Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
29
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 23:24link do post | comentar | ver comentários (1)

O sucesso do mais novo rebento da categoria do filme hollywoodiano baseado em quadrinhos de heróis nos faz novamente refletir sobre o símbolo que a máscara representa para aqueles que com ela se identificam. O herói mascarado, mais especificamente o Batman, herói mascarado mais arquetípico e mais poderosamente enraizado nas nossas neuras e ideais, representa muito mais do que o veículo de algumas horas de diversão violenta, ainda mais quando habilmente manipulado para que sua história deixe de ser quadrinesca e kitsch para adquirir ares adultos. Um movimento que começou com Frank Miller nos anos 1980 e agora nos produz o primeiro filme de super heróis a romper realmente a barreira do infanto-juvenil e ganhar elogios de adultos (embora não de todos os adultos).

Batman faz mais sucesso que a maioria dos heróis, inclusive no quesito ardor dos fãs, porque ele é «um de nós», não um alienígena adotado pelo nosso planeta, como o Super-Homem. Porque seus poderes estão ao alcance de um ser humano dedicado e provido de recursos, em vez de derivarem de uma fonte mística qualquer; como o anel do Lanterna Verde, a filiação divina da Mulher-Maravilha, a divindade de Thor ou  algum improvável acidente nuclear (Hulk) ou elétrico (Flash). Além disso, ao contrário do Homem de Ferro, outro herói que também emprega poderes não sobrenaturais, ele não é fragilizado fisicamente. A fragilidade do Homem-Morcego é uma fragilidade ao mesmo tempo psicológica (derivada do trauma de ter presenciado, impotente, o assassinato dos pais) e moral (seu comportamento de vigilante frequentemente torna aqueles a que combate em monstros piores ou enseja que os bandidos se tornem mais viciosos para lhe fazerem frente).

Estes fatores aproximam o homem comum deste herói, cuja força está nos músculos, no cérebro e no dinheiro — os três poderes mais invejados pelos jovens de hoje. E desde que o atual diretor dos filmes, Christopher Nolan, conseguiu mostrar o herói de forma mais máscula (desviando das antigas suspeitas do relacionamento homossexual com Robin) e independente (tornando-o menos tutelado pela figura paterna do mordomo Alfred), paradigma se tornou mais evidente e o culto ao Cruzado Mascarado cresceu.

Uma coisa que sempre me chamou a atenção nas histórias do Batman foi que os seus vilões o enfrentavam de cara limpa na maioria das vezes. As poucas exceções eram justamente os personagens mais ambíguos, como a Mulher Gato, que eu, desde criança, sempre pensei que queria mais roubar o coração do Morcegão do que as joias dos museus. Pinguim, Coringa, Duas Caras, Charada, Erva Venenosa; quase todos tinham os rostos expostos ou meramente disfarçados por uma máscara que servia mais de adereço do que de disfarce. Diferentemente do Homem-Morcego, em seu pesado traje, que reflete as sombras de sua alma atormentada por uma infância interrompida por um crime absurdo e pelas sequelas de um vigilantismo que frequentemente o expõe às monstruosidades que pretende combater. Como dizia Nietzsche: quando contemplas o abismo, o abismo também te contempla. De tanto contemplar o abismo, o Morcego se torna, também ele, abissal.

Por isso é curioso que justamente esteja sendo considerado este último filme como a culminação de todos os filmes do herói com máscara de quiróptero: pois é justamente o filme no qual ele enfrenta outro que, como ele, tem o rosto oculto por trás de uma máscara. Uma máscara que é o oposto da sua: Batman oculta os olhos, para não ter que encarar de frente o abismo. Bane oculta a boca e se oferece à contemplação, ao mesmo tempo em que contempla, desafiadora e esfingicamente. Bane é um bandido que não tem nada a declarar, ao contrário de outros que muito diziam mas nada significavam, como o Charada, o Coringa ou o Pinguim. Representa a maior expressão da força bruta, descuidada da própria preservação. Sua máscara lhe mantém permanentemente sob o efeito de analgésicos e esteróides e drogas outras. Ele não quer acusar os golpes, porque se os sente talvez não golpeie com tanta força.

Poderia dizer que vejo em Bane uma metáfora para o terrorista suicida. Mas para isso eu teria de comparar a crença religiosa a uma máscara que injeta analgésicos o tempo todo pela goela abaixo de quem a põe. Vocês concordariam com isso? Não sei se eu mesmo concordo.


21
Jan 12
publicado por José Geraldo, às 15:54link do post | comentar

Nesta semana em que «Luiza voltou do Canadá» e o estupro da inteligência do povo pela Rede Globo ficou mais do que evidente houve um fato a que pouca gente deu importância, mas que se tornou emblemático do estado de indigência mental em que o país segue mergulhando de cabeça e sem capacete: a pedrada que alguém atirou na testa do Pê Lanza, baixista/vocalista do «Restart».

Diz o ditado que a ocasião faz o herói, esta ocasião em particular tornou o roqueiro colorido um herói improvável diante de seus fãs e, em minha modesta opinião, deu-lhe moral diante de todo e qualquer fã de rock'n'roll do planeta. Imagino que o boçal que deu a pedrada imaginou que Lanza entraria em pânico e deixaria o palco para tomar seu leite de pêra com ovomaltino, mas ele, em vez disso, chamou o «valentão» para acertar as contas nos bastidores, disse que o sangue que saía era pouco, pois ele tinha mais para dar pelos fãs, e cantou mais uma música antes de encerrar o show. Há controvérsias se o show já tinha acabado e ele foi acertado na hora dos aplausos ou a pedrada foi aleatória. Mas certamente ver o rapaz ainda cantando a última canção com a testa escorrendo «melado» deve ter aumentado ainda mais a histeria das fãs do grupo. E, tenho de confessar, até eu virei fã do «Restart» depois dessa.

Devo explicar, porém, que tornar-me fã do «Restart» não significa que passei a gostar de sua música. Continua achando-a ingênua e tosca, tanto quanto antes. Tornei-me fã da atitude e da coragem dos membros da banda, especialmente Lanza. No momento em que aquela pedra acertou a sua testa aquele garoto virou homem. Porque «homem» não é um idiota que se esconde na multidão para tacar uma pedra na testa de um músico porque não gosta do trabalho dele. A única coisa com que os artistas podem ser alvejados é a vaia. Vaiar vale, mas atirar uma pedra, não. Isso algo que não se atira em ninguém. Homem é o Pê Lanza, que desafiou o covardão a acertar as contas nos bastidores, ignorou o próprio sangue que corria, disse que tinha mais uma música para cantar — e cantou. Se ele tivesse saído do palco chorando, como talvez o apedrejador tivesse imaginado, nunca mais poderia subir em outro para cantar. Nem ele e nem ninguém, pois não há intérprete que seja unanimidade. Quem nunca tomou uma vaia que discorde de mim. Se tivesse se acovardado, teria «dado razão» ao imbecil apedrejador, outros macacos apareceriam, atirando pedra ou merda. Mas ao agir como agiu, fez com que a mão apedrejadora se acovardasse, fez com que os fãs tivessem a alma lavada e fez com que muito roqueiro que não gosta do som do «Restart» passasse a respeitar o grupo por sua atitude. Porque a atitude de Lanza foi totalmente rock'n'roll. Lembra Joan Baez grávida desafiando a polícia ao fazer shows para arrecadar fundos para a defesa dos desertores do Vietnã. Lembra Gary Thain (aliás, também um baixista) eletrocutado no palco durante um show do Uriah Heep. Lembra Jim Morrison mostrando o pênis para a plateia em desafio a uma ordem judicial que considerava «obscena» uma de suas letras. Lembra a volta triunfal do AC/DC após a morte do vocalista, quando muitos pensaram que o grupo «tomaria juízo» após ter sido «castigado por Deus» pela letra de «Highway to Hell» (Rodovia para o Inferno).

Mas indo além do heróico ato de Pê Lanza, vale mais a pena analisar a burrice que se expressa na pedra. Apedrejar é uma atitude retrógrada. Apedrejar é uma forma de legar ao anátema. A morte por apedrejamento era destinada a pessoas que eram tão desprezadas que até mesmo tocá-las para (direta ou indiretamente) um estrangulamento, esfaqueamento ou lanceamento seria inaceitável. A pessoa que atirou aquela pedra procurou demonstrar um grau superlativo de desprezo pelo «Restart» e pelo que ele representa. Mas o grupo merece tudo isso?

Obviamente nenhum fã de música boa encontrará no grupo motivos para apreciação. Suas canções são primárias, suas letras são ingênuas, seu visual é adolescente e sua ideologia é mais vazia que uma cuia. Mas eles não tem pretensão de serem novos mestres da música, não pretendem filosofar em suas letras, não vieram ditar moda e não querem ensinar nada a ninguém. Eles estão apenas ganhando a vida honestamente fazendo o que sabem, preenchendo um nicho — o de grupo musical para adolescentes. Não há nada de errado nisso. Eu não gosto porque não sou adolescente, mas talvez gostasse se tivesse quatorze anos. Alguém, por acaso, acha errado ter quatorze anos?

Apesar de sua falta de qualidade, porém, a música que o «Restart» faz é muitíssimo menos desagradável do que a maioria do resto da música popular de hoje. Não se compare o roquinho dos garotos com as obscenidades grosseiras e animalescas do funk e de certo subgênero do «sertanejo» que não merece ser chamado de universitário, mas de «mobral». Os adolescentes que gostam do «Restart» vão crescer e gostar de outras coisas. Mas há marmanjos que fazem esses gêneros «das cavernas» e não estão levando pedras na testa. Será que o que faltou ao «Restart» foi falar de putaria? Será que suas letras fossem pontilhadas de palavrões e de convites a «pegar» e «trepar» eles teriam respeito? Fazer música ruim pode, desde que seja obscena? Eu prefiro uma música que é apenas ruim, mas não contém ofensividade. Eu prefiro o «Restart». E vou comprar um disco deles para minhas filhas. Em homenagem ao Pê Lanza. Que pode não tocar nada, mas se ombreou em atitude com os caras citados acima. Garoto, você se mostrou homem. E um homem roqueiro sem que ninguém possa contestar. Agora, sinceramente, você já está crescendo. Trata de aprender a cantar e tocar melhor esse baixo, porque logo, logo vai ficar difícil manter-se ídolo das meninas e você vai precisar de mostrar música para vender disco. Você não quer virar um Júnior, né?

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05
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 23:00link do post | comentar

Você provavelmente nunca ouviu falar de Charles Kembo. Acontece que ele se tornou hoje o pivô de uma das notícias literárias mais interessantes do ano, ao tornar-se o autor do livro “A Trindade dos Super-Garotos, Livro I: A Busca pela Água”. Aparentemente não há razão alguma para que o caso seja “interessante”, mas o caso merece atenção.

Antes de tudo, é preciso dizer que a obra citada é bem justamente o que parece: uma trilogia de ficção científica protagonizada por jovens que salvarão o mundo de uma catástrofe. Mais do mesmo, óbvio. Você já leu esta história tantas vezes que não precisa ler mais esta para saber quase em detalhes tudo que acontecerá. Eu não li, mas as poucas informações que pude obter sobre o livro (que não pretendo comprar, pois meu dinheiro não dá em árvore) me fazem supor que os jovens correspondem a todos os modelos prefabricados de personagens heroicos adolescentes que aparecem nos livros mais vendidos atualmente. Portanto, a menos que Charles Kembo seja um artista genial com as palavras, o livro dele é provavelmente ruim. Acontece que o título por ele escolhido para o primeiro volume de sua trilogia não sugere que ele seja.

Ademais, o canal através do qual esta obra chegou a ser publicada não é nem um pouco recomendável: trata-se da famigerada PublishAmerica (cujo link não incluo para não gerar receita para picaretas), famosa por ter aceitado um pastiche intitulado “Atlanta Nights”, criado por alguns autores filiados à Associação Americana de Autores de Ficção e Fantasia (SFWA), mais um programa de computador. O caso está arquivado aqui (em inglês, sorry). Mas incluo um resumo abaixo, para benefício dos que não sabem inglês (e também da preguiça peluda que em que às vezes certos leitores se metamorfoseiam em noites de lua, cheia ou não, em uma estranha licantropia). Se você já conhece o caso, preferiu ler o texto que está no link ou se simplesmente confia em minha palavra, de que a PublishAmerica deveria chamar-se PublishIt!, salte os parágrafos comentados a seguir.

Muitos autores filiados à SFWA (e também jovens autores não filiados, mas que buscavam conselho) reclamavam das práticas da PublishAmerica, uma editora de fachada que se fazia passar por “tradicional”, mas que apenas arrancava dinheiro dos ingênuos. Esse tipo de empresa é chamada nos EUA de “author mill” (moinho de autores).
As reclamações variavam desde a qualidade da revisão e do projeto gráfico até à falta de promoção, passando pelos altos preços cobrados dos autores (você que escreve deve ter encontrado algo parecido aqui no Brasil, não?). Diante da divulgação destas reclamações pela SFWA (em sua página Writers Beware, ou “Atenção Autores”), a PublishAmerica defendeu-se atacando, de forma arrasadora, não apenas os autores reclamantes, mas todos os autores de ficção científica e fantasia. Segundo a PublishAmerica, o insucesso dos autores não se devia à falhas da editora, mas à falta generalizada de qualidade das obras destes gêneros, que, por serem relativamente fáceis de escrever, atraem um grande número de incompetentes, que se escondem atrás da fantasia para não terem que fazer pesquisa e nem preocupar-se com a verossimilhança de suas histórias. Ainda segundo a editora, os altos preços cobrados eram destinados especificamente aos autores de tais gêneros, pois em relação a eles não havia a menor possibilidade de sucesso devido à péssima qualidade das obras, e o dinheiro assim obtido seria investido nas carreiras de outros autores, mais talentosos.
Diante destas acusações graves e arrasadoras (com as quais eu concordo em parte, mas não em relação a todo e qualquer autor de ficção científica e fantasia), a SFWA se propôs a uma vingança: humilhar a PA provando que eles publicariam qualquer coisa desde que o autor estivesse disposto a pagar, e publicariam não apenas sem revisar, mas até sem ler.
Os autores se propuseram a escrever um livro que não apenas fosse terrivelmente ruim (mal escrito e incoerente), mas também cheio de erros óbvios: dois capítulos com a mesma numeração, um número de capítulo faltando, um capítulo com numeração menor que o anterior, personagens que não apenas morrem e depois reaparecem, mas até mesmo mudam de sexo de uma página para outra. Um dos capítulos foi produzido através de um programa de computador chamado Bonsai Text Generator, que produz frases gramaticalmente corretas, mas absolutamente sem sentido, a partir de um outro texto longo dado como amostra.
A obra assim produzida foi submetida à apreciação da PublishAmerica e não apenas foi aceita (com as congratulações e elogios de praxe, acompanhadas da “perspectiva de tornar-se um sucesso”) como foi supostamente “revisada” e “formatada” para impressão. Tendo coletado as provas (através de comunicações via e-mail) os autores foram aconselhados por um advogado a não assinar o contrato (pois incorreriam em falsidade ideológica) que permitiria a publicação (pois causariam prejuízo intencional). Preferiram divulgar amplamente o caso, achando que haviam obtido sua vingança.
Infelizmente, o mundo não é justo. Nasce um idiota a cada dia, e o fluxo contínuo de idiotas mantém a PublishAmerica funcionando e ganhando dinheiro até hoje. Talvez a PublishAmerica tivesse razão.

O que torna o caso de Charles Kembo literariamente interessante não são os aspectos intrínsecos de sua obra (que é provavelmente lixo), mas as circunstâncias que envolvem o autor. Se você já ouviu falar de “literatura marginal”, deveria engolir em seco, pois trata-se de muito mais do que isso: Charles Kembo é um assassino condenado à prisão perpétua por vários crimes ocorridos entre 2002 e 2005, um perfeito exemplar da fauna norte-americana de serial killers.

Por chocante que esta revelação possa parecer, ela traz à baila um debate importante para a literatura: até que ponto devemos separar a vida e a obra de um indivíduo. Recentemente, no Brasil, houve um sério debate sobre a proibição (ou pelo menos a restrição da divulgação) da obra infantil de Monteiro Lobato porque o autor era manifestamente racista. Charles Kembo é comprovadamente um assassino cruel e calculista, sem nenhum remorso. Isto, claro, é muito pior do que ser meramente racista. Ainda mais: ele está vivo, pronto para causar mais mortes se sair da cadeia, enquanto Monteiro Lobato, do túmulo, não pode produzir mais nenhuma frase racista além das que cometeu em vida. Quando do debate sobre a obra do criador do Sítio do Picapau Amarelo, defendi a tese de que as obras deviam ser analisadas em seu contexto, e não à luz dos defeitos do homem que as produziu, pois se formos policiar o caráter dos indivíduos para julgar o que fazem, então praticamente não haverá obra neste mundo que possa ser aceita, pois todos são, de alguma forma, moralmente reprováveis, ainda que apenas pelo bolinho que roubaram da vendedora ambulante quando crianças. Mas será que eu tenho a coragem de pregar o mesmo no caso de um assassino que se torna escritor?

No caso em questão eu não preciso me preocupar, porque o livro escrito pelo serial killer é uma porcaria óbvia. Ou melhor, pensando bem, preciso preocupar-me sim, porque a história recente nos tem mostrado que porcarias óbvias estão se transformando em livros muito vendidos e influentes. Não cito nomes porque não estou a fim de levar pedradas hoje, mas provavelmente você que me lê deve ter na cabeceira pelo menos uma obra que, se algum dia acumular mais leituras, se envergonhará de admitir que leu.

Então, se a falta de qualidade da obra não nos permite afastar a possibilidade de que ela faça sucesso (da mesma forma que a picaretice da PublishAmerica não a impede de continuar tendo um grande número de clientes até hoje), precisamos analisar o caso com atenção, e três perguntas se configuram:

1 - É aceitável que um criminoso tente tornar-se um artista? Vivemos a ilusão de que a cadeia é uma instituição que se propõe a regenerar o criminoso. Ao mesmo tempo convivemos com a existência no mundo de penas capitais e de prisão perpétua, que negam a possibilidade de regeneração de alguns criminosos ou, alternativamente, negam a aceitabilidade de que, tendo cometido certos crimes especialmente graves, alguém tenha o direito de querer regenerar-se. Existem até estudos psiquiátricos fundamentando que certos indivíduos, os tais “sociopatas” seriam criminosos incuráveis. Temos então duas posições possíveis, antagônicas.

A primeira nos diz que o indivíduo que comete um crime, qualquer crime, tem o direito de regenerar-se e eventualmente retornar ao convívio da sociedade, tendo cumprido sua pena. Se aceitarmos esta tese como correta, então não podemos negar a Charles Kembo o direito de aspirar a ser um escritor. Afinal, escrever é um tipo de trabalho (ainda que muita gente ache que não), inclusive um que tem grande potencial para utilização em tratamento psicoterápico ou psiquiátrico, devido à possibilidade que oferece de se ter acesso aos processos mentais do paciente. Permitir que um criminoso escreva é permitir que ele produz extenso material que pode ser utilizado para analisar seu comportamento e seus processos mentais, o que pode ser útil para definir se ele pode ser ressocializado.

A segunda posição nos diz que existem certos crimes para os quais não há e nem pode haver perdão ou regeneração, apenas a vingança. Você comete o tal crime e a sociedade se vinga de você, aprisionando-o pelo resto da vida em um cubículo, com acesso controlado a todas as coisas que definem a vida livre de um cidadão (ar puro, sol, liberdade de expressão, direito de ir e vir etc.), ou então matando-o de forma mais (enforcamento, apedrejamento, garroteamento, empalamento, linchamento, afogamento, sufocamento) ou menos (envenenamento, guilhotinamento, fuzilamento) dolorosa. Nesse caso a pretensão literária de um condenado à pena perpétua é uma violação de sua reclusão, e deve ser impedida.

2 - Quais os riscos envolvidos em ler uma obra produzida por um criminoso? Esta pergunta embute o conceito de que as pessoas são influenciáveis por aquilo que leem, o que eu acho correto, e que os autores conseguem fazer com que suas obras influenciem os leitores sempre em uma direção deliberada durante o ato da escrita, o que já acho altamente discutível. O grande problema com esta pergunta é que ela ignora um fato: não existe fundamentalmente nada diferente na mentalidade de um delinquente que não tenha pelo menos uma vez passado pela mente de alguém que nunca delinquiu.

A diferença é que algumas pessoas resolvem não fazer certa coisa, enquanto outras resolvem fazer. Podem existir razões que condicionam a escolha para uma direção ou para outra, mas existe também a sublimação: a possibilidade de converter um impulso destrutivo em uma ação não destrutiva. Um piromaníaco pode tornar-se um especialista em efeitos especiais, a fim de saciar sua vontade de ver as coisas queimando através da encenação de incêndios em cenários. E uma pessoa com tendências sádicas pode contentar-se em escrever livros profundamente violentos, detalhando torturas e mutilações espantosas. Nesse sentido, pelo pouco que li dos dois, existe mais violência na obra de um autor incensado, como Chuck Palahniuk, do que na tímida obra infanto-juvenil de Charles Kembo. Então é óbvio que o perigo de uma obra escrita por um assassino em série não está no seu conteúdo, visto que obras ainda mais violentas podem ser produzidas por pessoas de bem, que nunca fizeram mal a uma mosca. Se chegamos a esse ponto do raciocínio, fica a dúvida: qual seria, então a natureza do perigo envolvido na leitura de uma tal obra?

3 - Quais as motivações pelas quais Charles Kembo escreveu sua obra? Esta terceira pergunta é a consequência lógica da dúvida mencionada no item anterior. Se nos parece óbvio que o livro escrito por um criminoso violento e impiedoso não possui elementos tais, evidentemente isso se deve às motivações pelas quais a obra foi escrita. Quando Charles Kembo estava matando pessoas (sempre brancas, adultas e de classe média para baixo) ele tinha um determinado recado para a sociedade. Agora que ele está escrevendo, pode ser que ele tenha outro recado, relacionado ou não. Se existe um recado subjacente, então existe um perigo também: poderia o autor estar querendo passar algum tipo de mensagem codificada para alguém fora da cadeia? Ou está apenas querendo atrair simpatia para sua causa? Não custa lembrar que o famoso “Maníaco do Parque” pôde escolher uma esposa entre centenas de candidatas, jovens bonitas e estudadas — e não precisou escrever nada.

Penso que existem no mundo muitos livros mais perigosos do que qualquer obra escrita por um assassino confesso e condenado, como Charles Kembo (por quem, admito, desenvolvi certa simpatia ao escrever estes comentários). O autor dos “Protocolos dos Sábios de Sião” foi um funcionário público respeitável, que provavelmente morreu sem saber das consequências nefastas de seu patético esforço para convencer o povo russo de que todos os males do país eram resultado de um complô secreto dos judeus. É espantoso que tal livro tenha ensejado uma guerra mundial e justificado o massacre de dezenas de milhões de judeus ao longo do século XX (não estou me limitando aos judeus mortos pela Alemanha nazista, mas incluindo os linchados ou executados pela URSS, pela Turquia, pelas nações árabes após a partilha da Palestina e até pelos EUA). Dificilmente a obra humilde de Charles Kembo provocará algo de tal gravidade — e eu duvido muito que seja esta a sua intenção, a menos que ele tenha uma personalidade de vilão de desenho animado.

Como você já deve ter percebido, as respostas para estas três perguntas são difíceis. Para a primeira é possível simplesmente deixar que cada leitor escolha uma, de acordo com suas opiniões. Mas para as duas outras não há como achar explicação, somente poderíamos ter resposta se pudéssemos ler a mente do autor.

O resultado desta falta de solução é o espanto com que contemplamos o esforço literário de um condenado por tantas mortes. Cabe perguntar que tipo de gente se interessaria em ler tal livro? Que tipo de gente lê livros apelativos, pornográficos, violentos? Que tipo de gente desenvolve simpatia por criminosos (a ponto até de querer casar com eles)? Que mundo é esse, meu Deus?

Eu só sei de uma coisa: continuo mantendo a minha opinião. A obra é uma coisa separada do artista. Não me importa se quem a produziu era o maior dos depravados, desde que a obra produzida seja boa. Eu até acho aceitável rejeitar obras que tenham sido produzidas especificamente através do crime (uma obra escrita, por exemplo, com o sangue das vítimas do assassino, ou o seu diário “de campo” seriam totalmente inaceitáveis), mas se a obra não está diretamente conectada, na posição de “resultado” com o ato do criminoso, que mal há nela? Muitos autores foram, em algum momento de suas vidas, condenados (alguns até a morte). Tal condenação tem efeito retroativo para desqualificar as suas obras? Ou somente as obras produzidas depois dos crimes são “ruins”. Uma pessoa que comete crimes (especialmente crimes em série) não tivera sempre dentro de si o impulso para o mal?

Se não quisermos ter que responder a estas questões bizantinas, teremos que nos contentar com a solução pela simplicidade: julgue a obra por si, de forma que o autor possa até ser elevado ou rebaixado por ela, mas não deixemos que os erros ou acertos do autor interfiram nos erros ou acertos de sua obra. Pois, não custa lembrar, aquilo que é válido para o mal igualmente vale para o bem: devemos ler avidamente os livros péssimos escritos por pessoas de ótimo caráter?


03
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 22:03link do post | comentar

Essa tirinha foi praticamente um soco na boca do estômago porque utiliza um dos mais geniais recursos da sátira, a inversão do lugar comum. Basta você pegar um conjunto de frases feitas, de conhecimento de seu leitor potencial, e fazer alguma pequena mudança. Pequenas mudanças podem fazer grandes diferenças.

Estamos acostumados com a ideia de que desperdiçada é a vida de quem se entorpece com substâncias que afetam o corpo e a alma, que deixam a vida passar sem amealharem do vil metal. Que tal, porém, introduzir no debate a questão dos que desperdiçam sua vida de outro modo, vivendo vazios, dedicando-se a projetos quiméricos que não levam a nada?

O linguajar do repórter é o dos apresentadores de vespertinos policiais sensacionalistas, ou de jornalísticos noturnos pretensamente denuncistas. Mas troque a cracolândia por uma outra coisa, que tal imaginar uma cafelândia, onde engravatados estressados atravessam dias maquinando números e vendas?

André Dahmer caminha a passos largos para a genialidade.


06
Jul 11
publicado por José Geraldo, às 14:00link do post | comentar

Nosso sexto episódio analisando tirinhas dos “Malvados” traz um verdadeiro clássico, uma tirinha já bastante antiga (2006), mas imensamente atual:

Não há quase texto, as três imagens falam por si mesmas. Acredito que para a tirinha ser perfeita o André nem deveria ter colocado as legendas, apenas as datas. A sequência ilustra uma grande transformação cultural ocorrida ao longo do século XX e chega a ser desnecessário comentar muito. Este é realmente um caso em que imagens valem mais do que mil palavras.

Cabe, porém, um questionamento: por que hoje temos a necessidade de comprar uma lata que contenha mais do que feijão, mas também música?

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12
Dez 10
publicado por José Geraldo, às 09:50link do post | comentar | ver comentários (1)

Há algumas semanas divulgou-se uma estarrecedora pesquisa segundo a qual aproximadamente 80% dos estudantes brasileiros, ao término do primeiro grau, ainda não haviam adquirido plena competência da leitura; número que não era significativamente reduzido ao fim do segundo grau (porque, obviamente, não há espaço na escola secundária para trabalhar a alfabetização), e que ainda tinha impacto nos cursos universitários. Nada menos que 5% dos formandos em cursos superiores seriam analfabetos funcionais (e uma boa outra quantidade seria incompletamente alfabetizada).

Pois bem, há alguns dias, em São Paulo, uma garotinha de doze anos morreu, em um hospital de relativo renome, porque a enfermeira lhe injetou vaselina líquida em vez de soro fisiológico.

Você consegue ver a relação entre estas duas coisas? Não? Vou tentar explicar.

Se temos uma proporção tão grande de analfabetos funcionais ao término do curso superior, se temos tantas pessoas que, mesmo alfabetizadas, ainda não têm domínio pleno da leitura, é evidente que uma boa quantidade dos profissionais que estão sendo formados neste país tem dificuldade para ler e compreender instruções, rótulos, alertas, receitas etc.

Isto quer dizer que temos médicos que desconhecem sintomas porque não leem os laudos até o fim, que temos engenheiros que calculam errado porque não entendem as especificações, que temos professores que não conseguem ensinar bem porque ainda não dominam a matéria que deviam ensinar, que temos enfermeiras que podem matar crianças de doze anos porque não leem rótulos e receitas.

Uma característica do analfabeto funcional, e também dos que, mesmo alfabetizados, têm ainda dificuldade de leitura, é a preguiça de ler. Quem não é plenamente alfabetizado procura evitar ler porque ler lhes é penoso. Quando veem um texto longo como esse, desanimam de ler e reclamam de quem escreve. Quando veem letrinhas miúdas…

O que estou querendo dizer é que a ineficiência de nosso sistema educacional está produzindo uma geração de profissionais relapsos e incompetentes, profissionais que cada vez mais cometerão erros idiotas porque não querem ler, porque leem e não entendem ou porque as instruções, escritas por outros incompetentes, não são claras. A longo prazo esta incompetência generalizada vai matar cada vez mais gente. Enfermeiras que injetarão remédio errado, médicos que vão operar a pessoa errada, engenheiros que vão calcular errado, mecânicos que não vão saber consertar direito os novos modelos, com suas estruturas complexas etc.

Se você acha que estou inventando estes números, vamos a alguns links:

Mas o que mais me espanta é, diante de tais números absurdos, a presidente eleita ter dito que «a educação no Brasil já está encaminhada». Bem, encaminhada ela está. Apenas eu e a presidente divergimos para onde.


29
Nov 10
publicado por José Geraldo, às 13:54link do post | comentar | ver comentários (1)

Durante décadas o Brasil assistiu ao surgimento e ao crescimento do poder paralelo do tráfico no Rio de Janeiro, à sombra de um coquetel de incompetência, indiferença e conveniência. Causas que me esquivo de analisar a fundo, mas que os cariocas certamente entendem bem melhor do que eu, que olho de fora e com apenas solidariedade. A derrocada deste poder paraestatal que pareceu, em certo momento, triunfar sobre o Estado — sentimento magistralmente expresso pelo gaiato que certa vez declarou que «o crime organizado triunfa sobre o governo desorganizado» — deu-se no entanto, na esteira de um curioso fenômeno sociológico que quase ninguém ainda percebeu. Do que estou falando? Bem, «tropa de elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você».

Tudo começou quando o crime organizado rompeu o acordo tácito que sempre teve com a imprensa sensacionalista: «nós fazemos a notícia, vocês fazem o noticiário». A morte de Tim Lopes sinalizou que os líderes do narcoestado em gestação haviam começado a perceber na imprensa uma fonte de problemas, não mais uma aliada. Se antes os repórteres construíam as reputações de «malvadões» — de que tanto gostavam os jovens semianalfabetos e descalços que se alçavam ao poder propelidos pelo vício das classes superiores — agora ela passava a incomodar, à medida em que expunha os excessos a que os baronetes do tóxico haviam chegado, em sua ditadura sobre as vidas dos habitantes das localidades onde haviam se instalado. Tim Lopes morreu para mostrar que a favela não era um lugar pitoresco — ao contrário do que décadas de políticos conciliadores e ONGs escorregadias tentaram fazer ver.

Mais importante do que tudo: Tim Lopes era empregado de um Leviatã midiático bem musculoso, embora ferido, as Organizações Globo. Sua morte coincidiu com a derrocada definitiva da televisão aberta no Brasil, destinada desde já a transformar-se cada vez mais num monturo fétido de sobras. A Rede Globo de Televisão, cabeça deste império, precisava buscar outras frentes de expansão para precaver-se contra a iminente e inevitável decadência de suas receitas de publicidade oriundas deste veículo. Neste contexto, a exploração de novos mercados midiáticos já era uma realidade, mas faltava à Globo obter o impacto necessário para fincar bandeira.

Ao mesmo tempo, a política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro dava sinais de agonizar: nada parecia funcionar, nada parecia adiantar. Nesse cenário de desespero, em que todos pareciam desorientados, especialmente os pobres diabos que conviviam com loucos toxicômanos tarados armados de AR-15 na vizinhança, era absolutamente imperioso encontrar um herói. Melhor ainda se este herói, bem na tradição do herói brasileiro, não fosse um self-made man ou um cavaleiro solitário, mas um líder — algo de que tanto carece esse país.

Com a colaboração dos melhores cérebros que o dinheiro pode contratar, com atores globais em profusão, aproveitados da geladeira obrigatória por que passam para evitar desgaste de imagem, eis que surge «Tropa de Elite», o filme que transforma o antes pouco conhecido Batalhão de Operações Especiais da polícia fluminense em um fenômeno de mídia inusitado e inédito. «Tropa de elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você». A mensagem é dirigida ao traficante, e tem a intenção de profecia: um dia a casa vai cair e vai ser o caveira que vai dizer «perdeu, playboy» para o traficante descalço e sem camisa, cuja prisão emblemática funciona quase como símbolo heráldico da luta de classes, como expressão caricatural da subjugação do povo pela elite, quando incomodada.

Criado o mito do BOPE como reserva incorruptível dos valores da «boa polícia» e fixada a imagem do Capitão Nascimento como verdadeiro super-herói brasileiro, a Rede Globo entregou, de bandeja, nas mãos de um dos poucos governadores competentes que o Rio de Janeiro já teve desde que me entendo por gente, um cartucho de legitimidade para as forças da ordem, uma potência que poderia ser usada para terraplenar o crime organizado sem necessidade de ser politicamente correto. O povo carioca queria sangue, estava cansado de dar o próprio sangue e exigia o sangue dos bandidos (mas urina nas calças também serviria).

Não é necessário entrar nos detalhes de cada ato ou de cada política que foi levada a efeito no Rio de Janeiro desde que o primeiro Tropa de Elite invadiu a cultura de massas com sua mensagem clara de que, para o carioca e para o brasileiro, já bastava, já havia bastado há muito tempo, já havia bastado há muito tempo mesmo, só faltava os políticos, esses eternos maridos traídos, finalmente conseguirem enxergar, antes que dessem com a verdade como quem dá com o nariz na parede. O plano para matar Brizola, que aparece nessa história, não é detalhe desimportante: ele significa que é necessário matar o legado do caudilho gaúcho que introduziu a política de tolerância com a favela.

Quando Tropa de Elite saiu, alguns articulistas ventilaram na imprensa que o filme tinha uma mensagem fascista. Possivelmente. Mas poucos articulistas ventilaram que o crime organizado que se estabelecia em pseudoestado impunha, também, um totalitarismo manco.

Por isso Tropa de Elite 2 foi além do livro e colocou o Capitão Nascimento, já grisalho, tentando executar, através da política, o que não pudera executar com um fuzil na mão. Mas o poder do crime subornava deputados, juízes e sabe deus quem mais. Com o sucesso ainda maior, do segundo filme, ficou bem claro que todos que ventilassem qualquer coisa contra a arremetida inevitável contra o crime só poderiam estar mancomunados. Todos precisavam aplaudir, mesmo que tivessem as mãos sujas de sangue e o nariz entupido de cocaína.

Então, quando enfim, com apoio de blindados e bazucas, de marinha e de exército e de aeronáutica, o BOPE subiu a favela deixando atrás de si as crianças (em sua inocência) cantando o poderoso refrão, não foi inesperado que os «machos» do crime mijassem nas calças. Imaginar que dois mil homens treinados para matar estão subindo o morro atrás de você e que cada vizinho ou conhecido, de oito a oitenta anos, está com o dedo pronto para apontar seu esconderijo deve ser uma das coisas mais desesperadoras que se possa conceber. Tanto assim que o líder do Afro-Reggae chegou a declarar à imprensa que muitos chefões do tráfico estariam dispostos a render-se, que sabiam que pegariam «cana longa», alguns sabiam que até seriam mortos, mas eles pediam apenas que não fossem humilhados. Os facínoras se renderiam, até se entregariam à morte, diante de apenas a promessa de uma réstia de dignidade. Nenhum queria terminar como o Zeu, descalço e seminu, com as calças molhadas da própria urina e um olhar perdido, endurecido de medo, levado morro abaixo por um PM grisalho que tinha idade para ser seu pai. Em algum momento aquele jovem deve ter pensado na figura do próprio progenitor, de cita à mão, pronto para marcar suas nádegas de rebelde.

E assim a Rede Globo inspirou, guiu e cobriu um episódio quase orwelliano. Em que pese a necessidade de se destruir o crime, de se pacificar a cidade, de se destronar a ditadura do tóxico; é também verdade que esta destruição foi mais em efígie do que em fato, que ela foi preparada como espetáculo politicamente correto e funciona como exemplo do poder que Rede Globo ainda tem, apesar do sonho fútil de grandeza a que a Record aspira apenas. A Globo mostrou que tem o poder de produzir mais do que bordões de novela: ela produziu um mito que funcionou como instrumento de um fato histórico. Algum dia os historiadores se referirão a este ano de 2010 como o ano no qual um império midiático, ofendido em sua honra pela ousadia de matarem um protegido seu, orquestrou fria e meticulosamente, um fenômeno de massas de grande envergadura que terminou em uma cobertura jornalística de um fato real (embora transcrito da ficção).

E ficou o bordão, como um mantra a ameaçar doravante os que ousarem tentar criar outro pseudoestado ou que se opuserem à clara hegemonia cultural de que se fala: «Tropa de Elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você.»


20
Set 10
publicado por José Geraldo, às 08:34link do post | comentar

Um mistério do Orkut de quase dois anos está prestes a terminar: a identidade de “Juninhuuu Ribeiro”, um fake que postava na comunidade Novos Escritores do Brasil um tópico intitulado “A Minha Saga”, no qual contava as aventuras pornográficas e escatológicas de um alter ego picaresco e inverossímil. Famoso pela “cheirada”, pelo “gol anal” e ereção no teatro; Juninhuuu era uma espécie de mascote da N.E.B., pelo menos enquanto a brincadeira teve graça (e a própria comunidade).

Muito bem, até aqui eu falei muito sobre ele, mas não os deixei tomar informações. Para quem deseja conhecer a “obra” de Juninhuuu, aqui estão os links para as duas únicas produções suas conhecidas:

O blogue também pode interessar, pois lá existem alguns textos avulsos do “poeta censurado”, como a aventura de Adamastor, o Explorado. Agora passamos a especular: quem é Juninhuuu?

Especulações iniciais

Eu sempre suspeitei que Juninhuuu estava equivocado artisticamente, mas que sua atitude tinha objetivos que iam além do texto. Embora na superfície o seu texto parecesse desconexo, nojento e machista — qualidades suficientes para que a maioria dos leitores não perdesse tempo em analisar — uma análise mais detida me sugeria que a pessoa por trás do personagem era alguém que sabia fazer melhor, ou que poderia, mesmo sem ter essa noção. Certamente Juninhuuu era um personagem criado por alguém que queria mostrar alguma coisa e a “ruindade” aparente de seu texto era obtida através de uma cuidadosa preservação de todos os erros cometidos durante a escrita, por acaso ou de propósito, que provavelmente era feita através de um processo de “escrita automática” análogo ao empregado pelos surrealistas e pelos médiuns.

Inicialmente as suspeitas sobre a identidade de Juninhuuu recaíram sobre Sinki e sobre mim, ou sobre nós dois, embora nunca tenhamos compartilhado sequer um parágrafo em um terreno comum quanto a estilo ou objetivos literários. Surgiram várias teorias, algumas decididamente mirabolantes, houve até quem dissesse que o personagem era criado e mantido por uma mulher — e logo se aventou a possibilidade de Ilka ou Kate estarem por trás disso.

O que sempre foi evidente era que Juninhuuu representava um Id, a parte reprimida e frustrada da personalidade de alguém que tinha certo talento com a escrita, mas que também tinha uma profunda revolta com alguma coisa — e que, no delírio expressivo do criador do personagem, nunca sofre as consequencias de seus atos. O estilo desenfreado, priápico e desbocado com que Juninhuuu se comportava era um desabafo de alguém que teria de ser o oposto disso em sua vida normal: controlado, relativamente casto e educado. Um personagem real que fosse como Juninhuuu, mesmo que parcialmente, não teria desenvolvidas as habilidades (verbais e informáticas) exibidas pelo dito cujo.

A Prova no senac

Quando essas teorias começaram a ser ventiladas, surgiu uma suposta prova que teria sido feita por ele. Curiosa essa prova. Para começar ela está assinada exatamente como “Juninhuuu Ribeiro”, o que é inesperado, se considerarmos que esse não deve ser o nome real de ninguém: pois ninguém se chama “Juninhuuu”. Mais curioso é que essa prova seja mencionada em “Minha Saga”, capítulo 9. Aliás, o capítulo 9 consiste dessa prova, exclusivamente.

Existem outros aspectos problemáticos em relação à prova, mas falemos do momento em que ela apareceu, justamente quando muitas teorias sobre Juninhuuu estavam circulando. Outro aspecto que vale a pena mencionar é que só conhecemos a segunda (ou terceira) folha da referida prova (a que o aluno chama de “concurso”): por que não existem imagens das outras folhas e por que uma escola como o senac não teria nenhum tipo de papel timbrado para fazê-las? Merece também atenção o fato de a prova não ter data, mas se supõe que seja recente, da década de 2000, mesmo assim Juninhuuu se identifica com o Kiss, uma banda de hard rock setentista que já sumiu de cena há muito tempo. Somente pessoas de mais idade do que dezesseis anos ainda teriam contato com eles. Um personagem tal como Juninhuuu pretende ser estaria mais identificado com o funk, o hip-hop ou o pseudopagode — no máximo com o sertanejo ou o forró. Supor que Juninhuuu seja fã do Kiss reduz a credibilidade do personagem, especialmente se considerarmos o resto de sua “obra” e o contexto social no qual o personagem se insere.

A Aventura Argentina

Depois de algumas discussões sobre sua identidade, Juninhuuu desapareceu, reaparecendo tempos depois com sua aventura escatológico-surrealista na Argentina, momento no qual toda pretensão de realismo desaparece e Juninhuuu deixa de ser um personagem viável para ser uma espécie de ícone das taras e frustrações de seu autor. Novamente desaparecido, ele retorna muitos meses depois com suas aventuras sexuais no teatro, depois desaparece outra vez e retorna com seu relacionamento com a professora e depois com a matrícula no colégio interno.

O segundo episódio, na Argentina, parece deslocado da trama, mas é emblemático do tipo de pessoa que o autor de Juninhuuu realmente é. E os argentinos são vítimas disso.

Evidências da Identidade de Juninhuuu

Claro que eu não posso dizer o nome do suspeito que tenho em mente, para não ser processado por calúnia (atribuir a autoria dos textos de Juninhuuu a alguém é quase um crime, se não for crime mesmo). Mas vou lhes dar muitas pistas interessantes, a partir das quais vocês poderão tirar as suas conclusões.

Vocabulário

Juninhuuu afirma (pág. 4): “eu nao estou nem aí pra inteligência”. No entanto, o vocabulário empregado por ele é curiosamente elaborado para um moleque “rebelde” e ignorante de dezesseis anos. Você já viu algum pivete por aí dizendo ler Álvares de Azevedo ou empregando palavras como “púbis”, “subversão da juventude”, “estático”, “precipitações”, “expressão corpórea”, “nudez pública”, “fumaça cancerígena ”, “mente incontrolável”, “porão medieval”, “gárgula voraz”, “prostíbulo”, “revolução doméstica”, “famílias perdidas do século 21”, “liberar minhas endorfinas”, “troglodita diplomata”, “ exposição peniana”, etc.?

O nível de vocabulário que Juninhuuu emprega é surpreendente para alguém que teria dezesseis anos e seria um rebelde sem causa. Ele emprega nada menos do que 1458 vocábulos diferentes ao logo de todos os capítulos da saga e mais o conto Adamastor. Pode parecer pouco, mas é palavra que não acaba mais se você considerar que uma pessoa de cultura mediana costuma se sair muito bem com cerca de seiscentas.

Mas o vocabulário de Juninhuuu não é apenas extenso: ele também possui certas especificidades, como uma estranha familiaridade com termos teatrais, como “palco”, “plateia”, “canastrona”, “ tablado”, “ensaio”, “apresentação” e com termos políticos de esquerda.

Sexualmente falando, Juninhuuu não narra nenhum episódio que envolva penetração, muito curiosamente, aliás, para alguém que fala incessantemente de sexo e tenha uma verdadeira obsessão em decantar o tamanho do próprio pênis.

O autor que está por trás do personagem Juninhuuu escreve melhor do que a média dos autores orkutianos: ele só comete erros ortográficos nas palavras de uso mais comum. As palavras raras que ele emprega são sempre escritas corretamente. Ora, o que será que isso quer dizer? Se você estivesse realmente lidando com alguém capaz de escrever tão mal quanto Juninhuuu, seria duvidoso que ele fosse capaz de olhar palavras difíceis no dicionário (ou que fosse querer). A explicação mais óbvia é que ele escreve errado de propósito um certo número de palavras (além de adotar certas convenções, como não escrever “não” com til e nunca empregar inicial maiúscula), mas deixa certas as palavras incomuns, para que elas possam ser reconhecidas. A verdade é que o texto do Juninhuuu comete erros calculados, que nunca atrapalham o entendimento do desenrolar da trama — sem falar que ele pontua melhor do que muita gente que é dona de comunidade no Orkut.

Mas ele não se limita a escrever corretamente, ele também as emprega corretamente. As palavras raras que Juninhuuu emprega estão sempre usadas em seu sentido normal. Ele aparenta conhecer e usar essas palavras com razoável frequencia.

Organização da Narrativa

Embora o texto seja calculado para parecer tosco (inclusive não empregando iniciais maiúsculas), a verdade é que a aventura de Juninhuuu ocorre de maneira sempre linear, em episódios que se sucedem e que são completos em si mesmos. Na verdade, os diversos episódios da “Saga” parecem seguir uma sequencia lógica, abordando cada aspecto das frustrações de um nerd adolescente:

  • Juninhuuu começa a história isolado
  • Mas vai para a “praça” tocar violão e fumar maconha
  • Ele se liberta da opressão em que vivia quando toma banho nu na chuva e sua nudez é admirada por uma “velha”
  • Ele se rebela contra a escola e “compra uma camisa do Che Guevara” para se tornar “revolucionário”
  • Depois de cometer um ato terrorista para reivindicar o asfaltamento de sua rua, ele pega o seu patinete e vai a um puteiro (sic)
  • No prostíbulo ele fica com três mulheres, mas se masturba sobre seus rostos
  • Ele se revolta contra a sua mãe e destroi a porta de casa para representar sua rebeldia contra a opressão do lar
  • Ele foge de casa e vive na rua, até finalmente ficar com fome e resolve roubar uma loja do Carrefour, momento em que faz um discurso nacionalista e denuncia aquela empresa (aparentemente Juninhuuu é esquerdista-nacionalista ou simpatiza com esta ideologia)
  • Ele segue uma mulata até um trio elétrico que estava passando, mas em vez de aceitar transar com ela, ele prefere subir no trio elétrico e tocar uma música do Iron Maiden, protestando contra a música tocada pelo trio elétrico. Ao fazer isso ele é perseguido pela multidão e tem de fugir e esconder-se.
  • Ele vai à Argentina, excursionando com o time de futebol do bairro, ocasião em que marca um gol “anal”, para espanto da torcida do Boca Juniors.
  • Para tentar fazer as pazes com a mãe Juninhuuu se inscreve num concurso do senac, mas não estuda e passa o capítulo inteiro tentando dar um jeito de não ser o último colocado. Nesse momento, como em vários outros, Juninhuuu expressa frustração por ver pessoas que parecem ser mais cultas e/ou inteligentes que ele mesmo.
  • Matricula-se em um curso de teatro, no qual tem de interpretar nu, em uma peça de teatro que representava um ritual satânico. Para tentar impressionar umas garotas ele se apresenta sob o efeito de Viagra, com o pênis preso à perna por uma fita adesiva, mas ao ver uma mulher dando de mamar a uma criança a fita adesiva não resiste e após uma série de peripécias que ocorrem num curto espaço de tempo ele ejacula inesperadamente sobre a atriz que fazia o papel da vítima do sacrifício, causando revolta de todos os demais atores e espectadores
  • Tendo voltado à escola (não se menciona quando) e correndo o risco de tomar pau, Juninhuuu resolve seduzir a professora porque acreditava que ela seria mais benevolente com as notas após uma “fudelança geral”. Sua mãe descobre tudo e o plano acaba dando mais certo do que ele mesmo esperava. Mais uma vez o “ato sexual” de Juninhuuu envolve masturbação, e não penetração.
  • Depois de passar de ano, ele é matriculado em um colégio militar, de onde é expulso após usar a bandeira nacional como papel higiênico duas vezes.

Outras Indicações

No capítulo 9 Juninhuuu deixa escapar que usa óculos — algo que não combina com um adolescente rebelde, mas com algum nerd que expressa suas frustrações através de um personagem como ele.

Juninhuuu é na verdade “Paulo”, nome do usuário do computador que compilou o PDF que ele disponibilizou para download.

“Paulo” é um usuário do Windows e formatou a “Minha Saga” usando o Microsoft Word.

Possivelmente Juninhuuuu se chame “Paulo Ribeiro Júnior”, mas é impossível saber se esse é o seu nome real ou se é o nome do personagem.

Evidentemente Paulo/Juninhuuu possui habilidades com programas gráficos e com desenvolvimento para a web, como se nota pelo blogue e pela formatação do PDF.

Juninhuuu já leu “Os Lusíadas” (ou leu algo sobre esse livro), pois caracteriza um “grande homem” que era “explorado” por “capitalistas” com o nome de Adamastor, curiosamente o nome do gigante que os exploradores portugueses avistam no Cabo da Boa Esperança durante a viagem em busca da rota para as especiarias. É inexplicável que uma associação de ideias sofisticada assim exista na cabeça de um mané qualquer, e é até possível que ela só exista na minha cabeça e a escolha do nome Adamastor seja casual.

A criação e divulgação via web da “prova do senac” indica que o criador do personagem Juninhuuu foi tão longe quanto possível para dar credibilidade à sua farsa. Mas com que objetivo alguém faria isso?

Os Objetivos de Juninho — Uma Especulação

O fato de Juninhuuu se identificar como “O Poeta Censurado” merece análise: é mais uma pista de sua identidade e um indício de seus objetivos.

Na Novos Escritores do Brasil nunca foi segredo que os poetas não eram bem vindos. Era política oficial, ditada pelo dono da comunidade, que os poetas só seriam tolerados postando seus textos no Tópico Único. Muitos foram expulsos por não aceitarem isso, muitos se sentiam tolhidos, censurados por isso.

Curiosamente houve um Paulo poeta que foi expulso por justamente rebelar-se. O “Paulo Palhaço” (como o chamávamos, por causa de seu avatar com o palhaço chorando) poderia ser um forte candidato a “pai” do Juninhuuu se a expulsão dele tivesse ocorrido antes, mas não é impossível que ela tenha acontecido mesmo antes, com outro perfil. Há muitos paulos nesse mundo.

Se o criador de Juninho for um poeta expulso então ele deve ter se sentido muito mal por ver tantos textos medíocres sendo aceitos e comentados enquanto o dele, apenas por ser em versos, fora rejeitado. Que melhor maneira de denunciar isso do que fazendo um terrorismo poético” e criando um texto em prosa, de qualidade propositalmente horrível, mas de acordo com as regras da comunidade (pelo menos até certo ponto). A aceitação do tópico, os elogios que receberia, etc. seriam motivo de chacota para o criador de Juninhuuu e para as demais pessoas que compartilhem do segredo (possivelmente mais de uma). Ver o dono da comunidade, seus moderadores e alguns de seus membros mais influentes tendo que lidar com aquele tópico cheio de grosserias (literárias e civis) era uma vingança por ter tido um texto poético chutado apenas por ser poesia.

Conclusões

Eu não sei se a partir de algum ponto o Juninhuuu adquiriu vida própria, se o seu criador passou a gostar da coisa e a usá-lo para extravasar as suas frustrações (algo que é possível), ou se ele continua sendo apenas uma destilação de veneno contra Sir Adryan Sinki Peruano Tinen e sua comunidade. Neste caso a pessoa por trás do personagem é realmente doentia, para além de sua fixação masturbatória e de outros indícios de desajustamento psicológico que transparecem do texto.

O que eu sei é que a cada dia fica mais clara a minha tese inicial, que na época ninguém levou a sério: Juninhuuu é uma grande brincadeira que alguém está fazendo (talvez inspirado em uma outra brincadeira que eu mesmo fiz certa vez, usando um fake meu). Em algum lugar alguém está rindo muito de tudo isso.


14
Mar 10
publicado por José Geraldo, às 07:46link do post | comentar

Quando eu era moleque o terror de todo mundo era o “tarado”, esse estranho e incompreensível ser que habitava os romances de Nélson Rodrigues e Adelaide Carraro. As pessoas usavam a palavra como se fosse um codinome do capeta: “Fulano é um tarado” era uma ofensa pior do que dizer que era comunista. Aliás, os comunistas eram vistos como demônios exatamente por serem tarados (“comem criancinhas”, “amor livre”, etc.). Quando alguém mencionava a palavra, instintivamente punha as mãos para trás, num singelo gesto de proteção.

Hoje em dia a palavra está meio esquecida, ninguém mais tem medo de “tarados”. Eu mesmo já ouvi mulheres dizerem que preferem encontrar um tarado do que um assassino pela frente (quando eu era menino era o contrário: todo mundo jurava que preferia morrer do que perder para o tarado alguma coisa que não se devia falar).

O tarado ficou até romantizado: não foi uma louca, mas uma psicóloga que se apaixonou pelo maníaco do parque e casou com ele dentro da cadeia. No Pará um desses grupos tecnobregas decretou: “Sou um psicopata mas tenho muito amor para dar”. Desde que o tarado não desfigure nem mate ele é visto apenas como um pobre ser carente em busca de pregas desavisadas para afogar dramas existenciais e traumas de infância.

Na verdade é até desejável ser tarado. Quantas moças não matam de inveja as amigas dizendo: “meu namorado é um tarado”. Nos anos setenta até as prostitutas tinham medo dos tarados, hoje as moças de família sonham com um, de preferência que tenha emprego estável e cara de ator da Globo. O tarado está para a imaginação feminina assim como a mulher ninfomaníaca bissexual está para a do homem, e em ambos os casos a realidade não é exatamente como a imaginação.

É uma era de extremos, a mesma juventude que gosta de tarados exige um cervejão geladão e vai descendo até o chão na rebolação exagerada do último ritmo do verão. Ser tarado deixou de ser caso de polícia e virou obrigação. Seja um tarado você também ou vão achar que você é gay, como aconteceu comigo.

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14
Fev 09
publicado por José Geraldo, às 04:20link do post | comentar

Em algum momento, em 1995, eu datilografei em uma página de papel-ofício os seguintes versos: O que seria / de minha rebeldia / se eu não fosse um rapaz da burguesia / acometido pelo tédio da escrita / e um diploma superior?

Decerto eu estava pensando nas polêmicas de Lobão, artista cuja arte pouco me interessa, mas cuja filosofia sempre me instigou. Acho que se João Luís Wönderbag escrevesse logo o primeiro volume de suas memórias produziria uma obra mais relevante que toda sua música junta.

Minhas palavras tinham a ver com algo que já se notava em 1995, mas hoje está tão escancarado que nem se pode mais deixar de ver: a rebeldia se transformou primeiro em uma estética, e hoje é uma ideologia. Primeiro escavou seu nicho na cultura, hoje se tornou a face mais comum do sistema.

Você sabe o que é o “sistema”? Bem, metade dos revoltados do mundo falam mal dele mas parece que tampouco sabem. O sistema é uma entidade abstrata, cada vez mais abstrata. Interessa-lhe que seja abstrato porque nos controla. Você reconhece um falso rebelde pelo simples fato de ele ter a permissão de ser um sucesso.

Dia desses, enquanto lia um artigo surreal do Hermano Vianna elogiando Chimbinha e Joelma eu percebi com toda força o que já se insinuava há quase duas décadas: está havendo uma ideologização da arte, uma politização do fazer artístico. Trocando em miúdos: as pessoas estão analisando as obras de arte (sejam música, pintura, literatura ou outra coisa) não pelo seu valor propriamente dito, mas pela sua “postura” — real ou suposta — em relação ao “sistema”.

Hermano Vianna tece elogios quase sexualmente explícitos a Chimbinha porque a Banda Calypso fez sucesso à revelia do “sistema”, porque ela representa um sintoma de que a as “elites” (outra entidade abstrata que serve de Judas para o esquerdismo cultural) estão “perdendo o controle”. A música da Banda Calypso não importa, o importante é seu papel no combate ao sistema.

Esse bolchevismo substituiu o comentário especializado sobre as características da arte em si, vista como algo “elitista”. O próprio Hermano Vianna lamenta que Chimbinha não seja legitimado como artista, apesar dos milhões de discos que vendeu – o tipo de discurso dos que defendem a prosa rala de Paulo Coelho. Até mesmo o pseudo-funk é tido por ele como um “movimento” (outro termo político) que merecia ser tratado pela Secretaria de Cultura e não pela de Segurança Pública. Talvez porque na opinião do crítico exista algo de cultural nas mortes e na violência que cercam o “movimento”.

Acontece que está na moda ser rebelde, embora o Brasil nunca tenha sido um país comunista (ou talvez exatamente por isto) as nossas elites culturais se travestem de profetas da revolução pela via cultural, já que nunca conseguiram avançar na luta pela via política devido à acomodação (já no século XIX Martins Pena detectava que no Brasil ninguém é mais conservador que um liberal no poder). Esta revolução cultural, é claro, não passa de uma desculpa porque, feita pela via do popularesco, ela destrói mais do que constrói. Talvez alguns líderes de tal ideologia realmente achem que estão limpando o trecho para o nascimento de uma nova cultura ou de um novo país, mas suspeito que muitos querem apenas ganhar dinheiro com isso. Porque hoje em dia a revolução se transformou em uma lucrativa indústria.

Desta forma, a “elite cultural” de nosso país resolveu se apropriar da estética popular e utilizá-la como instrumento de sua influência sobre o próprio povo. Quanto mais vazia for esta estética popular, mais útil ela se torna como instrumento. O pseudo-funk que as elites querem que saia da Secretaria de Segurança Pública não é mais o gênero praticado por Cidinho e Doca, com sua mensagem de orgulho e amor-próprio (“Eu só quero é ser feliz / andar tranqüilamente na favela em que eu nasci”), mas a trilha sonora de acasalamento de brontossauro cantada por pseudo-gente como o MC Créu (“Créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu”).

Da mesma forma, o popular por que se interessam estas elites não são artistas de talento nascidos no seio do povo, como a maravilhosa cantora baiana Virgínia Rodrigues, mas qualquer coisa que seja caricata e popularesca, que apresente o povo como uma massa desmiolada em permanente cio. E mesmo no seio do popularesco (que é a perversão do popular) não escolhem artistas que trazem elementos de choque. Não basta que seja ruim, é preciso que seja um ruim sem discussão.

Em “1984”, George Orwell predisse que no futuro as sociedades totalitárias buscariam o controle do povo justamente pela difusão de música ruim:

Aquela canção estivera assombrando Londres nas semanas anteriores. Era uma das incontáveis canções parecidas publicadas para benefício dos proletários por uma sub-seção do Departamento de Música. As letras de tais canções eram compostas sem qualquer intervenção humana em um instrumento conhecido como “versificador”.

E exatamente de que letra estamos falando? De uma que diz coisas assim:

Foi somente uma ilusão sem sentido
Que passou como um dia de abril
Mas com um olhar e uma palavra
Os sonhos me agitaram
E roubaram meu coração.

E que tal compararmos isso com um dos recentes sucessos de certo cantor popular?

O que posso fazer
Se a vida é assim
Apostei tudo em seus beijos
E assim mesmo te perdi
Não me peça perdão
Não chore, por favor
Suas lágrimas são falsas
De mentira foi teu amor
Não me diz mais nada
Nem sei como me enganou
Se a lua não é queijo
Nem as nuvens de algodão
Para que seguir mentindo
Com amor e ilusão?

Não existe rebeldia alguma nesta letra composta para emburrecer quem a ouvia e manter as massas sob controle. Não existe rebeldia alguma nas letras da música popularesca que toca no rádio hoje. E também não existe rebeldia alguma nas fórmulas de rebeldia que os autores e compositores de hoje produzem.

Em 1991 Lobão já esculachara os rumos do pop nacional dizendo que num futuro não muito distante o rádio estaria inteiramente ocupado por “rebeldes Barbie”: gente de pose rebelde que, no fundo, não têm nenhuma consciência artística e apenas seguem a fórmula da moda.

Segundo o Sr. Wönderbag estaria na moda ser rebelde, falar palavrão, combater “o sistema”, usar drogas, fazer tatuagem, etc. Doze anos depois de suas proféticas palavras já tivemos RBD, hoje temos “Crepúsculo” (com seus vampiros cuidadosamente desinfetados) e o pseudo-funk e o pseudo-calipso: o sistema abraçou a rebeldia e a transformou em mais um departamento.

Imagino que no futuro haverá até associações de anarquistas, clubes de rejeitados, vampiros que não chupam sangue, tarados que não estupram, assassinos que matam apenas em sonhos, etc. Tudo cuidadosamente planejado para que a arte seja sempre algo seguro, tal como os versos do brega Wanderley Andrade, cheios de duplo sentido e de oxímoros que fazem pensar:

Sou um psicopata / Mas eu tenho muito amor / Pra dar, amor pra dar.

Afinal, além dos quinze minutos de fama, todos temos o sagrado direito de sermos rebeldes dentro do curral.

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