Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
26
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 20:51link do post | comentar | ver comentários (2)
We don't need no education,We don't need no thought control,No dark sarcasm there in the classroom.Teachers, leave them, kids, alone.Hey, teacher! Leave the kids alone.All in all it's just another brick in the wall.
A leitura de Preconceito Linguístico: o que é e como se faz — obra seminal de Marcos Bagno — me abriu os olhos para algo que eu intuía, mas nunca articulava: o viés de luta de classes que está presente na concepção da língua como algo que precisa ser ensinado ao povo ignorante, ao povo que não sabe falar. Na visão da gramatiquice tradicional, já devidamente desancada por Monteiro Lobato em sua Emília no País da Gramática, o povo é uma espécie de primata pelado que não se humaniza, pela linguagem, se não for à escola, esse laboratório do saber onde o tosco bípede é amestrado naquilo que serve aos objetivos da sociedade capitalista.

Eu já havia sentido na pele esta situação nas vezes em que fora discriminado por falar como um «roceiro», já percebera esta tensão na diferença de prestígio entre o falar de uma região em relação ao de outra. Mas Bagno me abriu os olhos também para uma outra coisa que eu não tinha ainda percebido: que a língua, tal como a falamos, não é uma versão bastarda e manca da Última Flor do Lácio Inculta e Bela. Em vez disso, é um fenômeno novo, coerente, gramaticalizável e perfeitamente útil na boca de quem o usa. A língua que a gente fala é um dialeto do português padrão, que os gramáticos tradicionais querem descongelar da forma em que foi posto ainda no século XIX.

Estas ideias ficaram voejando em torno de minha cabeça durante anos, sem que eu as levasse mais adiante, até o dia em que se acendeu em mim uma centelha de novidade: o dia em que meu interesse por línguas artificiais — eu estudara esperanto ainda na adolescência, embora nunca tivesse aprendido a realmente falar — se uniu às ideias de Marcos Bagno e ao meu orgulho mineiro. Isso aconteceu enquanto começava a escrever um romance — ainda não terminado — intitulado provisoriamente Serra da Estrela.1 Meus amigos +Eduardo Jauch e +Sergio Ferrari são alguns que estão acompanhando o processo.

Enquanto pesquisava para formatar a língua «estropiada» que os personagens de meu romance falariam, comecei a perceber que não era necessária tanta pesquisa, bastava mapear os metaplasmos, arcaísmos, «corruptelas» e outros fenômenos, fonéticos, morfológicos e sintáticos, que ocorrem em meu próprio falar quando não me policio para tentar parecer «educado». Esta constatação foi ainda mais aprofundada quando, ao dialogar com estrangeiros, percebi a facilidade com que eu saía do português castiço e recaía em meu dialeto, ininteligível para eles.

O processo de mapeamento destas características me levou, no fim, a perceber que a gramática do português que tem sido ensinada na escola não é realmente a da língua que falamos. É uma gramática estrangeira para a maioria de nós. Nada é tão alijado do falar do povo quanto uma gramática normativa que ainda emprega segunda pessoa e recomenda a mesóclise. Se esta língua formal está tão longe do falar do povo, por que o nosso sistema de ensino não reconhece isso e adota em seu ensino técnicas pedagógicas adequadas para o ensino de línguas estrangeiras? Seria certamente mais efetivo do que cobrar de pobres crianças que assimilem como «errada» a língua que aprenderam naturalmente e como «certa» uma língua que lhes é imposta pelo sistema de ensino. Crianças mais inteligentes e de auto estima mais alta, como eu modestamente me declaro (e vocês logo entenderão porque), aprendem eficazmente o português padrão sem abandonar o uso de sua língua natural. Crianças menos inteligentes, ou menos talentosas para o aprendizado de línguas, padecerão a vida inteira com a impressão de que falharam em aprender a própria língua. Para elas o português está errado, e é uma língua difícil. Mas elas se enganam: errado está o método, errada está a escola que finge que o povo fala exatamente como nos livros.

Basta que eu passe a escrever empregando convenções ortográficas mais próximas do coloquial e tolerando os fenômenos morfológicos e gramaticais característicos de meu dialeto para que se perceba que não podemos aceitar como dada esta correspondência entre a língua que se ensina e a que se fala. Afinao, a gente nõ fala iguao screve. Cada lugar do Brasio tem um jeito seu de falar. Nõ tá nem errado e nem certo, é só dois jeito diferente de ser e de falar. Na gramática formao tem «concordança» do sustantivo com toda as palavra que ligõ co ele, maes em quaes todo os dialeto do país o plurao fica só no artigo. A diferença entre o L e o U no finao das sílaba é uma coisa que só eziste na gramática e no dicionari, e o povo se entende co isso. As palavra «proparoxítona» é otro pobrema: pelo menos aqui in Minas Geraes isso quaes nõ eziste e o povo assimila as duas última sílaba. «Fósforo» vira fosfo, «música» vira musca. E quano nõ dá para fazer essa mudança, mudam a palavra: nada fica «próximo», maes umas coisa fica perto.

Mudanças léxicas, semânticas, sintáticas, fonéticas, morfológicas. À parte as semelhanças restantes, as diferenças já acumuladas são suficientes para se afirmar, sem muito medo de errar, que entre os dialetos brasileiros e o português padrão já existe mais diferença do que entre as formas padrão do português e do galego, tidos como línguas diferentes.

Não quero aqui argumentar que devamos sucumbir a estas forças (elas vencerão de qualquer forma, com o tempo), mas que está mais do que na hora de entendermos que o povo não fala «errado», apenas fala uma variante linguística não padronizada e não gramaticalizada (posto que não há gramáticas e nem dicionários desses falares coloquiais). Precisamos respeitar o povo, deixar de vermos nele um primata pelado que precisa «aprender a falar» e enxergar nele o que é, um cidadão pleno de direitos, como qualquer outro, que apenas calha de falar diferente.

Não é necessário, claro, abolir o ensino do português padrão, como algum boçal leitor dirá que eu estou defendendo porque não foi letrado o suficiente para ler até aqui, apenas modificar o modo como é ensinado, para que deixe de se basear na humilhação inútil dos alunos com a imposição de um padrão artificial como natural. Ensinar o português padrão com a noção de que ele é diferente daquela língua que o menino fala e que esta língua que a escola ensina, apesar de não ser «melhor» do que a outra, é a língua adotada pela nação, como traço de união de todos os brasileiros.

Quando se popularizar esta consciência de que o português padrão é um fenômeno alheio à realidade imediata do aluno, será mais fácil ensinar-lhe a gramática pátria. Não será preciso, intolerantemente, dizer-lhe que «assim é que é certo», apenas que na língua padrão é diferente. No dia em que não for mais necessário usar a língua padrão como ferramenta de subjugação das identidades regionais ela será até mais efetiva para unir os diversos povos que formam o povo brasileiro.

1 Nome que vai aos poucos se tornando definitivo pelo costume.

10
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 17:46link do post | comentar | ver comentários (1)
Não é preciso, absolutamente, discorrer sobre as virtudes de nosso sistema educacional. Mesmo porque, tal discurso não seria suficiente para preencher uma postagem. Suficiente para botar a Indonésia no chinelo e galgando um honroso 36º lugar mundial, graças ao fato de não haver dados sobre a maioria dos países, a nossa educação goza de um status de praga do Egito, apesar de, segundo nosso governo, estar «no caminho certo». Com alguma boa vontade, querendo crer que ele tem razão, eu diria que demos os primeiros passos, os primeiros dois passos, de uma jornada equivalente à conquista da Índia por Alexandre, com a esperança de que dará certo, ao contrário do famoso episódio histórico. Alexandre pelo menos sabia onde ficava a Índia, receio, porém, que as pessoas que gerem nosso sistema educacional tenham apenas uma vaga ideia.

É com certa vergonha que esclareço isso, mas dado o nível médio de analfabetização do público neste país (75% de pessoas sem suficiente domínio da leitura), é sempre bom alertar que, no parágrafo acima, a Índia é empregada uma vez como metáfora.

Tal como o índio ficava fascinado por espelhos e imaginava virtudes para o pequeno objeto luminoso que não compreendia, nós, como verdadeiros botocudos, continuamos querendo soluções mágicas para nossos problemas, e gostamos mais das que brilham do que das que funcionam. Damos mais valor a espelhos e contas do que a facas. E agora o Ministério da Educação descobriu outra fórmula mágica.

Nosso sistema educacional é tão absurdo que eu duvido que ele tenha chegado a este ponto por uma evolução natural das coisas. Ele só pode ser defeituoso de propósito, porque não faltaram, em nossa história, iniciativas grandes que poderiam nos ter feito avançar muito. A ditadura de Vargas criou o sistema público de ensino, excelente, mas não se deu prosseguimento com a implantação de escolas modelo pelo país. Se uma quantidade suficiente delas tivesse sido criada, a massa crítica de pessoas esclarecidas que sairiam delas teria tido um efeito a impulsionar por mais estruturas semelhantes. O MoBrAl dos militares, apesar dos ranços ideológicos, poderia ter erradicado o analfabetismo e dado ensino primário a quase toda a população. Às favas com as ideologias, muitos países do mundo só erradicaram o analfabetismo sob o tacão de ditas, duras ou brandas (Turquia de Atatürk, URSS, Alemanha de Bismarck, China de Mao, Vietnã comunista, Cuba castrista). Mesmo que os militares tivessem as piores intenções, se o MoBrAl cumprisse seu fim esse país seria outro, porque não há nada mais revolucionário do que alfabetizar um povo (leiam MacLuhan).

Então é evidente que todas as iniciativas educacionais no Brasil sempre foram sabotadas, especialmente quando pareciam «no caminho certo». Para cada passo à frente, um ou dois para os lados, ou para trás. E quando surgia alguma voz iluminada trazendo ideias originais (ó, o horror!) vinha a seguir uma onda de idolatria cega de modelos importados. Tivemos Paulo Freire pouco antes de importarmos o sistema americano de «high school» (devidamente tropicalizado com a remoção de suas virtudes, como o período integral, as aulas de artes, a educação física e o ônibus escolar amarelo).

Em uma coisa, porém, todos os idealizadores de nosso sistema educacional sempre tiveram em comum: é uma excelente ideia reformar. Nem bem você começa a se acostumar com a divisão do sistema educacional em primário, admissão, secundário e terciário vem uma reforma e cria o primeiro grau e o segundo. E quando já estavamos acostuados a contar oito séries e mais três surge o segundo grau técnico, com primeiro ano básico, fazendo o secundário ter quatro anos. Ao longo de todo esse tempo, enquanto os intelectuais se ocupavam fazendo reformas e tentando reconectar fios nas cabeças dos alunos, vicejou a indústria do cursinho, que ensinava aos egressos dessas escolas-laboratório o mínimo necessário para entrarem numa faculdade e se manterem lá.

A ideia de reformar faz sentido, se você quer proteger o próprio traseiro. Se nada está funcionando, vão procurar demitir primeiro quem «não está fazendo nada», então pareça ocupado andando de um lado para outro com uma planilha de dados na mão e dando marteladas a esmo, de vez em quando propondo demolir uma parede ou comprar um mesa nova. Essa faina dá a impressão de que você tem um projeto, um propósito. Mais que isso, dá a impressão de que você é útil para o funcinoamento da coisa, enquanto o faz-nada que só fica tentando entender o que não está funcionando é um câncer do sistema que precisa ser logo operado.

E dá-lhe reforma educacional. Foram cinco durante a República Velha, quatro durante a ditadura de Vargas, quinze anos de debates até se chegar à primeira Lei de Diretrizes e Bases (1961), três reformas durante o regime militar, e pelo menos duas (três ou quatro, dependendo de como você conte) desde a redemocratização. Quinze reformas educacionais em 123 anos de República. Uma média de uma reforma educacional a cada oito anos. Praticamente ninguém nesse país se formou sem «sofrer» uma reforma educacional. E eu nem mencionei as mudanças que não foram implementadas através de reformas constitucionais ou leis ordinárias. Se formos contar as mudanças efetivadas através de portarias do Ministério da Educação (e seus equivalentes passados) a gente chega ao absurdo número de 52 mudanças estruturais na nossa educação em 123 anos de República. E os nossos alunos tiram notas ruins porque são burros, não é mesmo? Aham…

Há momentos em que eu começo a pensar que não importa muito se estamos mesmo indo na direção certa. Eu gostaria que simplesmente fôssemos por tempo suficiente em alguma direção, qualquer direção, para termos como saber se é a direção certa. A impressão que tenho, ao estudar a história de nossa educação, é que ficamos rodopiando no mesmo lugar, babando para qualquer novidade surgida nos Estados Unidos, na Alemanha, na França, no Japão, na URSS ou na puta-que-o-pariu. E dá-lhe ensino técnico, método Kumon, construtivismo, escola nova, ginásios, vestibulares, interdisciplinaridade, behaviorismo etc. Queremos ser tudo, ter tudo. Queremos que a nossa educação empregue todas as teorias educacionais do mundo. O que equivale a querermos que nosso carro seja ao mesmo tempo pick-up, perua, carro de passeio, esportivo e compacto.

Quando é que vamos parar com essa mania de ficar mexendo na máquina? Quanto tempo até algum iluminado ter a ideia de que, talvez, quem sabe, possivelmente, o nosso sistema educacional, seja ele qual for, funcionaria se simplesmente os professores pudessem trabalhar em paz? Não precisa ficar reinventando a roda, mudando a distribuição de séries, criando nomenclaturas. Vamos simplesmente dar formação sólida aos mestres escola, pagar-lhes salários razoáveis, oferecer-lhes cursos de reciclagem periodicamente, dar segurança e estrutura às escolas. Depois que tivermos feito isso por uns dez ou vinte anos, no mínimo, e esgotado o potencial de crescimento orgânico de nosso sistema, tosco que seja, vamos pensar em aperfeiçoamentos metodológicos. Vamos primeiro consertar o motor e lanternar direito esse calhambeque, depois a gente compra bancos de couro, pneus radiais e, quem sabe, turbine a máquina.

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