguém à forca.

— Para o terceiro lugar— anunciou o mestre de cerimônias — Fabiana Lima, com seu poema “Amor aos Pedaços”.

O poetinha achou graça de darem um prêmio à menina. Valera a pena mostrar a bunda aos jurados, afinal.

— Para o segundo lugar, Ana Vicentina Gonçalves, com o poema “Face ao Estige”.

A professora conseguira impressionar aos jurados, afinal, com seu meticuloso exercício de versificação. Devia alguma coisa de genial naquele poema, apesar de soar tão duro. Era uma professora, afinal, e os jurados eram professores. Alguém devia representar a classe naquele concurso.

— Antes de anunciarmos o poema vencedor, gostaríamos de entregar um prêmio realmente especial, pelo conjunto da obra.

O poetinha olhou em torno, tentando adivinhar quem mereceria uma honraria tal. Haveria inadvertidamente entre os pretendentes ao prêmio algum que fosse acadêmico, ou que tivesse já vários livros publicados? Não, não era isso:

— Ao poeta Jair de Sousa Lima, que é um exemplo para todos nós.

Era o rapaz que aparentava deficiência mental. Ele subiu ao palco sorrindo meio abobado, acompanhado de várias outras pessoas, certamente parentes e amigos. Deram-lhe um bonito troféu, maior que os outros dois que já haviam sido entregues.

O poetinha, ainda se sentindo perdido no assunto, resolveu pedir ajuda ao único entre os candidatos que lhe parecia acessível, o poeta maconheiro:

— Quem é esse cara do prêmio especial? Não vi nada de extraordinário na obra dele hoje — perguntou em um cochicho.

— Ora, é só um portador de necessidades especiais que inscreveu alguma coisa no concurso. Para não serem crueis com ele patrocinaram esse prêmio.

— Mas isso não faz sentido, que espécie de concurso é esse em que a gente concorre contra alunos da APAE?

— É um concurso como qualquer outro, ou você acha que é melhor do que o garoto? Você só não tem uma APAE para estudar e uma família para lhe pagar um troféu.

O poetinha quis revidar, mas subitamente deu-se conta de que era aquilo mesmo. Quanto poeta do mundo se empresta a glória da escola onde comprou seu diploma, ou é propelido pelo dinheiro da família até as salas dos melhores revisores, aos selos das melhores editoras e às listas dos mais vendidos? Mais honesto aquele rapaz, que não o fazia por querer, e aquela família que tinha plena consciência de que estava apenas comprando horas de felicidade para ele. Melhor isso que a ilusão de ser um novo gênio literário só porque nasceu no lugar certo e estudou com pessoas influentes. Ou talvez estivesse ressentido, e o ressentimento nos conta mentiras para justificar nossa insignificância.

Por fim o mestre de cerimônias pediu a palavra para o grande momento da noite.

— Senhoras e senhores, neste momento gostaria de pedir uma salva de palmas para o nosso vencedor, com sua obra inovadora e surpreendente, Antônio Gomes e suas “Trovas para Ivete”.

O poetinha quase engasgou com a própria língua. O poeta maconheiro apenas ria.

— Como é isso? “Inovadora”? O cara escreveu umas trovas em redondilha!

— Fica calmo, rapaz, tudo é parte do jogo.

— Como assim, “surpreendente”? A única coisa diferente em todo o poema era a palavra “internet” no final, rimando com o nome da suposta amada dele, que ele só batizou assim por causa da rima!

— Não seja despeitado, o poema dele pelo menos todo mundo entendeu.

O poetinha se levantou para aplaudir, junto com os outros, e os foi acompanhando para fora, mortificado de sair do concurso sem prêmio nenhum, apesar da “obra prima” que arrancara das entranhas de sua própria alma enquanto o sambista gorducho amealhava três mil reais graças a cinco trovas simples sobre amar de longe uma tal de Ivete. Sentia-se ultrajado, esbulhado, feito de palhaço. Apenas o poeta maconheiro o ajudava a ter perspectiva:

— Você esperava o que, rapaz? Um concurso de poesia no interior, com um juri formado pela pequena burguesia local? Queria que dessem o prêmio a um forasteiro como você? Queria que dessem o prêmio a um pobre como um de nós? Que premiassem um poema inconformista, como o seu, ou como o meu?

— Olha, o problema não é eu ter perdido. O problema é “ele” ter ganhado.

— Foda-se isso, você ainda não entendeu para que você e eu servimos aqui? Nós somos só a escada em que eles sobem para ganhar seus certificados inúteis. Estamos aqui para dar brilho à cerimônia deles.

Mesmo assim, eu tenho a certeza de que meu poema era bom. Como não ganhei nada?

O poeta maconheiro o levou à janela que dava para o riacho fétido, o canto onde ninguém queria ir, mostrou-lhe as luzes da cidade e disse:

— Veja só, rapaz, tudo isso é ilusão. Ilusão, ilusão, tudo é ilusão. Eles fazem cerimônias, trocam certificados e títulos, dão-se prêmios, batizam ruas com os nomes de seus parentes. Mas depois eles morrem e fica só a placa na esquina, sem que ninguém saiba quem foi. Tudo é poeira no vento. Esse concurso, esse prêmio, até o dinheiro que o cara ganhou. E não pense que lhe adiantaria alguma coisa se você ganhasse. Adiantaria menos do que adiantou para o gorducho: ele vai beber esse dinheiro em uísque e deixar o troféu num canto da área de serviço. Mas você, faria o que com o troféu, o certificado e o dinheiro? Três mil não consertam sua vida, o certificado não lhe abre nenhuma porta, o troféu é um monstrengo horrível. Fique feliz de ter perdido, e aprecie a companhia.

— Que companhia?

— Você perdeu em ótima companhia nesta noite. Você perdeu em companhia de Augusto Frederico Schmidt, entremeado com versos de Péricles Eugênio da Silva Ramos, Rui Ribeiro Couto, Raul de Leoni e Alphonsus de Guimaraens.

— Você está falando do seu poema?

— Sim, claro. Uma colagem de versos absolutamente lindos, de poemas obscuros de autores absolutamente incontestáveis. E eles nem perceberam e nem premiaram.

O poetinha sorriu:

— Acho que ano que vem tentarei participar com umas traduções de Evgeni Evtushenko que estou tentando a partir do francês.

— Esse é o espírito, cara. Se você não pode ser rei, seja um bom bobo da corte, que é o único com permissão para rir do rei.

O poeta maconheiro recebeu o abraço de sua mulher e convidou:

— Vamos afogar esse seu ressentimento em uma copada generosa de vinho com catuaba?

O poetinha lembrou-se de Irene, acenou-lhe, e, claro, disse que aceitava.


30
Set 12
publicado por José Geraldo, às 14:59link do post | comentar

Desde que em entendo por gente eu me incomodo com o barbarismo. Quando era criança e ainda não falava inglês, incomodava porque eu me sentia excluído da conversa, como se aquelas palavras estranhas inseridas aqui e ali fossem abracadabras que me empurravam para fora do grupo. Mais tarde, depois que me tornei fluente em meu primeiro idioma estrangeiro, percebi que a maior parte dos que empregavam tal recurso estava fazendo pose, só isso. Pronúncia errada, contexto errado. Realmente usavam aquelas palavras e expressões como se fossem abracadabras: pelo choque sonoro e não pelo sentido.

Esse emprego proposital do idioma estrangeiro como uma ferramenta de exclusão ficou mais evidente para mim quando, aos vinte e quatro anos de idade, calhei de reencontrar na noite uma menina que havia sido minha coleguinha no cursinho de inglês. Foi ela que me reconheceu e me chamou para conversar. Estava cursando medicina na UFJF e namorava um carinha de fora da cidade, não sei se de Juiz de Fora mesmo ou de algum lugar mais longe. Alguma coisa em mim, não sei se foi o meu sotaque caipira, que eu nunca perdi, apesar dos diplomas, ou as botinas baratas que estava calçando, alguma coisa afetou o julgamento do namoradinho dela em relação a mim. Depois que já havíamos trocado algumas palavras ele se voltou para ela, simulando que só estava sendo carinhoso, e lhe disse: “honey, please, leave this clown alone and let's dance.” Ou algo assim. Minha amiga ficou lívida, mas eu fingi não ter entendido e ainda permaneci conversando com eles por uns dois ou três minutos antes de despedir-me dizendo “nice to meet you again, Fay, now I must go 'cause it's about the time for my date with a girl at the gate.” Ou algo assim. Só me lembro que saí dizendo que tinha de ir porque estava na hora do encontro que marcara com uma garota na entrada. Não sei qual a cara que o sujeitinho fez porque, naquele momento, eu já estava praticamente de costas para a sua insignificância.

Ao longo da vida eu fui consolidando uma decisão de que não repetiria essa atitude babaca de esconder-me atrás de uma língua estrangeira para me sentir superior a outras pessoas. Fiquei ainda mais firme nesta determinação depois de ler Guimarães Rosa, e entender a beleza do português coloquial como veículo do pensamento. Por fim, decidi que minha determinação de não empregar termos estrangeiros se estenderia também às minhas leituras, e passei a rejeitar autores que fazem uso de tal recurso. Porque existe, mesmo, uma modinha de dar nomes em inglês para blogues, ou a textos avulsos, como se isso fosse uma grife. Em geral esses blogues não têm um conteúdo interessante, mas isso nem me importa: pois mesmo que tivessem eu não estaria interessado em lê-los. Um conteúdo interessante, quando vem contaminado com algo que positivamente não me interessa, é algo que eu só lerei se estiver filtrado. Não tenho tempo para ser esse filtro, não me pagam para isso. Então prefiro limar quem traz esta influência para a página inicial do meu blogue. Censura? Uma escolha não é uma censura contra o que não foi escolhido.

O que podem dizer com alguma razão é que estou sendo quixotesco. Mas minha cruzada de bolso contra o que não gosto não desrespeita nenhum direito alheio: estou apenas exercendo a minha salutar prerrogativa de tentar reformar o mundo. É verdade que o mundo não é muito receptivo a reformas, mas dou minhas marteladinhas de ouro, esperando que a lataria torta entre no jeito.


18
Jun 12
publicado por José Geraldo, às 19:30link do post | comentar | ver comentários (1)
— Faça-me feliz, só hoje!

— Não dá, é muita responsabilidade. É como ter uma ficha só no fliperama.

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Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
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