Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
23
Jan 13
publicado por José Geraldo, às 20:00link do post | comentar
Um dia, conversando casualmente com o meu amigo e também escritor Emerson Teixeira Cardoso, ele me contou uma história curiosa que se passou com ele nos anos 1960, época em que era ator amador em nossa Cataguases natal. Uma história cuja moral, se é que existe alguma, demorei muito para entender.

Era de um grupo não apenas amador, mas também autodidata, que encenava peças diversas na base do amor e do instinto. Certa vez, enquanto ensaiavam para a montagem de “Rinoceronte”, do Eugène Ionescu, calharam de ter a ideia de escrever ao então famoso dramaturgo romeno exilado em Paris, autor da peça. Não sei como conseguiram o endereço, mas conseguiram, e um dos membros do grupo sabia francês, coisa que se sabia naquela época muito mais do que hoje.

Após várias hesitações sobre o conteúdo da carta, que acabou sendo um trabalho escrito a muitas mãos, decidiram que a carta seria mais ou menos assim. Começariam se apresentando como um grupo de teatro amador, localizado no interior do Brasil, em uma cidade que tinha, à época, cerca de 30 mil habitantes. Depois de enfatizarem que tudo o que sabiam de teatro haviam aprendido dos livros que haviam lido sobre o assunto e das peças que haviam ousado encenar, descreviam com minúcias as dificuldades por que passavam e a incompreensão que enfrentavam (e apesar de tudo uma peça teatral daquelas deve ter tido mais público em 1969 do que teria hoje, na mesma cidade, já crescida e mais “desenvolvida”). A carta concluía com uma pergunta ao dramaturgo, como se ele fosse uma espécie de oráculo: “o que devemos fazer?”

A resposta de Ionescu veio quase três meses depois, quando a peça já tinha sido apresentada todas as duas ou três vezes que poderia ser. Era uma frase única, seca, isolada no centro de uma folha de papel ofício:

« tuez-vous »

Meu amigo me contou que todos ficaram perplexos com aquele imperativo formidável pousado na página como um abutre, sutil como uma chifrada de rinoceronte. Não sei se meu amigo já desenvolveu uma teoria sobre as motivações do conselho de Ionescu, ou mesmo se existe uma razão para ele, além do mau humor de um exilado que devia receber centenas de cartas de fãs cada dia.

De fato, tendo refletido posteriormente sobre o enigma desta frase, ainda mais pela carga de gravidade que a exiguidade lhe empresta, eu desenvolvi uma teoria, que vai muito ao encontro (e às vezes de encontro) de certas ideias que eu advogo desde os tempos da revista literária trem azul.

Ionescu, ao tomar conhecimento da existência, no interior do Brasil, de um grupo de pessoas que se dedicava a estudar teatro a partir de livros e montar precariamente as peças teatrais escritas por famosos dramaturgos como ele, deve ter se sentido bastante incomodado com a pergunta que ainda hoje não quer calar em mim quando vejo algo equivalente: o que essa gente pensa que está fazendo?

Veja bem você, vivendo em uma realidade tão específica, e tão oposta à Europa do pós-guerra, enfrentando tantas restrições que te impedem de efetivamente ter acesso à cultura cosmopolita, em uma sociedade que de forma alguma valoriza seu esforço ou compreende o seu trabalho. Se tudo que você faz é tosco, se os seus aplausos são a compaixão de amigos e parentes, se o seu entendimento de teatro se limita aos livros, se seus meios lhe obrigam a improvisar, deformando a cenografia pensada pelo autor etc. Se esta é a sua realidade, você tem mais é que se matar mesmo. Se você vive de costas para a cultura do seu país e busca, ainda que instintivamente, a aprovação de um autor que, por mais talentoso que seja, pertence a outro continente, e praticamente a outro século, então você está se anulando para poder abrir espaço para a imitação do outro. Se você se anula, você se mata metaforicamente. Se você já está morto, matar-se não é uma violência tão maior. Acabe, então, com o serviço já começado. Mate-se.

“Matar-se” adquire, então, um caráter de libertação. Ionescu sabia que os jovens não se matariam por causa de sua frase (que se matassem, porém, se quisessem, que ele provavelmente nem ficava sabendo). Mas ao serem provocados desta forma, certamente eles tiveram uma sacudida que lhes fez pensar muito sobre suas vidas, sua cultura e seus valores.

Talvez tenham se tornado como aquele que, porém, recusa-se a obedecer a esta ordem e, em vez dela, brada de volta aos modelos e ídolos, cuja aprovação inutilmente buscara:

« je tuerai vous »

Com esta determinação em mente, seguir a vida fica mais fácil, porque temos uma desculpa para vivermos. Se não temos um norte, fica fácil seguir o conselho de Ionesco, aliás, o seguimos em modo automático o tempo todo. Talvez, se o norte for firme e a vontade vier acompanhada de algum engenho, talvez não seja preciso confrontar assim, mas com uma frase mais sutil:

« je survivrai »

Porque, talvez, a melhor reação diante de uma determinação que nos destrói não seja destruir o que nos ameça, mas sobreviver. Às vezes a destruição do inimigo nos destrói também.

Pensando desta forma, quer tenha Ionesco pensado assim ou não, o conselho adquire um caráter de verdadeiro oráculo, e os jovens cataguasenses acabaram tendo na mão o direcionamento que esperavam, apenas não da forma que queriam.

21
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 00:23link do post | comentar | ver comentários (2)
O vazio da existência exige que vivamos coisas grandes, posto que não somos grandes. Cada geração padece da crença de que o mundo está decadente e deseja viver tempos interessantes. Isso talvez seja uma explicação para a vontade que tanta gente tem de ver acabar-se o mundo, ou então é só um pretexto para eu postar alguma coisa hoje e atrair algum tráfego…

Para ser sincero, não acredito que tanta gente acredite no fim do mundo, sequer de brincadeirinha. Com tanta coisa séria para se brincar, a sedução do apocalipse acaba merecendo a mesma explicação que a crença propriamente dita nele. Por que, com mil cometas chamejantes, as pessoas querem tanto que o mundo acabe?

Com algum sentimento metafísico poderia eu dizer que isso reflete a dor da morte. Como no antigo filme de zumbis que me apavorou algumas noites da adolescência: «Por que vocês comem cérebros?» — pergunta o protagonista. «Para aliviar a dor…» — responde a zumbi semidestroçada que jaz amarrada sobre uma mesa. «Que dor?» — insiste o estúpido herói, merecendo morrer cedo para aprender a ser idiota. «A dor da morte» — responde ela.

Queremos o fim do mundo porque queremos acabar com a dor, a dor de estarmos vivos. O fim do mundo é um suicídio sem culpa e sem vergonha póstuma. Ninguém falará mal ou bem de você se a sua morte ocorrer no fim do mundo, ou numa guerra. As pessoas que se voluntariam para ambas as coisas estão pensando em aproveitar uma oportunidade única, a de se matarem sem ninguém achar feio.

Isto também vale para quem só curte a brincadeira. Curte porque sabe que é mentira, mas curte porque é uma mentira que é uma utopia. Ah, como seria bonito ver os reptilianos nos matando a todos com suas bombas atômicas, esterilizando o planeta para depois plantarem seus fungos. A única coisa que separa os malucos por apocalipse dos que fazem piadas com o apocalipse é que os primeiros acham que vai acontecer, enquanto os segundos sabem que não, mas gostariam que.

E isto nos leva de volta aos zumbis. E ao inexplicável fascínio que exercem sobre jovens que adorariam ver o apocalipse zumbi acontecendo bem no seu bairro, na sua rua, na praça de alimentação do seu shopping favorito. À parte o fato de que tal coisa não vai acontecer, nada diferencia esta gente dos alegres voluntários que marcharam para as carnificinas da Primeira Guerra Mundial cantando hinos patrióticos e pensando: «ó, que coisa mais bela estar vivo para entrar numa guerra».

Só que guerra não é tão engraçado, guerra está fora de moda. Afinal, se acontecer uma teremos que enfrentar países que nos exportam refrigerantes, brinquedos ou vinhos. Melhor pensar numa guerra difusa, contra um inimigo onipresente. Zumbis ou alienígenas, tanto faz, de qualquer forma é um tipo de fim de mundo, com a vantagem de ser em câmera lenta, para dar tempo de filmar e pôr na internet. E claro, ninguém acredita nisso, tanto quanto os jovens europeus de 1914 não acreditavam que fosse acontecer uma guerra, mas desejam que ela estourasse ainda durante suas vidas, para poderem pegar seus fuzis e assinarem seus certificados de alistamento.

Formas diferentes de desejar morte, mas eu acho mais honesto quem corta os pulsos, porque assume o que quer em vez de esperar uma desculpa sobrenatural para dar um ponto final em sua dor.

16
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 23:27link do post | comentar | ver comentários (3)
Uma amiga postou hoje «numa rede social» (estilo Rede Globo de mencionar não mencionando) que estava com vontade de largar tudo e sumir. Minha primeira reação ao ler o seu comentário foi um pensamento singelo: por que pensamos sempre que, antes de fugir, temos de largar tudo. O que é esse «tudo» e o que representa esse «largar»? Fugir para onde?

Alguém já disse que a Aldeia Global significa que não haverá asilo para ninguém em lugar algum. A frase foi dita num contexto político, mas não é preciso ser um dissidente para se sentir desalojado neste mundo: aonde poderemos ir e achar a paz? Fugiremos para que parte do planeta? Por que não podemos levar «tudo» para lá?

Talvez seja porque exatamente «tudo» seja o que nos faz ter vontade de fugir. Temos «tudo», e isso significa uma falta imensa, um buraco indefinido, que em alguns tem a forma de Deus, em outros tem a forma de qualquer coisa que elejam como séria. Temos tanta coisa. Talvez sonhemos com uma época mais feliz, em que poderíamos carregar «tudo» em uma mochila e sair perambulando pelo mundo. Uma época em que éramos bosquímanos nos planaltos da África Austral, verdadeira felicidade.

Como eu poderia fugir amanhã pela manhã, se isso fosse necessário? Poderia eu desaparecer deixando para trás todos esses móveis, esse computador, minha coleção de discos de rock, minha pequena biblioteca, minha impressora laser, minha geladeira frost-free, minha televisão com tela de plasma de 36 polegadas? Poderia eu carregar meu aparelho de telefone celular, meu cartão de crédito, meus remédios controlados, meu fio dental mentolado e o papel higiênico macio? Quanto de minha vida cabe no meu carro? Poderia eu fugir num carro? Como pagar pela sua gasolina depois de alguns quilômetros?

Largar tudo e fugir, a suprema utopia. O único lugar aonde ainda podemos ir sem levar «tudo» é o túmulo, pois da vida só o «nada» se leva. Enquanto isso vivemos ancorados em nossos portos inseguros, amarrados a armários, fogões, fornos de micro ondas, baixelas de aço inox, e todos esses confortos.

Ontem à tarde, ao voltar de Leopoldina, topei com dois andarilhos pela estrada. Sujos, magros, despenteados, mas vestidos com alinho. Ele com um terno amarrotado e ela com uma roupa de estilo indistinguível. Caminhavam lentamente, com a pouca pressa de quem sabe que vai chegar, fatalmente. Iam trocando palavras e gestos de afeto. Observei-os pelo retrovisor até eles sumirem na curva: ali estavam dois que poderiam fugir largando tudo. Talvez até já tivessem largado. Até mesmo suas vidas. Vagam pelas estradas como fantasmas sem destino. Possuem o nada.

Não os invejei, porém. Gosto das minhas âncoras, de todos os certificados que coleciono em pastas bonitas. Gosto desta varanda. Não quero largar tudo e fugir, mesmo sentido o peso de todas estas coisas tolhendo as minhas pernas aos poucos, mesmo que tudo me afogue devagar, num mar de compromissos e contradições. Talvez a minha amiga, como eu, saiba que não é possível mesmo largar tudo, não sem largar a vida. Estamos condenados ao tudo.

10
Out 12
publicado por José Geraldo, às 21:38link do post | comentar | ver comentários (1)
Tradução de um trecho avulso de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll (obra que se acha em domínio público, tradução feita por mim, ao improviso, já aviso). Com um título novidadoso, homenageante aos recentemente condenados. Dedicado aos que foram condenados, independente de serem ou não culpados, não pelo que fizeram, mas pelo que são.

Disse-lhe o gato
ao rato: «Venha
logo seu bobo
jogarmos
um jogo:
Vamos
ambos
à lei.
Eu lhe serei
promotor
e tu réu.
Venha agora
o tribunal
não demora.
Julgaremos
teu mal
no final.
É que
hoje estou
sentido
e vazio
e mal consigo
o que sirva
para fazer.»
Disse-lhe
o pobre rato
ao gato:
Um júri assim
de improviso,
companheiro,
sem juízo e
nem jurado,
tão sorrateiro
seria errado,
uma perda
de tempo.»
«Júri
e juiz
posso eu
mesmo ser»,
Explicou,
esperto,
o bichano.
«Farei
de tudo
no ato,
que a ti, rato,
réu nato,
condenará,
sem pena,
ao prato.»
Permita a reprodução em qualquer meio, com crédito ao tradutor, que soy yo, se possível sempre com link.

11
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 22:07link do post | comentar
Debate no Facebook sobre o caso dos mendigos que devolveram 20 mil reais. Alguém, não podendo crer que exista gente honesta no mundo, comentou que havia visto a primeira entrevista deles e que eles haviam devolvido por medo: estavam cobrindo o rosto e falavam com a voz trêmula. Outro respondeu que isso não provava nada, pois o Brasil é mesmo um país onde para se fazer algo ético você precisa ter muito receio, fica de vez trêmula e às vezes tem até que esconder o rosto para evitar represálias. Faz sentido.

09
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 23:04link do post | comentar
Se posso destruí-lo, então eu sou melhor do que você. Assim funciona o argumento da força, a ética da opressão. Intimidação física enquanto argumento não é algo tão fácil de detectar porque é a ideologia do poder, é assim que se impõem as leis. E é assim que se fazem os heróis: matando, explodindo, derrubando. O poder de construir algo belo não é tão admirado quanto o de destruir qualquer coisa, bela ou não. Uma arma fascina mais do que uma colher de pedreiro. O punhal é mais estiloso do que a faca de cozinha. A bomba atômica comanda mais admiração do que a dinamite que abre caminhos para a engenharia. Assistir a uma construção é um processo tedioso: não se juntam multidões para ver um arranha-céu subir, mas aglomera-se um povo respeitável para assistir a implosão de um que se tornou “velho”.
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25
Mai 12
publicado por José Geraldo, às 00:23link do post | comentar | ver comentários (2)

Américo dizia-se amargo de propósito: queria treinar rabugice para quando fosse famoso. Então poderia esnobar entrevistas e desfilar namoradas bonitas em carros do ano. Não conseguia nem ficar famoso e nem realmente ser amargo: era apenas triste e apagadiço. Sentava-se na primeira das carteiras para fingir ser estudioso, mas andava sempre com notas ruins e sapatos rigorosamente engraxados. Meticuloso em suas escolhas, enquanto não ficava famoso e amante de modelos perfeitas deixou-se namorar por Jaqueline, que era vesga, magra, sardenta, desconjuntada e fanha. Casou com ela inclusive, pensando em abandoná-la quando finalmente um estúdio de cinema comprasse os direitos de suas histórias ou quando ganhasse na loteria esportiva. Não entendia de futebol nem de cinema: suas histórias não tinham pé nem cabeça e seus palpites eram desastrosamente azarados. Em um famoso teste caracterizado por oito incríveis zebras, acertou os oito resultados, mas falhou em adivinhar que o Flamengo ganharia do Olaria e que o Atlético venceria o Democrata de Sete Lagoas. Nunca abandonaria Jaqueline, nem sequer a traiu, embora jurasse que não a amava muito.

Quando o conheci, no segundo ano do secundário, ele já tinha uma cara de velho, velhíssimo. Talvez tivesse repetido umas três séries. Estava impaciente: tinha que formar-se logo, pois tinha um futuro promissor no comércio.Precisava aprender muito, antes que o tio Jacinto batesse as botas. Tio Jacinto era velhinho e viúvo. Tivera dois filhos, ambos mortos: um de câncer antes dos trinta, outro de desgosto na curva dos quarenta. Não tinha netos. Não tinha ninguém, somente a amizade da irmã e o carinho de Américo, que se dizia interessado na herança, mas chorou profundamente no enterro. Tio Jacinto morreu antes que Américo tivesse aprendido o suficiente. Ninguém teve a ideia de deixar-lhe a loja. Em vez disso, venderam o estoque, dilapidaram o prédio, teriam demolido até o terreno. As aves de rapina que voejam em torno dos cadáveres dos pobres velhos ricos que morrem solitários. Não sobrou o suficiente. A mãe de Américo usou seu quinhão para comprar uma linha telefônica, necessidade da família. Isso foi em 1994. Poucos anos depois o governo privatizou a telefonia e até o cachorro que quisesse podia instalar um aparelho em seu canil. A única herança que Américo jamais recebeu foi a de Jaqueline. Morta cedo: ele sempre fora fraquinha, tortinha, esquisita. Uma pneumonia galopante. Américo ficou prostrado no cemitério até muito depois que o penúltimo parente fosse embora. Talvez tenha sido só então que ele percebeu que seu afeto pela esposa tinha sido sincero. Tarde demais para demonstrar isso, para tê-la feito realmente feliz, para ter sido realmente entregue.

Foi nesse dia que o reencontrei. Tínhamos estado separados por vários anos: ele trabalhando em chão de fábrica e economizando tudo, até unhas. Eu fugira de nossa cidadezinha em busca de algo mais. Passava férias em casa quando me contaram do acontecido. Fui ao enterro em consideração a ambos: tinha sido também um namorado de Jaqueline, antes dele. Nunca lhe contei, é claro. Ainda tenho vergonha disso. Não de não ter contado: de ter sido ela quem me deixou. Depois de um beijo: ainda não entendo o que foi, ela apenas disse que seu anjo da guarda lhe soprara, exatamente no instante de nosso beijo, que algo estava errado e que não daríamos certo. Não deu. Saiu de minha vida e seguiu mancando mais uns anos pela adolescência afora, crescendo e se enredando em si mesma e suas ilusões. Até chegarmos ao segundo ano e encontrarmos lá o Américo, que tinha muito que aprender para um dia herdar a loja do tio solitário e ganhar muito dinheiro, tornar-se dono de uma rede de armarinhos, comprar os concorrentes, ficar famoso, namorar modelos e morrer de tédio.

Mas cheguei atrasado: o cemitério já esvaziado, Américo sozinho lá, perto da tumba, sem coragem até para ajoelhar-se. Eu também não soube o que fazer:  não se sabe nunca o que fazer diante da dor sincera de um homem, mesmo que este homem nem seja exatamente amigo. Mas ele me ouviu, sapatos rangendo de novos na calçada de calhaus arrebentados a marteladas. Não me olhou: não precisava saber quem era. Quem chega atrasado não faz mesmo nenhuma diferença. Mas depois de tempo suficiente para entender que algo não estava certo eu levei um braço ao seu ombro e disse-lhe: «vamos, homem, vamos que a vida segue.» Ele me viu finalmente, com os olhos calejados de tanta lágrima que até a pele em volta deles parecia sangrando. «Não, Geraldo, a vida não segue.»

Mas ele veio comigo. Para onde iria? O que faria? Esperaria fecharem o cemitério? Convidariam-no a sair sem muita educação e ele ficaria sozinho na rua naquela tarde de sábado, vendo os carros insolentes dos ricaços passando, tocando música alta, carregando mulheres bonitas e vulgares rumo a discotecas, festivais ou simplesmente bares. E ele então se veria sozinho, triste, feio. Principalmente triste, órfão de todos os seus sonhos velhos. Velhísssimos.

Já disse que não sei dizer coisas bonitas e nem filosofar. Se não disse, que tenho péssima a memória para coisas recentes, digo agora. Se disse mais de uma vez, que se repita para guardar melhor: ser homem é uma espécie de insensibilidade que se aprende na adolescência. Aprendi muito: por isso sei não ajudar um amigo em um momento de catástrofe. Não, não havia outra palavra. Américo parecia um robô desligado. Depois daquela frase curta e amarga ele não conseguiu, durante horas, dizer nada mais do que acenos, resmungos e uma dor corrente que mantinha fundos os seus olhos, perdidos em poças de tristeza em seu rosto magro e sardento.

Levei-o a praça e nos sentamos lá, como se fôssemos conversar. Veio o sino da igreja, passaram passarinhos, a tarde também se deitou detrás do morro da matriz e a noite foi se desenrolando devagar. Jaqueline estava lá conosco, uma muralha que nos separava. Américo talvez soubesse, ou nunca. Se homem pudesse chorar eu estaria com ele naquela hora: como ele eu também tive um futuro promissor, também fiz planos de poder magoar todos os meus amigos e pisar nos meus inimigos. Por fim estava fingindo férias longas para disfarçar que estava demitido, sobravam-me apenas os meus amigos e nenhuma mulher. Eu nem podia, diferente do Américo, ter saudades de uma morta. Não há tempo para ter sido feliz quando se precisa ganhar muito dinheiro, para tentar comprar a lua que se sonhou quando menino.

Por fim, desisti de ser homem e conformei-me em ser humano. Disse a Américo, com rudeza de palavras, que entendia como ele estava arrasado e que, como ele, eu tinha às vezes até ideias de me matar. Ele se assustou com isso: «Isso não, Geraldo, isso não.» Não compreendi sua rejeição: não fora ele que dissera antes que a vida não continuava? Tudo muda, tudo muda. A vida não continua: ela é um monte de folhas sacudidas pelo vento. A gente vai pulando de folha em folha esperando finalmente cair no chão. Todo mundo tem a ilusão de que alguma folha voará para sempre, que alguma folha não vai nunca chegar na terra, que a tarde será imensamente longa. Todo mundo tem essa sensação de que a vida não são minutos. Américo estava ali, sentindo-se montado em outra folha, ainda não sabia que estava mais perto do chão.

«Você que enterra a sua mulher, e eu que não sei para onde ir.»

Américo sabia, ao contrário de mim, que o que nos torna mais perdidos não é saber para onde vamos, mas não entender de onde, diabos, saímos. Apesar de suas ilusões trituradas pelos dedos duros da vida, ele sabia de onde vinha. Eu estava mais pobre do que ele, perdido até de minha origem, órfão de um passado. Não tinha nem mesmo uma esposa morta para amar com culpa e arrependimento. Não tinha nem remorsos para ilustrar minhas noites. Em mim cabia a frase tanto quanto nele, um futuro promissor transformado em futuro do pretérito, mas a minha dor seria sempre maior que qualquer outra, justificando até eu poluir o luto arrependido de um amigo. Sim, não tinha mais aquele futuro, não tinha nem mesmo escrúpulos de contar a verdade à minha família, de procurar um emprego por lá mesmo, de procurar uma das antigas colegas de escola, talvez a Luciana, que me deixara um bilhete apaixonado dentro de um caderno na noite de formatura: um caderno que eu só fui abrir anos depois, em uma faxina. Então naquele instante, para monstrar a crueldade imensa da sincronicidade, passou a própria, de mãos dadas com um menino. Éramos velhos demais para viver amores de infância: ela tinha uma franja grisalha no rosto ainda bonito e eu escondia uma barriga com a jaqueta dobrada sobre o colo. Tive vontade de segui-la, mas não tive coragem. No meu futuro do pretérito eu tinha.


03
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 22:03link do post | comentar

Essa tirinha foi praticamente um soco na boca do estômago porque utiliza um dos mais geniais recursos da sátira, a inversão do lugar comum. Basta você pegar um conjunto de frases feitas, de conhecimento de seu leitor potencial, e fazer alguma pequena mudança. Pequenas mudanças podem fazer grandes diferenças.

Estamos acostumados com a ideia de que desperdiçada é a vida de quem se entorpece com substâncias que afetam o corpo e a alma, que deixam a vida passar sem amealharem do vil metal. Que tal, porém, introduzir no debate a questão dos que desperdiçam sua vida de outro modo, vivendo vazios, dedicando-se a projetos quiméricos que não levam a nada?

O linguajar do repórter é o dos apresentadores de vespertinos policiais sensacionalistas, ou de jornalísticos noturnos pretensamente denuncistas. Mas troque a cracolândia por uma outra coisa, que tal imaginar uma cafelândia, onde engravatados estressados atravessam dias maquinando números e vendas?

André Dahmer caminha a passos largos para a genialidade.


10
Set 11
publicado por José Geraldo, às 16:41link do post | comentar | ver comentários (1)

Jó era um homem justo. Na velha terra de Uz não havia ninguém tão querido e nem tão invejado. Era rico, mas a riqueza não o havia estragado, em vez disso, fazia dela um instrumento para ajudar o próximo — e era justamente por isso que o tinham em tão alto apreço.

Tinha sete filhos e três filhas, de sua única e amada mulher. Todos já casados e com as respectivas famílias bem encaminhadas. Viver entre os filhos e netos, isso era o que tornava Jó um homem realmente feliz, a riqueza era algo com que ele contava de uma forma quase natural.

A riqueza de Jó havia sido herdada, em grande parte, de seu falecido pai, mas ele a havia aumentado com seu trabalho duro. Tornar-se rico ficara especialmente mais fácil depois que os filhos cresceram, pois passaram, também eles, a contribuir para o crescimento da propriedade. Desta forma, Jó possuía extensos rebanhos de gado, que pastavam pelos campos sob o cuidado de centenas de empregados, com seus cães. Estes animais, entre os quais muitos escravos, como era costume na época, eram saudáveis e bem tratados. Comprar uma rês de Jó era negócio bom sempre — e essa reputação só ajudava a torná-lo um homem mais bem-sucedido.

Por tudo isso, evidentemente, Jó era grato a seu deus. Prestava seu culto doméstico de forma minuciosa e, por via das dúvidas, sempre sacrificava em nome dos filhos, para o caso de algum deles esquecer-se. Desta forma ficava garantida a satisfação do deus, diante de qualquer eventualidade.

Não havia, portanto, aos olhos do povo de Uz, nenhum defeito de caráter que pudesse ser imputado a Jó. Ele era tão perfeito que só poderia mesmo existir como um personagem literário. Mas a vida de Jó estava para mudar, para pior, graças ao seu deus.

O deus de Jó era dado a bravatas e apostas, além de ter o péssimo hábito de ter entre seus servidores celestiais criaturas de caráter duvidoso. Esses defeitos o tornavam propenso a cometer erros, ou melhor, atos que aos olhos dos comuns mortais parecem erros mas que, nas palavras do deus, reveladas a profetas, seriam “parte de um grande plano”.

Um belo dia estava Jeová — esse era o nome do deus de Jó — fazendo aquilo que se faz lá no céu quando os anjos apareceram para fazer o que os anjos fazem na presença de deus, quando Satanás — um servidor celestial particularmente capcioso — apareceu no meio eles, aparentemente de forma costumeira. Digo isso porque Jeová o reconheceu, cumprimentou e chamou de lado para uma conversinha amigável:

— E então, Satã, o que tem feito, meu filho?

— Velho, o Senhor sabe como é, estive andando lá pela terra, de um lado para o outro, só azarando…

— Ah, então deve ter visto o Jó…

— Jó, Jó… — engasgou Satanás sem se lembrar do nome.

— Ora, Satã, está ficando gagá antes de seu pai? Jó, aquele cara lá da terra de Uz que gosta de mim mais do que a minha mãe!

— Mas o Senhor não disse para a gente que não teve mãe, que sempre existiu, essas coisas?

— Bem, eu não tive mãe ainda, mas isso é complicado demais para vocês anjinhos entenderem. O que importa é que esse Jó é o maior dos meus fãs, um amigo meu de toda confiança, homem da mais estrita fidelidade. Eu dormiria pelado com ele numa cama sem medo de nada.

— Olha, pai… não fica falando essas coisas que Baal e Marduk reparam. Você nem imaginam a fofoca que esses dois arrumaram sobre os deuses gregos, por muito menos.

— Qué é isso, moleque? Está me estranhando? Sou espada! Espada de fogo!

— Ah, então `tá. Mas o Senhor me falava de um tal Jó…

— Sim, o Jó. Duvido que haja alguém no mundo que tenha tanto amor por mim quanto ele!

— Pai, que é isso!? O Senhor está se gabando do amor de um homem?

— Meu filho, tal como você que é anjo, não tenho sexo. Estou falando de amor espiritual! Você não entende?

— Claro que não, Pai. O Senhor me criou para desconfiar de tudo, para discordar de tudo, para encher o saco de todo mundo. Sou cricri desse jeito porque o Senhor me fez assim.

— É mesmo, da próxima vez que eu for criar um universo não vou brincar de novo dessa história de bem e mal, livre arbítrio etc. Vai todo mundo me obedecer, e pronto!

Satanás ficou quieto. Quando Jeová começava a divagar sobre seus planos para o “próximo universo” o céu inteiro tinha medo. Afinal, para criar um novo universo seria preciso acabar com o primeiro, incluindo todos os anjos, santos e alminhas pagãs.

— Mas o Senhor falava do Jó, e eu não acreditava que ele pudesse ser tão santo.

— Está duvidando de mim, filho? Eu sei tudo!

— Todo pai diz isso — sussurrou Satanás.

— O que foi que você disse? — trovejou Jeová.

— “Todo poderoso Pai do Céu”.

— Ah, bom. Mas se você duvida de mim, aposto com você como a fé do Jó é inabalável. Olha lá!

Jeová mostrou Jó e sua casa através de um “mar de bronze” que havia diante do trono. Estavam todos celebrando uma festa familiar, ao redor de uma farta mesa. Satanás olhou com interesse aquela cena, tentando identificar pecados para cutucar e, depois de alguns minutos, atalhou:

— Que fé coisa nenhuma, ele gosta do Senhor porque é rico. Veja como a mesa dele é farta, veja as roupas de lã alvíssima, a casa de pedra em que vive! Nenhum rico amaldiçoa a Deus, mas aposto que se o Senhor o fizer ficar pobre ele o xingará.

— `Tá apostado! Se eu ganhar você me devolve sua beleza?

Esta foi a primeira aposta feita por Jeová naquele “dia”, mas não a primeira. Satanás sabia muito bem que ele não sabia perder, mas fora criado com uma insaciável ambição. Por isso engoliu em seco, hesitando topar, mas tinha tanta certeza de que humanos, especialmente os do Antigo Oriente Médio, eram umas bestas que topou:

— Se eu ganhar eu quero um terço das estrelas do céu.

— Fechado. Mas não tire a vida e nem a saúde de ninguém, somente riquezas. Você disse que ele me amaldiçoaria se ficasse pobre!

Satanás desceu do céu com a missão de acabar com a riqueza de Jó e fazê-lo blasfemar. Começou a trabalhar logo que chegou a Uz. Arranjou uns capangas barra-pesada que atacaram os campos de Jó, roubando as reses e degolando os empregados. Depois uns anjos vingadores que eram amigos seus reuniram umas nuvens e trouxeram granizos e coriscos para matar as ovelhas e cabras. Estas deram um trabalhão, pois esse bicho ruim não morre fácil: foi preciso um meteorito de meia tonelada no meio da testa de cada uma, mas finalmente morreram, bicho ruim de morrer que é cabra! Por fim as caravanas de Jó foram atacadas e saqueadas por caldeus.

O pobre homem ficou mais pobre que Jó, digo, ficou pobre! Vocês entenderam. Mas continuou tranqüilo, ao lado da mulher e dos filhos. Satanás ficou fulo, mas não tinha mais nada a fazer, porque Jeová já estava com seu Olho-Que-Tudo-Vê bisbilhotando para ver se ele não trapaceava. Voltou ao Céu e teve de entregar sua beleza ao bondoso e onipotente Deus-Pai. Como resultado, virou um bicho esquisito com uma pelagem que parecia de rato, asas que pareciam de morcego, cabeça que parecia de cabra e todo torto. Os anjinhos lourinhos riam dele (como são maus os inocentes anjinhos lourinhos e como Satanás desejou empalar cada um deles e pôr para assar numa fogueira). Enquanto chorava de raiva, Jeová se gabava:

— Tá vendo como Jó é cheio de fé!?

Satanás vociferou entre dentes que haviam ficado fedidos e pontiagudos:

— Mas também… Riquezas vêm e vão e, se ele tem fé, talvez imagine que um dia ganhará de novo. Mas se ele perder a família, que é algo que não se ganha de novo, daí ele ficará triste e vai xingar o Senhor.

— Aposto que não!

— Então tá, eu quero ter um rabo gordo e com uma ponta de flecha no fim se ele não te xingar quando eu matar todo mundo da casa dele!

— Tá feito! Se você ganhar, ficará com um terço das estrelas do céu, embora isso não tenha valor algum porque nós dois sabemos que o céu é só uma abóbada sobre a terra e as estrelas são faisquinhas sem graça que eu pus lá brilhando.

E assim Satanás desceu do Céu pela segunda vez, cheio de ódio, disposto a foder com Jó como pudesse para fazer aquele palerma blasfemar logo. E para não ter trabalho, assim que Jó saiu de casa para trabalhar (em sua nova rotina, trabalhava de 7 às 17 para sustentar a casa), mandou um terremoto que fez a casa cair e matou os seus filhos, genros, noras, netos e também um ricardão que andava por lá. Sobraram apenas Jó e sua mulher, que já era uma senhora de meia-idade.

Com esta catástrofe muitos teriam blasfemado, mas Jó era um sujeito muito zen (ainda que vivesse milhares de anos antes da existência do Japão). Deu um grande suspiro, chorou, chorou, mas não amaldiçoou a Deus.

Satanás, é claro, ficou “pluriputo” da vida, mas nada podia fazer. Pensou em fugir e se esconder debaixo de uma pedra em Plutão, mas Jeová já o tinha visto. Veio chegando, arrastando a sandália na areia, com as mãos para trás, todo irônico, falando com um curioso sotaque mineiro:

— Pois é, Satã. Ó só, o home num xingou não…

Satanás exalou um suspiro de auto-piedade e Jeová, num gesto rápido, puxou um pêlo da bunda do ex-anjo e criou uma cauda longa, grossa, molenga, vermelha e com uma ponta-de-flecha no fim.

Humilhado e sedento de vingança, Satanás soltou os cachorros:

— Mas também você fica trapaceando! Não pode tocar no Jó! Não pode! Puta merda! Enquanto aquele £¢³¬{¢{%@ estiver com saúde vai tolerar tudo! Olha só, ele virou o guru daquela gente! Todo mundo acha que ele é santo porque aguenta tudo calado! Ainda lhe resta saúde e dignidade e isso é suficiente. Se bobear ele vira profeta até! Mas retire sua saúde e faça o povo perder o respeito por ele que ele vai xingar o Senhor e todas as hostes do céu!

— Você acha?

— Acho!

— Aposto que não!

— Aposto que sim, mas só se você me der poderes quase iguais aos seus e me deixar dominar a Terra para sempre! Quero ser Senhor do mundo inteiro!

Num ato indigno de um ser onisciente (e ainda menos digno de um ser sumamente bom), Jeová consentiu que Satanás sacaneasse Jó pela terceira vez, apostando contra a fé de Jó a sorte de todo um planeta e de todas as futuras gerações de pessoas e animais.

E assim Satanás desceu do céu com a missão de acabar com todo o respeito de que o pobre Jó ainda gozava. Fez com que ele adoecesse de uma moléstia que causava bolhas fedorentas e urticária pela pele, além de purgar pelos cantos dos olhos. Coçava tanto que ele só conseguia ficar nu se raspando com um caco de telha. Para aliviar a coceira, ele chafurdava numa poça de lama como um porco. Seus cabelos caíram e, como ficava nu, todo mundo percebeu que ele tinha um bilau pequeno.

As pessoas começaram a achar que ele estava doido ou, pior, que ele tinha secretamente cometido um imenso sacrilégio para que os deuses o ferissem tanto. Assim ele perdeu todo o respeito e os seus discípulos e amigos o abandonaram. As crianças riam dele. Sua mulher fugiu de casa com um entregador de kebab. Mas não antes de humilhá-lo publicamente dizendo:

— Veja só o que aconteceu, caro Jó. Perdeste fortuna, família, amigos, saúde e até o respeito de teus semelhantes. Olha que vida miserável estás levando neste poço de lama. Ninguém merece viver assim, nem o pior dos criminosos. E tudo isso foi teu Deus maluco que causou, ou deixou que alguém causasse. Amaldiçoa esse tirano ingrato para ele te mandar um corisco na moleira e te matar, porque só morrendo para ficar livre desse seu Deus.

Jó se recusou a amaldiçoar a Jeová, mesmo porque isso não impediria que sua esposa o abandonasse. E assim perdeu a última pessoa que tinha ao seu lado.

Somente três amigos permaneceram fiéis. Compadecidos da desgraça de Jó, foram conversar com ele. Ao ver o estado em que o amigo estava os três ficaram tão chocados que levaram sete dias tentando criar coragem para chegar perto e puxar assunto.

Mas ele resistiu longamente às ponderações dos seus três melhores amigos, por mais sete proverbiais dias, até que, por fim, com a cabeça confusa de tanto argumento para lá e para cá — e também um tanto oca pela fome e pelo sofrimento — acabou cometendo uma blasfêmia “técnica”, que é algo mais ou menos como um “jogo perigoso” do futebol. Deus viu o seu pé alto e não gostou.

Sim, ele blasfemou por causa de um deslize com as palavras. Não xingou a Deus, mas duvidou de sua bondade, dizendo que não poderia ser por própria culpa que sofria:

— Ó Deus, foste tu que me atiraste aqui nesta lama, e não me ouves quando te peço piedade. Não posso fazer nada contra o teu poder, mas por que tu atacas a um pobre mortal como eu? Terei cometido algum pecado grave sem o perceber? Mas se é contra mim que diriges sua ira, por que mataste meus filhos e meus empregados?

Do céu Jeová contemplava tudo com um interesse de voyeur. Quando Jó blasfemou, Satanás, que estava ao lado do Senhor dos Exércitos, caiu naquela gargalhada que seria imortalizada pelo cinema:

— Uauhahahahaha!

Jeová ficou vermelho-roxo-verde-abóbora.

— Pague a aposta, Pai!

Diante dos milhares de anjos que o olhavam, Jeová não teve como fugir. Cedeu a Satanás um terço de seu próprio poder.

— Muito bem, e agora vou lhe fazer “Senhor do mundo”.

Satanás saltitou sobre seus cascos de bode, todo feliz, achando que tinha ganhado, mas Jeová o agarrou pelos chifres e o atirou no mundo com tanta força que destruiu a Atlântida. E do alto do céu lhe gritou:

— Você queria tanto o mundo! Pois bem, vais ficar preso nele para toda a eternidade, Surfista de Prata!

Sangrando e ainda tentando curar suas muitas fraturas e dentes caídos, Satanás olhou para cima e perguntou:

— Quem?!

Jeová mordeu a língua:

— Desculpe, o incompetente do escritor confundiu as historinhas.

Tendo feito isso, resolveu tentar limpar a cagada toda que tinha feito. Desceu do firmamento a bordo de uma tempestade das mais tonitroantes e foi parar no Oriente Médio, vociferando:

— Vou mostrar a essa cambada quem manda no pedaço!

Chegou na terra de Uz ainda quente de raiva. Jogava coriscos para todo lado, relampejava, esbravejava e fazia chover como nunca chovera lá. De fato, quase nunca chovia lá. Para completar, causou uma erupção vulcânica e derrubou um meteoro. Depois de meter medo até nas pedras e fazer com que as pessoas fugissem para suas casas ou se entocassem em cavernas, assumiu uma forma apresentavelmente humana—apesar dos cabelos de fogo, dos olhos chamejantes, do tamanho descomunal e de uma nuvem escura para esconder sua face—e apareceu diante de Jó e seus amigos, que estavam acovardados como coelhinhos num canil.

— E então, fiquei sabendo que havia uns carinhas por aqui duvidando de minha sabedoria, onipotência, justiça e blá-blá-blá…

Três sorrisos amarelos cumprimentaram o avatar de Jeová:

— Quê é isso, Senhor. Imagina… Vossa magnanimidade é reconhecida pelos quatro cantos da terra. Vós brilhais com justiça e…

— Calem a boca, seus puxa-sacos falsos!

Fez um silêncio total na galáxia.

— Vocês se acham inteligentes? Quem vocês pensam que são para acharem que sabem alguma coisa, suas amebas? Por acaso já contaram as estrelas do céu e os grãos de areia da praia? Hem? Hem? Hem? Pois é, fui eu quem criou a terra, enchi os rios, fiz a serra e não deixei nada faltar! Eu sei de tudo, eu sou quem sou, eu sou o oni-plus-ultra. E vocês são nada! Vocês são uns macacos pelados que ainda nem saíram da Idade do Ferro! Como ousam querer entender os meus desígnios secretos?

Tendo assim exibido sua pirotecnia e feito todo mundo sair cagando de medo, completou:

— Muito bem, Jó. Para lhe provar que eu sou-quem-sou, que eu mando e desmando, faço e desfaço. Vou desfazer tudo o que lhe fiz!

— Ó Senhor dos Exércitos! Vós sois mui justo e mui amável! Magnânimo! Ave!

— Tá, pára! Eu já sei que você só diz isso porque eu estou te pagando!

Jó calou a boca, para evitar que Jeová se enfezasse e mudasse de ideia. Depois de se ajeitar na nuvem, começou a arrumar as coisas.

— Fica saudável!

Jó ficou imediatamente curado de suas pústulas, de um princípio de cirrose que desenvolvera no tempo das vacas gordas entupindo a cara de vinho e cerveja e ainda ficou livre de umas cáries e gengivites. Sua pele ficou mais fresca que uma casca de pêssego.

Jeová olhou para Jó e acrescentou:

— Fica limpo também que você está fedendo mais que um porco suado!

Imediatamente apareceram uns anjinhos que lavaram e perfumaram tanto o pobre Jó que a Terra de Uz ficou cheirando a Jó por cinco séculos.

Jeová olhou de novo, pensou um pouco, olhou para um lado e para o outro para ver se não tinha ninguém olhando e fez o pinto do Jó crescer seis centímetros. Vendo isso Jó caiu no chão de Joelhos dizendo:

— O Senhor, eu não sou digno de tanta bondade!

— Se não parar de me bajular eu o deixo careca!

Jó imediatamente calou-se.

— Pois bem, aparece aí um cabelo… louro… liso…

— Muito bem. Terminei com você!

— Mas Senhor! Vai me deixar pelado aqui no meio do povo? Isso não é pecado?

— Humpf!

E ao resmungar isso, Jeová fez com que Jó se tornasse não apenas o homem mais bem-vestido do Oriente Médio, mas também o mais sortudo para ganhar dinheiro.

— Agora, Jó, vamos trazer de volta a sua família.

Depois de fazer Jó ficar jovem, bonito, louro e rico, Jeová começou a caçar um jeito de trazer de volta da morte os filhos, filhas, escravos, camelos, ovelhas e cabras do Jó—enfim, todos os seus bens materiais. Mas não se lembrava de jeito nenhum de como fazer. Pediu licença a Jó um minutinho e foi até sua nuvem, pegou seu celular e ligou para Satanás:

— Satã. Eu estou achando que eu lhe passei por engano o meu poder de trazer os mortos à vida… Dá para você me devolver? Eu vou precisar dele para cumprir a promessa que fiz aos judeus… sabe como é…

Satanás gargalhou de novo e desligou. Então Jeová voltou da nuvem meio sem jeito e disse a Jó:

—  O negócio é o seguinte, Jó. para deus nada é impossível, mas ao mesmo tempo é contra as minhas regras trazer alguém de volta da morte. Isto só será possível no Juízo Final, entende?

O pobre Jó, que já estava sentindo o gosto de ter de volta seus queridos filhos e filhas, começou a chorar.

— Ora, o que é isso, Jó. Eu vou te compensar. Você vai ser sete vezes mais rico do que antes, os seus novos filhos e filhas serão mais bonitos que os primeiros…

Jó não estava nem um pouco preocupado com isso:

— Senhor, eles não tinham culpa de serem feios, eu os amava mesmo assim!

Então Jeová se lembrou que não passara a Satanás um poder para o qual nunca dera grande importância. A um gesto de seu dedo, ele “secou todo pranto e toda lágrima” de Jó, fazendo-o esquecer de sua mulher infiel e dos filhos mortos.

— Agora, Jó, você vai voltar ao convívio dos homens, vai encontrar uma mulher mais nova e mais bonita e vai ter outra penca de filhos.

E o Jó, o Zumbi feliz desceu para a cidade de Pasárgada cantando aleluias e lá pôde ter a mulher que quis na cama que escolheu.


07
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 20:57link do post | comentar
Eu não devia te dizer. Mas essa lua, mas esse conhaque… deixam a gente comovido como o diabo — Carlos Drummond de Andrade.

Nos encontramos em um bar imaginário, durante uma digressão sonambúlica. Tentei assaltá-lo com uma pergunta, mas ele é refratário a tais abordagens e sempre reverte a tentativa com uma proposição inesperada. Ontem, por exemplo, quando lhe perguntei quem eram as pessoas cujos nomes ele me recomendara conhecer, ele ignorou o que eu dissera e me perguntou se eu tenho escrito. Reconheço que é inútil tentar conduzir a conversa quando se trata dele, então acabei aceitando a pergunta, na esperança de que as dobras do assunto acabassem por esbarrar na resposta do que eu queria descobrir.

Então lhe disse que andava escrevendo pouco, pois preciso de muito silêncio para refletir, e silêncio é uma mercadoria rara, que bem valeria a pena pagar caro para consumir e que eu queria muito, mas muito mesmo, fazer alguma coisa que atraísse atenção, que me trouxesse leitores. Enquanto falávamos disso, e não das outras coisas que eu queria estar discutindo naquele momento, ele ergueu o dedo, como costuma fazer quando está entrando em transe filosófico, e decretou, como um profeta diante do Templo:

— Acredito que você pode fazer qualquer coisa, desde que não tenha a ilusão de que será lido. Ninguém mais lê ninguém. Não dá mais tempo. Há tanto para fazer, tantas sensações para experimentar.

— E no entanto o que nos resta fazer: ganhar centavos de atenção promovendo eventos inúteis? Ficar em casa trancados em nossas ilusões, esperando que alguém nos leia?

— Você fica?

Tive vergonha de admitir que ainda sonhava em ter leitores. Mas ele não me ridicularizou por isso, não ainda. Apenas disse:

— Não tenho mais a ilusão de que um dia serei lido. Estamos no fim de uma era, meu amigo. Sinto-me como um dos últimos romanos, talvez um que escreveu depois da queda do Império. Sinto-me como se já escrevesse em latim bárbaro, como se eu próprio já fosse filho bastardo da civilização que se foi. Que respeito terá o futuro por mim? Ninguém se lembra dos decadentes.

— Se for mesmo assim, meu amigo, pelo menos nos restará termos vivido e amado, da forma especial com que cada ser humano vive e ama.

Ele ouviu a minha frase com impaciência, quase espreitando uma interrupção para cortá-la, com a faca ensanguentada de seu pessimismo:

— Eu digo mais: não seremos amados.

— Nem mesmo pelas putas?

— Acreditar nelas é uma ilusão romântica estúpida. Putas não são românticas, são só mulheres pobres ou viciadas vagabundas que se degradam por dinheiro. Só péssimos poetas têm a mania de acreditar que possa haver uma Dama das Camélias. Exceto pela tuberculose, tudo era ilusão.

— Não quis dizer que a puta nos ame, mas ao vil metal. Quis dizer que ela nos dá amor em troca de nosso dinheiro.

— Nem isso. A puta não precisa do dinheiro, mas das coisas que ele compra. E sempre escolherá quem tenha mais, da mesma forma como o mineiro preferirá a jazida maior: para não ter de viver sempre à procura.

— Ah, mas você está insuportável hoje. Logo quando eu estava sentindo uma vaga inspiração para escrever uma poesia.

— Esse troço de “vaga inspiração para poesia” é frescura.

Tive de rir da minha própria inocência. Eu já devia saber que aquele iconoclasta não resistiria à oportunidade de reduzir a pó minhas intenções póeticas.

— Eu já escrevi poemas, você sabe. Hoje não mais. Eu tive uma revelação sobre o amor que me matou a poesia: nós não amamos ninguém, nós apenas buscamos satisfações.

— Como assim, meu amigo?

— Não amamos o ser, mas a perspectiva daquilo que o relacionamento com tal ser poderá nos dar: prazer, dor, conforto, orgulho, dinheiro. Diga-me, você gosta de amendoeiras, não?

Ele certamente conhecia minha fixação por estas árvores curiosas, sendo uma das poucas pessoas a quem eu mostrara alguns antigos textos sobre elas.

— Sim, gosto.

— É mentira. Você gosta de amêndoas, ou da sombra que a árvore lhe dá. Se a amendoeira não desse amêndoas e nem sombra, você certamente a desejaria destruir.

Naquele momento me senti firme para discordar:

— Isto não é exatamente verdade: existem várias satisfações possíveis, além da mera utilidade.

— Se é uma satisfação, então é uma utilidade. Nada que satisfaça a algo ou alguém é inútil.

— Mas mesmo que ela fosse inteiramente inútil, mesmo que eu a desejasse destruir… você não acha que o impulso de destruir é uma forma de desejo?

— Mas nesse caso você gosta é da destruição, não da árvore inútil.

Mais uma vez, derrotado. Ele perdeu a poesia, que ainda tenho, mas possui uma agudeza que constrange. E tendo sufocado minha resposta ainda no fundo da garganta, sentiu-se a cavalo para pontificar:

— Se você ama a alguém, é porque essa pessoa lhe faz algum bem. Se essa pessoa cessar de lhe fazer esse bem, você deixará de amá-la.

— Creio que há um engano aí, meu amigo. Você subestima a perversidade do ser humano. Na verdade matamos a amendoeira, apesar da amêndoa e apesar da sombra. O homem é como o escorpião da fábula.

O meu amigo ergueu as sobrancelhas ao ouvir-me dizer isto. Interrompeu sua profecia por alguns segundos, bateu na mesa, quase derrubando a cerveja, e admitiu, para minha glória momentânea:

— Você tem razão! Como não pensei nisso antes!? Isto é irracional, mas é verdade.

— Verdade seja dita, meu amigo, é justamente por ser irracional é que é tão humano. É mentira que sejamos diferentes dos animais por agirmos racionalmente, nós somos diferentes deles porque podemos suicidar-nos. Razão é apenas o nome que damos àquilo que nos diferencia do nosso cão, que não sabe dar nomes às coisas.

Meu momento de glória foi abatido em pleno voo por outro ataque de cinismo da parte de meu amigo:

— E quem sabe se o cão não dá nomes às coisas? É possível que apenas não saibamos compreender os nomes que ele dá.

Parei o copo de cerveja no ar, a meio caminho da trajetória até a boca. Aquelas palavras pareciam caindo da língua dele já gravadas em blocos imensos de granito, como tábuas de mandamentos. Eu não conseguia destruir a impressão que elas me causavam. Falhara minha última tentativa de salvar a dignidade humana dos efeitos avassaladores da presença de meu amigo naquela mesa de bar. Ele seguia, de sabre em punho, decapitando minhas ilusões:

— Pode ser. Somos animais, afinal. Embora animais escritores de poesia, animais construtores de canhões. E de fato não há diferença entre um soneto e um canhão: ambos estimulam os mesmos neurônios.

Meu amigo pediu a conta, deixou trinta reais sobre a mesa e se foi embora depois de uma despedida breve, durante a qual mal consegui balbuciar um boa noite. A conta veio menos de vinte reais, mas eu me senti roubado, mesmo ficando com o troco.


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