Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
25
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 23:10link do post | comentar

O amigo leitor que se pergunta o porquê dessa postagem saiba que se trata de uma descoberta notável, que me salvou do ostracismo um dos melhores contos (quase uma noveleta) que eu jamais escrevi. Terminada a história, maravilhosamente ambientada nos «sertões do leste» de Minas Gerais, em um momento indefinido do Segundo Império (vários elementos na história indicam que se trata de um contexto pós-regencial), eis que me dei conta de um imperdoável e imenso anacronismo: o desfecho da história só fazia sentido mediante a atuação de uma força policial reconhecível como tal, do uniforme ao cavalo branco. Só que várias fontes consultadas me disseram que não havia tal força de segurança disponível naquela época e lugar. Fiquei muito chateado com essa descoberta, pus de lado a versão inicial da história, sem sequer fazer a revisão gramatical, e fui seguir com a vida. Hoje, porém, durante uma lida casual na Wikipédia, seguida de uma consulta ao Pai Google da Califórnia (que traz a informação desejada em 0,03 segundos), descobri que de fato havia.

A sensação que tive foi a melhor possível. Foi como descobrir que um velho amigo morto está de fato vivo. Agora posso concluir a história tendo a certeza de que o conto não ficará anacrônico. Ainda bem que não segui as dicas de um famoso blogueiro, que me sugeriu transformar a ação policial em algum tipo de evento sobrenatural (sei lá, com anjos ou demônios solucionando o conflito) ou realocar a história para o século XX. No primeiro caso eu teria criado um brutal deus ex machina (um dos cinco maiores defeitos que, em minha opinião, podem vitimar uma boa história) e no segundo caso teria que reescrever praticamente tudo — e muita coisa não faria sentido em outro momento de nossa história.

Conforme minhas fontes, citadas abaixo, havia uma polícia permanente na província de Minas Gerais, à parte as guardas municipais (subservientes aos políticos locais e, portanto, inúteis para os fins da história) e a Guarda Nacional (basicamente desmobilizada e inepta), apenas era uma força pouco numerosa e de ação limitada à capital e seus arredores (Batitucci, 2010). Tal força, porém, cujo efetivo sempre ficou em torno de 400 a 600 homens (entre praças e oficiais), serve perfeitamente para os fins da história que eu contei. Principalmente porque, em casos de necessidade, poderia incorporar oficiais do exército (Uruguai, 1865) e alistar voluntários temporários, os chamados «pedestres».

Embora tal força nunca tenha estado estacionada em qualquer parte de Minas Gerais a mais de vinte ou trinta quilômetros do Palácio Provincial, então localizado em Ouro Preto, não é descabido imaginar que ela pudesse ser destacada para missões excepcionais, sob o comando de um pequeno grupo de oficiais do exército de linha e aumentada, se necessário, por alguns voluntários — mas nunca por membros das guardas municipais de outros municípios, que por lei nunca podiam ser mandados em missão fora da localidade em que residiam (Vellasco, 2005). Apenas não houve, durante o Segundo Império, nenhum fato que justificasse tal medida excepcional. Ora, como a minha história é uma obra de ficção, eu tenho toda permissão para imaginar um tal evento.

Ademais, existe uma outra possibilidade: a do deslocamento de um corpo de Voluntários da Pátria, rumo ao porto do Rio de Janeiro e à Guerra do Paraguai. Tal corpo de voluntários, sob o comando de um oficial do exército, poderia ser tentado a interferir em um caso tão extraordinário quanto o que ocorre em minha história.

No primeiro caso a força policial seria enviada para resolver uma grave violação da paz civil. No segundo, policiais militares de passagem seriam envolvidos nos eventos. A segunda hipótese é historicamente muito mais verossímil do que a primeira, mas eu ainda estou considerando a possibilidade de mitificar um pouco a história mineira e imaginar uma força policial provincial combatendo o mal nos rincões do estado.

Nos próximos dias estarei revisando o conto, para publicação aqui no blogue. Se você tiver alguma sugestão a fazer sobre qual opção seria melhor, ou se tiver mais dados sobre a história da segurança pública em Minas Gerais, por favor deixe um comentário.

Para terminar brindo meus leitores com um parágrafo da obra do Visconde do Uruguai, exibindo a ortographia etymologica e também uma série de características coloquiais do português brasileiro, hoje proibidas pela gramática (e tem gente que nega que os nossos gramáticos sejam reacionários).

Posto que o acto addicional não se referisse a um typo determinado, nem declarasse o que se devia entender por força policial, comtudo pela significação da palavra, e idéa do tempo, parece que os seus autores tinhão em mente, uma força cidadôa e paisana do que militar propriamente e por isso mais propria para a policia, como é a força policial Ingleza e Franceza que não é militar, e formada e estabelecida em cada Municipio, para auxiliar suas autoridades policiaes.

Em lugar dessa força civil, quasi paisana, tem muitas Assembléas provinciaes criado exercitozinhos, e Corpos policiaes nas Capitaes das provincias, apparatosos, com Estados maiores, musicas, reformas, e muito dispendiosos apezar de serem os Soldados mesquinhamente pagos.

Grande parte da força desses Corpos é conservada nas Capitaes, ás vezes para apparato e falta em muitos Municipios a indispensavel para a guarda das cadêas, prisão de criminosos, serviço que vem a recahir sobre a Guarda Nacional.

A força publica destinada a defender o Imperio de seus inimigos, a manter a segurança e ordem publica, a fazer executar as leis e as ordens das autoridades compõe-se entre nós:

  • Do Exercito ou tropa de linha
  • Dos Corpos policiaes da Côrte e provincias
  • Da Guarda nacional
  • De Corpos de Pedestres em alguns lugares

A tropa de linha é evidentemente impropria para a policia das localidades, e para a execução das ordens das autoridades civis no descobrimento, perseguição e prisão de criminosos. Demais todas as vezes que é muito fraccionada, perde a instrução, a disciplina e desmoralisa-se.

Pela sua composição, principalmente quando são recrutados, dá-se o mesmo inconveniente nos Corpos policiaes, que são hoje uma especie de tropa de linha.

Salvo raras excepções, por motivos cuja exposição seria mui longa, pouco serve a força de linha entre nós para manter a policia nas localidades e executar ordens das autoridades. A força policial pelo modo por que está composta e organisada é insufficiente.

Em muitos lugares a maior parte do serviço policial vem a recahir sobre a Guarda nacional, isto é, sobre aquella parte da Guarda nacional que pela sua pobreza e posição não encontra meios de esquivar-se a um serviço desigual, irregular e frequentemente arbitrario, muitas vezes extremamente vexatorio, e por isso feito de má vontade e mal.

É demais o serviço policial um terrivel instrumento eleitoral para constranger a população desvalida a votar no sentido que convém aos prepotentes do lugar, que ordinariamente são os chefes da Guarda nacional.

Não tive tempo para fazer o cálculo exacto, mas creio que se juntarmos á despeza annual  que se faz com o Exercito, aquella que exigem o Corpo policial da Côrte e o das provincias, a Guarda nacional, etc. veremos subir a somma a a mais de 46 ou 47 mil contos. Veremos mais apparato que serviços reaes. É enorme a despeza e o vexame, e não temos nem Exercito, nem Guarda nacional e nem Policia que mereção esse nome. Temos apparato. Quanto á mim a organisação da força policial nas provincias é viciosa. Em lugar de centralisal-a toda nas Capitaes, conviria localisal-a.

Como se depreende dos parágrafos acima, muita coisa pode ter mudado nesse país, porém não a atração de nossos governantes pelo «apparato» em vez dos «serviços reaes». Tampouco mudou a estrutura das polícias estaduais, esses «exercitozinhos», como as chamou o Visconde do Uruguai. Moldadas a partir do Exército nacional, essas forças tinham mais papel cerimonial, para satisfazer o ego dos presidentes de províncias, do que efetivo. Podem ter ganhado mais poder com o tempo, mas continuam esse ser híbrido entre o exército e o serviço público de segurança. Militares a soldo do estado, mas teoricamente sob o comando do Exército nacional. Um verdadeiro monstro de Frankenstein.

O que o Visconde do Uruguai não diz, possivelmente porque não conseguiu ter esse discernimento, é que o estacionamento da forças policiais nas capitais, e a sua própria falta de efetivos, refletem os resultados da concentração de poder em torno dos «prepotentes dos lugares». Os coronéis da Guarda Nacional, chefes políticos e militares de seus municípios, não desejam uma força policial que não esteja sob seu comando e, por isso, repelem as iniciativas de policiamento mesmo quando necessárias. Em 1847 a província de Minas Gerais tentou estacionar trinta praças no vale do Rio Mucuri, para garantir a segurança das embarcações que utilizavam esta importante hidrovia, por causa da ocorrência de roubos numerosos na região. Os coronéis locais, incomodados com a ingerência provincial, denunciaram a iniciativa ao Conselho de Estado do Império, que eventualmente a julgou inconstitucional (Uruguai, 1865:175).

Nesse ponto o leitor deve estar a se perguntar: como tal força poderia ser decisiva nos graves eventos que meu conto narra se ela não era tolerada pelos coronéis nem para prender piratas fluviais no vale do Rio Mucuri? A resposta é simples: ela seria tolerada se os próprios coronéis a pedissem. Esse é o contexto de minha história: um grupo de coronéis, incomodado com os eventos que formam o pano de fundo do conto, solicita ao presidente da província um destacamento de praças profissionais, para auxiliar seus próprios voluntários civis na tarefa de exterminar o mal. E pronto, eis que temos um belo oficial em seu cavalo branco, portando um uniforme com quepe e dragonas.

A única coisa que me falta é descobrir como seria o uniforme de tais soldados. O conto sai quando eu deslindar isso. Por enquanto, por tudo que li, imagino esses homens vestindo dólmãs azuis com golas pretas e punhos da mesma cor, dragonas douradas nos ombros, calças azuis de brim com risca preta acompanhando o lado externo, botas de cano alto, cintura envolvida por uma faixa verde e amarela e vermelha (cores do brasão imperial). Os soldados usam quepes simples, de bico reto. Os oficiais usam quepes altos com penachos. Quepes sempre azuis, com detalhes em preto ou dourado. O comandante, e talvez algum capitão ou tenente, usa uma faixa diagonal sobre o peito, portanto insígnias de comando. O armamento seriam espingardas para os praças, fuzis para os oficiais. Todos teriam garruchas (pistolas antiquadas). Os praças teriam punhais de lâmina comprida (dois palmos ou mais) e os oficiais teriam espadas cerimoniais. Os voluntários da Guarda nacional seriam sem uniforme e seus oficiais também usariam azul, só que seus uniformes seriam mais elaborados: casacos azuis (não dólmãs) e calças brancas. Polainas em vez de botas. Quepes e dragonas mais elaborados. Imagino interessantíssimas interações entre essas duas forças tão antagônicas e de forças políticas tão díspares. Quem comandaria. Obviamente teria de ser um oficial do Exército, ou os oficiais da Guarda nacional não obedeceriam. Mas este oficial estaria a soldo da província (ganhando menos) e usando um uniforme menos vistoso e de menor prestígio. Acho que isso não vai acabar bem…

Referências

BATITUCCI, Eduardo Cerqueira. “A evolução institucional da Polícia no século XIX: Inglaterra, Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada”. Revista Brasileira de Segurança Pública. Ano 4, número 7, Ago/Set 2010.

LINO, Cássia Renata Scherer. “O Império das Polícias: Federalismo e Estado Unitário no Império do Brasil – 1831-1850. S.l., S.d.

SOUZA, Paulino José Soares de (Visconde do Uruguai). Estudos Práticos Sobre a Administração das Províncias no Brasil, Primeira Parte, Tomo II. Rio de Janeiro: Garnier, 1865.

VELLASCO, Ivan de Andrade. “A Polícia Imperial: Notas Sobre a Construção e a Ação da Força Policial (1831 –1850)”. In: XXIII Simpósio Nacional de História. Londrina:2005.


19
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 22:33link do post | comentar
Na "praça de alimentação" de um grande shopping em uma cidade razoavelmente grande as pessoas, de vários tamanhos e cores, se amontoam em torno de mesas e competem pela atenção dos garçons. Termino de comer um sanduíche, sem me sentar e vou saindo daquela aglomeração opressiva quando percebo um diálogo divertido acontecendo numa das mesas. Aparentemente uma moça pedira licença a um desconhecido para se sentar em sua mesa, e ele aproveitara a oportunidade para apresentar-se e tentar alguma coisa.

A moça, de cabelos pintados de roxo/rosa/burro quando foge, parece mais preocupada em mastigar trocentas vezes os talos e folhas insossos pelos quais está pagando o preço de um prato gordo e nutritivo. Só ele, o estranho, fica sintonizado em outro canal. Enquanto ela ataca outro naco de brócolos com o garfo, fingindo-se interessada na parede pintada de curioso amarelo, o homem gesticula devagar, mas com amplitude, como se quisesse que ela acompanhasse cada dedo.


— Pois sou eu — ele explica. Nunca ouviu aquela minha música que estourou ano passado? Eu estou muito diferente da imagem no vídeo?

Ela o observa rapidamente. Está claro que não se lembra, que acha que o estranho de sotaque cantado e cabelos compridos é só um maluco que se acha celebridade.

A cena me captura a atenção. Simpatizo-me com o homem. Ele não é nem um pouco bonito, a sua fala denuncia uma cultura rudimentar, os seus modos são tímidos, a sua roupa não parece ser a de um astro da música. Mas ele tem um difuso ar "artístico" e os seus olhos contemplam a cabeleira afogueada da garota com um fascínio que o justifica.

Ela, porém, nem parece digna da atenção do pobre cantor anônimo. Embora bonita, ela tem um jeito comum, esquecível, anódino. Uma beleza que vai passar, e sem ela não ficará muita coisa digna de nota. Só que, enquanto jovem e com a tintura fresca na cabeça, ela se acha melhor do que ele, ou eu acho que ela se acha. Por isso ela o contempla com enfado, com um certo arrependimento de não ter comido em pé como eu, junto ao balcão. Pelo menos o funcionário do restaurante tem uma aparência mais moderna e descolada que o cantor, exibindo um cabelo armado e alguns brincos pelas orelhas e cara.

Resolvo traduzir minha simpatia num gesto. Aproximo-me da mesa, faço a melhor cara de surpresa que consigo fingir e digo, imitando uma certa alegria que eu não tenho muito:

— Não acredito! Mas você!… Você, aqui?

O cantor ergue os olhos dos peitos murchos de sua musa e me vê, diante dele, com uma caneta e um bloquinho de notas. Deve ser o primeiro autógrafo que dá nesta cidade, onde não o conhecem ainda. Ele estende a mão como quem tateia o futuro. Treme e treme mais. Mas quando se apossa da caneta, é como se tivesse pego uma espada mística para se transformar em um super herói. Enrijece a coluna, firma os dedos e perpetra os rabiscos que eu esperava.

— Muito bacana o seu novo DVD. Vai cantar na cidade hoje?

— V-vou, vou sim! — ele responde, positivamente embasbacado. Ali tem um cartaz.

Olho na direção indicada e vejo um pequeno anúncio em poucas cores, perdido numa pilastra.

— Vou estar lá para te ver, matar saudades do verão passado, sua música bombava lá na praia.

Despeço-me educadamente e saio de perto dos dois, com a certeza de que não compraria ingressos para vê-lo cantar, nem se fosse o último espetáculo da terra. Mas antes de sumir da vista, olho para trás e vejo o cantor, de óculos escuros, abraçado à garota de cabelos roxo/ruivos enquanto uma outra registra o momento para a posteridade.

29
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 23:24link do post | comentar | ver comentários (1)

O sucesso do mais novo rebento da categoria do filme hollywoodiano baseado em quadrinhos de heróis nos faz novamente refletir sobre o símbolo que a máscara representa para aqueles que com ela se identificam. O herói mascarado, mais especificamente o Batman, herói mascarado mais arquetípico e mais poderosamente enraizado nas nossas neuras e ideais, representa muito mais do que o veículo de algumas horas de diversão violenta, ainda mais quando habilmente manipulado para que sua história deixe de ser quadrinesca e kitsch para adquirir ares adultos. Um movimento que começou com Frank Miller nos anos 1980 e agora nos produz o primeiro filme de super heróis a romper realmente a barreira do infanto-juvenil e ganhar elogios de adultos (embora não de todos os adultos).

Batman faz mais sucesso que a maioria dos heróis, inclusive no quesito ardor dos fãs, porque ele é «um de nós», não um alienígena adotado pelo nosso planeta, como o Super-Homem. Porque seus poderes estão ao alcance de um ser humano dedicado e provido de recursos, em vez de derivarem de uma fonte mística qualquer; como o anel do Lanterna Verde, a filiação divina da Mulher-Maravilha, a divindade de Thor ou  algum improvável acidente nuclear (Hulk) ou elétrico (Flash). Além disso, ao contrário do Homem de Ferro, outro herói que também emprega poderes não sobrenaturais, ele não é fragilizado fisicamente. A fragilidade do Homem-Morcego é uma fragilidade ao mesmo tempo psicológica (derivada do trauma de ter presenciado, impotente, o assassinato dos pais) e moral (seu comportamento de vigilante frequentemente torna aqueles a que combate em monstros piores ou enseja que os bandidos se tornem mais viciosos para lhe fazerem frente).

Estes fatores aproximam o homem comum deste herói, cuja força está nos músculos, no cérebro e no dinheiro — os três poderes mais invejados pelos jovens de hoje. E desde que o atual diretor dos filmes, Christopher Nolan, conseguiu mostrar o herói de forma mais máscula (desviando das antigas suspeitas do relacionamento homossexual com Robin) e independente (tornando-o menos tutelado pela figura paterna do mordomo Alfred), paradigma se tornou mais evidente e o culto ao Cruzado Mascarado cresceu.

Uma coisa que sempre me chamou a atenção nas histórias do Batman foi que os seus vilões o enfrentavam de cara limpa na maioria das vezes. As poucas exceções eram justamente os personagens mais ambíguos, como a Mulher Gato, que eu, desde criança, sempre pensei que queria mais roubar o coração do Morcegão do que as joias dos museus. Pinguim, Coringa, Duas Caras, Charada, Erva Venenosa; quase todos tinham os rostos expostos ou meramente disfarçados por uma máscara que servia mais de adereço do que de disfarce. Diferentemente do Homem-Morcego, em seu pesado traje, que reflete as sombras de sua alma atormentada por uma infância interrompida por um crime absurdo e pelas sequelas de um vigilantismo que frequentemente o expõe às monstruosidades que pretende combater. Como dizia Nietzsche: quando contemplas o abismo, o abismo também te contempla. De tanto contemplar o abismo, o Morcego se torna, também ele, abissal.

Por isso é curioso que justamente esteja sendo considerado este último filme como a culminação de todos os filmes do herói com máscara de quiróptero: pois é justamente o filme no qual ele enfrenta outro que, como ele, tem o rosto oculto por trás de uma máscara. Uma máscara que é o oposto da sua: Batman oculta os olhos, para não ter que encarar de frente o abismo. Bane oculta a boca e se oferece à contemplação, ao mesmo tempo em que contempla, desafiadora e esfingicamente. Bane é um bandido que não tem nada a declarar, ao contrário de outros que muito diziam mas nada significavam, como o Charada, o Coringa ou o Pinguim. Representa a maior expressão da força bruta, descuidada da própria preservação. Sua máscara lhe mantém permanentemente sob o efeito de analgésicos e esteróides e drogas outras. Ele não quer acusar os golpes, porque se os sente talvez não golpeie com tanta força.

Poderia dizer que vejo em Bane uma metáfora para o terrorista suicida. Mas para isso eu teria de comparar a crença religiosa a uma máscara que injeta analgésicos o tempo todo pela goela abaixo de quem a põe. Vocês concordariam com isso? Não sei se eu mesmo concordo.


14
Jun 12
publicado por José Geraldo, às 19:37link do post | comentar
O velho relógio bate nove e quinze no peitosorrindo para um piano que tocou meu lábiocomo o som áspero da morte que vem perto.Como ando provisoriamente vivo, e vivo reto,procuro um desvio que retarde a sorte certaque aguarda os relógios, lábios e pianos.Quando achar um caminho errado destes,escondo minutos da espera que não quero.Aqui comigo nesta sombra, nesta névoa,a ilusão feliz de que tudo ainda é e nada era.

17
Abr 12
publicado por José Geraldo, às 22:00link do post | comentar

Mais um romance concluído, o terceiro de minha amadoríssima carreira. O Reino Esquecido é um romance que mescla vários elementos e personagens para contar a história de Raimundo Gomes e Jacques Erhardt, dois homens que, em momentos diferentes, se apaixonam pela enigmática Estela e pela saga complicada do minúsculo reino medieval da Alsácia-Sarre, de que nunca se ouvira falar.

Embora eu já o tenha dado como «terminado» hoje, ao finalmente alinhavar todos os elementos da história de dos três protagonistas e definir a trama básica, ainda tenho certas vontades ocasionais de dar mais vida a alguns dos personagens. Talvez o faça em uma continuação ou em um conto avulso, ou possivelmente em um capítulo.

Eis a galeria dos personagens:

Raimundo Gomes
Um desajustado rebelde sem causa que foge com um circo, encantado por uma «mulher tatuada», e acaba se tornando, muito mais tarde, um estudante de graduação de História com sonhos de grandeza.
Encarnación Perez
Artista de um circo argentino que se passa por russo. Atiradora de facas, engolidora de espadas e «mulher tatuada».
Jacques Erhardt
Um luxemburguês de classe média-baixa, filho de um imigrante alemão, que se gradua na prestigiada Universidade de Lovaina, mas tem sua reputação complicada por causa de uma pesquisa obscura sobre o misterioso reino medieval.
Phillipe du Plessis
Domador de leões, um sul-africano desertor do exército daquele país na época do apartheid (a história se passa ao longo dos anos setenta e oitenta e termina em 1992). Atormentado pelos fantasmas de seu passado, vicia-se em aguardente e em perigo.
Clarice Souza
Garota pobre e negra, bonita e bastante inteligente, que tenta seduzir Raimundo na época em que ele tenta se reconciliar com seu pai.
Estela Urzaiz
Mulher misteriosa e meio apátrida, nascida na Bélgica de mãe paraguaia e pai espanhol, ambos exilados das ditaduras de seus países natais. Educada em um lar de comunistas, enfrenta o dilema de tornar-se madame da sociedade decadente de um país periférico da América do Sul.
Henrique Gomes
O pai de Raimundo. Um comerciante de mentalidade estreita e temperamento autoritário, que a duras penas aprende a respeitar as idiossincrasias do filho.

Entre esses personagens há dois que particularmente me fascinam, Clarice e Phillipe. Inclusive eu tenho uma grande vontade de fazê-los encontrarem-se e viverem uma tórrida paixão. O difícil é que, na época em que Clarice poderia encontrá-lo, ela teria 25 anos mais ou menos, e ele seus 40 e tantos, já grisalho e meio careca. Ou eu redescrevo o Phillipe (e para isso terei que mudar um pouco sua história prévia), ou envelheço a Clarice (o que é uma covardia, já que mulheres bonitas deveriam ser eternamente jovens), ou desisto de uni-los.


10
Set 11
publicado por José Geraldo, às 16:41link do post | comentar | ver comentários (1)

Jó era um homem justo. Na velha terra de Uz não havia ninguém tão querido e nem tão invejado. Era rico, mas a riqueza não o havia estragado, em vez disso, fazia dela um instrumento para ajudar o próximo — e era justamente por isso que o tinham em tão alto apreço.

Tinha sete filhos e três filhas, de sua única e amada mulher. Todos já casados e com as respectivas famílias bem encaminhadas. Viver entre os filhos e netos, isso era o que tornava Jó um homem realmente feliz, a riqueza era algo com que ele contava de uma forma quase natural.

A riqueza de Jó havia sido herdada, em grande parte, de seu falecido pai, mas ele a havia aumentado com seu trabalho duro. Tornar-se rico ficara especialmente mais fácil depois que os filhos cresceram, pois passaram, também eles, a contribuir para o crescimento da propriedade. Desta forma, Jó possuía extensos rebanhos de gado, que pastavam pelos campos sob o cuidado de centenas de empregados, com seus cães. Estes animais, entre os quais muitos escravos, como era costume na época, eram saudáveis e bem tratados. Comprar uma rês de Jó era negócio bom sempre — e essa reputação só ajudava a torná-lo um homem mais bem-sucedido.

Por tudo isso, evidentemente, Jó era grato a seu deus. Prestava seu culto doméstico de forma minuciosa e, por via das dúvidas, sempre sacrificava em nome dos filhos, para o caso de algum deles esquecer-se. Desta forma ficava garantida a satisfação do deus, diante de qualquer eventualidade.

Não havia, portanto, aos olhos do povo de Uz, nenhum defeito de caráter que pudesse ser imputado a Jó. Ele era tão perfeito que só poderia mesmo existir como um personagem literário. Mas a vida de Jó estava para mudar, para pior, graças ao seu deus.

O deus de Jó era dado a bravatas e apostas, além de ter o péssimo hábito de ter entre seus servidores celestiais criaturas de caráter duvidoso. Esses defeitos o tornavam propenso a cometer erros, ou melhor, atos que aos olhos dos comuns mortais parecem erros mas que, nas palavras do deus, reveladas a profetas, seriam “parte de um grande plano”.

Um belo dia estava Jeová — esse era o nome do deus de Jó — fazendo aquilo que se faz lá no céu quando os anjos apareceram para fazer o que os anjos fazem na presença de deus, quando Satanás — um servidor celestial particularmente capcioso — apareceu no meio eles, aparentemente de forma costumeira. Digo isso porque Jeová o reconheceu, cumprimentou e chamou de lado para uma conversinha amigável:

— E então, Satã, o que tem feito, meu filho?

— Velho, o Senhor sabe como é, estive andando lá pela terra, de um lado para o outro, só azarando…

— Ah, então deve ter visto o Jó…

— Jó, Jó… — engasgou Satanás sem se lembrar do nome.

— Ora, Satã, está ficando gagá antes de seu pai? Jó, aquele cara lá da terra de Uz que gosta de mim mais do que a minha mãe!

— Mas o Senhor não disse para a gente que não teve mãe, que sempre existiu, essas coisas?

— Bem, eu não tive mãe ainda, mas isso é complicado demais para vocês anjinhos entenderem. O que importa é que esse Jó é o maior dos meus fãs, um amigo meu de toda confiança, homem da mais estrita fidelidade. Eu dormiria pelado com ele numa cama sem medo de nada.

— Olha, pai… não fica falando essas coisas que Baal e Marduk reparam. Você nem imaginam a fofoca que esses dois arrumaram sobre os deuses gregos, por muito menos.

— Qué é isso, moleque? Está me estranhando? Sou espada! Espada de fogo!

— Ah, então `tá. Mas o Senhor me falava de um tal Jó…

— Sim, o Jó. Duvido que haja alguém no mundo que tenha tanto amor por mim quanto ele!

— Pai, que é isso!? O Senhor está se gabando do amor de um homem?

— Meu filho, tal como você que é anjo, não tenho sexo. Estou falando de amor espiritual! Você não entende?

— Claro que não, Pai. O Senhor me criou para desconfiar de tudo, para discordar de tudo, para encher o saco de todo mundo. Sou cricri desse jeito porque o Senhor me fez assim.

— É mesmo, da próxima vez que eu for criar um universo não vou brincar de novo dessa história de bem e mal, livre arbítrio etc. Vai todo mundo me obedecer, e pronto!

Satanás ficou quieto. Quando Jeová começava a divagar sobre seus planos para o “próximo universo” o céu inteiro tinha medo. Afinal, para criar um novo universo seria preciso acabar com o primeiro, incluindo todos os anjos, santos e alminhas pagãs.

— Mas o Senhor falava do Jó, e eu não acreditava que ele pudesse ser tão santo.

— Está duvidando de mim, filho? Eu sei tudo!

— Todo pai diz isso — sussurrou Satanás.

— O que foi que você disse? — trovejou Jeová.

— “Todo poderoso Pai do Céu”.

— Ah, bom. Mas se você duvida de mim, aposto com você como a fé do Jó é inabalável. Olha lá!

Jeová mostrou Jó e sua casa através de um “mar de bronze” que havia diante do trono. Estavam todos celebrando uma festa familiar, ao redor de uma farta mesa. Satanás olhou com interesse aquela cena, tentando identificar pecados para cutucar e, depois de alguns minutos, atalhou:

— Que fé coisa nenhuma, ele gosta do Senhor porque é rico. Veja como a mesa dele é farta, veja as roupas de lã alvíssima, a casa de pedra em que vive! Nenhum rico amaldiçoa a Deus, mas aposto que se o Senhor o fizer ficar pobre ele o xingará.

— `Tá apostado! Se eu ganhar você me devolve sua beleza?

Esta foi a primeira aposta feita por Jeová naquele “dia”, mas não a primeira. Satanás sabia muito bem que ele não sabia perder, mas fora criado com uma insaciável ambição. Por isso engoliu em seco, hesitando topar, mas tinha tanta certeza de que humanos, especialmente os do Antigo Oriente Médio, eram umas bestas que topou:

— Se eu ganhar eu quero um terço das estrelas do céu.

— Fechado. Mas não tire a vida e nem a saúde de ninguém, somente riquezas. Você disse que ele me amaldiçoaria se ficasse pobre!

Satanás desceu do céu com a missão de acabar com a riqueza de Jó e fazê-lo blasfemar. Começou a trabalhar logo que chegou a Uz. Arranjou uns capangas barra-pesada que atacaram os campos de Jó, roubando as reses e degolando os empregados. Depois uns anjos vingadores que eram amigos seus reuniram umas nuvens e trouxeram granizos e coriscos para matar as ovelhas e cabras. Estas deram um trabalhão, pois esse bicho ruim não morre fácil: foi preciso um meteorito de meia tonelada no meio da testa de cada uma, mas finalmente morreram, bicho ruim de morrer que é cabra! Por fim as caravanas de Jó foram atacadas e saqueadas por caldeus.

O pobre homem ficou mais pobre que Jó, digo, ficou pobre! Vocês entenderam. Mas continuou tranqüilo, ao lado da mulher e dos filhos. Satanás ficou fulo, mas não tinha mais nada a fazer, porque Jeová já estava com seu Olho-Que-Tudo-Vê bisbilhotando para ver se ele não trapaceava. Voltou ao Céu e teve de entregar sua beleza ao bondoso e onipotente Deus-Pai. Como resultado, virou um bicho esquisito com uma pelagem que parecia de rato, asas que pareciam de morcego, cabeça que parecia de cabra e todo torto. Os anjinhos lourinhos riam dele (como são maus os inocentes anjinhos lourinhos e como Satanás desejou empalar cada um deles e pôr para assar numa fogueira). Enquanto chorava de raiva, Jeová se gabava:

— Tá vendo como Jó é cheio de fé!?

Satanás vociferou entre dentes que haviam ficado fedidos e pontiagudos:

— Mas também… Riquezas vêm e vão e, se ele tem fé, talvez imagine que um dia ganhará de novo. Mas se ele perder a família, que é algo que não se ganha de novo, daí ele ficará triste e vai xingar o Senhor.

— Aposto que não!

— Então tá, eu quero ter um rabo gordo e com uma ponta de flecha no fim se ele não te xingar quando eu matar todo mundo da casa dele!

— Tá feito! Se você ganhar, ficará com um terço das estrelas do céu, embora isso não tenha valor algum porque nós dois sabemos que o céu é só uma abóbada sobre a terra e as estrelas são faisquinhas sem graça que eu pus lá brilhando.

E assim Satanás desceu do Céu pela segunda vez, cheio de ódio, disposto a foder com Jó como pudesse para fazer aquele palerma blasfemar logo. E para não ter trabalho, assim que Jó saiu de casa para trabalhar (em sua nova rotina, trabalhava de 7 às 17 para sustentar a casa), mandou um terremoto que fez a casa cair e matou os seus filhos, genros, noras, netos e também um ricardão que andava por lá. Sobraram apenas Jó e sua mulher, que já era uma senhora de meia-idade.

Com esta catástrofe muitos teriam blasfemado, mas Jó era um sujeito muito zen (ainda que vivesse milhares de anos antes da existência do Japão). Deu um grande suspiro, chorou, chorou, mas não amaldiçoou a Deus.

Satanás, é claro, ficou “pluriputo” da vida, mas nada podia fazer. Pensou em fugir e se esconder debaixo de uma pedra em Plutão, mas Jeová já o tinha visto. Veio chegando, arrastando a sandália na areia, com as mãos para trás, todo irônico, falando com um curioso sotaque mineiro:

— Pois é, Satã. Ó só, o home num xingou não…

Satanás exalou um suspiro de auto-piedade e Jeová, num gesto rápido, puxou um pêlo da bunda do ex-anjo e criou uma cauda longa, grossa, molenga, vermelha e com uma ponta-de-flecha no fim.

Humilhado e sedento de vingança, Satanás soltou os cachorros:

— Mas também você fica trapaceando! Não pode tocar no Jó! Não pode! Puta merda! Enquanto aquele £¢³¬{¢{%@ estiver com saúde vai tolerar tudo! Olha só, ele virou o guru daquela gente! Todo mundo acha que ele é santo porque aguenta tudo calado! Ainda lhe resta saúde e dignidade e isso é suficiente. Se bobear ele vira profeta até! Mas retire sua saúde e faça o povo perder o respeito por ele que ele vai xingar o Senhor e todas as hostes do céu!

— Você acha?

— Acho!

— Aposto que não!

— Aposto que sim, mas só se você me der poderes quase iguais aos seus e me deixar dominar a Terra para sempre! Quero ser Senhor do mundo inteiro!

Num ato indigno de um ser onisciente (e ainda menos digno de um ser sumamente bom), Jeová consentiu que Satanás sacaneasse Jó pela terceira vez, apostando contra a fé de Jó a sorte de todo um planeta e de todas as futuras gerações de pessoas e animais.

E assim Satanás desceu do céu com a missão de acabar com todo o respeito de que o pobre Jó ainda gozava. Fez com que ele adoecesse de uma moléstia que causava bolhas fedorentas e urticária pela pele, além de purgar pelos cantos dos olhos. Coçava tanto que ele só conseguia ficar nu se raspando com um caco de telha. Para aliviar a coceira, ele chafurdava numa poça de lama como um porco. Seus cabelos caíram e, como ficava nu, todo mundo percebeu que ele tinha um bilau pequeno.

As pessoas começaram a achar que ele estava doido ou, pior, que ele tinha secretamente cometido um imenso sacrilégio para que os deuses o ferissem tanto. Assim ele perdeu todo o respeito e os seus discípulos e amigos o abandonaram. As crianças riam dele. Sua mulher fugiu de casa com um entregador de kebab. Mas não antes de humilhá-lo publicamente dizendo:

— Veja só o que aconteceu, caro Jó. Perdeste fortuna, família, amigos, saúde e até o respeito de teus semelhantes. Olha que vida miserável estás levando neste poço de lama. Ninguém merece viver assim, nem o pior dos criminosos. E tudo isso foi teu Deus maluco que causou, ou deixou que alguém causasse. Amaldiçoa esse tirano ingrato para ele te mandar um corisco na moleira e te matar, porque só morrendo para ficar livre desse seu Deus.

Jó se recusou a amaldiçoar a Jeová, mesmo porque isso não impediria que sua esposa o abandonasse. E assim perdeu a última pessoa que tinha ao seu lado.

Somente três amigos permaneceram fiéis. Compadecidos da desgraça de Jó, foram conversar com ele. Ao ver o estado em que o amigo estava os três ficaram tão chocados que levaram sete dias tentando criar coragem para chegar perto e puxar assunto.

Mas ele resistiu longamente às ponderações dos seus três melhores amigos, por mais sete proverbiais dias, até que, por fim, com a cabeça confusa de tanto argumento para lá e para cá — e também um tanto oca pela fome e pelo sofrimento — acabou cometendo uma blasfêmia “técnica”, que é algo mais ou menos como um “jogo perigoso” do futebol. Deus viu o seu pé alto e não gostou.

Sim, ele blasfemou por causa de um deslize com as palavras. Não xingou a Deus, mas duvidou de sua bondade, dizendo que não poderia ser por própria culpa que sofria:

— Ó Deus, foste tu que me atiraste aqui nesta lama, e não me ouves quando te peço piedade. Não posso fazer nada contra o teu poder, mas por que tu atacas a um pobre mortal como eu? Terei cometido algum pecado grave sem o perceber? Mas se é contra mim que diriges sua ira, por que mataste meus filhos e meus empregados?

Do céu Jeová contemplava tudo com um interesse de voyeur. Quando Jó blasfemou, Satanás, que estava ao lado do Senhor dos Exércitos, caiu naquela gargalhada que seria imortalizada pelo cinema:

— Uauhahahahaha!

Jeová ficou vermelho-roxo-verde-abóbora.

— Pague a aposta, Pai!

Diante dos milhares de anjos que o olhavam, Jeová não teve como fugir. Cedeu a Satanás um terço de seu próprio poder.

— Muito bem, e agora vou lhe fazer “Senhor do mundo”.

Satanás saltitou sobre seus cascos de bode, todo feliz, achando que tinha ganhado, mas Jeová o agarrou pelos chifres e o atirou no mundo com tanta força que destruiu a Atlântida. E do alto do céu lhe gritou:

— Você queria tanto o mundo! Pois bem, vais ficar preso nele para toda a eternidade, Surfista de Prata!

Sangrando e ainda tentando curar suas muitas fraturas e dentes caídos, Satanás olhou para cima e perguntou:

— Quem?!

Jeová mordeu a língua:

— Desculpe, o incompetente do escritor confundiu as historinhas.

Tendo feito isso, resolveu tentar limpar a cagada toda que tinha feito. Desceu do firmamento a bordo de uma tempestade das mais tonitroantes e foi parar no Oriente Médio, vociferando:

— Vou mostrar a essa cambada quem manda no pedaço!

Chegou na terra de Uz ainda quente de raiva. Jogava coriscos para todo lado, relampejava, esbravejava e fazia chover como nunca chovera lá. De fato, quase nunca chovia lá. Para completar, causou uma erupção vulcânica e derrubou um meteoro. Depois de meter medo até nas pedras e fazer com que as pessoas fugissem para suas casas ou se entocassem em cavernas, assumiu uma forma apresentavelmente humana—apesar dos cabelos de fogo, dos olhos chamejantes, do tamanho descomunal e de uma nuvem escura para esconder sua face—e apareceu diante de Jó e seus amigos, que estavam acovardados como coelhinhos num canil.

— E então, fiquei sabendo que havia uns carinhas por aqui duvidando de minha sabedoria, onipotência, justiça e blá-blá-blá…

Três sorrisos amarelos cumprimentaram o avatar de Jeová:

— Quê é isso, Senhor. Imagina… Vossa magnanimidade é reconhecida pelos quatro cantos da terra. Vós brilhais com justiça e…

— Calem a boca, seus puxa-sacos falsos!

Fez um silêncio total na galáxia.

— Vocês se acham inteligentes? Quem vocês pensam que são para acharem que sabem alguma coisa, suas amebas? Por acaso já contaram as estrelas do céu e os grãos de areia da praia? Hem? Hem? Hem? Pois é, fui eu quem criou a terra, enchi os rios, fiz a serra e não deixei nada faltar! Eu sei de tudo, eu sou quem sou, eu sou o oni-plus-ultra. E vocês são nada! Vocês são uns macacos pelados que ainda nem saíram da Idade do Ferro! Como ousam querer entender os meus desígnios secretos?

Tendo assim exibido sua pirotecnia e feito todo mundo sair cagando de medo, completou:

— Muito bem, Jó. Para lhe provar que eu sou-quem-sou, que eu mando e desmando, faço e desfaço. Vou desfazer tudo o que lhe fiz!

— Ó Senhor dos Exércitos! Vós sois mui justo e mui amável! Magnânimo! Ave!

— Tá, pára! Eu já sei que você só diz isso porque eu estou te pagando!

Jó calou a boca, para evitar que Jeová se enfezasse e mudasse de ideia. Depois de se ajeitar na nuvem, começou a arrumar as coisas.

— Fica saudável!

Jó ficou imediatamente curado de suas pústulas, de um princípio de cirrose que desenvolvera no tempo das vacas gordas entupindo a cara de vinho e cerveja e ainda ficou livre de umas cáries e gengivites. Sua pele ficou mais fresca que uma casca de pêssego.

Jeová olhou para Jó e acrescentou:

— Fica limpo também que você está fedendo mais que um porco suado!

Imediatamente apareceram uns anjinhos que lavaram e perfumaram tanto o pobre Jó que a Terra de Uz ficou cheirando a Jó por cinco séculos.

Jeová olhou de novo, pensou um pouco, olhou para um lado e para o outro para ver se não tinha ninguém olhando e fez o pinto do Jó crescer seis centímetros. Vendo isso Jó caiu no chão de Joelhos dizendo:

— O Senhor, eu não sou digno de tanta bondade!

— Se não parar de me bajular eu o deixo careca!

Jó imediatamente calou-se.

— Pois bem, aparece aí um cabelo… louro… liso…

— Muito bem. Terminei com você!

— Mas Senhor! Vai me deixar pelado aqui no meio do povo? Isso não é pecado?

— Humpf!

E ao resmungar isso, Jeová fez com que Jó se tornasse não apenas o homem mais bem-vestido do Oriente Médio, mas também o mais sortudo para ganhar dinheiro.

— Agora, Jó, vamos trazer de volta a sua família.

Depois de fazer Jó ficar jovem, bonito, louro e rico, Jeová começou a caçar um jeito de trazer de volta da morte os filhos, filhas, escravos, camelos, ovelhas e cabras do Jó—enfim, todos os seus bens materiais. Mas não se lembrava de jeito nenhum de como fazer. Pediu licença a Jó um minutinho e foi até sua nuvem, pegou seu celular e ligou para Satanás:

— Satã. Eu estou achando que eu lhe passei por engano o meu poder de trazer os mortos à vida… Dá para você me devolver? Eu vou precisar dele para cumprir a promessa que fiz aos judeus… sabe como é…

Satanás gargalhou de novo e desligou. Então Jeová voltou da nuvem meio sem jeito e disse a Jó:

—  O negócio é o seguinte, Jó. para deus nada é impossível, mas ao mesmo tempo é contra as minhas regras trazer alguém de volta da morte. Isto só será possível no Juízo Final, entende?

O pobre Jó, que já estava sentindo o gosto de ter de volta seus queridos filhos e filhas, começou a chorar.

— Ora, o que é isso, Jó. Eu vou te compensar. Você vai ser sete vezes mais rico do que antes, os seus novos filhos e filhas serão mais bonitos que os primeiros…

Jó não estava nem um pouco preocupado com isso:

— Senhor, eles não tinham culpa de serem feios, eu os amava mesmo assim!

Então Jeová se lembrou que não passara a Satanás um poder para o qual nunca dera grande importância. A um gesto de seu dedo, ele “secou todo pranto e toda lágrima” de Jó, fazendo-o esquecer de sua mulher infiel e dos filhos mortos.

— Agora, Jó, você vai voltar ao convívio dos homens, vai encontrar uma mulher mais nova e mais bonita e vai ter outra penca de filhos.

E o Jó, o Zumbi feliz desceu para a cidade de Pasárgada cantando aleluias e lá pôde ter a mulher que quis na cama que escolheu.


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Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
Fechei para textos de ficção. Não vou mais blogar ...
Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
Este saite está bem melhor.
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