Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
13
Mar 13
publicado por José Geraldo, às 11:00link do post | comentar
Um dos problemas de se ter um blogue na internet é que as pessoas ainda não se deram conta de que o direito autoral existe e, pior, não distinguem entre o abuso de direito autoral cometido por uma multinacional que chega a pagar propina a congressistas para estender os prazos de seus direitos, e os de um pobre autor amador e desconhecido que só os quer usar para obter reconhecimento pelo seu trabalho.

Tive dois casos desagradáveis esse ano, de utilização não creditada de trabalhos meus. O primeiro eu ainda estou correndo atrás, para ver se compenso o estrago (que é enorme para as proporções de meu blogue) e o segundo acabou de ocorrer, mas foi tudo deletado já, sem ter causado estrago maior, porque percebi rápido.

No primeiro caso fizeram um e-book com a minha tradução do romance “A Casa no Fim do Mundo” (de William Hope Hodgson) sem incluir link nos créditos (condição exigida pela licença Creative Commons que aplico a tudo no meu blogue) e colocaram na blogosfera e na comunidade brasileira de e-books sem nenhuma menção a não ser uma, minúscula, dentro do arquivo epub. Ou seja, trabalhei mais de 180 horas nesta tradução e não estava tendo nem mesmo o retorno em visitas (e consequentemente AdSense) ao meu blogue. Que tipo de estímulo você pode ter para fazer uma tradução e compartilhá-la com a comunidade blogueira se esta comunidade, em vez de cumprir a condição que você estabelece visando ao seu reconhecimento, prefere “fuzilar” o seu direito como se você não devesse esperar nenhuma remuneração e nenhuma retribuição (sequer moral) pleo seu trabalho?

Quando reclamei, os responsáveis se fizeram de ofendidos, me chamaram de estrelinha, ficaram de mal etc. e só um se comprometeu a modificar os arquivospara incluir  os links. Os demais simplesmente removeram (ao menos temporariamente) os arquivos eletrônicos e se calaram sobre a minha existência. Existem centenas ou até milhares de cópias dessa tradução em e-book que não contém informação correta do responsável pelo trabalho. E o crédito vai para os criadores desses sites de distribuição de conteúdo, que nada pagam e nada se esforçam para traduzir. Vampirizam o trabalho dos amadores para seu ganho pessoal (que, de qualquer forma não deve ser grande). Algumas dessas pessoas certamente devem até estar falando mal de mim por aí, dizendo que sou difícil, irascível.

A causa de tudo isso: o responsável pela criação do e-book jamais teve a ideia de me contactar para sequer me dar um “oi”, nunca me disse que estava distribuindo o meu trabalho e nem me pediu qualquer opinião sobre, talvez, a necessidade de mais uma revisão. Certamente, ao visitar meu blogue, ele se sentiu como quem faz compras. Quem compra um queijo não liga para o supermercado para avisar que o está comendo. Só que o comprador do queijo pagou por ele, e adquiriu o direito de comê-lo sem dar satisfações. No meu blogue é diferente: há um claro aviso, repetido três vezes na página, de que você pode levar o meu queijo de graça, desde que todos saibam que você pegou ele de mim.

Isso é parte de uma mentalidade comum na internet. As pessoas acham revolucionário fuzilar o direito autoral. Adquirimos uma naturalidade no pensar que existe uma classe de pessoas que trabalha de graça. Não peça a um jardineiro que pode sua grama em troca de um sorriso. Mas há quem imagine que se deve traduzir um livro de 160 páginas em troca de nada, nem mesmo o sorriso. E quando você reclama, errado está você com seu “mimimi”, com seu estrelismo. O carinha simplesmente copiou o meu texto e formatou um epub. Teve certo trabalho para isso, porque estava tudo distribuído em 28 páginas do blogue, o que lhe deu bastante tempo para ver alguma das três notícias de licenciamento que há em cada página. Agora existem centenas de pessoas que leram esta tradução e gostaram mas não sabem que fui eu que fiz. Algumas destas pessoas podem ter gostado do livro e gostariam de ler mais coisas do autor, ou poderiam ficar curiosas em saber que outros textos o meu blogue tem, já que gostaram desse. Isso foi negado a esses leitores. Quem reproduziu sem autorização a minha tradução não lesou somente a mim: lesou aos leitores igualmente.

Além de lesados no seu direito de satisfazer uma possível curiosidade por mais conteúdo da mesma fonte, esses leitores foram lesados na possibilidade de conhecer mais sobre a obra de William Hope Hodgson, porque eu não me sinto nem um pouco estimulado a continuar enfrentando a dura tarefa de trazer para o português “The Night Land” sendo que minha primeira grande investida não me trouxe nenhum benefício. Como não parece haver nenhuma editora interessada no autor (que é menos que uma nota de rodapé na história da literatura anglo-americana que se ensina no Brasil), esses leitores não lerão nunca a obra prima de Hodgson porque eu não vou traduzi-la. E os responsáveis pelos sites plagiadores também não vão.


O segundo caso foi ainda pior: um site "de autores" de literatura fantástica publicou sem dar crédito nenhum a minha tradução de "Uma Noite em Malnéant", conto de Clark Ashton Smith. Nem mesmo mencionaram que o tradutor fora eu. Os que violaram a licença de meu trabalho, no primeiro caso, pelo menos tiveram a decência de deixar o meu nome em algum lugar, ainda que sem destaque. Para adicionar insulto à ofensa, o site plagiador é um desses que inclui notícia de copyright nas suas páginas, provavelmente sem ter a mínima ideia do que isto significa.

Ainda estou tentando criar coragem para começar a averiguar que outros textos meus (originais ou traduções) podem ter sido apropriados sem autorização e à revelia da licença. E não sei se fico alegre, pelo interesse que meu trabalho está despertando, ou triste por ver que não tem sido dado valor ao meu esforço, e que a qualidade de meu trabalho, que o leva a ser compartilhado, não importa nada diante da “ofensa” do dono do site, que passa a me boicotar como se eu tivesse exigido a lua em troca de um beijo.

Sim, reitero. Estas pessoas, quando lêem a minha reclamação, em vez de simplesmente admitirem o erro, acham que errado estou eu, que sou o mal educado, o estrelinha, o complicado. Vários sites de e-books preferiram remover o ebook "A Casa no Fim do Mundo" a republicá-lo com as modificações que sugeri. Algo semelhante foi feito no caso da "Noite em Malnéant", o responsável pelo site preferiu despublicar a me dar a atribuição. Se ofendem por eu reclamar meus direitos, mas acham que eu não devo me ofender por se apropriarem do meu trabalho. Comportam-se como se escritores e tradutores fossem uma classe pessoas que não merece ser paga pelo que faz. E não importa que você cobre pouco, numa perversidade de parábola, aquele que tem pouco, mesmo isso lhe será tirado. Uma amiga, de vida nada fácil, certa vez me disse que é melhor cobrar, e caro, porque é muito mais fácil negar os pequenos pagamentos do que os grandes. Muitas vezes ninguém cobra vinte centavos, mas a cidade inteira fica sabendo quando você deve cem mil. Pois eu estou cobrando apenas um link e um nome no pé da página. Mesmo isso me é negado.

Coisas assim me fazem perguntar se ainda vale a pena blogar ficção fantástica. O retorno financeiro é nulo e o meu único objetivo concreto, que é o de obter visibilidade através do meu trabalho, é inviabilizado por esses compartilhamentos sem respeito ao meu ÚNICO PEDIDO que é o de incluir atribuição com link.

"Acabei cometendo um erro de não dar os devidos créditos ao tradutor, mas acho que isso poderia ser resolvido sem carnaval, teria dado os crédito sem problema se me falasse ou despublicar se assim desejasse, mas... Algumas pessoas gostam de aparecer."

É difícil explicar para as pessoas que eu não tenho que lhes pedir crédito. Elas vieram ao meu site e, se se interessaram pelo meu conteúdo, caberia a elas saber como usá-lo de uma forma legal (não somente no sentido jurídico, mas no popular). Quando você faz algo desrespeitando a vontade de alguém, é natural que ela reclame. Não na cabeça dos donos desses sites. Eles acham errado o escritor querer aparecer. 

Mania essa que escritor tem, né? Mania de querer aparecer.

18
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 11:00link do post | comentar
Semana de Carnaval animada e acabo de tomar conhecimento da mais nova travessura do blogue LitFanBR, que costuma esculachar o mercado literário brasileiro, especialmente o voltado para a chamada «Literatura Fantástica» — esse termo genérico para toda obra que inclua coisas que não existem, sejam elas sobrenaturais ou não. Alguém, com o pseudônimo de Super Choque (imediatamente me veio à cabeça a imagem de um nerd negão com óculos de fundo de garrafa e uma fascinação por uniformes) publicou lá um texto que me evocou quatro opiniões que se parecem bastante com as minhas.

À parte o que é opinião exclusiva do anônimo autor, o texto me fez chegar a quatro conclusões com as quais ele talvez concordasse.
  1. A literatura brasileira precisa de mais profissionais.
  2. Autores e editores amadores se desgraçam mutuamente.
  3. É preciso respeitar mais os autores amadores.
  4. Essa situação se deve ao tamanho pequeno de nosso mercado e à colonização cultural, que restringe ainda mais o público leitor.

A Literatura Brasileira Precisa de Mais Profissionais

Venhamos e convenhamos, não existe nenhum glamour em ser amador. Embora eu já tenha dito, em outra ocasião,  que via o amadorismo como uma espécie de liberdade (citando até Clarice Lispector), de fato eu acho que me enganei. O Super Choque disse algo realmente chocante e que me fez reavaliar meus conceitos:
[…] no Brasil são muito raros os autores profissionais, aqueles que não precisam de outra profissão para seu sustento, que podem dedicar-se integralmente a escrever, que podem respirar literatura em cada hora de seu dia. O amadorismo […] cobra um preço grande na qualidade das obras e na capacidade do autor para atingir seus objetivos propostos, inclusive pela dificuldade de dedicar-se à divulgação.
Pensando desta forma, o amadorismo não liberta, mas limita. O amador, ao precisar de outra profissão para o seu sustento, acaba tendo restrito o tempo que pode dedicar-se à literatura. Isto significa que ele não pode aproveitar livremente o fluxo da inspiração e nem destinar suas melhores energias à sua formação e desenvolvimento como autor. De certa forma, podemos dizer que o amador dificilmente conseguirá produzir uma obra de grande fôlego e, se ocasionalmente uma obra amadora possui qualidade, não é sem propósito supor que teria uma qualidade ainda maior se o autor tivesse podido pesquisar mais e poli-la melhor.

Um autor amador, preso ao seu emprego, não tem agenda livre para viajar a eventos de divulgação, para receber repórteres porventura interessados em entrevistá-lo e nem para buscar contatos. Fica como um avestruz, de cabeça enterrada na metafórica areia de sua rotina laboral, enquanto o mundo lá fora muda e cresce.

Por essa razão eu acredito que faz sentido o desejo expresso pelo Super Choque de que a nossa literatura tivesse mais profissionais. Uma literatura com mais profissionais é uma literatura que coloca objetivos estéticos e formais um pouco mais altos, desestimulando aventureiros toscos com suas fanfics irrelevantes. Profissionais não apenas se dedicam a escrever as próprias obras, mas também a ler e comentar as obras dos outros, o que cria um ambiente favorável à crítica (e justamente uma das reclamações babilônicas de nossos literatos é que a crítica literária não existe).

Ora, bolas, não existe porque faltam autores profissionais que a pratiquem e que a exijam. Não existe porque, sem autores profissionais para impulsioná-la, imperam as resenhas encomendadas pelos que se interessam em promover as obras. Propaganda apenas. E propaganda não enxerga os defeitos. Em um ambiente sem crítica profissional, porque não há nomes profissionais de peso na academia e de reputação na mídia que possam ousar romper o círculo de palmas compradas, toda e qualquer tentativa de apontar defeitos será recebida com pedras e tochas. Todos querem ser louvados, e qualquer coisa inferior a uma canonização é insatisfatória para quem precisa recuperar seu «investimento» na publicação.

Não quero, com isso, menosprezar os amadores (como eu mesmo). Não se trata de negar o valor do amador, mas de dizer que, se houvesse mais profissionais, até mesmo a vida do amador seria melhor. Um ambiente cheio de profissionais, e favorável à crítica isenta, geraria oportunidades melhores de desenvolvimento para o amador, lhe imporia desafios mais difíceis (e também mais gratificantes) e deixaria afastados os apedeutas que colocam vírgula entre o sujeito e o predicado mas querem publicar trilogias inspiradas nas lendas célticas sem nunca terem ido sequer a Seropédica.

Pode ser ingenuidade minha, mas quem quer aprender algo novo a cada dia precisa de um mundo com mais professores e profissionais.

Autores e Editores Amadores se Desgraçam Mutuamente

Quando um país se caracteriza tanto, como o nosso, pelo amadorismo, quando ele se generaliza e se cristaliza de tal forma, começa a produzir paradigmas em todas as demais partes do sistema. Estamos aqui falando de literatura, por isso deixemos outras áreas de fora e nos limitemos à outra parte deste sistema: o mercado editorial: Temos muitos editores que são tão amadores quanto os autores, ou ainda mais.
[…] deveria ser parte do ofício do editor oferecer assessoria ao autor. Começando pelo reconhecimento do potencial das obras que tivessem potencial, diferenciando-as das obras meramente derivativas, tolas, egocêntricas ou irrelevantes. Continuando por uma revisão competente, encontrando as contradições e os erros e sugerindo seus consertos. Terminando por fazer um livro bacana e entregá-lo ao autor conforme contratado. E depois de terminar, a assessoria deveria continuar, oferecendo feedback sobre a recepção da obra no mercado, informando ao autor eventuais menções na mídia, etc.

A verdade é que ficou meio fácil fazer uma editora. Há cinquenta anos você precisaria comprar uma máquina de composição tipográfica caríssima, utilizar os equipamentos de uma gráfica para verificar as provas, fazer dezenas de testes com os fotolitos se quisesse botar uma reles ilustração. Ficava caro, muito caro. Então era natural que os envolvidos no mercado editorial fossem pessoas muito preparadas. Era preciso planejar bem, saber onde gastar. Aventureiros faliam em poucos anos.

E havia todo esse trabalho descrito acima pelo Super Choque, porque cada publicação era um investimento, cada autor era uma fonte de recursos. O dinheiro vinha da venda das obras ao grande público, o que significava que era preciso promover o autor.

Daí veio a revolução informática e o desktop publishing. Hoje em dia praticamente qualquer um consegue formatar um livro, gerar uma prova em PDF de alta resolução, corrigir todos os erros antes de gastar uma única folha de papel e encomendar os exemplares de uma gráfica eletrônica, que usa máquinas a laser de alta resolução, capazes de imprimir corretamente até mesmo fotografias. Ficou tão mais barato que aumentou a tolerância ao erro. Pequenas tiragens, que antes eram inviáveis, se tornaram factíveis. Então o apelo comercial de uma obra deixou de ser tão relevante e, se um autor conseguir vender duzentos exemplares para sua família e amigos então ele já está «no mercado», então proliferam editoras para atender a esse nicho.

Publicar um livro virou algo bem fácil e comum porque o autor é o próprio mercado. Entendeu? Vou explicar. A editora não precisa vender o autor, ele que se venda. Agente literário para que se o babaca, digo, o autor, pagará antecipadamente pelos exemplares? Assessoria para quê, se, depois de entregue o livro, fodam-se os erros tipográficos, que o cheque já compensou?

Esse sistema amador de edição, voltado para o autor amador e sem noção, é uma desgraça para ambos — principalmente para o autor. Para o editor eu suponho que o efeito negativo seja a possibilidade de que futuramente se mate a galinha dos ovos de ouro (desvalorizando o livro, em breve ele não será tão lucrativo). Mas o editor amador ou picareta vai fechar seu «selo editorial» e abrir um açougue, porque tudo é só negócio. A pica fica para o editor sério, em um mercado destroçado, e para o autor sério, com cara de idiota em um mundo onde todo mundo publicou sua tetralogia sobre Nárnia.

Os Amadores Precisam Ser Tratados com Respeito

O que ninguém parece enfatizar é que o autor amador não é só um bolso a ser ordenhado, ele é o futuro da literatura. Não se conhece nenhum autor profissional que se tenha «amadorizado» (pelo menos não em países onde existe uma massa crítica de profissionais), mas todo profissional é um amador que se profissionalizou. A profissionalização ocorre quando alguém, que escrevia por esporte ou por terapia, passa a poder sobreviver do que escreve.  Não se trata apenas de uma mudança de profissão e de status social, mas também de modo de pensar e de sentir a literatura.

Então, quando você maltrata o amador você está chutando aquele que poderia se tornar futuramente um profissional. Em países onde impera o amadorismo, esse chute costuma ser dado por inveja, por receio de que aquele «insolente» cresça e adquira poder para influenciar. Numa literatura saudável (e a nossa não está), o amador é tratado com profissionalismo para que aprenda a ser profissional ou, mesmo continuando amador por opção, aprenda a conviver com cobrança de nível profissional.

«Respeitar o Amador» não quer dizer ordenhar o seu ego. Não quer dizer amamentá-lo com elogios para que ele não chore. Respeitar quer dizer tratar como adulto. O profissionalismo é a idade adulta do escritor. Tratar o amador com profissionalismo é respeitá-lo. Dar-lhe carinho, afeto e um ombro amigo para chorar é infantilizá-lo.
Não tenho culpa se a qualificação de profissionalismo para uma editora foi rebaixada desde os anos 60, a qualidade da nossa literatura atual deve significar que eu não tenho razão, não é mesmo?

A literatura é como o pão. Para que a massa cresça é preciso batermos nela. Bons livros podem se tornar ótimos livros formos rigorosos com seus erros. Bons autores podem ser tornar ótimos autores se forem confrontados com suas deficiências. Isso é respeito.

Precisamos xingar mais os nossos autores para que eles criem casca grossa contra críticas invejosas. Precisamos chamá-los mais de ignorantes, apedeutas, semianalfas e rasos; para que eles aprendam que cultura se faz com cultura, e não imitando a primeira porcaria que leram. Precisamos chamá-los mais de idiotas, para que reflitam sobre o absurdo de seus argumentos furados e seus personagens sem noção. Precisamos fazer com que tenham medo de publicar precocemente suas obras, para que se dediquem mais a escrevê-las bem, aparar suas arestas, polir suas asperezas. Precisamos conscientizar as pessoas de que não se faz poesia rabiscando chorumelas depois de levar um pé na bunda da namoradinha. Nossos poetas adolescentes são umas crianças bobas, se comparados com Rimbaud, Manuel Bandeira, Arnaut Daniel e Pushkin. Não merecem ser xingados por isso, mas sim porque se recusam a ler a poesia do passado e querem ser respeitados pelas trovas de pé quebrado que escrevem (e quem escreve uma trova de pé quebrado merece quase ter quebrado o próprio pé). Precisamos que os nossos autores saibam que escrever é algo grande, é algo que pode levá-los longe. E os que não quiserem ir até lá, que se contentem com as sobras e sombras, e não atrapalhem a conversa dos adultos na sala.

Tratar os amadores com respeito significa dar-lhes um propósito, em vez de permitir que chafurdem no sentimentalismo barato, na literatura alienada de fácil consumo e no egocentrismo.

Precisamos Combater a Colonização Cultural

Esses problemas todos que foram postos acima resultam da colonização cultural a que somos submetidos — e os nossos autores têm parte da culpa por isso. Não digo que têm a culpa toda, sequer a maior parte da culpa, mas parte da culpa. Gastamos tempo demais imitando a cultura pop norte americana e deixamos morrer muitas tradições e lendas que não só são importantes para a nossa identidade, mas poderiam ser igualmente interessantes como elementos renovadores da ficção de terror que nós servilmente imitamos. Temos nossas próprias lendas, mas nos maravilhamos com as lendas célticas que já estão mais manjadas que batata doce em fogueira de São João (se bem que esta é outra tradição que se perdeu).

Quando falo em colonização cultural eu me refiro ao problema que ela impõe: a restrição de mercado. Com tanto livro estrangeiro sendo republicado aqui (em traduções cada vez piores, pois a demanda é tanta que não dá tempo de traduzir direito) e com tanto autor nacional se fingindo de ianque, o espaço que sobra para quem realmente tenta fazer literatura brasileira fica pequeno. Um mercado pequeno limita  a profissionalização. Sem profissionalização a literatura nacional não tem voz na mídia. Combine isso com o egoísmo de nossos «profissionais», que costumam usar os prêmios literários para trocarem condecorações entre si, em vez de destiná-los para estimular os novos autores, e você tem um cenário no qual o amador, além de ser continuamente desrespeitado pelo amadorismo de muitos editores e do próprio mercado, ainda vê uma cerca eletrificada entre sua realidade e a ribalta na qual os nomes consagrados detêm todos os trunfos para colherem reciprocamente os lauréis literários.

Parece natural que o jovem autor procure imitar os estrangeiros, não só porque foi programado desde criança com os «enlatados dos USA, de nove às seis» mas porque tem a ilusão de que a única forma de escapar do beco sem saída da literatura nacional é conseguir agradar a um editor estrangeiro, e publicar lá, lá longe do alcance da Academia Brasileira de Letras, de Chico Buarque e seus Jabutis, dos professores da USP e suas descobertas de obscuros poetas baianos do século XIX, dos diversos teólogos (sic) literários e suas teogonias.
Se temos um mercado que lambe o saco de tudo que é estrangeiro, um establishment literário que estabelece capitanias hereditárias e troca honras entre si, é natural que o amador ambicione passar por cima de tudo isso e, se conseguir o Santo Graal de ficar famoso lá fora primeiro, mostrar o dedo para tudo isso e dizer toda a sua frustração em palavrões. Paulo Coelho fez mais ou menos isso. A literatura brasileira teve de engoli-lo inteiro, com casca e tudo, e está engasgada até hoje.

22
Jan 13
publicado por José Geraldo, às 21:24link do post | comentar
O texto a seguir, originalmente escrito e publicado por mim em 1997, na Revista Literária Trem Azul, representou a minha “Declaração de Princípios” literários, minha carta de alforria em relação aos autores que eu lia e imitava servilmente, em relação às opiniões dos críticos que eu lia e seguia sem questionar. A partir do instante em que entre para o projeto da revista, decidi romper essas amarras mentais e explicitar o que eu queria. Se foi bom ou foi ruim, o importante é que papel eu consumi.

Por que fazer literatura? Não há resposta bastante abrangente que resuma a experiência de escrever. A obra é um orgasmo — alguém já disse — mas orgasmo é um instante fugidio, é como tentar tocar o intangível e, após tê-lo vislumbrado muito perto, quedar esvaziado. Por que, então, amamos? Igualmente não há resposta. Todos se sentem tristes após o sexo, o orgasmo é um vazio que nos preenche inteiramente. Nem para o amor e nem para a literatura podemos encontrar uma explicação racional. A não ser o gozo do instante: a obra terminada é um amor que se acabou.

Qual a necessidade de se fazer literatura num mundo como o nosso? Simplesmente façamo-la como sempre foi feita: a partir da realidade e dos sonhos dos seres humanos. Buscando realizar a partir deste material comum alguma coisa nobre. Hoje em dia, no entanto, é quase impossível surpreender. Antigamente, ainda que fossem pedras, havia alguma reação à obra de arte. Para nós, porém, restou só a indiferença: tudo o que se faz cai no esquecimento como uma goteira dentro de um buraco fundo. A liberdade tornou ultrapassadas todas as rebeldias.

Talvez, então, seja uma forma de rebeldia tentar encontrar uma alternativa a esta dissolução em que vivemos. Não tenho medo de vir a ser chamado de piegas: quem tem um mundo de experiências para mostrar não precisa restringir seus sentimentos diante da exiguidade das possibilidades da moda, deve buscar quaisquer recursos que possam trazer o que tem dentro de si a uma forma palpável. Os defeitos do ser humano devem transparecer no que escreve: a perfeição fria é característica de quem não se importa com as imperfeições do mundo.

Sempre se deve olhar para o passado, pois é de lá que vêm as novidades. O futuro é provisório, e ser escravo dele é viver na incerteza. Os delírios futuristas de décadas atrás hoje nos parecem risíveis porque se tornaram despropositados. Ninguém é capaz de prever o futuro como será realmente. Por isso, uma literatura sem raiz é uma literatura que se torna rapidamente obsoleta: surfar nas predições do futuro sem um pé na terra é uma temeridade para quem tenta e uma perda de tempo para quem acompanha.

Ainda mais se considerarmos que mesmo um frágil poema tem um valor sólido se possuir alguma coisa de verdadeira humanidade agregada a si. É claro que a sinceridade não o salvará automaticamente para a arte, mas não é de Arte que eu estou falando:1 é da necessidade, inerente ao ser humano, de criar algo de que possa se orgulhar. Contemplar o que se fez é uma realização quase plena de uma forma de comprovar nossa humanidade. Por que, então, devemos pensar primeiro se o que estamos criando está contido e previsto nos cânones da arte formal?

Quem expressa o que pensa já se salva da multidão silenciosa e dá passos firmes rumo aos cinco estágios da reflexão consciente.  

Receber, sem preconceitos, o novo e o velho, sem a pretensão de já saber de véspera, afinal, a busca do homem não tem limites.  

Interiorizar o lido, não deixar que atravesse a mente sem deixar sinais. Significa a capacidade de recordar. Muitas pessoas são incapazes de dizer, minutos após a leitura, o assunto do texto lido.

Discernir, que é compreender o real sentido por trás das palavras do texto,2 vendo nele mais do que simplesmente palavras distribuídas num espaço.3

Discutir, ou seja, não aceitar pura e simplesmente tudo o que se lê. Ter algo a dizer, ainda que não muito apropriado. Articular o próprio pensamento em palavras desenvolve a inteligência, ainda que esse pensamento não valha muita coisa no princípio.

Produzir.  Eis o essenciol, o coroamento do lnteligência humana: saber dizer ou escrever porque concordo ou não.

É claro que nada disso pode ser obtido através de uma arte que exagera a forma exterior e pouca importância dá ao conteúdo.
O problema é que quem for capaz destes cinco estágios será um cidadão na mais complete acepção da palavra, e um cidadão consciente é uma ameaça a este estado de coisas em que vivemos. Deve ser por isso que tudo neste país propaga, intencionalmente ou por incompetência, a alienação. Certamente porque a liberdade de pensamento é a única liberdade a todo prova. A única cuja posse não nos podem revogar se não estivermos nos comportando direitinho.

E o que tudo isso tem a ver com o que eu quero produzir? Muito mais do que eu mesmo possa prever. A minha literatura quer falar do vida humano que nos tem sido roubada pelo mecânico quotidiano de nossos tempos. Eu quero abandonar a página impressa e recolocar o poema em suas fundações orais. E a clareza é essencial porque ainda não inventaram uma telepatia eficiente. E se fivessem inventado, seríamos todos boçais incapazes de racionalizar os pensamentos, confiantes na automática compreensão de nosso indefinido sentimento pelos outros.

É na literatura que o homem tem o seu sonho de Ícaro: escapar dos vermes que o aguardam transcendendo o breve e leve sopro dessa vida através de sua obra. No concretismo, no entanto, o homem está preso pelo rigoroso espaço da página impressa. O conforto dessa estética pouco nutritiva é que, sendo quase incompreensível , o escritor não corre o risco de sofrer reparos procedentes. 0 mais terrivel é que são tachados de arcaicas as pessoas que ainda sobem ler e escrever numa linguagem humana, enquanto se celebra a anarquia de fotos retocodos e colagens indefiníveis e a solidão de poucas palavras no meio de uma grande página quase em branco. Assim, lentamente, vão roubando do povo o acesso à cultura.

Curiosamente, a erudição valorizada hoje em dia não está mais baseada no conhecimento da literatura, mas no domínio de irrelevantes detalhes semióticos ou biográficos. Rebusca-se nas entrelinhas sentidos ocultos ao ponto de quase se esquecer o explicito e julga-se mais importante definir se Thomas Mann era homo ou hetero do que proporcionar ao publico a oportunidade de lê-lo.

Tenho dito, aguardo as pedras.

1 Precisamos escrever mais livros ruins para que o solo da literatura fique fértil para as obras primas nascerem. Esterilizar a terra a espera do fruto perfeito é uma futilidade.

2 Ou imaginar que existe um.

3 Esta frase é uma estocada no concretismo, que dá grande relevância justamente à distribuição visual das palavras.


02
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 16:35link do post | comentar | ver comentários (1)
Semanas depois de protagonizar o terceiro escândalo sucessivo relacionado ao Prêmio Jabuti, o “Jurado C”, o crítico paulista Rodrigo Gurgel, finalmente deu a sua versão dos acontecimentos. Foi justo a imprensa dar-lhe voz, depois das semanas que passou sendo malhado como judas em Sábado de Aleluia. O crítico teve sua oportunidade de dar suas opiniões, justificando-se ou não. Muita coisa ficou esclarecida, mas em outros casos a emenda foi maior estrago que o pé quebrado do soneto. Com a autoridade de ser a nulidade literária que sou, atrevo-me a comentar o que ele disse, mais uma vez me esmerando em meu trabalho de queimar todas as possíveis pontes que me fizessem cruzar o Rubicão literário.

A entrevista de Gurgel começou, como não poderia deixar de ser, com a justifica de seu voto. Continuo dizendo que a justificativa não convence, considerando que nenhum trabalho literário sério merece zero, porém, se não é convincente em relação à necessidade das notas zero, ou próximas de zero, Gurgel pelo menos explica seus critérios para alinhar os romances de acordo com a sua preferência:
Quando eu abri o papel, a primeira coisa que me chamou a atenção [na lista de finalistas] foi o livro do Wilson Bueno ["Mano, a Noite Está Velha", ed. Planeta], que eu havia colocado em último lugar, apesar de ter dado uma nota de oito e pouco. Se um livro que você colocou em último lugar está em primeiro na lista, a primeira reação é dupla: você pensa em reler alguma coisa do livro, para ver se o julgamento continua de pé.
Gurgel poderia ter continuado a pôr o livro em último lugar, sendo coerente com o que votara na primeira fase. Porém, mais do que classificar os livros de acordo com a sua preferência, o que é, na minha humílima e ignorante opinião, o papel de um jurado, o jurado resolveu ir além e confessa ter explorado deliberadamente as regras do concurso de forma a decidir o resultado segundo os seus critérios.

Ocorre que existe uma falha do processo de escolha do Prêmio Jabuti: ao permitir que os jurados, na segunda fase, tenham acesso à ordem de classificação obtida pelos finalistas, segundo a nota obtida na fase anterior, o sistema de escolha acaba induzindo os jurados a avaliar, na segunda fase, de uma forma subjetiva, atribuindo notas segundo sua “estratégia” para influir na classificação, em vez de imparcialmente atribuir conceitos conforme sua opinião a respeito de cada livro. Neste sentido, Gurgel se assume como o “malandro” que explora as falhas do sistema para seus próprios objetivos. No caso, objetivos que significam usar o seu voto para, isoladamente, determinar o resultado final. Não sou eu que estou dizendo, foi ele quem disse:
Essa mudança das notas deveria ter sido pensada. Quem estabeleceu a nova regra não fez as contas. Não pensou: “bom, quais são as situações que podem ocorrer?” Ou então acreditou que todos os jurados votariam sem compromisso.
A falha da organização do prêmio Jabuti foi, segundo o jurado, acreditar na imparcialidade dos jurados, acreditar que os jurados votariam sem compromisso. Esta também é a falha dos que não eletrificam as cercas de suas casas, dos que não põem trancas nos seus carros, dos que contam segredos para amigos, das namoradas que se deixam filmar por seus namorados. É, enfim, a velha fraqueza humana de confiar na confiabilidade do próximo. Em um mundo ideal ninguém precisaria se preocupar, porque as pessoas agiriam sempre com ética. Mas Gurgel não se prende a esses limites: “se me pedem para julgar e me dão os critérios, eu uso os critérios.”

O “jurado Carminha”, como chegou a ser apelidado nas redes sociais, estranha que escritores tenham estranhado as notas estranhas que ele atribuiu (sic):
O que, aliás, é o que mais me chama a atenção nas críticas que recebi. E as mais violentas foram de escritores. Eu acho interessante. Em nenhum momento passa pela cabeça deles que eles poderiam ser um dos livros escolhidos por um jurado que luta pelos livros de que gosta. Um jurado que não teme se comprometer.
Como Gurgel não é escritor, sua capacidade imaginativa é relativamente limitada. Se escritor fosse, saberia que por nossas cabeças certamente passou este cenário, de sermos beneficiados por um jurado como ele. Bem, eu já disse qual seria a minha gratidão a uma escolha segundo tal critério. Mas a questão é que a maioria de nós imagina, com nossa fértil criatividade, uma possibilidade muito mais interessante para o uso da “Estratégia Gurgel” (que entrará para a história com a mesma notoriedade da “Lei de Gérson”).

Imaginemos, apenas hipoteticamente, que a “editora fulana”, usando de argumentos exclusivamente artísticos e éticos (claro), “convença” algum jurado a induzir a escolha do livro “sicrano” do escritor “beltrano”. Neste caso, claro, em vez de usar seus poderes para justiçar os fracos e oprimidos da literatura, o hipotético jurado estaria apenas fazendo o jogo bruto das grandes casas literárias e seus “nomes de peso”. É por causa disso que os escritores estranharam o que houve, é por causa disso que eu repudiaria um prêmio assim escolhido, mesmo que fosse eu o escolhido, e é por isso que tenho a firme opinião de que concursos literários não avaliam o mérito das obras, mas apenas revelam os movimentos tectônicos da luta pelo poder no sistema editorial. Briga de cachorro grande, onde um vira latas provinciano como eu dificilmente entra, a menos que concorde em fantasiar-se de palhaço, segundo o estereótipo que se impõe das capitais.

A questão, seca e simples, é que, a partir do momento em que se detecta a existência de uma falha no sistema, e de alguém que a utilizou com sucesso para obter o que queria, não há como fechar a Caixa de Pandora. Ou a regra muda, ou ano que vem todos os jurados votarão com estratégia, mesmo aqueles que não pensam que a sua opinião deva prevalecer acima das demais. A falha não está na permissão de se usar qualquer nota, de zero a dez, mas, sim, em revelar aos jurados os livros escolhidos na primeira fase segundo uma ordem de classificação, que revela a tendência de voto do júri como um todo.

Mas Gurgel, como todo ser humano, não é totalmente uma coisa só. Se se revela limitado no aspecto ético, ele parece ter algumas opiniões sobre o sistema literário brasileiro que acabam sendo parecidas com as minhas. O meu medo é que elas também estejam erradas, e eu as vá elogiar aqui somente porque os preconceitos dele conferem com os meus.

A primeira destas opiniões ele expressa ao comentar, com desdém, a reação dos escritores às suas notas: “Os nossos escritores não estão acostumados a serem julgados. O nosso sistema literário está doente.”

Esta é uma afirmação que parte de um senso comum difícil de negar. Isto, claro, se vê a todo momento, até nos blogues. O autor brasileiro é “estrelinha”, sim. Desde o iniciante amador que escreveu um pastiche pobre de Crepúsculo até um medalhão acadêmico. O primeiro confunde crítica à obra com um desmerecimento de sua dignidade pessoal, argumenta com as suas limitações e o seu esforço para que lhe sejam perdoadas as falhas e a falta de imaginação. O segundo reage com prepotência, move seus “pauzinhos”, anota no seu caderninho, dá seus telefonemas e eventualmente até desce do Olimpo, tonitroante, para reduzir o ousado crítico “ao seu lugar”. Faz isso porque não se sente seguro de seu lugar. Alguns de nossos grandes luminares sabem muito bem que sua glória é postiça, que seu mérito é mais curto que seus casacos e, na hora do “vamos ver”, deixa suas quadradas bundas de fora. Sabem que estão sentados, mas não assentados, na imortalidade. Ou melhor, saberiam, se seu talento lhes permitisse compreender a diferença que faz uma letra “a”.

Sim, o escritor está desacostumado a ser julgado. Talvez até seja necessário que, ocasionalmente, alguém lhe dê um zero. Mas a escolha do Prêmio Jabuti não foi exatamente o melhor lugar nem circunstância para dar essa lição de moral nos medalhões. Porque por mais moral que a lição fosse, perdeu-a pela manipulação aética do resultado, com o pretexto diáfano de que os critérios permitiam. Nem tudo que é legal é justo.

Existem três parágrafos na entrevista de Gurgel que estão de tal forma coincidentes com as minhas opiniões que eu, que comecei este artigo criticando com dureza o jurado, já estou, neste ponto, querendo dar-lhe as mãos e convidar para um chope. Cito-os nos pedaços que mais me interessam:
Essas pessoas [que] têm a hegemonia ideológica nos cadernos culturais, nas poucas publicações literárias que nós temos, nas editoras de livros. Quando eles escrevem uma crítica, as preocupações deles são, primeiro, a questão formal, linguística. Há um exagero de preocupação em relação a isso.

Se você não inovar em termos linguísticos, se você não tentar recriar o Finnegan's Wake o livro já não é bom, ou é um livro tímido, que revela insegurança. O que nós poderíamos chamar de narradores tradicionais já são repudiados por princípio. […]

Em termos de crítica literária, a preocupação desses críticos, na verdade, não é primeiro com relação à forma: é exclusivamente com relação à forma. Porque eles partem do princípio de que a obra é autossuficiente. A obra não tem que dialogar com a realidade. A literatura não tem que dialogar com o mundo. Tem que dialogar com ela própria.
Eu acho muito bom que um crítico literário cutuque esse tumor, que eu, com minha ridícula atiradeira de raquítico Davi, já havia cutucado em 1997, aos 24 anos, na ingênua revista literária que fiz em Cataguases. Qualquer dias desses obterei acesso ao único exemplar restante dela, e republicarei aqui o meu ensaio “Literatura e Consciência”. Que contém parágrafos quase iguais a esses. O que eu não tinha, nem tenho hoje, é o conhecimento teórico suficiente para detectar a origem desse fenômeno:
O [crítico literário] Antonio Candido fala que o nosso sistema literário, no início, era assim: as pessoas que produziam eram as pessoas que consumiam. Esse é o nosso grande problema, nós não temos leitores. O escritor escreve para agradar o crítico, pra agradar o professor de teoria literária e para agradar os seus amigos.
Então ele precisa ser politicamente correto, precisa fazer experimentos linguísticos, esconder o narrador, abusar da metalinguagem. Precisa fazer do texto dele um resuminho daquilo que a vanguarda fez nos últimos anos, para agradar as pessoas. Se você não tem uma crítica que está disposta a agradar o público, numa linguagem que ele compreenda por que aquele livro é bom ou não é, você não forma leitores.
Eu já sabia que este tipo de literatura que frequenta os cadernos culturais tem um caráter esotérico, já sabia que não são formados leitores a partir de romances da chamada “alta literatura”. Sabia também que existe um lugar para esta literatura excelsa. O que eu disse na época, e repito hoje, é que essa forma de literatura não pode ser a única, porque ela não é porta, ela é esfinge. As pessoas não se atraem por esfinges. Alunos em fase de alfabetização não querem palavras cruzadas. Tanto quanto alunos de primeiro ano do conservatório não querem tentar tocar Tom Jobim ou Yngwie Malmsteem.

Ocorre que nosso país possui uma ideologia dominante que aspira ao pensamento único. Ao partido único, ao estilo único. Se você discorda de mim, então você está errado, você é um imbecil ignorante, você tem de ser suprimido. Não sabemos conviver com a diferença. Não temos um histórico de filósofos adversários que, depois de se xingarem pelos jornais, se encontravam à tarde nos cafés para jogar dominó e rir das polêmicas criadas em torno de si. Nossa tradição é de autores criticados xingarem os críticos, de críticos questionados fulminarem os autores, de autores experimentais criticarem os narradores “primários”, dos narradores primários pretenderem derrubar do Olimpo os acadêmicos. Nossa sociedade tem um espírito de rinha, não de disputa. Nossa ideologia é o MMA, que vença o melhor, o vencedor é quem ficar de pé. Não concebemos um tipo de vitória no qual o adversário permaneça digno.

Com isso não convivemos com a diferença, por isso nossa democracia é frágil, por isso nossa imprensa tende ao golpismo, por isso nossas instituições se corrompem, por isso nossos partidos almejam perpetuar-se a qualquer custo.

Por isso nossos críticos, incapazes de conceber que outros críticos possam dar valor àquilo que eles escolheram desprezar, se prestam a “usar os critérios” para determinar o resultado, tal como um político que se alinha com forças ocultas para dar um golpe de estado e impedir a vitória iminente de um adversário no pleito seguinte. Por isso Gurgel continua errado, mesmo dizendo coisas com que concordo. As coisas certas, quando convivem com um mal evidente, tornam-se instrumentos a serviço desse mal.

Portanto, quando Gurgel diz coisas que são obviamente verdadeiras, o que ele está fazendo é criar uma cortina de fumaça sobre o ato aético que perpetrou, abusando de sua condição de jurado.

Mas então chegamos ao fim da entrevista, e aí compreende-se finalmente, porque Gurgel cometeu o ato que cometeu. Ele se revela aluno de Olavo de Carvalho, o que é uma coisa inconfessável para uma pessoa de cultura. As peripécias de Olavão são inúmeras, desde provar que Newton estava errado em sua física até negar a validade da Teoria da Relatividade de Einstein (sendo que o dito filósofo não é nem físico e nem sequer possui um grau acadêmico de exatas). Some-se a isso o horror mórbido à mudança, sua rejeição à novidade, sua agressividade contra as utopias de esquerda e sua crítica paranoica ao “esquerdismo” e  temos provas suficientes de que ele não pode ser levado a sério por uma pessoa de cultura mediana. Olavão pertence ao seleto clube das pessoas que nunca erraram (pelo menos nunca o vi retratar-se de uma opinião ou expressar qualquer ideia sua de maneira menos enfática do que uma certeza absoluta). Não erra porque se coloca como verdadeiro Oráculo, veículo da verdade divina. “A hegemonia da esquerda foi lentamente construída”, diz Gurgel. Olavo traz a verdade súbita, o golpe da verdade, o golpe.

Golpe que o jurado C desfere contra seus desafetos literários, contra o “sistema” que rejeita. Olavo e Gurgel, cada um em seu papel, Dom Quixote e Sancho Pança, lutando contra os moinhos de vento do mal, para salvar o mundo, ou pelo menos a literatura, da unanimidade burra do esquerdismo.

E então me lembro que, no texto introdutório da entrevista, Gurgel revelara ao repórter seu novo projeto: Atualmente, desenvolve um projeto ambicioso: reler todo o cânon da literatura brasileira e submetê-lo a seu crivo em textos publicados no jornal “Rascunho”. O primeiro fruto, o volume de ensaios “Muita Retórica, Pouca Literatura - de Alencar a Graça Aranha” (Vide Editorial), foi publicado em agosto. 

10
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 23:49link do post | comentar | ver comentários (2)
ou «Porque os discursos superficiais de ódio ecoam com tanto vigor»
Acabo de me deparar no Facebook com alguém compartilhando a pequena história em quadrinhos acima. Logo que a li percebi que ali havia assunto para mais do que meramente um «Curtir» ou um «Compartilhar», mesmo porque não me senti impelido a nenhuma das duas coisas. Como aquela rede social não é muito receptiva a elucubrações mais compridas, preferi postar aqui, mesmo sabendo que menos gente lerá, curtirá ou compartilhará.


A tirinha expressa, de fato, muito mais do que está dito nas palavras de seu protagonista: ela é a vingança, possibilitada pela instantaneidade do fluxo de informações na internet, daqueles que sempre detestaram a poesia, mas sempre tiveram esse ressentimento represado pela inexistência de um canal que o amplificasse e difundisse. Estas pessoas a quem chamo de «ressentidas» sempre existiram, não passaram a surgir ontem, e possivelmente existiam antes em número muito mais significativo em relação à população em geral.

Portanto, que ninguém interprete esse texto como uma catilinária contra nossos tempos e costumes. Limitar-me a isso seria, de fato, dar eco à crítica, pois seria uma defesa estúpida de algo que, por si, não carece de defesa. Aquilo que existe por si não carece de justificativas. As coisas não têm, em si, nenhuma razão moral de ser, como muito bem disse Nietzsche, em um aforisma que é útil em múltiplos sentidos: não existem fenômenos morais, apenas derivações (ou explicações, segundo algumas traduções) morais dos fenômenos. Muita gente «odeia» a poesia, e no entanto a poesia existe, permanece e existirá. Como disse Mário Quintana, «toda essa gente que fica atravancando o meu caminho, eles passarão, eu passarinho».

O que cabe ser dito é, de fato, tentar entender a consistência desse «ódio» (que vai entre aspas doravante, posto que não é um ódio de fato, mas uma coisa outra, que obedece a leis diferentes do ódio em si, que é uma reação irracional momentânea). É preciso que investiguemos a natureza desse ódio, agora que ele extravasa dos bueiros por onde corria, pois já não é possível ignorarmos que algo cheira mal nessa metafórica Dinamarca.

A principal manifestação do «ódio» à poesia se dirige não contra o texto em si, mas contra o «poeta», este ser esfíngico, admirado de uma forma torta e inadequada, a ponto de a palavra ter sido tomada como epíteto por compositores populares (nem sempre poéticos) e apropriada até mesmo em ditos populares: «fulano, calado, é um poeta». Este «ódio» é, de fato, apenas uma faceta da discriminação agressiva (ou «bullying» como hoje se diz) contra os tipos sociais divergentes de uma norma impositiva. Em uma sociedade como a nossa, na qual a cultura originalmente foi apenas um verniz de civilização, tangibilizado por um diploma devidamente europeu ou pela prática de costumes importados daquelas latitudes, sempre foi natural que certos comportamentos fossem circunscritos a certos grupos sociais. Assim como se espera que o negro seja malemolente, que o suburbano seja esperto, que o interiorano seja ingênuo e que o baiano seja indolente; nunca se esperou que alguém do povo possuísse, de fato, os tiques e taques privativos da elite, entre os quais diplomas, erudição e talentos artísticos. Pobre não faz arte, faz artesanato, não faz poesia, mas faz letra de música. Mais ou menos assim.

Exceções acontecem, quando devidamente legitimadas pela elite, que está frequentemente em busca de ídolos, como um Machado de Assis. Mas quando o talento, mesmo equivalente, não encontra essa legitimação, por alguma razão nem sempre inteligível, o pobre artista, além de fustigado pela pobreza que persiste, ainda sofre o escárnio de uma sociedade que vê nele como postiça e ilegítima a mesma atitude que louva como visceral e própria em um dos luminares escolhidos. Um breve estudo comparativo das obras e biografias de artistas malditos, como Lima Barreto ou Cruz e Sousa, por exemplo, nos deixa com a pergunta incômoda sobre o motivo de não terem sido aceitos por um sistema que aceitava gente de talento evidentemente menor.

As explicações estão dadas acima: residem na divisão de classes de cunho pós-escravagista, divisão que só permite a ascensão social daqueles que são, por alguma razão, «aceitos» pelo sistema. Daqueles que são «branqueados» no processo, tal e qual os pecadores são «lavados no sangue do Cordeiro» para poderem entrar no Reino dos Céus.


Este quadrinho, porém, vai mais fundo do que esta manifestação de escárnio contra os «patinhos feios», que sempre existiu e pôde ser sentida por todos nós que escrevemos, pelo menos uma vez ou duas na vida, a menos que tenhamos sido abençoados com uma idiotice beatífica que nos impede de enxergar o desprezo alheio, ou tenhamos adquirido um calo sensorial que nos insensibiliza para isso. Vai mais fundo porque ele não se limita a zombar dos que «ousam» ser poetas sem terem sido, previamente, autorizados a isso, por um concurso, uma editora, uma academia ou a bênção de um figurão das nossas letras belas. Zomba da poesia em si,  e isso nos exige uma reflexão além.

Por que alguém odiaria poesia, a ponto de execrá-la publicamente, dizendo que «limparia a bunda» com a obra de Augusto dos Anjos? A escatologia é um argumento fácil para quem não tem argumentos. O macaco atira excrementos nos visitantes do zoológico. Não obstante ele continua sendo o macaco,  e os visitantes continuam sendo os visitantes. Atirar excrementos não modifica a situação de submissão e desumanidade do símio enjaulado e nem desumaniza os visitantes, que poderão lavar-se depois e ter uma divertida história para contar. E limpar a bunda com a poesia de Augusto dos Anjos em nada a modifica, e nem à bunda de quem a usou para tal fim. Evidentemente essa manifestação bárbara de desprezo pela obra de alguém que morreu há tanto tempo expressa algum tipo de sentimento mais profundo e duradouro do que o desprazer de não ter gostado de um ou dois sonetos. Qual a jaula mental onde se encontra este ser que recorre a excrementos para agredir aquilo que não entende?

Vivemos atualmente uma fase perigosa no mundo, após tantas décadas de triunfo da ciência, com suas conquistas e perigos, com os dois gumes de seus conhecimentos, com a exigência de responsabilidade diante das múltiplas possibilidades de cada conquista nova. Parece que muita gente se assusta com a obrigação de escolher se vai usar a radiação para curar o câncer ou para causá-lo, se vai usar o foguete para nos levar à Lua ou de volta à Idade da Pedra. Diante desses dilemas, há hoje quem reaja ao modo do avestruz mitológico (não o real), que enfia a cabeça na areia diante do susto. Refiro-me à reação anti intelectual que grassa pelo mundo e que, apesar de nossa ignorância de periferia deslumbrada, não começou aqui.

O modo de pensar anti intelectual, não irracional, não confundam por favor, surgiu, de fato, nos Estados Unidos, nos anos sessenta, e hoje podemos ver com clareza como. Alan Bloom já o havia percebido em 1986, ano em que escreveu uma obra hoje esquecida, mas que devia ser mais lida: The Closing of the American Mind («O Fechamento das Mentes Americanas», traduzido porcamente para o português como «O Declínio da Cultura Ocidental», refletindo a subserviência do tradutor e editores, prontos a aceitar o império ianque não apenas como centro do mundo, mas resumo dele). O anti intelectualismo é a crença de que as imperfeições da ciência significam que as soluções científicas não devem ser buscadas. Houve vários momentos de triunfo desta mentalidade, e talvez o mais significativo tenha sido a «luta antimanicomial», que ajudou a desmantelar toda tentativa de abordagem e tratamento científico das patologias da mente em nome de uma filosofia segundo a qual os limites entre a loucura e a normalidade seriam uma convenção social. Ora, vivemos em uma sociedade, e quase tudo nela é convenção social. O triunfo do anti intelectualismo consiste em convencer-nos de que o fato de vivermos sob convenções significa que as convenções são arbitrárias e políticas baseadas nelas são injustas. Em vez de buscar aperfeiçoar as convenções, devemos aboli-las. Com toda sua virtude humanista, a luta antimanicomial abriu caminho para o questionamento da ciência enquanto alternativa viável de abordagem dos problemas sociais. Isto acaba sendo útil aos sistemas de poder, especialmente quando surgem indícios de ação humana na modificação dos padrões climáticos da Terra. Se a ciência está em xeque, então as decisões políticas não precisam considerá-la. Eis o monstro criado pela luta antimanicomial a longo prazo. Tal como não precisamos tratar dos loucos, pois a loucura é uma categoria arbitrária imposta pela cultura, também não precisamos evitar as modificações ambientais que inadvertidamente causamos por nosso estilo de vida, pois os modelos e parâmetros usados pela ciência para determinar a realidade destas modificações são também arbitrários e sujeitos a influências culturais.

O anti intelectualismo é um populismo filosófico. Nada afaga mais o ego instável do ignorante do que ser chamado de sábio. Chame um homem por aquilo que não é e ele se sentirá feliz, desde que acredite sinceramente que não há malícia de sua parte. Desde que ele esteja seguro de que a calúnia é imerecida e o elogio é verdadeiro. Do contrário, se supuser a calúnia uma realidade e o elogio, uma falsidade, reagirá com agressividade. Eu já havia notado isso em 2010, quando escrevi «O Sábio Louco e o Ignorante Vigoroso», pequeno texto no qual observei que, como disse Caetano Veloso, «Narciso odeia tudo que não é espelho». O ignorante odeia o sábio por ele ser sábio, mas quer ter, ele mesmo, o nome de sábio. Diga ao ignorante que o sábio não o é, mas ele sim, e, caso a afirmativa inspire confiança, o afago ao ego do idiota produzirá um deslumbre genuíno.

O ignorante precisa acreditar que não há prejuízo em sua ignorância. De outra forma, sente-se incompleto, precário. Para combater esta sensação de vazio, que o inquieta mas ele não sabe expressar, ele busca o elogio, busca a sensação segura de que «sabe». Venda a este cara a ilusão de que «sabe», de que «pode saber em apenas cinco lições» ou, melhor ainda, que «já sabe». Olavo de Carvalho acredita que conseguiu desmentir Newton e Einstein. Muitos são os que o elogiam, fazendo com que ele se sinta, de fato, um injustiçado pelo Nobel. Dão-lhe até medalha para melhorar a ilusão. Que se multiplica através dos excrementos verbais que ele difunde, e que são assimilados e replicados por outros que, tão vazios quanto ele, aceitamo como sucedânea do conhecimento a mistificação que ele divulga.

Este fenômeno é reforçado quando o ignorante possui algum conhecimento, mas só um pouco. Temei ao homem de um livro só, disse o santo filósofo. Ele não conhece, de fato, quase nada do mundo, mas domina tão bem seu quase nada que adquire uma certeza, uma autoconfiança que intimida. E agarra-se a esta migalha, que lhe confere autoridade.

E onde entra nisso a poesia? Pobre poesia, pobre e inútil poesia. Que sempre sofreu com esta pecha de inutil, e graças a Deus que ela o é. A pior coisa que pode acontecer à literatura é que lhe encontrem alguma utilidade. Não há maior tédio do que nos livros julgados os mais adequados pelo sistema educacional. Se tachados de «educativos» então, aí se encontra um indutor de letargia mais poderoso que a mosca tsé-tsé.

A poesia entra nisso como mais uma manifestação de intelectualidade. Se vivemos uma reação contra a intelectualidade que é útil (ninguém duvida das previsões do tempo, ora bolas, nem da capacidade voadora dos aviões e foguetes), quanto mais contra as pobres formas inúteis de intelectualidade! É muito fácil falar contra a poesia: é algo que poucos entendem, que raros gostam, que poucos praticam. É um saco de pancadas tradicional daqueles que sempre satirizaram os pendores de questionamento que brotassem da boca do pobre. A poesia é o senhor gordo e lento no qual o macaco consegue acertar mais excrementos.

09
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 00:12link do post | comentar

O poetinha desceu do ônibus já suado e despenteado. O óculos empenado na cara, a camisa amassada pela viagem desajeitada, a umidade incomodando por debaixo da roupa, o hálito amargo devido ao nervoso e ao fígado. Bateu no peito para ter certeza de que seu poema, copiado com capricho na velha máquina de escrever, se encontrava ainda intacto. Não estava: tanto suor o amolecera. Retirou-o do bolso e desdobrou com cuidado, quase com lágrimas. O mesmo calor que o molhara não o secaria. Xingou algum palavrão absoluto, mas timidamente o fez. Preferiu cruzar a rua em direção ao humilde teatro onde teria lugar o concurso municipal de poesia, para o qual se inscrevera com aquelas gotejantes exalações das chagas de sua alma torturada. Esperava a glória, não meros três mil reais de prêmio. Mas na falta da glória, o dinheiro cairia bem. Não é verdade que se compra a glória com dinheiro, dinheiro é só uma desculpa que a gente usa, o consolo da glória inatingida, inatingível, definitivamente deixada em outra esquina, numa rua diferente da que tomamos, possivelmente noutro bairro, cidade ou planeta. Quando ganhamos dinheiro a saudade da glória dói um pouco menos, mas ainda dói.

Tinha “vinte e cinco anos de sonho, de sangue e de América do Sul” e “por força desse destino” ouvia o som dos gringos e lia a poesia dos mortos. Julgava-se inteligente o bastante: conhecia as antologias. Estava muito bem informado, de tudo que tocava no rádio ou saía no jornal. Estava na moda, em perfeita simetria com com a televisão e o cinema. Sei que, assim falando, dá para pensar que esse jeito era o óbvio de 93, mas de fato o poetinha era especial de uma maneira: não conseguira ser igual a todos os demais, então restava-lhe o destino de ser diferente. Não por escolha — que teria preferido uma cara mais bonita, uma família rica ou um pinto bem maior.

E estava ali diante do teatro municipal como se fosse receber um prêmio internacional.

Quando chegou ao outro lado da rua, já estranhando que houvesse tão pouca gente, percebeu que Isaura estava sob a sombra de um oiti, vigiando sua chegada como quem tocaia sua caça. Ele não a convidara, claro. Não supusera que poesia lhe interessasse mais do que a vida sexual das tarântulas. Mas ela soubera do concurso, de alguma forma, e viera. Sua primeira esperança foi o engano: talvez só fosse alguém parecida. Esperança falha:

—Boa noite, Isaura. Que surpresa vê-la por aqui?

—Boa noite, Cacai. Você não me convidou, mas eu vim.

—Desculpa não convidar, mas eu não sabia que você gostava de poesia.

—Eu gosto de você.

Então Isaura não viera atrás de poesia, viera mesmo para vigiá-lo, como imaginara.

—Veio sozinha?

—Desculpa não trazer plateia, querido, mas fiquei sabendo muito em cima da hora.

Tomou-a pelo braço e foi entrando. Isaura não era exatamente bonita, mas tinha um corpinho jeitoso, uma voz que não era excessivamente doce e uma dose cavalar de ciúmes injetada nos olhos.

Dentro do teatro fazia uma temparatura que agradaria a Lúcifer. Os ventiladores pareciam maçaricos e as janelas, bocas de fornalhas. Algumas senhoras da sociedade padeciam de leques fora de moda e de uma vontade impossível de falar, tão custoso o esforço de qualquer músculo naquelas circunstâncias. Por sorte anoitecia já, e logo aquele ambiente saariano melhoraria. Demoraria só o suficiente para sua camisa terminar de ficar molhada, seu cabelo arrepiado, seu rosto engordurado de transpiração, o papel ainda mais molengo e os óculos embaçados escorregando no nariz, querendo cair.

Sentaram-se o mais perto possível da porta, pois aquela parede do teatro ficava pelo menos meio oculta pelas copas gordas das árvores. Alguns loucos haviam se sentado junto à parede que acabara de receber o sol de toda a tarde. Mas eles não suavam tanto: não tinham vindo de ônibus e os tecidos caros de suas roupas eram mais porosos à temperatura.

O mestre de cerimônias subiu ao palco, fazendo o teste dos microfones e convidando quem ainda tivesse que entrar. Então apareceu gente de todos os lugares inimagináveis, bem poucos entrando pela porta frontal. Só faltou alguém entrar pela janela lateral, a que se debruçava sobre o fétido riacho, porque pelo menos de uma outra janela entrou alguém. Uma moça de vestido verde, cafona a ponto de parecer cortado de uma cortina velha, tomou a palavra e convidou os autores presentes a se dirigirem aos bastidores, para identificarem-se e tomar conhecimento do protocolo. O poetinha se levantou, pernas bambas e óculos quase caindo da ponta do nariz, e acompanhou-a, juntamente com vários outros, por uma porta ao lado do pequeno palco.

Os bastidores estavam razoavelmente frescos, graças a um aparelho de ar condicionado e ao isolamento termoacústico. Naquele ambiente tão controlado e silencioso o poetinha pôde contemplar os que, com ele, lutariam pela glória das musas.

Era um grupo bastante heterogêneo, com tantas idades, sexos e cores quanto possível. Havia um velhinho de terno que declamava em cochichos, parecendo ensaiar-se, uma garota que não parecia ter mais de quinze anos, um senhor gorducho que usava uma estranha camisa azul estampada de flores psicodélicas, um rapaz que aparentava algum tipo de deficiência mental, uma senhora empertigada, que olhava a todos com um jeito de professora, um sujeito cabeludo, desarrumado e de olhos tristes… e a moça de vestido azul voltou, pedindo a atenção de todos antes que o poetinha tivesse conseguido fixar-se mentalmente em cada um.

— Senhoras, senhores. Venham comigo.

Acompanharam-na até a orquestra, onde foram convidados a sentar-se.

— Permanecerão aqui aguardando a vez. Cada um se levantará quando chamado e se dirigirá ao palco, juntamente com os seus parceiros. Durante as apresentações, pedimos que os que estiverem aguardando, e os que já tiverem se apresentado, permaneçam em silêncio.

O palco, enfeitado de flores de plástico e papel crepom, tinha uma larga mesa para abrigar sete jurados. “Para que tantos?” — pensou o poetinha. Sentou num lugar tão obscuro quanto possível. Deu uma olhada para trás, para ver Irene lá, sentada e acenando. Os demais foram se aboletando cada um a seu gosto.

Resolveu que não os olharia. Fixar-se neles o faria nervoso. Abriu o papel e recomeçou a repetir os versos, que ele mesmo escrevera, mas que pareciam fugidios como se tivessem sido extraídos de uma bíblia marciana.

Não há um número de 0900para encomendar o que lhe falta,mas mesmo então mantenha calmae não quebre ainda o telefonese a noite conseguir inquietar-lhe.Ele é só uma máquina sem culpa,que por dinheiro você pode usar.Não há nenhum comando própriopara desligar da alma essa dor,mas ainda assim mantenha a calmae não quebre o seu computador.Se você lhe perguntar aonde irele não terá resposta para dar:ele é só uma máquina estúpidaque não mente para lhe agradar.Desligue a tomada da paredee todo o perigo vai passar.Não há nenhuma lata que contenhasabores similares ao amor que houve,mas não deprede nunca o mercadose o que mais lhe falta em casanão pode ser comprado lá.Ali é só um refúgio de consumo,templo de quem come em vez de amar.Está tudo certo se você sair,desde que não saia sem pagar.Mas não creia no que dizem esses rótulos,esqueça tudo, tudo está errado:nem prateleiras nem teclados lhe respondemse você lhes perguntar pelo passado.

Tinha receio de ter sido uma má escolha. Cada vez que olhava para trás, nos olhos do público pingado que comparecera, tinha menos certeza de que seus versos inquietos causariam bom impacto. A glória que lhe sorria em sonhos parecia rir-lhe então, e ria dele.

Chamaram a senhora com cara de professora. Ela subiu ao palco desvencilhando-se de uma bolsa que não teve aonde pôr, senão sobre a mesa do júri — pretexto para cumprimentar cada um, vários deles aparentando ser colegas seus na profissão. Postou-se como uma cantora de ópera, abriu os braços como uma estranha ave depenada que ainda quer voar, e começou a declamar versos duros, cortados a martelo e talhadeira, no material eterno da pedra: versos de soneto, mais perfeitos em suas rimas do que claros no que diziam. Terminou deixando em todos a convicção de que sua obra não tinha sequer um hemistíquio deslocado ou um hiato, essa indecência, mas ninguém conseguiu saber exatamente do que falara seu poema.

O rapaz que aparentava deficiência mental foi o segundo. Subiu ao palco ajudado por um bando de crianças e duas professoras de música com violões. As professoras dedilhavam peças pseudoflamencas enquanto as crianças, pelo menos aparentemente, tentavam cantar a Bachina número cinco de Villa-Lobos. Passado um minuto disto, o rapaz deu um desnecessário boa noite e uma criança descalça entrou no palco para lere o poema dele, alguma coisa singela que falava sobre andar descalço na grama. A ideia era piegas ao extremo, os versos eram de uma banalidade total. A menina que lia parecia tropeçar na falta de pontuação. Mas no fim ouviu-se uma salva de palmas ensurdecedora. O poetinha olhou para trás e viu umas dezenas a mais de pessoas: certamente parentes, conhecidos, professores, vizinhos, colegas do moço. Todos gritavam “Jair! Jair! Jair” como se os pés das musas tivessem tocado aquele palco.

Em seguida subiu o velhino de terno, que desfiou, no melhor estilo pregador de praça, uma chorumela religiosa que parecia interminável. E de fato era: ele extrapolou os cinco minutos dados a cada concorrente e, mesmo avisado duas vezes, ainda continuava. Por fim, pegaram-no pelo braço e o ajudaram a descer até seu lugar. Mesmo assim ele ainda andava olhando para trás, em direção ao microfone como a mulher de Ló sentindo saudades de Sodoma, e ainda defenestrando versos que já ninguém ouvia.

Seguiu-se uma sucessão de apresentações mais comedidas, umas duas ou três, todas tão sonolentas que o poetinha cochilou mesmo. Acordou com as palmas dadas à menina de quinze anos, que se curvava diante da platéia, imensamente agradecida, exibindo a bunda para os jurados, por causa de sua saia muito curta. O poeta maconheiro, que ainda não se apresentara, cometeu um ato de terrorismo poético que foi o melhor momento da noite: gritou à garota que agradecesse também aos jurados.

Talvez por vingança, ou sei lá o que, chamaram-no a seguir. Ele subiu ao palco acompanhado de um violão e de uma moça tatuada que lhe levou uma vara de incenso. Deixou-a acesa no chão e dedilhou o instrumento. Começou a declamar, deixando espaços compridos entre os versos, durante os quais as notas percutidas em cada sílaba ficavam reverberando misticamente no ar. Era um poema sobre natureza, discos voadores, sonhos, anjos, coisas psicodélicas e também sobre cogumelos e flores.

Então chamaram o poetinha. Subiu ao palco, amarfanhado e já malcheiroso de suor. Enquanto passava pelos bastidores deram-lhe uma cópia nova do poema, talvez por misericórdia. Mas ainda no caminho até o palco percebeu que haviam “corrigido” algumas coisas com que não concordava, então resolveu ignorar e lere mesmo a sua cópia molhada de suor, escondendo-a atrás da folha nova e rija que lhe haviam entregado.

Fechou os olhos e se imaginou sozinho no próprio quarto. O silêncio geral o ajudou. Olhou para os papéis, que tinha à mão esquerda, ergueu-os no ar e soltou. De repente teve a confiança de que precisava. As duas folhas, nova e velha, caíram dançando pelo ar enquanto ele declamava os versos devagar, parando nas ênfases, exaltando as metáforas, até as que não pusera lá. Como sempre, lembrou-se de fazer duas correções em trechos que soavam mal. Quando terminou, suando sobre as luzes fortes que iluminavam o palco, abriu os braços e se curvou, em agradecimento prévio aos aplausos que não vieram. Veio um silêncio quente, denso, úmido.

Ergueu-se meio eletrificado, mas embebido de uma decepção tranquilamente grande. Uma lágrima brotou escondida num canto do rosto, disfarçou-a limpando a testa e se vingou da moça de verde dando-lhe a mão suada para sair do palco.

O último a subir foi o senhor gorducho de camisa estampada. Este apareceu no palco verdadeiramente transfigurado. Durante o breve trânsito pelos bastidores, desabotoara a camisa e deixara ver sob ela uma outra, de malha, com uma estampa berrante que os óculos embaçados do poetinha não lhe deixaram ver direito. Ouviu-se música: um samba tocado com cuidado no piano do teatro, e o gorducho sapateou no ritmo justo.

O samba foi ralentando, adquirindo um outro andamento, ficando esvaziado como uma chuva que vai emagrecendo no fim da tarde. O homem abriu o peito que soou cavo e potente como um canhão, sua voz rasgou o teatro, com pouca ajuda do fraco microfone. E foi declamando uma série de trovas simples, com rimas do segundo verso com o quarto. Não parecia haver muito nexo entre elas, mas a última foi “matadora”, ao conseguir uma “improvável” rima do nome da amada Ivete com a necessidade de, por causa da distância, namorá-la pela internet. Uma onda de gargalhadas atravessou o teatro, dezenas de vozes de pessoas que achavam surpreendente alguma rima que não fosse do tipo “amor e dor”.

Os jurados, então, deram por encerrada a fase de apresentações e convidaram os presentes, autores inclusos, para o coquetel que estava servido na sala contígua. Após o coquetel seria feita a premiação.

O poetinha foi o último a deixar seu lugar. Não tinha vontadede comer ovo de codorna com fios de ovos, nem salaminho ao limão, nem azeitonas pretas no vinagre. Não beberia nada além de água com gás, possivelmente aceitaria uma rodela de limão no fundo.

Não aconteceu nada de extraordinário no coquetel, além do desfile de frivolidades simples. Meia hora apenas e os salgados se acabando quando finalmente anunciou-se o fim das deliberações dos jurados, que aparentavam a gravidade de quem vai condenar alguém à forca.

— Para o terceiro lugar— anunciou o mestre de cerimônias — Fabiana Lima, com seu poema “Amor aos Pedaços”.

O poetinha achou graça de darem um prêmio à menina. Valera a pena mostrar a bunda aos jurados, afinal.

— Para o segundo lugar, Ana Vicentina Gonçalves, com o poema “Face ao Estige”.

A professora conseguira impressionar aos jurados, afinal, com seu meticuloso exercício de versificação. Devia alguma coisa de genial naquele poema, apesar de soar tão duro. Era uma professora, afinal, e os jurados eram professores. Alguém devia representar a classe naquele concurso.

— Antes de anunciarmos o poema vencedor, gostaríamos de entregar um prêmio realmente especial, pelo conjunto da obra.

O poetinha olhou em torno, tentando adivinhar quem mereceria uma honraria tal. Haveria inadvertidamente entre os pretendentes ao prêmio algum que fosse acadêmico, ou que tivesse já vários livros publicados? Não, não era isso:

— Ao poeta Jair de Sousa Lima, que é um exemplo para todos nós.

Era o rapaz que aparentava deficiência mental. Ele subiu ao palco sorrindo meio abobado, acompanhado de várias outras pessoas, certamente parentes e amigos. Deram-lhe um bonito troféu, maior que os outros dois que já haviam sido entregues.

O poetinha, ainda se sentindo perdido no assunto, resolveu pedir ajuda ao único entre os candidatos que lhe parecia acessível, o poeta maconheiro:

— Quem é esse cara do prêmio especial? Não vi nada de extraordinário na obra dele hoje — perguntou em um cochicho.

— Ora, é só um portador de necessidades especiais que inscreveu alguma coisa no concurso. Para não serem crueis com ele patrocinaram esse prêmio.

— Mas isso não faz sentido, que espécie de concurso é esse em que a gente concorre contra alunos da APAE?

— É um concurso como qualquer outro, ou você acha que é melhor do que o garoto? Você só não tem uma APAE para estudar e uma família para lhe pagar um troféu.

O poetinha quis revidar, mas subitamente deu-se conta de que era aquilo mesmo. Quanto poeta do mundo se empresta a glória da escola onde comprou seu diploma, ou é propelido pelo dinheiro da família até as salas dos melhores revisores, aos selos das melhores editoras e às listas dos mais vendidos? Mais honesto aquele rapaz, que não o fazia por querer, e aquela família que tinha plena consciência de que estava apenas comprando horas de felicidade para ele. Melhor isso que a ilusão de ser um novo gênio literário só porque nasceu no lugar certo e estudou com pessoas influentes. Ou talvez estivesse ressentido, e o ressentimento nos conta mentiras para justificar nossa insignificância.

Por fim o mestre de cerimônias pediu a palavra para o grande momento da noite.

— Senhoras e senhores, neste momento gostaria de pedir uma salva de palmas para o nosso vencedor, com sua obra inovadora e surpreendente, Antônio Gomes e suas “Trovas para Ivete”.

O poetinha quase engasgou com a própria língua. O poeta maconheiro apenas ria.

— Como é isso? “Inovadora”? O cara escreveu umas trovas em redondilha!

— Fica calmo, rapaz, tudo é parte do jogo.

— Como assim, “surpreendente”? A única coisa diferente em todo o poema era a palavra “internet” no final, rimando com o nome da suposta amada dele, que ele só batizou assim por causa da rima!

— Não seja despeitado, o poema dele pelo menos todo mundo entendeu.

O poetinha se levantou para aplaudir, junto com os outros, e os foi acompanhando para fora, mortificado de sair do concurso sem prêmio nenhum, apesar da “obra prima” que arrancara das entranhas de sua própria alma enquanto o sambista gorducho amealhava três mil reais graças a cinco trovas simples sobre amar de longe uma tal de Ivete. Sentia-se ultrajado, esbulhado, feito de palhaço. Apenas o poeta maconheiro o ajudava a ter perspectiva:

— Você esperava o que, rapaz? Um concurso de poesia no interior, com um juri formado pela pequena burguesia local? Queria que dessem o prêmio a um forasteiro como você? Queria que dessem o prêmio a um pobre como um de nós? Que premiassem um poema inconformista, como o seu, ou como o meu?

— Olha, o problema não é eu ter perdido. O problema é “ele” ter ganhado.

— Foda-se isso, você ainda não entendeu para que você e eu servimos aqui? Nós somos só a escada em que eles sobem para ganhar seus certificados inúteis. Estamos aqui para dar brilho à cerimônia deles.

Mesmo assim, eu tenho a certeza de que meu poema era bom. Como não ganhei nada?

O poeta maconheiro o levou à janela que dava para o riacho fétido, o canto onde ninguém queria ir, mostrou-lhe as luzes da cidade e disse:

— Veja só, rapaz, tudo isso é ilusão. Ilusão, ilusão, tudo é ilusão. Eles fazem cerimônias, trocam certificados e títulos, dão-se prêmios, batizam ruas com os nomes de seus parentes. Mas depois eles morrem e fica só a placa na esquina, sem que ninguém saiba quem foi. Tudo é poeira no vento. Esse concurso, esse prêmio, até o dinheiro que o cara ganhou. E não pense que lhe adiantaria alguma coisa se você ganhasse. Adiantaria menos do que adiantou para o gorducho: ele vai beber esse dinheiro em uísque e deixar o troféu num canto da área de serviço. Mas você, faria o que com o troféu, o certificado e o dinheiro? Três mil não consertam sua vida, o certificado não lhe abre nenhuma porta, o troféu é um monstrengo horrível. Fique feliz de ter perdido, e aprecie a companhia.

— Que companhia?

— Você perdeu em ótima companhia nesta noite. Você perdeu em companhia de Augusto Frederico Schmidt, entremeado com versos de Péricles Eugênio da Silva Ramos, Rui Ribeiro Couto, Raul de Leoni e Alphonsus de Guimaraens.

— Você está falando do seu poema?

— Sim, claro. Uma colagem de versos absolutamente lindos, de poemas obscuros de autores absolutamente incontestáveis. E eles nem perceberam e nem premiaram.

O poetinha sorriu:

— Acho que ano que vem tentarei participar com umas traduções de Evgeni Evtushenko que estou tentando a partir do francês.

— Esse é o espírito, cara. Se você não pode ser rei, seja um bom bobo da corte, que é o único com permissão para rir do rei.

O poeta maconheiro recebeu o abraço de sua mulher e convidou:

— Vamos afogar esse seu ressentimento em uma copada generosa de vinho com catuaba?

O poetinha lembrou-se de Irene, acenou-lhe, e, claro, disse que aceitava.


03
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 15:03link do post | comentar

Não é preciso explicar a piada, se você tenta é porque ela é ruim, ou então quem ouviu é um idiota. E não se esqueça que contar uma piada boa para um idiota é prova de idiotice também: o bom piadista adequa o chiste à capacidade do ouvinte, pois uma piada sobre queijos exóticos e filósofos alemães não funciona se você contar para o frentista do posto de gasolina enquanto ele calibra o pneu do seu carro.

Dito isto, é preciso acrescentar que, se não precisa de explicação, a piada também não precisa de desculpas. Se o seu ouvinte se ofendeu com a piada, então é porque você não soube adequar-se ao público. Antes de xingar o ouvinte de intolerante, infantil ou revoltado profissional, lembre-se que o incompetente foi você: se a função do humor é fazer rir, e você ofendeu em vez de alegrar, então os xingamentos todos são para você que contou para uma beata uma piada sobre Jesus e os apóstolos jogando pôquer.

Ambas estas coisas, por fim, devem ser ditas para que as pessoas pensem, porque parece que hoje em dia o humor perdeu um pouco o rumo. Antigamente a gente julgava a piada, e o piadista, pela capacidade de fazer rir. Se a piada fazia rir, então era uma piada. Se eventualmente ofendia alguém, pelo menos a piada era boa. Hoje em dia isso mudou, ninguém nem liga se a piada tem graça ou não, mas se você se ofende, mesmo que não se ofenda sozinho, mas acompanhado de uma multidão, mesmo assim ninguém culpa o piadista de ser incompetente: querem culpar o público, por supostamente ser «intolerante» ou levar o humor a sério demais. A essa gente que parece que pegou procuração para defender o humor idiota do Zorra Total ou piadistas preconceituosos como os «proibidões» do humor, um conselho: vão aprender o que é humor de verdade antes de saírem ofendendo o público. Humorista é artista, humorista cativa seu público porque precisa dele. Humorista se adapta aos tempos, porque se o povo não acha graça ele fica com cara de babaca em cima do palco, rindo da própria piada e tentando explicar. E não há xingamento que resolva, não adianta chamar o público de burro, de intolerante, de carola, de politicamente correto, de nada. Se ninguém acha graça é porque a piada é ruim. Se além de ninguém achar graça você ainda coleciona um monte de gente ofendida, além de contar piadas ruins você ainda é um mala, do tipo que ofende os outros. E não adianta se esconder atrás da desculpa do humor para continuar destilando sua intolerância, seu racismo, sua idiotice genérica.

Piada não é escudo para babaquice. Tanto quanto a licença poética não desculpa péssimos versos. Se você conta boas piadas, ou faz boa poesia, adquire um crédito que lhe permite ofender algumas pessoas, ou quebrar algumas regras. Mas se a sua piada é um saco, se o seu verso é uma porcaria, então você não tem porra de crédito nenhum, tem mais é que aguentar calado as críticas. E sabe por que? Por que os bons humoristas e os bons poetas AGUENTAM. Eles aguentam as críticas calados porque sabem que seu trabalho os redime. Se milhões de pessoas riem de uma ótima piada, então os dez ou vinte que se ofenderam ficam com vergonha de criticar. Você não precisa defender uma boa piada: se está precisando defendê-la, ou defender-se, é porque a piada é ruim e você é um péssimo humorista.

Tendo dito isto, encerro recomendando a esses molequinhos criados com leite de pera e ovomaltine que acham que são engraçados porque ofendem aos outros: vocês precisam assistir muito humor de qualidade. Monty Python, Trapalhões, Três Patetas, Hermes e Renato, Jô Soares (do tempo do «Viva o Gordo»), George Carlin, Chris Tucker, Bill Cosby e muita gente mais (até o TV Pirata, o Dóris Para Maiores e o Casseta e Planeta dos primeiros anos).

Achar que as piadas fazem rir quando ofendem é como achar que as pessoas riem mais quando as piadas são contadas aos berros e relinchos, como fazem os atores do Zorra Total, que atuam gritando, como se assim pudessem forçar as pessoas a rir. É como achar que acrescentando palavrões ao texto ele fica mais humorístico, como fazia o Ary Toledo em seus shows dos anos 80, em que cada piada era pontuada por um palavrão cabeludo. Mas isso não é verdade: palavrões, gritos e ofensas são apenas instrumentos, que podem estar presentes, mas que, por si só, não fazem rir, a menos que sejam usados com economia.

E tendo dito tudo isso, finalmente peço que pensem um pouco (se bem que «pensar dói») e redefinam suas prioridades. Porque vocês não estão defendendo o humor, estão defendendo a ofensa e a vulgaridade usando o humor como desculpa. Ao fazerem isso, abrem caminho para justamente que se ataque o humor, usando a ofensa e a vulgaridade como justificativa. Não reduzam o humor à estatura de sua cultura e de sua inteligência.


27
Out 12
publicado por José Geraldo, às 22:08link do post | comentar | ver comentários (6)
E para quem achava que repetição de erros de organização era algo que só acontecia com o ENEM, «coisa do governo» e, portanto, incompetente, eis que, pelo segundo ano consecutivo, lá temos sob questionamento de novo o maior prêmio literário do país, o Jabuti, conferido pela Câmara Brasileira do Livro.

Para quem não se lembra, a polêmica do ano passado se deveu ao romance de autoria de Chico Buarque ter sido escolhido «livro do ano» mesmo sem ter sido vencedor em sua categoria. Trocando em miúdos: uma obra que não conseguiu ser o melhor romance do ano foi vista como o melhor livro. Faz sentido na lógica psicodélica dos concursos literários que, como se sabe, são um tipo delicado e culturalmente desejável de empulhação. Empulhação consentida pelas partes, embora algumas vezes certas pessoas fiquem amargas.

A polêmica deste ano se deveu às notas conferidas por um dos três jurados na categoria romance. O ainda anônimo «Jurado C» deu respectivas notas zero e um e meio a duas obras que haviam tido notas médias anteriores maiores do que as do livro que veio a ser o vencedor. Trocando em miúdos: prevendo que o seu favorito (a quem deu 10) perderia, o «Jurado C» deu notas ridículas aos principais concorrentes, para forçar a vitória de seu candidato.

Não existem justificativas para a crítica dar notas abaixo de cinco a um romance que chega às finais de um prêmio nacional de literatura. É preciso uma dose muito grande de paulocoelhice para um romance merecer zero. Tanto assim que nem mesmo os romances do mago chegam a merecê-la, no geral. É de se imaginar que obras publicadas por editoras sérias (aham), escolhidas por critérios literários sérios (aham), submetidas a processos competentes de revisão, se chegarem a integrar a lista dos dez favoritos, merecem pelo menos um cinco. Cinco é a mediocridade absoluta. E mediocridade é o mínimo que se espera de um autor publicado «no esquema». Abaixo da mediocridade reina o desastre, a falta de continuidade, os solecismos, os desconhecimentos semânticos, a anfibologia, o plágio e toda uma gama de coisas que tornam a leitura do livro impossível a não ser pelos infelizes revisores que são obrigados a ler.

Portanto, as notas dadas pelo crítico são indefensáveis segundo qualquer parâmetro crítico que se queira adotar — e isso quer dizer que elas evidenciam a manipulação deliberada do resultado final. Que seria outro se outras tivessem sido as notas desse frustrado indivíduo que gargalha em sua cadeira, como um deus mitológico, depois de fulminar os pobres mortais.

As notas deste crítico, sozinhas, são um tapa na cara de todo escritor brasileiro. Elas revelam um estado de espírito que não pode ser isolado. Se este crítico fosse o único a se sentir um «deus das notas», capacitado a definir resultados de prêmios que influem nas vidas de pessoas, a sua atitude teria encontrado mais repúdio, o processo teria sido cancelado. Outra análise seria feita. Tudo para não entregar a um jovem autor, estreante no romance, um prêmio que lhe pesará mais na estante do que uma bola de ferro acorrentada ao calcanhar. Para todo o sempre o escritor Oscar Nakasato será o autor que só ganhou o jabuti porque um crítico deu zero a Ana Maria Machado.

No lugar de Oscar, eu compareceria a cerimônia, sabendo que ela seria filmada, subiria ao palco, receberia o troféu, mas em seguida o recusaria, destinando-o publicamente ao Jurado C que, ao demonstrar tamanha vontade de influenciar no resultado, revelou-se único «dono» do troféu, a ponto de decidir conscientemente a quem dá-lo. Desta forma, recusar o troféu seria restituí-lo ao dono. Seria uma saída digna. Pessoas dignas costumam recusar honrarias imerecidas ou polêmicas. Escroques não, porque eles vivem para obter honrarias, merecidas ou não. Kissinger aceitou um Prêmio Nobel da Paz por ter assinado a paz da Guerra do Vietnã, uma paz que poderia ter saído quatro anos antes se ele não tivesse ajudado a sabotar as negociações para favorecer a vitória dos Republicanos em 1968. Para ganhar uma eleição, o futuro Nobel da Paz fez mais 250 mil pessoas morrerem. Humor negro no Vietnã é dizer que Kissinger ganhou o Nobel da Paz.

Se o romancista paranaense fizer isso, certamente será declarado persona non grata nos meios editoriais brasileiros para todo o sempre, e amém. Mas se aceitar o troféu, a vida inteira vai ter alguém para implicar consigo dizendo: «aquele troféu você só ganhou porque um jurado maluco deu zero para a Ana Maria Machado, cara». Olhem o tamanho da injustiça que o júri do Jabuti impôs a esse cara. Ninguém merece ter que fazer uma escolha dessas: entre uma atitude digna que atrai catástrofes e uma atitude cautelosa que preserva uma polêmica (alguns dirão covarde, mas eu que sei o que pena um escritor não tenho coragem de usar esta palavra contra o Nakasato). Por isso eu vou entender se o cara aparecer com seu melhor terno, sentar onde «o moço» manda, esperar quieto a sua vez, aplaudindo a vez dos outros, subir no palco com desajeitamento natural ou simulado (pois novato tem que ser desajeitado), agradecer à família, à Deus, à pátria, ao público e levar o troféu para casa, caladinho. Nem todo mundo é maluco. Nem sei se eu seria. Mas que adorável seria o mundo se os malucos governassem.

Alguns dirão que o tempo passa, as polêmicas são esquecidas e o que importa são os títulos conquistados, e só os perdedores choram. É a lógica deprimente do sucesso a qualquer preço. A lógica de uma espécie de selva moral que nos empurra para o abismo e para o salve-se-quem-puder. Uma lógica que está na moda, mas a moda pode mudar as pessoas começarem a dar exemplos. Eu quero viver em um país onde as pessoas rejeitem vitórias obtidas de forma ilícita ou em decorrência de falhas do processo. Por isso eu preferia que o Chico Buarque tivesse recusado seu Jabuti no ano passado, considerando que ele, sendo quem é, precisa muito menos dele do que o Nakasato, que está começando agora. Mas Chico ficou com o prêmio, sem sequer um protesto, e se apequenou. Sorte dele é que os ídolos não precisam ser perfeitos.

02
Out 12
publicado por José Geraldo, às 00:14link do post | comentar | ver comentários (1)

Às vezes a palavra que dizemos corta inadvertidamente quem está perto. É como brandir uma espada longa1 em círculo sem saber que alguém chegou pelas nossas costas. Culpa da espada? Do espadachim? Da vítima? Ou mero acaso.

Anteontem ofendi seriamente um amigo facebookiano por causa de minha postagem aqui.

Postei pensando num hábito irritante de dois ou três debatedores em um grupo político onde participo, sujeitos pedantes que gostam de pontuar suas frases com barbarismos léxicos achando que assim se mostram descolados. Essa fato me puxou o fio de muitas memórias, desde os tempos de Orkut, quando me cansei de ver garotos de 16 anos que tinham ido à Disneylândia achando que tinham cabedal para escrever um romance ambientando nos States.

Este amigo facebookiano me escreveu pedindo meu voto em uma espécie de concurso que está sendo promovido pelo Clube de Autores.

Mal sabia que o amigo facebookiano justamente me pedira para opinar num caso desses. Ele é o autor amador de um romance que começa por um título em inglês, que está ambientado em algum lugar dos Estados Unidos e tem uma história chupada diretamente dos filmes de terror americanos. Eu ainda não opinara, afinal o pedido era recente e eu tinha motivos razoáveis para supor que teria bastante tempo para analisar o livro e decidir se merecia ou não o meu voto. O fato de eu passar os fins de semana longe de meu computador pessoal era motivo suficiente para eu esperar pela semana.

Porque eu jamais daria meu voto sem ler a obra. A função de um concurso não é votar por amizade e nem pela beleza da capa: se esse era o tipo de voto buscado, buscou com a pessoa errada.

Então, inocente do conteúdo da obra que eu deveria avaliar, postei o que postei e segui com a vida. Hoje ao abrir o facebook me deparei com um irônico «agradecimento» do meu amigo e senti cheiro de coisa errada. Cliquei na ligação para o voto e detectei na hora de que se tratava.

Imagino que o meu amigo tenha razão para estar ofendido. Receber uma crítica é sempre ruim, porque de certa forma é como se alguém nos contasse que não somos geniais. E todo mundo se acha especial, genial. Mesmo uma crítica enviesada como essa, que só o atingiu na base do efeito colateral e da carapuça espontaneamente vestida.

Ao meu amigo só posso dizer que se acostume, e que aproveite. Viver para a arte é assim. Você se esforça e depois vem um idiota e diz que o seu trabalho é uma porcaria. Às vezes você passa a vida inteira sendo desvalorizado por idiotas e vira gênio depois que morre. Mas em muitos casos os idiotas têm razão e as pessoas ficam pensando porque você insistiu tanto, como o motorista da piada do barbeiro na contramão da Via Dutra.2

No fim das contas é muito difícil quem escreve, compõe ou faz qualquer coisa artística conseguir ter uma visão clara e definida da qualidade do que escreve. Em geral esta visão só se consegue com o tempo. Com cabelos brancos que nos embaçam os olhos e nos fazem enxergar o valor real do que fazíamos aos vinte anos. Para sorte da literatura nós só adquirimos a sabedoria tarde demais, e temos tempo de ser ousados antes, para o bem e para o mal — mais frequentemente para o mal, mas os fracassos se perdem no esquecimento, então não há nenhum grande prejuízo, a não ser para quem se ilude.

Muito Nero morre tangendo sua lira, sem nunca entender porque as plateias não aplaudiam. Em alguns casos eram platéias estúpidas, mas esse é um julgamento feito pela posteridade, então o melhor que o artista faz é não se matar por causa disso, nem perder suas amizades.

Diz um ditado piegas que «com as pedras que me atiraram fiz o meu castelo». Você não precisa fazer um castelo, mas se ficar jogando de volta não ganhará nada. Infelizmente esse tipo metafórico de pedras não serve para fazer castelos, o que é uma grande pena, mas serve para construir metafóricos muros mentais dentro dos quais o grande artista se isola com as pessoas que gostam do que ele faz.

Não sei se isso é errado, sei que não gosto. Queria que mais gente viesse me insultar aqui, enfiar o dedo nas feridas, gritar os meus defeitos.

As poucas coisas que aprendi na vida incluem uma constatação: se fazemos uma escolha certa desde o início é por mera sorte. Em geral deixamos de cair nos buracos porque alguém grita. Mas alguns têm a perseverança de ignorar a gritaria e seguir. Alguns são gênios, mas a maioria só fica teimando em coisas que ninguém quer, e que não sabe fazer direito.

Quem sou eu para julgar qual é o caso, mas reservo-me o direito de gostar do que escolho gostar. Quem vem me pedir que goste de outra coisa deve estar atento: não se pede a um atleticano que torça pelo Cruzeiro «só para ajudar».

1 O nome em português da longsword conhecida dos jogadores de RPG, Skyrim e outros jogos de guerra. O nome inglês evoca apenas o fato de ser comprida, em português se evoca o fato de ela ser tão grande e pesada que normalmente era usada apenas por cavaleiros (daí «montante», a espada que se usa montado a cavalo). Guerreiros excepcionalmente grandes e fortes costumavam lutar usando montantes a pé para intimidar seus inimigos com sua força, mas isso era só uma exibição gratuita de ignorância, sem muito efeito bélico.

2 A piada do motorista barbeiro na Via Dutra. Um motorista seguia pela Via Dutra, enquanto ouvia o rádio e xingava os outros motoristas por suas barbeiragens. O rádio deu a notícia: «Atenção motoristas que trafegam pela Via Dutra no sentido São Paulo/Rio, há um maluco dirigindo pela contramão na altura de Resende.» O motorista ouviu isso e comentou consigo mesmo: «Nossa, eles não sabem de nada! Um só!!!? Ahahah!»


11
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 19:39link do post | comentar | ver comentários (3)
Esta semana, enquanto discutia a opinião de Paul Rabbit sobre James Joyce, acabei, sei lá como, psicografando Clarice Lispector. Se eu fosse espírita, esse seria um dos momentos em que eu me orgulharia de minha mediunidade. Com a vantagem de que o texto que escrevi expressa, praticamente sem ressalvas o pen­samento da autora — muito diferente das psicografias da moda, que em geral tem tanto a ver com a obra do autor espiritual quanto o proverbial ânus com as calças. Refiro-me a esta declaração de Clarice, numa de suas últimas entrevistas (agra­decimento a Victor de Toledo Stuani por me repassar o link e a transcrição):
"Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade."
Clarice estava se referindo ao papel que todos esperam que o profissional exerça, não só em relação ao nicho literário em que foi inserido ao longo do tempo, mas também em relação às opiniões e imagem que precisa manter em relação ao sistema. As mesmas ideias de Clarice eu expressei assim:

Equal é exatamente a diferença entre um escritor amador e um profissa? Pode parecer pouca, mas pare e pense, pense muito bem. Um autor amador como eu é um franco atirador. Eu escrevo o que quero, como quero. Publico no blog por­que quero, procuro editora na medida do possível e vou levando. Não preciso da litera­tura para nada além de satisfação pessoal (o que inclui o sonho de alguém algum dia notar que sou um gênio incompreendido e assinar comigo um con­trato de milhões de dólares e me dar um título honoris causa da Sorbonne).

Por isso eu posso ousar. Se ficar ruim, é porque é um trabalho amador. Se ficar bom, tapinhas nas costas e nem um centavo de reconhecimento. Posso também cri­ticar quem quiser, o quanto quiser (e bobo é quem se achar atingido por estas crí­ti­cas a nível pessoal), sabendo que minhas críticas «valem quanto pesam», ou seja, serão julgadas pela sua propriedade e não pelo meu currículo inexistente.

Não é a mesma coisa para um profissional. Ao se dedicar a literatura como meio de vida, como fonte permanente da grana que compra seu feijão (ou seu caviar, depen­dendo de quanto venda) o autor profissional passa a depender de vendas regu­lares. Isso inclui definir seu estilo, encontrar seu nicho, cativar seu público, etc. Não espere que um autor de FC, por exemplo, dê uma veneta de escrever poesia erótica, ou que um autor regionalista se meta a fazer FC hard. Eles até podem querer isto, mas o mercado não quer, o público leitor preconceituoso não quer. Poucos leitores de Stephen King leriam contos românticos de sua autoria. Pou­cos fãs de FC levariam a sério uma space opera de autoria de Rachel de Queiroz.

O mesmo se aplica às críticas: quando um autor famoso e profissional fala sobre lite­ratura as pessoas imaginam um mestre falando ex cathedra. Esse peso extra que as pessoas dão às opiniões dos profissionais faz com que elas não valham ape­nas o quanto pesam, valem o peso da vendagem, dos contratos, da publi­cidade, dos diplomas (mesmo honoris causa). Uma estupidez dita por um acadê­mico é estudada na imprensa. Uma crítica muito apropriada feita por um amador como eu será sempre entendida como uma ousadia inadequada. «Quem é você, seu bosta, para falar mal do livro do fulano?»

Isso significa que o autor que deseja ser profissional precisa começar a censurar-se. Precisa começar a enquadrar-se. «Erotismo demais para uma obra juve­nil», «ficção científica ambientada no interior de Minas Gerais é uma coisa ridícula», «ninguém está interessado em sua autobiografia». E o que já conse­guiu precisa policiar-se: «não fale mal de fulano, porque ele é um editor impor­tante», «faça algumas críticas elogiosas a sicrano e aumente suas chances de ir para a Academia»,«não diga uma coisa dessas, que isso pode ofender os res­pon­sáveis pelo sistema educacional».

Paul Lapine tem, entre suas raras qualidades, a liberdade de atacar o sistema. Porque o sistema foi lamber suas botas para dar um sopro de vida a uma Aca­demia caquética, cada vez menos relevante culturalmente e inflada de autores de nulo valor (como José Sarney (devidamente posto em seu lugar por Millôr Fer­nandes), Ivo Pitanguy (enquanto literato é um ótimo médico), Merval Pereira, Marco Maciel, Nélson Pereira dos Santos (apesar de ser um bom cineasta) e Eva­risto de Morais Filho. A verdade é que, por mais que eu deteste o trabalho de Pavel Krolik, ele é mais importante para a literatura do que todos esses juntos, e com um nariz de vantagem. Isso lhe dá a ousadia de falar mal de um dos santos do cânone ocidental, traduzido ao português por ninguém menos que Antônio Houaiss.

Minha opinião sobre Joyce, idêntica à de Paul Kaninchen, jaz amparada no sagrado direito de dizer bobagens que assiste aos amadores. Nós somos livres para não gostar do que não gostamos, não temos a obrigação de elogiar o que nos enfastia. Não somos maridos da grande literatura para suportá-la a todo custo.

Continuo, porém, mantendo a minha opinião sobre Ulysses, e não é um crítico britânico especialista em Joyce que vai me intimidar. Certamente há pessoas que gostam de Ulysses, tanto quanto há quem goste de vela quente e chicotada nas costas. De gustibus non eramus disputandum.

Há, porém, uma diferença fenomenal entre a opinião do Paolo Coniglio e a minha: eu desgosto de Joyce enquanto leitor, pois esse não é o tipo de literatura que me comprazo em ler (mas reconheço que Ulysses possui boas ideias, mistu­radas com outras horríveis e outras medíocres). Já o Pablo Conejo desgosta dele com a «otoridade» de um acadêmico, e um acadêmico precisa entender que nem todas as obras foram feitas para serem lidas pelo grande público, nem todo autor é assunto para se conversar na padaria. Se alguém me desancar pela minha opinião eu aguento o tranco sozinho e me refugio, acuado, na desculpa de que sou só um leitor, que também amadoristicamente escreve e palpita, mas o desancamento do Paul Konijn pelo crítico inglês salpica na Academia que o elegeu porque sugere que o mago é um simplório, um tosco, alguém que se iguala ao leitor de tabloides. Para vender ao leitor de tabloides, diga-se de pas­sa­gem. Um mercenário.

Na qualidade de não acadêmico e de amador, eu ainda tenho tempo de dizer boba­gens e não tenho assessoria que me impeça. O mesmo não se pode dizer de Paul Lapine, o prestidigitador. Que está começando a enfrentar, lá fora, o mesmo nível de rejeição nos meios literários de que já desfrutava por aqui. A ABL ainda se arrependerá de tê-lo eleito, mas não antes de arrepender-se de ter eleito o Merval.

URUBUSERVAÇÕES: Não é curioso que a ABL eleja com tanta facilidade polí­ti­cos e personalidades de direita, mesmo com nulo valor literário (além dos cita­dos, a Academia também já agraciou um general da Junta, o Aurélio Lira Tava­res, mas ignorou solenemente o Carlos Drummond de Andrade, que, afinal, era comunista).

Utilizei pseudônimos poliglotas para o autor em questão por duas razões. Pri­meiro porque ele é mais reconhecido por vender no mundo inteiro do que pelo valor de suas obras. Segundo que ele disse as bobagens que disse para se pro­mo­ver, obviamente, e eu não quero ajudar a encher a sua bola, nem mesmo se isso encher a minha também. Na qualidade de amador, reservo-me o direito disso.

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